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A vacinação obrigatória na pandemia do coronavírus.

Hermenêutica constitucional e jurisprudência

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A VACINAÇÃO EM INCAPAZES NA PANDEMIA DO CORONAVÍRUS

Conforme visto, o Supremo Tribunal Federal (2021) entendeu que é constitucional a imposição da obrigatoriedade de se vacinar contra o Coronavírus, sob pena de sanções proporcionar, e, que, esta obrigatoriedade não se confunde com vacinação forçada. Todavia, aspecto problemático reside na vacinação de crianças e demais incapazes, perante a lei, desprovidos de autonomia, absoluta ou relativa, para tomada de decisões.

Há quem defenda (SIGOLLO, 2021) que o teor da decisão a pouco referida se aplica aos pais e demais representantes legais, analogicamente, no sentido de que cabe a eles decidir se suas crianças e adolescentes serão vacinados, e, tratando-se de obrigatoriedade, sofrerão as mesmas consequências impostas caso se neguem a fazê-lo.

Vislumbra-se que este posicionamento, em parte, encontra-se dentro dos limites da razoabilidade, tendo em vista que o Código Civil (BRASIL, 2002) prevê em seu art. 1634, inciso VII, que é dever dos pais, em relação aos filhos: representá-los judicial e extrajudicialmente até os 16 (dezesseis) anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento. Além disso, o mesmo dispositivo legal dispõe do mesmo modo, mas com devidas especificidades, sobre às relações jurídicas envolvendo demais incapazes, menores de 18 anos submetidos à tutela, e maiores de 18 anos, submetidos à curatela.

Todavia, a questão da vacina obrigatória não tem fim nela mesma, sendo mero plano de fundo de questões jurídicas em muito delicadas, como a dignidade da pessoa humana, o direito à vida, o direito à saúde, em suas dimensões individuais e coletivas; vislumbrar a questão da vacinação de crianças e de demais incapazes à luz destas questões sobrevêm complicadores que levam ao seguinte questionamento: pode um pai, tutor ou curador dispor daqueles direitos em nome dos incapazes que estejam sob seu poder? E, pode o Estado intervir nesta problemática jurídica, afeta ao planejamento familiar?

O segundo questionamento é de fácil resposta, tendo em vista que a própria Constituição Federal (BRASIL, 1988), em seu art. 227, caput, prevê ser dever não apenas da família, mas também da sociedade e do Estado assegurar saúde às crianças e adolescentes. No mesmo sentido, o Estatuto da Pessoa com Deficiência (BRASIL, 2015) prevê que são direitos fundamentais da pessoa com deficiência, que devem ser concretizados pelo poder público a vida (art. 10) e a saúde (art. 18).

Em suma, conclui-se que o Estado pode e deve interver na questão da vacinação obrigatória de crianças e demais incapazes, devendo buscar a melhor solução jurídica, à luz da Constituição Federal.

Em recurso Extraordinário, com repercussão geral, o Supremo Tribunal Federal (2021) decidiu que não podem os pais deixarem de vacinar os filhos, por razões de convicção político-filosóficas:

Ementa: Direito constitucional. Recurso extraordinário. Repercussão geral. Vacinação obrigatória de crianças e adolescentes. Ilegitimidade da recusa dos pais em vacinarem os filhos por motivo de convicção filosófica.

