3. A Reforma
No que atina a responsabilidade do Estado Legislador, eis que a originalidade portuguesa decidiu ir mais longe, procurando concretizar definitivamente os anseios constitucionais à semelhança daquilo que já se encontra entendido na doutrina e na jurisprudência.
Através da proposta de Lei n.º 95/VIII, pretende o Governo Constitucional revogar o Decreto-lei n.º 48 051/67, de 21 de novembro, e introduzir um novo regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado.
Com este, buscar-se o aperfeiçoamento do regime da responsabilidade pelo exercício da Função Administrativa, o estabelecimento de um regime geral da responsabilidade pelo exercício da função jurisdicional e a introdução, de forma inovadora, do regime da responsabilidade pelo exercício da função política e legislativa.
Reportando-nos apenas ao regime da responsabilidade pelo exercício da função legislativa, é proposta do Governo, de acordo com a sua exposição de motivos [43], fixar os elementos constitutivos desta responsabilidade, optando por evitar o apelo ao conceito de culpa, por esta não ser muito compatível com a liberdade de conformação política e com o contraditório parlamentar; e por reconhecer a verificação da conduta do legislador - se dentro do padrão exigível quando da apreciação do caso concreto -, admitindo, por fim, a possibilidade da limitação do montante indenizatório pelo tribunal, por razões de interesse público, quando for consideravelmente elevado o número de lesados por uma ação ou omissão legislativa ilícita e culposa.
Infelizmente, à luz da expectativa de um remédio fulcral para todos os problemas que envolvem esta questão, não foram, estas inovações propostas, alvo de muitos aplausos.
Anotando ser juridicamente inaceitáveis as restrições expressas na proposta de lei do Governo, critica Rui Medeiros [44] que «num contexto marcado pelo reconhecimento generalizado pela doutrina e pela jurisprudência da aplicabilidade direta do artigo 22.º da Constituição à responsabilidade pelo ilícito legislativo, vem agora o governo, sob a capa da concretização do referido preceito constitucional, e sem que alguma vez tenha assumido publicamente uma intenção restritiva, restringir substancialmente o âmbito da obrigação de indenizar por danos resultantes do exercício da função político-legislativa».
Não pretendendo nos estender à análise dos preceitos propostos e nem aos motivos que levaram às suas críticas, ficam aqui assentadas e reafirmadas as colocações expostas no corpo deste trabalho que, aliás, foram empregadas com fulcro na doutrina atual e na jurisprudência. Afinal, trata-se o referido projeto de lei de mais uma tentativa, talvez a mais expressiva, da interpretação do generalíssimo princípio contido no artigo 22.º da CRP.
Conclusão
1. A responsabilidade civil do Estado por atos legislativos ilícitos, encontra-se, sem hesitações, fundamentada pelo artigo 22.º da CRP.
2. A responsabilidade contemplada pelo artigo 22.º da CRP abrange tanto a responsabilidade pelo ilícito culposo (subjetiva), como a responsabilidade pelo lícito e pelo risco (objetiva).
3. A declaração de inconstitucionalidade não elimina o problema da responsabilidade civil do Estado por atos legislativos, nem nos casos das situações consolidadas, em que, à princípio, não são atingidas pelo efeito retroativo da lei declarada inconstitucional.
4. A regra da responsabilidade solidária do Estado com os titulares dos órgãos, funcionários ou agentes, constante no referido artigo constitucional, comporta algumas exceções, como a exclusão da responsabilidade do juiz pela sua decisão e a exclusão da responsabilidade dos Deputados pelos votos e opiniões que emitirem no exercício de suas funções, incluindo-se também os Deputados da Assembléia Legislativa Regional e os membros do governo. Nestes casos, a responsabilidade será exclusiva do Estado, restando assegurada a necessária liberdade e independência dos Deputados, e os direitos dos cidadãos.
5. Os pressupostos da responsabilidade civil do Estado por atos legislativos ilícitos, encontram-se no artigo 483 do CC.
6. Condutas ilícitas legislativas são aquelas que se traduzem na violação de normas a que estejam sujeitas, sejam elas constitucionais, infraconstitucionais, internacionais, de direito comunitário ou de valor reforçado, de que resulte ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos.
7. A culpa do legislador deve ser verificada a partir do caso concreto, levando em consideração as circunstâncias que nortearam a aprovação da lei e a gravidade da agressão legal. Neste passo, restará ao Poder Judiciário apreciar a culpa, o zelo exigível, o erro do legislador no caso concreto, que, entretanto, não prejudicará o relacionamento entre ambos poderes, dado que já é conferido ao Judiciário recusar, no caso concreto, a aplicação de norma contrária à Constituição ou aos princípios por ela resguardados (artigo 204 da CRP).
8. Abrange a responsabilidade do artigo 22.º a reparação de todos os prejuízos causados decorrentes da violação ilícita de qualquer direito ou interesse legalmente protegido, incluindo-se o dano moral quando se tratar de ofensa aos direitos, liberdades e garantias.
