sumário: 1) Conteúdo Normativo e Integração ao Direito Pátrio.2) Competências do STF, do STJ e da Justiça Federal fundadas em Análise de Tratado Internacional: Possibilidade de Discussão Direta em Nível Constitucional.
O artigo 5º da Constituição teve também agregado pela EC 45/2004 dois novos parágrafos, cabendo agora analisarmos o contido no parágrafo 3º acrescido com o seguinte teor:
"Art. 5º. (...)
(...)
§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.
(...)"
Ao dar novo relevo a certos tratados e convenções internacionais, colocando-os no mesmo plano das emendas constitucionais, e assim agregando seus conteúdos ao ordenamento jurídico como se agregados à própria Constituição Federal, o constituinte derivado, embora num primeiro exame parecesse ter-se desviado da Reforma do Judiciário, acaba, por via oblíqua, afetando questão processual quanto às discussões sobre tratados internacionais sobre direitos humanos aprovados por quorum qualificado similar ao de emenda constitucional para determinar, com isso, uma releitura obrigatória dos artigos 102, III, 105, III e 109, III, da Carta de 1988.
CONTEÚDO NORMATIVO E INTEGRAÇÃO AO DIREITO PÁTRIO:
Nesse primeiro aspecto, há que se notar a salutar locução adotada pelo constituinte derivado, que coloca os tratados e convenções internacionais, aprovados segundo o mesmo rito exigido para as emendas constitucionais, em plano "equivalente", mas não os caracterizando como tais. Tal efeito faz com que a aprovação da norma internacional que envolva direitos humanos, por quorum qualificado, não seja incorporada como emenda constitucional, mas promulgada como as demais, por meio de decreto legislativo e depois por decreto presidencial, ainda que considerando os especiais efeitos que decorrerem de tal integração ao Direito pátrio.
Tal particular efeito faz indagar se a eventualidade de uma norma constitucional própria resultar em contradição com a norma internacional assim aprovada pelo Estado brasileiro caracterizaria a derrogação ou não da norma primária.
Penso que os "efeitos equivalentes" emprestados às normas internacionais sobre direitos humanos, aprovadas por quorum qualificado do Congresso Nacional, apenas resultam na suspensão da eficácia da norma constitucional contrária, enquanto vigente o tratado ou convenção internacional assim promulgado, inclusive pela possibilidade de denúncia que possa envolver a retirada de tal norma do ordenamento jurídico pátrio, caso em que a norma constitucional primária retornaria à sua eficácia original.
Esse o efeito lógico e prático de não ter determinado que o tratado ou convenção internacional sobre direitos humanos, aprovado por quorum qualificado, fosse promulgado como emenda constitucional, mas que apenas tivesse efeitos equivalentes às emendas constitucionais, de modo a sobrepor-se à legislação infraconstitucional e poder suspender normas constitucionais anteriores, enquanto vigirem.
Doutro lado, ao limitar tal efeito apenas àquelas normas internacionais que delimitem direitos humanos e tenham sido aprovados por quorum especial do Congresso Nacional, o constituinte derivado acabou por estabelecer imensa dificuldade aos aplicadores do Direito quanto à verificação de condição formal não elucidada no mero conteúdo da norma para delimitação de efeitos diversos.
Afinal de contas, não bastará o conteúdo da norma descrever dispositivo pertinente a direitos humanos, porquanto também terá que ser o mesmo aprovado por 3/5 dos votos dos respectivos membros da Câmara e do Senado, em dois turnos, da mesma forma que ocorre com as emendas constitucionais.
Também há que se notar que apenas os dispositivos com o conteúdo pertinente a enunciar direitos humanos é que estão atingidos pelo novo parágrafo 3º do artigo 5º constitucional, e por isso é de todo cuidado não vislumbrar efeito generalizado, conceituando todo tratado e convenção internacional como equivalente a emenda constitucional apenas por conter dispositivo que disponha sobre direitos humanos, porque apenas esse é que pode ter tal eficácia especial.
