Resumo: O presente estudo tem como finalidade analisar a possibilidade e as implicações da declaração de usucapião tendo por objeto imóvel hipotecado, visualizando tais institutos sob a ótica das disposições do novo Código Civil. Abordam-se, igualmente, os efeitos da sentença que declara a usucapião, tratando-se do princípio da retroatividade e de suas diversas implicações em relação à hipoteca. Além disso, são esmiuçadas algumas situações peculiares envolvendo o tema, tais como cessão de direitos, adjudicação e arrematação.
Palavras-chave: Usucapião. Hipoteca. Sentença. Arrematação.
1. Introdução
Nas últimas décadas, a hipoteca tem sido o direito real de garantia mais amplamente utilizado para a concessão de crédito destinado à aquisição imobiliária, fato que tem aumentado consideravelmente no Brasil o número de imóveis gravados com ela. Isso fez tornarem-se mais comuns os casos onde se pleiteia o reconhecimento de usucapião sobre imóveis hipotecados, seja por meio de ação ou como matéria de defesa, fazendo surgir dúvidas a respeito dessa situação.
É possível usucapir imóvel hipotecado? Se o for, mantém-se ou não o gravame hipotecário? O cessionário de contrato de mútuo pode usucapir o imóvel hipotecado em favor do credor? A arrematação ou adjudicação em razão de hipoteca impedem a usucapião?
O presente estudo, analisando os aspectos mais relevantes dos institutos da hipoteca e da usucapião, tem como objetivo responder esses e outros questionamentos, à luz da doutrina e das disposições legais que regem a matéria, com foco especialmente nas alterações promovidas pelo novo Código Civil.
2. A hipoteca convencional no CCB/02: características gerais, prescrição e preclusão
Considerando que o presente estudo tem como objeto analisar os casos de usucapião sobre imóvel hipotecado, faz-se indispensável, primeiramente, analisar o conceito e as principais características do instituto da hipoteca. Além disso, é relevante verificar suas hipóteses legais de extinção, especialmente as suas relações com a prescrição, bem como sua preclusão.
2.1. Conceito e características gerais da hipoteca convencional
Pode-se dizer que a hipoteca é uma espécie de direito real de garantia através da qual se grava um bem imóvel de propriedade do devedor, ou de outrem, de forma a garantir o cumprimento de uma obrigação principal. Dessa forma, tem-se que ela sempre será acessória e dependente do cumprimento de uma obrigação determinada.
O instituto é assim definido por Clóvis Bevilacqua (1956, p. 113):
"Hipoteca é um direito real, que recai sobre imóvel, navio ou aeronave, alheio, para garantir qualquer obrigação de ordem econômica, sem transferência da posse do bem gravado para o credor".
É ela destinada a gravar bens imóveis e seus acessórios, ao contrário do penhor, que é exclusivamente afeto a coisas móveis. No entanto, é possível a constituição de hipoteca sobre bens por natureza móveis que, por ficção jurídica, sejam considerados como imóveis, tal como ocorre com as aeronaves e os navios, cuja disciplina o CCB/02 remete a legislação especial. Igualmente, cabe a instituição do gravame sobre o "domínio direto, o domínio útil, as estradas de ferro, e os recursos naturais a que se refere o art. 1.230, independentemente do solo onde se acham" (Art. 1473).
Contudo, não obstante o gravame inscrito sobre o imóvel hipotecado, o outorgante da garantia mantém a posse e a propriedade sobre ele, podendo exercer todas as faculdades inerentes ao domínio, o que não ocorre no caso do penhor. Neste, o bem dado em garantia mantém-se de propriedade do devedor, mas fica na posse do credor, somente sendo restituído após a quitação da dívida.
De fato, a hipoteca (e os demais direitos reais de garantia, por natureza) são direitos restringentes do domínio, mas não limitativos dele (MIRANDA, XX, p. 76). O devedor, ou o terceiro que presta a garantia, mantêm plenas todas as faculdades inerentes ao domínio sobre a coisa hipotecada, sem limitação, mas fica ele restringido, vez que resta o gravame constante do registro de propriedade do bem, valendo erga omnes.
Dessa maneira, a hipoteca possibilita a circulação dos bens por ela gravados, já que estes podem ser livremente alienados. O próprio Código Civil dispõe que "é nula a cláusula que proíbe ao proprietário alienar imóvel hipotecado", sendo, no entanto, lícito convencionar-se o vencimento antecipado da dívida nesse caso (Art. 1.475). Contudo, não obstante a alienação, transmite-se o gravame instituído sobre o bem, subordinando-se a ele o terceiro adquirente.