1. Recurso contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) que determinou que pais veganos submetessem o filho menor às vacinações definidas como obrigatórias pelo Ministério da Saúde, a despeito de suas convicções filosóficas. 2. A luta contra epidemias é um capítulo antigo da história. Não obstante o Brasil e o mundo estejam vivendo neste momento a maior pandemia dos últimos cem anos, a da Covid-19, outras doenças altamente contagiosas já haviam desafiado a ciência e as autoridades públicas. Em inúmeros cenários, a vacinação revelou-se um método preventivo eficaz. E, em determinados casos, foi a responsável pela erradicação da moléstia (como a varíola e a poliomielite). As vacinas comprovaram ser uma grande invenção da medicina em prol da humanidade. 3. A liberdade de consciência é protegida constitucionalmente (art. 5º, VI e VIII) e se expressa no direito que toda pessoa tem de fazer suas escolhas existenciais e de viver o seu próprio ideal de vida boa. É senso comum, porém, que nenhum direito é absoluto, encontrando seus limites em outros direitos e valores constitucionais. No caso em exame, a liberdade de consciência precisa ser ponderada com a defesa da vida e da saúde de todos (arts. 5º e 196), bem como com a proteção prioritária da criança e do adolescente (art. 227). 4. De longa data, o Direito brasileiro prevê a obrigatoriedade da vacinação. Atualmente, ela está prevista em diversas leis vigentes, como, por exemplo, a Lei nº 6.259/1975 (Programa Nacional de Imunizações) e a Lei nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Tal previsão jamais foi reputada inconstitucional. Mais recentemente, a Lei nº 13.979/2020 (referente às medidas de enfrentamento da pandemia da Covid-19), de iniciativa do Poder Executivo, instituiu comando na mesma linha. 5. É legítimo impor o caráter compulsório de vacinas que tenha registro em órgão de vigilância sanitária e em relação à qual exista consenso médico-científico. Diversos fundamentos justificam a medida, entre os quais: a) o Estado pode, em situações excepcionais, proteger as pessoas mesmo contra a sua vontade (dignidade como valor comunitário); b) a vacinação é importante para a proteção de toda a sociedade, não sendo legítimas escolhas individuais que afetem gravemente direitos de terceiros (necessidade de imunização coletiva); e c) o poder familiar não autoriza que os pais, invocando convicção filosófica, coloquem em risco a saúde dos filhos (CF/1988, arts. 196, 227 e 229) (melhor interesse da criança). 6. Desprovimento do recurso extraordinário, com a fixação da seguinte tese: É constitucional a obrigatoriedade de imunização por meio de vacina que, registrada em órgão de vigilância sanitária, (i) tenha sido incluída no Programa Nacional de Imunizações, ou (ii) tenha sua aplicação obrigatória determinada em lei ou (iii) seja objeto de determinação da União, Estado, Distrito Federal ou Município, com base em consenso médico-científico. Em tais casos, não se caracteriza violação à liberdade de consciência e de convicção filosófica dos pais ou responsáveis, nem tampouco ao poder familiar (STF, 2021).

Conforme já abordado, conflitos de normas constitucionais, sobretudo direitos e princípios fundamentais, são resolvidos a partir de técnicas de ponderação, em que o intérprete desce ao caso concreto, e verifica, a partir da hermenêutica constitucional, qual dos valores conflitantes deve prevalecer. No tópico anterior se concluiu que o a vida, a saúde, individual e coletiva, devem prevalecer sobre a liberdade de se vacinar. Não muito além, deve o mesmo raciocínio ser estendido à obrigatoriedade de vacinar os incapazes, devendo os mesmos valores preponderar sobre a liberdade de convicção político-filosófica dos pais ou representantes legais. Deste modo, caso sigam determinada filosofia de vida, como, por exemplo, o veganismo, ou se filiem à determinado pensamento político, mesmo assim terão que vacinar os incapazes. Consigna-se que além daqueles valores preponderantes, há o reforço da garantia constitucional da proteção integral à criança e ao adolescente, devendo lhes garantir saúde, nos termos do art. 227, caput, da Constituição Federal (BRASIL, 1988).