9. A responsabilidade do legislador abrangerá tanto os danos decorrentes diretamente da lei considerada ilícita, como aqueles danos advindos da concretização da norma inconstitucional pela Administração, devidamente comprovada a existência do nexo de causalidade entre o fato ilícito e o dano.
10. Quando da reparação dos danos causados pelo ilícito legislativo, devem ser levados em consideração o equilíbrio das finanças públicas que, sobretudo, traduz uma limitação e não uma restrição aos direitos, liberdades e garantias.
11. Finalmente, o artigo 22.º da Constituição pode ser diretamente invocado pelos particulares, mesmo na ausência de lei concretizadora.
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Vital, Fésas. Da responsabilidade do Estado no exercício da função legislativa, in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Ano II, Coimbra: 1916, n.º 16 e 20.
Notas
01 V. Maria José Rangel de Mesquita, Responsabilidade do Estado e demais Entidades Públicas: o Decreto-lei N.º 48 051 de 21 de novembro de 1967, e o artigo 22.º da Constituição, in Perspectivas Constitucionais. Vol. II, Coimbra: Coimbra Editora, 1997, p. 380 e ss.; Rui Medeiros, Ensaio sobre a Responsabilidade Civil do Estado por Atos da Função Legislativa. Coimbra: Almedina, 1992, p. 65 e ss.; entre outros.
02 Cfr. Jorge Miranda, Responsabilidade do Estado pelo exercício da Função Legislativa – breve síntese, in Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado – Trabalhos preparatórios da reforma. Coimbra: Coimbra editora, 2002, p. 186.
03Responsabilidade do Estado e dever de indenizar do legislador. Coimbra: Coimbra editora, 1998, p. 8.
04 Sobre a dificuldade interpretativa do artigo 22.º da CRP, as palavras de Castro Mendes: Não avençamos mais porque a interpretação deste artigo nos deixa tantas dúvidas e preocupações, que sentimos o terreno movediço demais para prosseguir. Cfr. Castro Mendes, Direitos, Liberdades e Garantias – alguns aspectos gerais, in Estudos sobre a Constituição. Vol. 1, Lisboa: 1977, p. 111.
05 Consoante Galeotti, Pomodoro, Fésas Vital e Montesano, autores citados por Rui Medeiros, Ensaio..., op. cit., p. 129.
06 Exemplo utilizado por Dagtoglou, apud Rui Medeiros, Ensaio..., op. cit., p. 138.
07Ibid, p. 131.
08 Conforme Antunes Varela, apud Rui Medeiros, Ensaio..., op. cit., p. 129.
09 Consonante J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Ed. 6.ª, Coimbra: Almedina, 2002, p. 505; Rui Medeiros, A Responsabilidade civil pelo ilícito legislativo no quadro da reforma do Decreto-lei n.º 48 051, in Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado – Trabalhos preparatórios da reforma. Coimbra: Coimbra editora, 2002, p. 193-215; Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional. Tomo IV, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra editora, 1998, p. 263;Maria José Rangel de Mesquita, op. cit., p. 380 e ss.; entre outros.
10 Na Constituição Italiana de 1947, o problema da responsabilidade é remetido para a lei Civil, conforme o seu artigo 28.º, in verbis: «Os funcionários e agentes do Estado e das demais entidades publicas são diretamente responsáveis, de harmonia com as leis penais, civis, e administrativas, pelos atos praticados em violação dos direitos de outrem. Nestes casos a responsabilidade civil estende-se ao Estado e às entidades públicas». Na Constituição Alemã, a responsabilidade recai, em princípio, sobre o Estado (Artigo 34.º - Se alguém, no exercício de um cargo publico que lhe foi confiado, infringir em relação a terceiros os deveres que o cargo lhe impõe, a responsabilidade recai, em principio, sobre o Estado ou a corporação a cujo serviço ele se encontra. No caso de dolo ou negligência grosseira, reserva-se o direito de regresso. Para reivindicações de indenização e para o exercício do direito de regresso não poderá ser excluída a via judicial ordinária).
11 Manuel Afonso Vaz, a Responsabilidade Civil do Estado – Considerações breves sobre o seu Estatuto Constitucional. Porto: 1995, p. 7-8.
12Ensaio..., p. 92. O autor reafirma sua opinião mais recentemente in A Responsabilidade..., p. 195. Nesse sentido, também Manuel Afonso Vaz, op. cit., p. 14.
13Constituição da República Portuguesa Comentada, Lisboa: Lex, 2000, p. 105.
14Constituição da República Portuguesa Anotada. Ed. 3ª, Coimbra: Coimbra Editora, 1993, p. 168/169.
15Manual..., p. 261. Menciona ainda o autor, sobre esta questão, que, «para além do artigo 22.º, prevêem responsabilidade por atos ilícitos os arts. 27.º, n.º 5, 29.º, n.º 6, 52.º, n.º 3, 120.º, n.º 1, 218.º, n.º 2, e 271.º, e responsabilidade por atos lícitos os arts. 62.º, n.º 2, 83.º, e 97.º, n.º 1».
