RESUMO: O presente trabalho busca traçar, de forma simplificada e inclinada para a teoria geral das obrigações, um panorama geral acerca da aplicação da teoria do inadimplemento antecipado como exceção ao princípio da imutabilidade dos contratos. Justifica-se a relevância do tema na contemporânea indissociabilidade entre os deveres de proteção e deveres de prestação. Estruturando-se no tripé formado pela legislação, doutrina e jurisprudência, o artigo apresenta-se organizado nos seguintes tópicos: (i) histórico breve do surgimento e desenvolvimento da figura, evidenciando a transição da obrigatoriedade absoluta dos contratos até a sua relativização com a incidência das teorias revisionistas do século XX; (ii) análise sobre a incorporação e a previsibilidade do tema no ordenamento jurídico brasileiro; e (iii) exposição dos pressupostos positivos e negativos, os elementos e as consequências jurídicas que decorrem diante da aplicação do instituto, especialmente no que tange a possibilidade de resolução contratual.
Palavras-chave: Inadimplemento obrigacional. Termo. Teorias Revisionistas do Contrato.
1. HISTÓRICO E EVOLUÇÃO
O direito contratual brasileiro encontra-se regido por princípios fundamentais que respondem pela garantia do equilíbrio e da segurança jurídica nas relações contratuais. Essa tranquilidade social do contrato repousa, sobretudo, na sua força obrigatória, conhecido pelo brocardo do pacta sunt servanda. Em termos gerais, o princípio da imutabilidade contratual vincula as partes de forma positiva, quando obriga as partes contratadas a se submeterem ao vínculo jurídico criado, e de forma negativa, quando, sob a égide da proteção da autonomia da vontade e da liberdade de contratar, veda, em regra, a atuação estatal que modifique o contrato em prol de uma só das partes.
Entretanto, ao longo da evolução do direito contratual e do constitucionalismo, a preocupação com a efetiva manutenção do equilíbrio social permitiu a relativização da imutabilidade absoluta dos contratos. Essa mudança de orientação e, consequentemente, a criação de uma exceção no universo contratual, veio acompanhada de técnicas revisionais e exoneratórias de responsabilidade. Esses mecanismos permitem às partes contratantes a reavaliação das obrigações contraídas e dos meios de sua execução, essencialmente na ocorrência de fatos que modifiquem, de forma substancial, as circunstâncias previstas na época de formação do contrato, alterando o seu equilíbrio e prejudicando ou impossibilitando o cumprimento das obrigações (ROTTA E FERMENTÃO, 2008) .
Ou seja, quando se observa uma alteração significativa no plano social e econômico em comparação ao quadro existente no momento de formação do contrato, que inviabiliza o adimplemento antes do termo, passa-se a aceitar, excepcionalmente, a possibilidade de intervenção judicial no conteúdo de determinados contratos, a fim de promover a correção do desequilíbrio das prestações. Portanto, os fundamentos e os princípios de ordem pública que passaram a integrar o Direito Privado relativizam o princípio da integridade da obrigação para admitir, ainda que contrariamente ao livremente pactuado, bem como à vontade do credor, a humanização das relações patrimoniais (GARBI, 2014). Surge, assim, a mitigação da obrigatoriedade contratual pelas teorias revisionistas, como a da onerosidade excessiva, da imprevisão e do inadimplemento antecipado.
Segundo Areal e Júnior (2015), as crises econômicas serviram de substrato para o surgimento das teorias revisionistas. Na França, os autores citam a Lei Faillot como precursora do revisionismo que, diante da deterioração da economia durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) que dificultava o adimplemento dos grandes compradores de carvão, estabeleceu a possibilidade de revisão contratual unilateral para que, diante da crise, os compradores conseguissem honrar o pagamento. Em cenário semelhante, a República de Weimar (1918 1933) encontrava-se em um quadro econômico e inflacionário caótico, de modo que os contratos não podiam manter-se imutáveis, pois a equação econômico-contratual se modificava diariamente. Naturalmente, esses cenários deram ensejo ao desenvolvimento e consolidação das teorias revisionistas que hoje permeiam o direito contratual do ocidente.
Atualmente, além da nítida inspiração do cenário pós-guerra e da consequente derrocada da presunção de igualdade absoluta de força entre as partes contratantes, os princípios e valores constitucionais passam a nortear a interpretação dos institutos clássicos do direito obrigacional. Desse modo, os conceitos de obrigação, adimplemento e inadimplemento precisam ser relidos à luz da ótica civil-constitucional inaugurada com a Constituição Federal de 1988 e do Código Civil de 2002. Na linha do exposto por Cunha (2015), o adimplemento consiste em um processo dinâmico dentro do qual o devedor deve executar uma série de atos e observar inúmeros deveres (principais, secundários e laterais) necessários ao adimplemento. Partindo dessa premissa, a doutrina jurídica começou a sustentar que a inobservância desses deveres ao longo da relação obrigacional enseja a configuração do inadimplemento antes do termo.