Deve ser ressaltado que há quem defenda que, quanto à vacinação obrigatória, o menor tem autonomia de optar por se vacinar ou não, mesmo que contra a vontade de seu representante legal:

Crianças e adolescentes têm o direito de se vacinarem, se essa for a sua decisão e ainda que não seja o desejo de seus pais e/ou mães, e quando essa decisão for possível de ser realizada pelas diretrizes das autoridades em vigilância sanitária. Cuida-se de efetivação da proteção integral e do direito de escuta, temas que estão exigindo uma reformulação teórica para que se reconheça a real posição jurídica de adolescentes enquanto sujeitos de direito (CRUZ, 2021).

Em que pese merece ser reconhecida toda forma de prestigio à opinião do infante, sobretudo no que toca à questões existenciais, não se entende o posicionamento acima como o melhor raciocínio, haja vista que a vida e a saúde compreendem temáticas em muito sensíveis, que não devem ser decididas por quem não tem capacidade para gerir suas vida; seria um imenso contrassenso vedar que um menor de 16 anos, considerado pelo Código Civil (BRASIL, 2002) absolutamente incapaz, realize, por exemplo, uma transação comercial, mas autorizá-lo a decidir sobre se vacinar ou não, quando esta decisão pode custar sua vida.

Insta salientar que este debate reside no âmbito das liberdades constitucionais, isso porque no plano infraconstitucional há expressa previsão, no art. 14, §1º, do Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990), que é obrigatória a vacinação de crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias.

Entende-se, aqui, que a melhor conclusão é no sentido de que nem os representantes legais e nem os infantes podem decidir por vacinar ou não, em meio ao contexto pandêmico do Coronavírus. Aplica-se o mesmo raciocínio firmado na jurisprudência e na doutrina, em relação à transfusão de sangue em pessoas incapazes. Segundo o enunciado n. 403, da V Jornada de Direito Civil, do Conselho da Justiça Federal:

O Direito à inviolabilidade de consciência e de crença, previsto no art. 5º, VI, da Constituição Federal, aplica-se também à pessoa que se nega a tratamento médico, inclusive transfusão de sangue, com ou sem risco de morte, em razão do tratamento ou da falta dele, desde que observados os seguintes critérios: a) capacidade civil plena, excluído o suprimento pelo representante ou assistente; b) manifestação de vontade livre, consciente e informada; e c) oposição que diga respeito exclusivamente à própria pessoa do declarante (CJF, 2012).

Embora se trate de problemática diversa, a lógica é o mesma: de fato a Constituição Federal garante a proteção à Liberdade de Convicção político-filosófica, a liberdade de crença religiosa, etc., e por essa razão é permitido a determinado sujeito escolher se determinar conforme sua convicção ou credo, mesmo que isso custe sua saúde ou sua vida. Todavia, só poderá fazê-lo desde que escolha por si, e que tenha capacidade para tanto. Assim, pais ou tutores podem escolher se vacinar ou não, mas o mesmo não podem fazer pelos seus infantes. O mesmo raciocínio vale ao curador em relação ao curatelado, tendo em vista que o art. 1774, do Código Civil prevê que se aplicam à curatela as disposições concernentes à tutela, com as devidas especificidades prescritas no referido diploma legal (BRASIL, 2002).

Se a Constituição garante a proteção integral às crianças e aos adolescentes, impondo como dever do Estado assegurar àqueles a vida e a saúde, não é proporcional se admitir, em qualquer contexto, que deixem de ser vacinados contra um vírus mortal, por vontade própria, tendo em vista que são incapazes de se determinar, e, por vontade de seus representantes legais, isto porque, como visto anteriormente, os direitos fundamentais possuem um núcleo que é inviolável, e não há direito fundamental mais intangível que a vida, tendo em vista que é ela a razão de existir dos demais.


A VACINAÇÃO OBRIGATÓRIA E O DIREITO COMPARADO

Peter Häberle propõe o método comparativo de interpretação constitucional, segundo o qual se alinha os métodos clássicos de hermenêutica, interpretando-se a Constituição pátria em contraponto com demais ordenamentos jurídicos (BULOS, 2012). Trata-se de ferramenta exegética muito relevante ao presente estudo, tendo em vista que a seguir se demonstrará que a questão da vacinação obrigatória é debate jurídico recorrente, em diversos outros ordenamentos jurídicos.