16 Seguindo este posicionamento, Maria José Rangel de Mesquita, op. cit., p. 379.
17 Consoante o Estatuto da Região Autónoma dos Açores (artigo 21.º) e Estatuto da Região Autónoma da Madeira (artigo 20.º).
18 Op. cit., p.168.
19 Ou como batizaram os franceses - faute du service. Escreve Freitas do Amaral (apud Rui Medeiros, Ensaio..., op. cit., p. 95), que «cada vez mais nos nossos dias pode suceder que o fato ilícito e culposo causador dos danos, sobretudo se revestir a forma de uma omissão, não possa ser imputado a um autor determinado, ou a vários, antes o deva ser ao serviço administrativo globalmente considerado».
20 Pires de Lima; Antunes Varela; Henrique Mesquita (Colaborador), Código Civil Anotado. Ed. 4.ª,Vol. I, Coimbra: Coimbra Editora, 1987, p. 471.
21 João de Matos Antunes Varela, Das Obrigações em Geral. Ed. 10.ª, Vol. I, Coimbra: Almedina, 2003, p. 542 ss e Rui Medeiros, Ensaio..., p. 168.
22 Cfr. Jorge Miranda, Manual..., p. 263; Manuel Afonso Vaz, op. cit., p. 13-14; e Rui Medeiros, A Responsabilidade..., p. 204-206.
23 Rui Medeiros, Ensaio..., p. 171.
24 V. CJ, ano VII, Tomo III, 1999.
25 Algumas das indagações que se colocam sobre esta questão, cfr. Rui Medeiros, Ensaio..., p. 131.
26Op. cit., p.566-567.
27 Ibid, p. 569 e ss.
28 Cfr. Rui Medeiros, Ensaio..., p. 188.
29 Ibid, p. 189.
30 Ibid, p. 190-191.
31 Jorge Miranda, op. cit. p. 294-295.
32 Maria da Glória Garcia, A Responsabilidade Civil da Administração Pública pela Inactividade, in La responsabilidad patrimonial de los poderes públicos, Madrid, 1999, p. 354, apud Rui Medeiros, A Responsabilidade..., p. 206.
33 João de Matos Antunes Varela, op. cit., p. 597 e ss.
34 V. Rui Medeiros, Ensaio..., p. 199.
35 Ibid, p. 203.
36 Ensaio..., p. 158-163.
37 Conforme o entendimento de Barbosa de Melo, «a lei ordinária é que definirá, em consciência com a evolução das coisas, a extensão em que a ordem jurídica há-de proteger, em cada tempo, as pessoas lesadas por actos ou factos das autoridades públicas. Por outras palavras, tudo indica que o texto constitucional, ao afirmar o princípio da responsabilidade ("são responsáveis") e ao omitir, quer os pressupostos do dever de indemnizar, quer o quantum respondeaturi, quis receber o instituto infraconstitucional, tal como o legislador, no uso dos seus normais poderes de ponderação, vier a organizá-lo e equilibrá-lo em cada período» Cfr. Barbosa de Melo, Responsabilidade Civil Extracontratual – não cobrança de derrama pelo Estado, Coletânia de Jurisprudência. Ano XI, Tomo 4: 1986, p. 36, apud Manuel Afonso Vaz, op. cit., nota 11, p. 8.
38 Como exemplo, o Acórdão do STJ de 26 de setembro de 2000, citado por Rui Medeiros, onde o STJ «condenou o Estado ao pagamento de uma indemnização a uma entidade patronal, a qual, com base numa disposição posteriormente julgada orgânica ou formalmente inconstitucional – o n.º 2 do artigo 398.º do Código das Sociedades Comerciais -, considerara extinto o contrato de trabalho celebrado com um trabalhador entretanto designado como administrador e fora, mais tarde, condenada ao pagamento de uma indemnização por despedimento ilícito do trabalhador em causa» Rui Medeiros, A Responsabilidade..., p. 197.
39 Sobre a questão da responsabilidade civil pelo exercício da função legislativa, selecionamos ainda os seguintes Acórdãos: Acórdão da Relação de Lisboa de 30 de janeiro de 1997, CJ, ano XXII, tomo 1, p. 107 ss.; Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 45/99 de 19 de janeiro de 1999, DR, II Série, p. 191 e ss., 26 de março de 1999; Acórdão da Relação de Lisboa de 23 de setembro de 1999, BMJ, n.º 489, ano 1999, p. 320; entre outros.
40 Op. cit., p. 170.
41 Vide CJ, ano VII, 1999, tomo III, p.28 e ss.
42 J.J. Gomes Canotilho, op. cit., p. 505.
43 Constante na obra que reuniu os trabalhos preparatórios da reforma: Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado – Trabalhos preparatórios da reforma. Coimbra: Coimbra editora, 2002, p. 15-16.
44 Rui Medeiros, A responsabilidade..., p. 209.