2. A PREVISIBILIDADE NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
No Brasil, apesar da crescente relevância nas discussões doutrinárias acerca da relativização da imutabilidade contratual, a teoria do inadimplemento anterior ao termo não possui previsão legal expressa. Entretanto, o reconhecimento do instituto pode realizar-se por meio da interpretação extensiva empreendida sobre o artigo 475 do Código Civil, in verbis: a parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos. Outrossim, a análise do inadimplemento antecipado prescinde de uma interpretação sistemática da teoria contratual brasileira, especialmente sobre a perspectiva dos princípios da boa-fé objetiva, manifestado essencialmente pela incorporação de deveres anexos à relação, e da confiança, ao fazer preponderar a vontade das partes consubstanciada nas cláusulas contratuais, do que propriamente o teor escrito e a literalidade da linguagem empregada.
Nessa senda, o enunciado nº 437 da V Jornada de Direito Civil do Conselho de Justiça Federal (CJF), convergindo com o exposto no supracitado dispositivo legal, declara que a resolução da relação jurídica contratual também pode decorrer do inadimplemento antecipado. Ou seja, o enunciado reafirma a possibilidade de que tal teoria seja utilizada para a resolução contratual, desde que aplicada no caso de não cumprimento da obrigação pactuada no prazo anteriormente acordado entre as partes.
Na seara jurisprudencial, conquanto não seja utilizada a denominação doutrinária inadimplemento antecipado ou anterior ao termo, a teoria aufere aplicabilidade, sobretudo na análise de contratos de alienação fiduciária de imóvel na planta e em contratos de compra e venda hipóteses em que há entendimento firmado pelo STJ no sentido de reconhecer a possibilidade de extinção do contrato por quebra antecipada das obrigações. Exemplificativamente, o Ministro Relator Ricardo Villas Bôas Cueva, no âmbito do julgamento do REsp: 1792003 SP 2019/0010153-2 (T3- Terceira Turma. DJe 21/06/2021) manifesta que:
[...] o inadimplemento antecipado, no qual um dos contratantes manifesta a intenção de não honrar a obrigação ou pratica atos que tornam impossível o cumprimento da avença, permitindo, assim, a resolução do negócio. Para tanto, é necessário que haja manifestação inequívoca da parte quanto à inexecução do contrato, diante de elementos aptos a demonstrar o futuro descumprimento contratual
Face a essa exigência de elementos concretos que caracterizem o futuro descumprimento obrigacional, De Aguiar Júnior (2011, p. 579) aduz que o inadimplemento antes do tempo pode se caracterizar quando o devedor pratica atos que, por força de sua própria natureza ou da lei, são nitidamente contrários ao cumprimento, ou quando, não obstante o comportamento efetivo contra a prestação, o devedor reproduz declarações expressas acerca do descumprimento. Assim, identificada a ocorrência objetiva desses eventos, há uma presunção de que não haverá o adimplemento e, consequentemente, abre-se ao autor a possibilidade de propor a ação de resolução. Nesse mesmo sentido, Freitas (2019, p. 93) alude que, para a configuração do inadimplemento antes do termo:
afiguram-se necessários suporte fático dito objetivo e outro subjetivo. O primeiro diz com a manifestação do devedor de não querer ou não poder adimplir, bem como o comportamento comissivo ou omissivo que inviabilize o adimplemento no termo ajustado, ensejando a perda de utilidade da prestação para o credor ou, ao menos, a impossibilidade do alcance da prestação satisfativa no prazo avençado [...]. O segundo requisito, dito subjetivo, consiste na presença da conduta dolosa ou culposa do devedor, a tornar o não cumprimento fato imputável à sua esfera jurídica.
Ratificando esse entendimento, o instituto do inadimplemento antecipado tem previsão na Convenção das Nações Unidas sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias - Uncitral, promulgada pelo Decreto nº 8.327/2014, que estabelece em seu art. 72, acerca da violação antecipada em contratos com prestações sucessivas, que se antes da data do adimplemento tornar-se evidente que uma das partes incorrerá em violação essencial do contrato, poderá a outra parte declarar a rescisão deste".
3. PRESSUPOSTOS, ELEMENTOS E EFEITOS DO INSTITUTO
A adequação perfeita da figura do inadimplemento antecipado depende da presença de determinados elementos, que condicionam, em termos globais, a possibilidade de sua aplicação. Ou seja, são situações que funcionam como pressupostos e, portanto, precedem ao ato (inadimplemento) e se colocam como elementos indispensável para a sua existência jurídica Nessa linha, Cardoso (2014, p. 71) aduz que o inadimplemento antecipado do contrato requer, como pressuposto positivo, isto é, aquele que, por assegurar utilidade a figura, não pode estar ausente, a existência de um contrato com prestação principal sujeita a termo.
