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Da prisão no anteprojeto do novo Código Penal

01/09/2000 às 00:00
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O atual Código Penal data de 1940. Sua reforma, após mais de vinte anos de tentativas, ocorreu em 1984, com alterações significativas tanto em esfera da teoria do crime como de política criminal carcerária. Visou, quanto às penas, a restrição da pena privativa da liberdade apenas aos casos de reconhecida necessidade (1). Agora, após 60 anos de sua promulgação e 16 anos da reforma, novo movimento reformista eclode, traduzindo-se num anteprojeto encaminhado ao Congresso.

Tal reforma consagra providências já existentes, dispostas no sistema de forma desordenada, em legislação esparsa, como ocorre com a figura da suspensão do processo (Lei 9.099/95). Extingue o "sursis" da pena e o regime aberto, aplicando-se aos crimes apenados com até quatro anos penas restritivas de direitos (o que já funcionava com a alteração do artigo 44 do CP, pela Lei 9.714/98) ou o regime semi-aberto. Cria, ainda, algumas outras figuras, como a "atenuante inominada", e a possibilidade de progressão de regime por inexistência de vagas no sistema carcerário.

É quanto a esta última alteração que trata o presente excerto.

A pena é um mal inevitável, desde o primeiro crime ela existiu. Assim o homicídio de Abel foi apenado com a degredação de Caim. A pena privativa de liberdade é a pior de suas formas, pois priva o agente de um dos bens mais preciosos da vida. A liberdade é um direito constitucional, e sua privação deve ocorrer apenas nas hipóteses legais – que, em geral, traduzem-se nos crimes mais graves.

O cometimento de crimes decorre da escassez dos bens disponíveis, e à concepção ética e moral de alguns elementos de determinado grupo social. Desta forma, a pena é efetivamente necessária à convivência social, tanto para prevenir condutas reprováveis como para punir atos tidos como ilícitos.

Contudo, em específico com relação à pena de prisão, tais finalidades, hodiernamente, não são satisfatoriamente alcançadas (2) (se algum dia o foram). Desde sua origem, a prevenção e a retribuição não suplantam o caráter meramente aflitivo (ou o excesso de ‘retribuição’) da pena de prisão, que desde sempre equiparou os presos a seres inferiores que mereceriam todo o tipo de aflição psicológica e física possível (3).

Beccaria (4), à frente de seu tempo, ainda no século XVIII, proclamou, pela primeira vez, o "princípio da igualdade perante a lei" (5), e "verberou com veemência a desproporcionalidade entre a pena e o delito" (6). Em sua pequena e notável obra, escreveu, dentre outras coisas, sobre a proporção entre os delitos e as penas.

Com a evolução do Direito Penal, surgiram as teorias da pena, tentando explicar suas finalidades. De início, com a escola alemã, as teorias absolutas ou retributivas, "acentuaram na pena o seu caráter retributivo ou aflitivo de mal injusto que a ordem de Direito opõe à injustiça do mal praticado pelo delinqüente" (7). Isto é, a pena é, especificamente, a resposta do sistema ao ilícito penal.

Em contraposição à teoria absoluta, vislumbrou-se na pena seu caráter de prevenção (teorias relativas, finalistas ou utilitárias), seja essa prevenção em relação a fatos ainda não praticados (prevenção geral), ou em relação a fatos praticados (prevenção especial). A prevenção geral é a ameaça de um mal contra um ilícito penal, dirigida a todos os destinatários da norma penal. A prevenção especial, por sua vez, dirige-se ao delinqüente, a fim de impedi-lo de praticar novos crimes, ao mesmo tempo que o intimida.

As teorias mistas encontram na pena ambas as posições, entendendo-se, hoje, que a pena possui tanto o caráter de retribuição ao mal causado como o de prevenção (geral e especial).

Contudo a pena de prisão não recupera o delinqüente de forma satisfatória, em virtude de diversos fatores endógenos e exógenos ao próprio estabelecimento prisional. Igualmente a ameaça da sua aplicação não é suficiente para a prevenção do delito. Veja-se, por exemplo, a insistência dos legisladores em penalizar determinadas condutas cada vez com mais rigor, sem que com isto diminua os índices de criminalidade (8).

Assim, tem-se que de nada adianta ser mais rigoroso na quantificação da pena em abstrato ou tipificar cada vez mais condutas. O necessário, desde que o crime é crime, é a penalização de condutas reprováveis socialmente na exata medida de sua reprovação. E o principal, sem dúvida, em nosso sistema atual, cabe não ao legislador ou ao julgador, mas ao administrador público dar as condições devidas para que o criminoso cumpra com sua pena de acordo com o ilícito que cometeu.

Pode até parecer utopia, entretanto, é o mínimo que se pode desejar para uma sociedade que se diz ‘civilizada’.

A solução proposta pelo anteprojeto, extremamente simplista, consiste na definição por parte do juízo da execução, do número máximo de presos que deverão conter os estabelecimentos prisionais.

Desta forma, se no caso de se exceder o número estabelecido a um estabelecimento prisional de regime fechado, progredir-se-á o regime para o semi-aberto o preso que mais próximo estiver do término de sua pena.

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Na prisão de regime semi-aberto, tal situação (preso mais próximo do término da pena) será beneficiada com a liberdade condicional.

Assim, com uma canetada, resolve-se todo o problema da superpopulação carcerária no Brasil. Espanta-se como o resto do mundo ainda não tenha pensado nesta solução.