Mas o que são os direitos humanos descritos? Envolveriam apenas os direitos individuais e coletivos previstos no artigo 5º, ou se estenderiam também àqueles seguintes, como os direitos sociais e os direitos políticos?
Seria a regra de enunciação como parágrafo do artigo 5º suficiente a limitar tal equivalência aos direitos descritos em tal dispositivo constitucional, ou poderiam suplantá-los para atingir também os demais que se seguem, decorrentes da normatização no mesmo título da Constituição que descreve, em inequívoca Declaração, os Direitos e Garantias Fundamentais?
A Lei Complementar nº 95/1998, que regulamenta o parágrafo único do artigo 59 da Constituição Federal, assim dispondo sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis, em sentido amplo, inclusive assim das emendas constitucionais, enuncia, no seu artigo 11, III, "c", que se deve "expressar por meio dos parágrafos os aspectos complementares à norma enunciada no caput do artigo e as exceções à regra por este estabelecida".
A ser assim, pareceria resultar do parágrafo 3º uma inequívoca complementação normativa apenas do artigo 5º da Constituição, ao qual se vincula.
Mas há que se notar que também o parágrafo 2º do artigo 5º constitucional enuncia a extensão de direitos e garantias além dos limites do referido dispositivo, noutros planos normativos, não sendo lógico que tal enunciação explícita alcançasse normas infraconstitucionais e desconsiderasse o mesmo efeito para normas constantes do mesmo título da própria Constituição Federal.
O parágrafo 1º do referido artigo 5º da Constituição ultrapassa os limites de direitos individuais e coletivos para enunciar norma pertinente a todos os direitos e garantias fundamentais, agregando seus princípios gerais também a outros direitos e garantias, e assim expressando efeitos para além dos limites que lhe são próprios, alcançando efetivamente toda a Declaração dos Direitos e Garantias Fundamentais, contida no Título II da Constituição Federal.
O modelo instituído pela EC 45/2004, cabe notar, repete, em menor medida, o contido no artigo 75, § 22, da Constituição da Argentina, que assevera específicos tratados e convenções recepcionados em nível constitucional e estabelece, na parte final, que os tratados e convenções sobre direitos humanos, a serem firmados com a República, para terem igual hierarquia devem ser aprovados pelo quorum qualificado exigido na respectiva Constituição Federal. [01]
O modelo argentino alerta para dois problemas relativos à norma constitucional brasileira sob exame: o primeiro, como dar hierarquia constitucional, por equivalência, aos tratados e convenções internacionais já antes ratificados; o segundo, como eventualmente denunciar o tratado ou a convenção internacional com tal hierarquia para excluí-lo(la) da ordem jurídica nacional.
Cabe notar que a Constituição argentina expressamente elencou, desde logo, os tratados e convenções internacionais que recepcionava com hierarquia constitucional, o que deixou de ser feito pelo Congresso brasileiro ao promulgar a EC 45/2004. Também cabe notar que a Constituição argentina exige que a denúncia pelo Poder Executivo a quaisquer dos tratados ou convenções referidos seja aprovada pelo Congresso mediante o mesmo quorum qualificador.
No caso brasileiro, penso que a saída constitucional seja a re-ratificação pelo Congresso Nacional das normas internacionais sobre direitos humanos que entenda deva ter relevo constitucional, certo que a premissa constante no parágrafo 2º do artigo 5º da Constituição, ao estabelecer que "Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte", apenas estabelece que o elenco constitucional não é restritivo, mas que a ampliação não acarreta outorgar hierarquia constitucional aos direitos e garantias expressos em normas infraconstitucionais ou decorrentes de normas internacionais dos quais seja o Brasil signatário. Com a re-ratificação, os efeitos a partir de então seriam de integração da norma internacional no plano equivalente ao das emendas constitucionais, não se podendo outorgar o mesmo valor àquelas normas sobre direitos humanos pretéritas, ainda que então aprovadas por quorum qualificado, porque a EC 45/2004 expressamente definiu o tempo futuro para definir a não-recepção imediata das demais normas internacionais já integrantes do ordenamento pátrio.