Por outro lado, os pressupostos negativos são aqueles fatos que não podem ocorrer para a instauração da figura, ou seja, antes do inadimplemento, deve estar ausente a impossibilidade, absoluta e permanente, da realização da prestação, seja por fato não imputável ao devedor, caso em que ele estaria exonerado da responsabilidade, seja por fato a ele imputável, caso em que restaria configurado o inadimplemento absoluto em si, sem que se pudesse cogitar de inadimplemento antecipado (ibidem, p.76). Acontece que, nesses casos, o direito das obrigações já estabelece outro tipo de solução, ou liberando devedor da obrigação, ou aplicando-se o regime do inadimplemento definitivo da obrigação. Portanto, dispensa-se a necessidade de aplicação de uma figura distinta daquela anteriormente prevista.
Identificados os pressupostos positivos e negativos, apresentam-se os elementos que compõem a figura do inadimplemento antecipado. Esses elementos constitutivos, quando presentes, autorizam a incidência da teoria, permitindo que se recaiam sobre as partes as consequências jurídicas diante do contrato antecipadamente inadimplido:
- Inadimplemento de deveres preparatórios, instrumentais ou de lealdade e cooperação manifestado pela declaração de não adimplir, pelo exercício de ato contrário à prestação principal, ou pela ausência de atividade preparatória necessária à prestação principal, v.g, a prestação de garantias ou formalização pública de atos que assim o exigem (PEREIRA, 2008, p. 94).
- Perda da função social do contrato, no sentido de frustação da finalidade contratual gerada pelo inadimplemento dos deveres acessórios ou laterais, seja pela prospectiva impossibilidade relativa de cumprimento da prestação no seu termo, ou pela legítima perda da confiança no cumprimento do fim contratual (CARDOSO, 2014, p.72).
Por fim, presentes os elementos constitutivos, apontam-se as possíveis consequências jurídicas do inadimplemento antes do termo: direito de resolução contratual, entendido por Mitidiero (2006) como o direito a extinguir o total efeito do contrato obrigatório, como se não houvesse sido concluído nunca e, por isso, é um direito de modificação ou de formação."; a legitimação da exceção de contrato não cumprido, permitindo a legítima suspensão de pagamentos, bem como a inexigibilidade da prestação da parte lesada e a não configuração da mora, ou do inadimplemento, por quem deixa de prestar nessas condições; e a indenização pelos danos sofridos pela parte lesada.
REFERÊNCIAS
AREAL, Mônica; JUNIOR, Nelson C. Tavares. A aplicação da teoria do inadimplemento antecipado como exceção ao princípio da imutabilidade dos contratos. 2015.
CARDOSO, Luiz Philipe Tavares de Azevedo. O inadimplemento antecipado do contrato no direito civil brasileiro. 2014. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo.
CUNHA, Raphael Augusto. O inadimplemento na nova teoria contratual: o inadimplemento antecipado do contrato. 2015. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo.
DE AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado. Comentários ao Novo Código Civil, volume VI, tomo II: da extinção do contrato. Coordenador Salvio de Figueiredo Teixeira Rio de Janeiro: Forense, 2011.
FREITAS, Rodrigo Lima e Silva de. O locus de atuação da exceção de contrato não cumprido no ordenamento jurídico brasileiro. 2019. 148 f. Dissertação (Mestrado em Direito Civil Constitucional; Direito da Cidade; Direito Internacional e Integração Econômica; Direi) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.
GARBI, Carlos Alberto. A intervenção judicial no contrato em face do princípio da integralidade da prestação e da clausula geral da boa-fé. São Paulo: Escola Paulista de Magistratura, p. 71, 2014.
MITIDIERO, Daniel Francisco. Resolução contratual: delineamentos e efeitos. Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil, São Paulo, 2006. n. 8.
PEREIRA, Paulo Sérgio Velten et al. A exceção do contrato não cumprido fundada na violação de dever lateral. 2008. Tese de Doutorado. Dissertação de mestrado apresentada à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo.
ROTTA, Mariza; FERMENTÃO, Cleide Aparecida Gomes Rodrigues. O Pacta Sunt Servanda-Cláusula Rebus Sic Stantibus e o Equilíbrio das Relações Contratuais na Atualidade. Revista Jurídica Cesumar-Mestrado, v. 8, n. 1, p. 193-218, 2008.
STJ, REsp 1792003/SP 2019/0010123-2, 3ª T., Rel. Ricardo Villas Bôas Cueva. DJ 21.06.2021.