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Os dados que serão expostos é fruto de pesquisa documental, sobretudo no banco de dados de jurisprudência internacional do Supremo Tribunal Federal (2020).

Inicialmente, merece destaque o caso Zucht v. King, 260 U.S. 174 (1922), em que a Suprema Corte dos Estados Unidos reconheceu que poderia uma escola do Estado do Texas se recusar a receber alunos não vacinados (STF, 2020).

A mesma corte, no caso Jacobson v. Massachusetts, 197 U.S. 11 (1905), reconheceu que cidade de Cambridge, no Estado de Massachusetts, poderia multar os residentes que se recusassem a receber a vacina contra varíola (STF, 2020).

Por fim, a Suprema Corte dos Estados Unidos, no caso Compagnie Francaise de Navigation a Vapeur v. Louisiana Board of Health,186 U.S. 380 (1902) considerou válida leis de quarentena como exercício razoável do poder de polícia (STF, 2020).

Mais recente e igualmente relevante é o julgado da Suprema Corte do Reino Unido, que em 2017 considerou justificada a interferência do Estado no direito da mãe de ter respeitada sua vida familiar diante do interesse de proteger a saúde da criança e vaciná-la (STF, 2020).

Em 2018, a Corte Constitucional da Itália entendeu pela possibilidade da imposição de vacina obrigatória:

Tribunal decidiu que as disposições urgentes eram adequadas, dada a natureza preventiva das vacinações e o declínio do nível de cobertura na Itália. Em segundo lugar, o Tribunal esclareceu que a escolha de tornar a legislação mais rígida para obrigar a vacinação não era exagerada, uma vez que, na prática médica, recomendação e obrigação são conceitos conjugados, e uma mudança desta para a primeira é justificada pelas crescentes preocupações sobre a cobertura de vacinas. Terceiro, afirmou que exigir um certificado para se matricular na escola e impor multas era razoável, até porque o legislador havia previsto medidas iniciais que incluíam reuniões individuais com pais e responsáveis para informá-los sobre a eficácia da vacina. Por fim, observou que as condições epidemiológicas devem ser monitoradas constantemente e que no futuro, dependendo dos achados relevantes, será possível experimentar a redução de certas vacinas de obrigatórias para sugeridas (STF, 2020).

Em 11 de maio de 2020, no BvR 469/20, o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha reconheceu a constitucionalidade de diploma normativo que obrigava a vacinação, contra o sarampo, em crianças, afirmando que o objetivo da Lei é, em particular, a proteção da vida e da integridade física, para a qual o Estado, em princípio também tem o dever de proteger sob os direitos fundamentais do art. 2 (2) S. 1 da Grundgesetz (STF, 2020).

Em 2011, a Corte Constitucional da República Checa decidiu que:

1. A obrigação de vacinação é uma restrição admissível aos direitos fundamentais do indivíduo a quem é imposta, uma vez que é inevitável e necessária para proteger a saúde pública e os direitos e liberdades de outrem.” 2. “No entanto, em certas circunstâncias e motivos excepcionais, um indivíduo pode recusar-se a submeter-se à vacinação obrigatória. A obrigação pode não ser cumprida e ele ou ela não estará sujeito a sanções. Uma abordagem contrária representaria uma violação do direito de expressar livremente a sua religião ou fé ao abrigo da Carta dos Direitos Fundamentais e das Liberdades Básicas (STF, 2020).

Destaca-se, também, o julgado n. I. ÚS 1253/14, de 22 de dezembro de 2015, em que a mesma corte estabeleceu exceção à regra do dever geral dos pais de vacinar os filhos, em circunstâncias específicas, como o caso de reações adversas, decorrentes da aplicação (STF, 2020).