No concernente à questão da eventual denúncia da norma internacional qualificada com hierarquia constitucional, penso que o modelo argentino sirva para o modelo pátrio, exigindo que o Congresso Nacional atue como efetivo "revogador" do tratado ou da convenção que, aprovada por quorum especial, tenha sido declarado equivalente a emenda constitucional, como faria eventualmente com as emendas, ou seja, devendo a denúncia ser aprovada, em cada Casa do Congresso, pelo quorum de três quintos dos respectivos membros, em dois turnos de votação.
Por isso, penso que o contexto sistemático da norma constitucional exige ultrapassar aqueles limites interpretativos enunciados pela LC 95/1998, no particular, emitindo a interpretação de que a norma pertinente a direitos humanos, seja no contexto da individualidade ou coletividade, seja ainda no campo social ou político, envolve a possibilidade de ser agregada à Declaração dos Direitos e Garantias Fundamentais, como se contida em emenda constitucional, ainda que decorrente de tratado ou convenção internacional, se assim, por igual quorum deliberativo, o Congresso Nacional decidir, devendo as normas pretéritas expressamente ser re-ratificadas pelo Poder Legislativo para alçarem tal hierarquia constitucional, ao instante em que, equivalendo-se a emendas constitucionais, apenas poderão ser denunciadas mediante o mesmo procedimento exigido para sua aprovação.
COMPETÊNCIAS DO STF, DO STJ E DA JUSTIÇA FEDERAL FUNDADAS EM ANÁLISE DE TRATADO INTERNACIONAL: POSSIBILIDADE DE DISCUSSÃO DIRETA EM NÍVEL CONSTITUCIONAL:
Por decorrência de tais efeitos integrativos ao Direito Pátrio dos tratados pertinentes a direitos humanos que hajam sido aprovados por quorum qualificado do Congresso Nacional, passando a equivaler a emendas constitucionais, há que se perceber uma nova problemática envolvendo os recursos contra as decisões que os apreciem.
Com efeito, o artigo 109, inciso III, da Constituição, assevera competir à Justiça Federal de primeiro grau "processar e julgar (...) as causas fundadas em tratado ou contrato da União com Estado estrangeiro ou organismo internacional", sem discorrer sobre o tema envolvido em tal norma de Direito Internacional.
Nesse sentido, o mero fato da causa restar fundada em tratado internacional já atrai a demanda para a Justiça Federal, sem levar-se em conta, inclusive, os efeitos doutro dispositivo muito questionado inserido pela Emenda Constitucional nº 45/2004, o inciso V-A e parágrafo 5º do artigo 109 da Constituição Federal.
Portanto, se a causa se funda diretamente no cumprimento ou não do tratado internacional, a discussão far-se-á perante a Justiça Federal, esteja ou não envolvida discussão alusiva a direitos humanos, e esteja ou não o tratado elevado à condição equivalente a emenda constitucional, por força do recente parágrafo 3º acrescido ao artigo 5º da Constituição Federal.
No entanto, a problemática processual decorrente de tal inovação contida na EC 45/2004 emerge quando prolatada a decisão pelo Tribunal Regional Federal, a partir do instante em que possível a interposição de recurso subseqüente, ante as regras contidas nos artigos 102, III, e 105, III, da Constituição Federal.
Há que se perceber que, baseada na anterior doutrina de integração das normas internacionais ao Direito Pátrio no mesmo plano das leis ordinárias, mais que inequívoca restava a regra do artigo 105, III, "a", da Constituição ao estabelecer cabível o recurso especial "quando a decisão recorrida (...) contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência".
