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Não se faz reforma tributária com discursos ocos

18/04/2022 às 15:45
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Conceder grande poder de tributar a um Estado ou Município pobre que não tem o que tributar não é o caminho.

Palavras chaves: Reforma tributária. Mistificação. Realidade brasileira. Justiça fiscal.


Temos duas principais propostas de reformas tributárias, a PEC nº 110/2019 e a PEC nº 45/2019, ambas felizmente empacadas.

Seus autores, data vênia, ignoram a realidade brasileira cheia de desníveis regionais em termos socioeconômicos, bem como a tipicidade de nossa Federação de origem centrífuga, ímpar no mundo.

Seus autores partiram para a mistificação, empunhando a bandeira populista banalizada ao extremo, acenando com a simplificação do sistema, neutralidade e justiça social, noções avidamente absorvidas pela população leiga que vem sofrendo com o peso da tributação cada vez mais acentuado.

Na visão simplista e acrítica desses autores bastaria reunir um punhado de tributos incidentes sobre o consumo em torno do imposto do tipo IVA europeu, com o sofisticado nome de IBS, um conceito em aberto que tem por limite o céu, metendo uma alíquota uniforme de 25%, e tudo estaria resolvido.

São incapazes de verificar que a realidade brasileira não é tão simples assim, e nem a nossa Federação é tão simples, ao contrário, é a mais complexa no mundo contemporâneo, formada que foi por meio de um movimento centrífugo (de dentro para fora), o que explica a maior parcela de poder em mãos da União.

Porém, esse centralismo é flexibilizado pela outorga constitucional de uma rígida discriminação de impostos privativos cabentes a cada ente político, para assegurar a autonomia político-administrativa aos três entes federativos juridicamente pacificadas, apesar das distinções do ponto de vista econômico. De ouro lado, coloca os contribuintes a salvo de governantes cuja maior virtude é a de apenas arrecadar cada vez mais.

Ora, é fácil de compreender que avançar sobre tributos privativos dos entes regionais e locais, para simplificar o sistema tributário, é impossível sem quebrar a espinha dorsal de nossa Federação, protegida em nível de cláusula pétrea.

Outrossim, a projetada reforma não tem o condão de igualar a todos pela média, para suportar uma alíquota uniforme de 25% em nome da justiça fiscal ao inverso. Nem tem o condão de eliminar as desigualdades sociais, o que não impede a inserção de textos de natureza programática como aquele previsto no caput do art. 170 da Constituição vigente. A reforma proposta não é capaz, também, de transformar em oásis os imensos desertos do Nordeste. Estados e Municípios existem que não conseguem sobreviver com impostos privativos.

Daí a complexidade da Federação brasileira a exigir um sistema tributário peculiar centrado na rigidez da discriminação de rendas privativas, de um lado, e partilhadas no produto de arrecadação e participação nos fundos, de outro lado.

Conceder grande poder de tributar a um Estado ou Município pobre que não tem o que tributar não é o caminho.

Essas questões elementares passaram ao largo na visão simplista e acrítica dos proponentes da reforma que sequer conseguiram digerir os modelos importados.

Aqui se faz oportuna a invocação do saudoso jurista Geraldo Ataliba:

[...] “a raiz de toda essa confusão está – como insistentemente temos denunciado –  na colonial admiração pela cultura européia e na compreensão simplista e acrítica de doutrina jurídica, importada às toneladas e mal digeridas” (Sistema constitucional tributário. Editora Revista dos Tribunais, 1968, p. XIV e XV).

Realmente, nos países da Europa, todos eles unitários, adotam como alíquotas básicas do IVA 20% ou 25%, porém, com flexibilização de alíquotas para 18%, 16%, 14%, 12% e até isenções, dependendo de cada situação.

Se isso acontece em países unitários, com muito maior razão as alíquotas devem ser flexibilizadas em um País de Federação díspar em termos socioeconômicos e com autonomia dos Estados e Municípios.

A nossa Federação não comporta a proclamada simplificação porque ela é complexa.

À época do Brasil Império, um país unitário como os países da Europa, o sistema tributário era dos mais simples. Continha um único artigo voltado para a iniciativa privativa da Câmara dos Deputados em matéria de impostos (art. 36, 1º).

Limitava-se à proclamação do princípio da legalidade tributária. Mais não era necessário, pois, tínhamos um único governo dirigido pelo Imperador que promovia a arrecadação tributária distribuindo o seu produto para as províncias à medida das necessidades de cada uma delas.

A reforma tributária há de ser realista com o abandono de linguagens mistificadas que não resolvem os reais problemas que o País atravessa no campo de tributação.

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Sobre o autor
Kiyoshi Harada

Jurista, com 26 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HARADA, Kiyoshi. Não se faz reforma tributária com discursos ocos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6865, 18 abr. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/97310. Acesso em: 26 abr. 2024.

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