No mesmo ano, em 27 de janeiro de 2015, a Corte Constitucional da República Checa rejeitou pedido de anulação do art. 50, da Lei de Proteção à Saúde Pública, daquele país, que previa que creches só poderiam admitir a frequência de crianças com a vacinação obrigatória em dia (STF, 2020).

Em 12 de fevereiro de 2004, no U-I-127/01, a Corte Constitucional da Eslovênia decidiu que “os benefícios da vacinação obrigatória para a saúde dos indivíduos e dos membros da comunidade em geral excedem as consequências da interferência com os direitos constitucionais dos indivíduos” (STF, 2020).

Em 8 de outubro de 2014, no U.br.30/2014, a Corte Constitucional da Antiga República Iugoslava da Macedônia considerou que “a obrigação de se submeter à vacinação obrigatória é uma restrição permissível aos direitos fundamentais de um indivíduo, porque é necessária para proteger a saúde pública e os direitos e liberdades de terceiros” (STF, 2020).

Em 2007 a Corte Constitucional da Hungria firmou precedente no sentido de que “a proteção da saúde das crianças e a proteção contra as doenças contagiosas justificam a vacinação obrigatória para determinadas faixas etárias do ponto de vista constitucional” (STF, 2020).

Em 10 de dezembro de 2015 a Corte Constitucional da Colômbia entendeu que a vacinação de crianças, contra a vontade dos pais, viola princípios da Constituição Colombiana (STF, 2020).

Merece destaque precedente da mesma corte, de 25 de setembro de 1996, que decidiu pela constitucionalidade da intervenção cirúrgica em menores testemunhas de jeová, próximos de atingir a maioridade – e capacidade civil –, mesmo que contra a vontade deles, quando há consentimento do pai para realização do procedimento:

Quando se trata de intervenções ou tratamentos urgentes e necessários que visem a preservação da vida do menor que está prestes a atingir a maioridade, dada a "extrema" gravidade do seu estado de saúde, impor a decisão do pai, mesmo contra a vontade do filho caçula, no sentido de autorizar a ciência a recorrer e aplicar os procedimentos ao seu alcance para salvar sua vida, não implica usurpar ou interferir em sua autonomia, mas sim viabilizar uma possibilidade de cunho científico que contribui para a preservação de sua vida, dever e direito do pai e obrigação do Estado (STF, 2020).

 Trata-se julgado que extrapola a temática da vacinação obrigatória. Todavia, conforme já abordado no segundo tópico do presente estudo, aplica-se o fundamento da impossibilidade de recusa de transfusão sangue, em crianças testemunhas de jeová, pelos pais, nos termos do enunciado 403, da V Jornada de Direito Civil (CJF, 2012) à impossibilidade de recusa de vacinação em incapazes.  

Em 26 de outubro de 2017, a Corte Constitucional da Sérvia entendeu pela constitucionalidade da vacinação obrigatória. Segue trecho traduzido da decisão:

A vacinação obrigatória representa uma interferência no direito de um indivíduo à integridade física. É prescrito por lei e atende ao objetivo legítimo de proteção da saúde. Justifica-se por razões de saúde pública e pela necessidade de manter sob controle a propagação de doenças transmissíveis. O Estado dispõe de uma margem de apreciação no que diz respeito às medidas de saúde para a proteção da população contra as doenças transmissíveis (STF, 2020).

Por fim, destaca-se o acórdão n. 397/2014, do Tribunal Constitucional de Portugal:

O caso não é sobre vacinação obrigatória, mas tem a seguinte fundamentação: o direito à integridade pessoal não impede o estabelecimento de deveres públicos dos cidadãos que se traduzam em (ou impliquem) intervenções no corpo das pessoas (v. g., vacinação, colheita de sangue para testes alcoólicos, etc.), desde que a obrigação não comporte a sua execução forçada, sem prejuízo da punição em caso de recusa.