Contudo, há que se analisar tal medida com cautela. Luiz Vicente Cernichiaro, ao cuidar do "Princípio da Individualização da Pena" (9), asseverou, com muita coerência, que o delito é um fato vinculado ao delinqüente, e a pena é proporcional ao delito. Cabe ao legislador, de forma abstrata, estipular o máximo e o mínimo de pena para cada conduta ilícita. Ao juiz, por sua vez, cabe impor a pena, "levando em consideração o fato-infração penal com os seus protagonistas (sujeito ativo e sujeito passivo) e projeção de futura conduta do delinqüente" (10).

Em suma, "a individualização significa adaptar a pena ao condenado, consideradas as características do agente e do delito" (11).

Portanto, a pena é imposta ao criminoso por sua conduta ilícita, devendo, em princípio, cumpri-la integralmente. Agente, fato e pena são elos de uma mesma corrente, ligados estruturalmente e que, em tese, não podem ser rompidos.

Há, na política criminal, fatores que fazem com que a pena se abrande ou se extinga, como a progressão do regime, a graça, o indulto, a comutação da pena. Entretanto, qualquer modificação na pena imposta depende da conduta subjetiva do condenado, e não em fatores objetivos aleatórios. Veja-se, v.g., o indulto concedido anualmente pelo Presidente da República na época de natal: tal benefício, para ser concedido, depende de fatores diversos, sempre ligados à conduta ou condição pessoal do criminoso. O Decreto n° 3.226, de 29 de outubro de 1999, por exemplo, concede indulto "ao condenado à pena privativa de liberdade não superior a oito anos, beneficiado com livramento condicional até 31 de dezembro de 1998" (art. 1°, inciso VIII), condicionando o benefício, ainda, ao "não cometimento de falta grave durante os últimos doze meses..." (artigo 3°, inciso I).

Desta forma, não se está ferindo o princípio da individualização da pena (12), há um nexo entre a pena e o criminoso. Embora inicialmente estipulada de uma forma, a pena é alterada em razão da política criminal adotada, levando-se em conta, em suma, que a finalidade foi alcançada antes do término de seu cumprimento.

O anteprojeto, nos §§ 2° e 3° do artigo 34, estabelece que "Os estabelecimentos penais destinados ao cumprimento de pena de prisão, qualquer que seja o regime, não admitirão número de internos que ultrapasse aquele definido em sua lotação máxima, o qual, será anualmente determinado pelo juiz da execução penal", e que "A admissão de novos internos, uma vez verificado o preenchimento de todas as vagas a que se refere o parágrafo anterior, deverá corresponder obrigatoriamente à transferência do regime fechado para o semi-aberto, ou deste para o livramento condicional, do preso que mais próximo se encontre do cumprimento de sua pena".

Estaria, assim, alterado o Código Penal mediante lei, o que fere, em princípio, o disposto no inciso XLVI do artigo 5°da Constituição. Cabe à lei regular a individualização da pena, sendo inconstitucional a proposta que acabe por suprimir a sua aplicação. No caso, não há critérios que indiquem que este ou aquele criminoso mereçam a progressão do regime ou seu livramento condicional. Simplesmente acaba-se com o regime imposto, sendo possível dar-lhe até a liberdade mediante uma norma que não leva em conta a individualização da pena.

Dar-se-ia a progressão de regime ou a liberdade condicional a criminoso que ainda não as fizesse jus; medida extremamente perigosa, considerando a superlotação das prisões brasileiras. Livrar-se-ia uma legião incontável de criminosos sem analisar as condições subjetivas de cada um, risco que toda a sociedade correria.

Além deste aspecto fático da medida, conclui-se, usando das palavras do já citado ministro que "é importante mencionar, a lei não pode restringir a extensão do princípio. Além de submeter-se aos princípios humanitários, do interesse público e da culpabilidade no caso concreto, busca realizar a função da pena, retributiva, porque visa à reprovação pela prática do crime, e a prevenção, no sentido de que procura incutir no condenado, durante a execução, a idéia de não voltar a delinqüir" (13).


NOTAS

  1. Item 16 da Exposição de Motivos da Nova Parte Geral do CP.
  2. Neste sentido o Min. Cernichiaro já teve a oportunidade de manifestar-se com muita propriedade: "A experiência demonstra, ninguém duvida, o presídio é a escola da indisciplina, da deformação de caráter, não exerce nenhum efeito educativo, deseduca, amplia a desadaptação social". CERNICHIARO, Luiz Vivente, COSTA Jr., Paulo José da. Direito Penal na Constituição. São Paulo: RT, 1995, p. 122.
  3. A propósito, veja-se a pequena e consistente obra de Francesco Carnelutti, "As misérias do processo penal".
  4. BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. Tradução de J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. 2ª ed., São Paulo: RT, 1997.
  5. Idem, p. 10.
  6. Idem, ibidem.
  7. BRUNO, Aníbal. Das Penas. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976, p. 14
  8. Veja-se, a propósito, a consistente crítica que DAMÁSIO faz ao atual movimento do "Direito Simbólico", em seus "Comentários à Lei 9.099/95", editado pela Saraiva em 1995.
  9. Ob. cit., p. 117 usque 153
  10. Idem, ibidem.
  11. Idem, p. 118.
  12. Artigo 5°, inciso XLVI, da Constituição: "a lei regulará a individualização da pena..."
  13. Ob. cit, p. 152.
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Sobre o autor
Alexandre Barbosa Lemes

assessor do Ministério Público Federal no Paraná, atuando na área criminal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEMES, Alexandre Barbosa. Da prisão no anteprojeto do novo Código Penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 45, 1 set. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/978. Acesso em: 24 abr. 2024.

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