No entanto, em relação àqueles tratados envolvendo direitos humanos e aprovados em caráter especial com a chancela de equivalência às emendas constitucionais, emerge a dúvida se não seria desde logo aplicável o artigo 102, III, da Constituição, que estabelece como cabível o recurso extraordinário quando envolvido, sob diversas nuances, a contrariedade a preceito constitucional.
Ora, se tal tratado refoge do âmbito ordinário do ordenamento jurídico pátrio para elevar-se ao nível constitucional, sujeito apenas às regras próprias à invalidade de emenda constitucional (artigo 60, § 4º, c/c artigo 5º, § 3º, da Constituição Federal), emerge que a discussão recursal que envolva a contrariedade de tal tratado internacional sobre direitos humanos, aprovado por quorum especial do Congresso Nacional, é de cunho constitucional e cabe ser enfrentado diretamente pelo Supremo Tribunal Federal, através de recurso extraordinário, e não mais pelo Superior Tribunal de Justiça pela via do recurso especial.
Isto porque, mesmo que a discussão seja a de repelir-se o referido tratado internacional sob o fundamento de ter inobservado preceitos constitucionais pretéritos, também para tanto a competência se perfaz no âmbito do Supremo Tribunal Federal à luz da regra específica do artigo 102, III, "b", da Constituição Federal.
Ou seja: tanto para a discussão que envolve o descumprimento do tratado especial quanto a que o repele por inconstitucionalidade, o foro recursal competente, doravante, é apenas o Supremo Tribunal Federal pela via do recurso extraordinário, eis que para o recurso especial não estabeleceu a Constituição Federal tal envergadura, permanecendo o Superior Tribunal de Justiça com a competência recursal apenas para as discussões que envolvam a contrariedade ou negativa de vigência aos demais tratados internacionais não abrangidos pela regra do artigo 5º, § 3º, da Carta vigente, conforme redação dada pela Emenda Constitucional nº 45/2003.
Doutro modo, o Superior Tribunal de Justiça estaria apreciando matéria constitucional privativa do Supremo Tribunal Federal ou estar-se-ía diminuindo o status conferido pelo Congresso Nacional a determinados tratados envolvendo direitos humanos, quando aprovados à luz do artigo 5º, § 3º da Constituição Federal, situando-os em equivalência às emendas constitucionais que passam a integrar a Carta política de 1988, logo que promulgadas.
Nota
01 Constituição da República Argentina: "Art. 75.- Corresponde al Congreso: (...) 22 - Aprobar o desechar tratados concluidos con las demás naciones y con las organizaciones internacionales y los concordatos con la Santa Sede. Los tratados y concordatos tienen jerarquía superior a las leyes. La Declaración Americana de los Derechos y Deberes del Hombre; la Declaración Universal de Derechos Humanos; la Convención Americana sobre Derechos Humanos; el Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales; el Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos y su Protocolo Facultativo; la Convención sobre la Prevención y la Sanción del Delito de Genocidio; la Convención Internacional sobre la Eliminación de todas las Formas de Discriminación Racial; la Convención sobre la Eliminación de todas las Formas de Discriminación contra la Mujer; la Convención contra la Tortura y otros Tratos o Penas Crueles, Inhumanos o Degradantes; la Convención sobre los Derechos del Niño; en las condiciones de su vigencia, tienen jerarquía constitucional, no derogan artículo alguno de la primera parte de esta Constitución y deben entenderse complementarios de los derechos y garantías por ella reconocidos. Sólo podrán ser denunciados, en su caso, por el Poder Ejecutivo nacional, previa aprobación de las dos terceras partes de la totalidad de los miembros de cada Cámara. Los demás tratados y convenciones sobre derechos humanos, luego de ser aprobados por el Congreso, requerirán del voto de las dos terceras partes de la totalidad de los miembros de cada Cámara para gozar de la jerarquía constitucional. (...)"