CONCLUSÃO

Os direitos fundamentais são relativos, ou seja, quando em conflito com outro deve-se, em concreto, analisar qual preponderará; este é o cerne da problemática que se refletiu até aqui, tendo em vista que de um lado reside a liberdade de se vacinar ou não e de outro o direito à saúde, individual e coletivo, e o direito à vida, haja vista que o Coronavírus é mortífero, já tendo levado, até o presente momento, mais de 500.000 Brasileiros à morte.

Quais das pretensões acima devem prevalecer? Trata-se de delicada indagação, tendo em vista que todas são constitucionalmente protegidas, como direitos fundamentais.

O Supremo Tribunal Federal, em louvável decisão, proferida no bojo das ações diretas de inconstitucionalidade n. 6586 e 6587, reconheceu a constitucionalidade da vacinação obrigatória, que implica na imposição do dever de se vacinar, sob pena de consequências jurídicas proporcionais, como o confisco de documentos, a vedação à frequentar lugares, imposição de multas, etc; vislumbra-se que não se trata de vacinação forçada, que seria, como o próprio nome sugere, imposta à força.

Conflito de direitos fundamentais são solucionados por meio da técnica de ponderação, em que o interprete se vale dos métodos e princípios hermenêuticos para chegar à solução do caso. Depreende-se, do até aqui refletido, que a decisão do Supremo Tribunal Federal é razoável, pois prestigia a liberdade do sujeito de negar se vacinar, tendo como consequência a imposição de consequências jurídicas. Igualmente, há o prestigio ao direito fundamental à saúde e à vida dos demais membros da comunidade, que clamam por medidas de enfrentamento ao Coronavírus.

A questão ganha contornos mais problemáticos no que se refere à vacinação de incapazes, sobretudo crianças, isto porque são legalmente desprovidos de capacidades para tomar decisões sobre si.

Há quem defenda que o mesmo raciocínio da decisão do Supremo Tribunal Federal se aplica analogicamente aos responsáveis legais, de modo que terão liberdade para negar vacinar os seus, porém, suportarão às consequências de seus atos; há quem faz a ponderação de que há um direito autônomo do incapaz de escolher ser vacinado, mesmo que dissentindo de seu representante legal.

A despeito disso, conclui-se que estes posicionamentos estão divorciados da razão, tendo em vista que a vida e a saúde são direitos fundamentais de tamanha sensibilidade que não pode um sujeito dispor em nome de outrem, mesmo se tratando de representante legal.

Na Constituição Federal é garantida a proteção integral à criança e ao adolescente, não sendo razoável qualquer interpretação hermenêutico-constitucional que afronte este preceito.

Deve-se aplicar, analogicamente, o enunciado n. 403, da V, da Jornada de Direito Civil (CJF, 2012), que dispõe sobre a recusa à transfusão de sangue, por paciente Testemunha de Jeová. Segundo o referido dispositivo, é possível a recusa, desde que o paciente seja capaz, e esteja, na ocasião, em gozo de suas faculdades mentais, e que o faça em nome próprio, e de modo declarado e informado.

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Sobre o autor
João Gabriel Fraga de Oliveira Faria

Advogado (OAB/SP n. 394.378). Especialista em Direitos Fundamentais pela Universidade de Coimbra - Portugal. Especialista em Direito Constitucional Aplicado. Cursou especialização em Direito Público. É especialista em Direito Empresarial. Fez especialização em Direito e Processo Civil. É presidente da comissão de Direito de Família da 52º Subseção da OABSP. Foi membro da diretoria do núcleo regional (Lorena/SP) do IBDFAM. E-mail para contato: [email protected].

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FARIA, João Gabriel Fraga Oliveira. A vacinação obrigatória na pandemia do coronavírus.: Hermenêutica constitucional e jurisprudência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6887, 10 mai. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/97756. Acesso em: 2 nov. 2024.

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