A razão disso é que a hipoteca, enquanto direito real, prevê ao credor o direito de seqüela, ou seja, a faculdade de buscar a coisa em mãos de quem quer que a detenha. Sobre o tema, é interessante a definição de Caio Mário da Silva Pereira (1994, p. 270), o qual assim conceitua tal atributo:
"A efetividade do direito de seqüela revela-se no momento em que o credor tem de excutir a coisa nas mãos de terceiro. Mas, se se patenteia nesse instante, certo é que já existia como decorrência da hipoteca, o que levou Clóvis Beviláqua a dizer que se conserva latente enquanto o imóvel se encontra em poder do devedor, revelando-se ostensivo com a sua transmissão."
Em realidade, no momento em que a hipoteca grava o bem e adquire publicidade, ela se torna exeqüível contra qualquer pessoa que venha a adquirir o domínio do bem. Esse adquirente, em razão do direito de seqüela, não poderá eximir-se da execução do gravame, salvo em casos pontuais de relativização do instituto, dos quais alguns se tratarão adiante.
A respeito disso, Pontes de Miranda (1958, t. XX, p. 57) refere que
a seqüela é mais do que a executabilidade, porque qualquer credor pode executar os bens que se achem no patrimônio de quem deve. A seqüela permite penhorar-se o que está no patrimônio de que não deve. O titular do direito de hipoteca tem a pretensão a executar o bem de que se trata, onde quer que se ache e ainda que nada deva o proprietário (ou enfiteuta) ou possuidor próprio.
Assim, para que se constitua de forma regular a hipoteca, e para que ela seja oponível erga omnes, característica inerente aos direitos reais, é indispensável o seu registro junto à matrícula do imóvel dado em garantia (Art. 1492. do CCB/02), devendo ser avençada em escritura pública1. Isso porque a hipoteca tem como característica a publicidade, ou seja, a possibilidade de qualquer terceiro ter dela conhecimento, subordinando-se a seus efeitos.
Esse registro, além de dar publicidade, estabelece a prioridade no caso de haver mais de uma hipoteca gravando o imóvel, ou seja, a hipoteca registrada por primeiro tem prioridade sobre as demais, no caso de ser levado o bem à excussão. Nessa hipótese, o produto da alienação judicial do bem deverá atender integralmente ao crédito garantido pela primeira hipoteca; somente após isso, caso restem ainda valores, passar-se-á a satisfazer o crédito da segunda hipoteca, e assim sucessivamente.
Note-se, ainda, que a hipoteca obedece ao princípio da especialização, devendo constar dos contratos que a instituem o valor do crédito, o prazo fixado para pagamento, a taxa de juros e a descrição do bem dado em garantia, sob pena de ineficácia da avença (CCB/02, Art. 1424). Isso impede a instituição de hipoteca geral e irrestrita sobre todo o patrimônio do devedor, outrora permitida, uma vez que para a sua validade deve ser referido cada bem em que se grava a garantia, considerado individualmente.
Igualmente, a hipoteca, como direito real de garantia, é indivisível, ou seja, o imóvel dado em garantia fica integralmente sujeito ao resgate da dívida, de maneira que o pagamento parcial do débito não exonera parte do imóvel hipotecado (CCB/02, Art. 1.421). Saliente-se que essa indivisibilidade não diz respeito à coisa dada em garantia, ou à dívida garantida, as quais podem até ser divisíveis, mas, sim, ao vínculo real. Mesmo havendo pagamento parcial da dívida, a hipoteca continua a recair sobre a coisa inteira e seus acessórios, os quais ficam sujeitos à excussão integral pelo restante do valor devido. Conseqüência disso, por exemplo, é que não é possível aos herdeiros remir parcialmente a hipoteca na proporção dos seus quinhões (CCB/02, Art. 1.429), salvo a sua totalidade, sub-rogando-se o remitente quanto aos demais.
Da mesma forma, é importante salientar que a hipoteca, enquanto garantia que pode levar determinado bem à excussão, impõe que, para poder validamente instituí-la, o seu prestador tenha plena legitimidade para alienar a coisa. Em outras palavras, só pode gravar determinado bem com hipoteca convencional aquele que seja dono da coisa, devendo ter também capacidade para tanto.
Assim, a capacidade é, igualmente, elemento essencial para a validade do ato, sendo imprescindível a outorga uxória no caso do devedor ser casado, exceto para o regime da separação absoluta de bens (art.1.647). No caso do regime de participação final dos aqüestos, caso os cônjuges tenham convencionado a livre disposição dos bens particulares, poderá haver a constituição de hipoteca sobre eles, sem necessidade de autorização do outro consorte (Art. 1656. do CCB/02). Da mesma forma, em se tratando de pessoa jurídica, deverá estar prevista a possibilidade de instituir o gravame no seu ato de constituição, devendo o representante legal ter poderes suficientes para tanto.
2.2. A hipoteca frente à prescrição e as modificações trazidas pelo CCB/02
Assim dispõe o CCB/02 a respeito das formas de extinção da hipoteca:
Art. 1.499. A hipoteca extingue-se:
I - pela extinção da obrigação principal;
II - pelo perecimento da coisa;
III - pela resolução da propriedade;
IV - pela renúncia do credor;
V - pela remição;
VI - pela arrematação ou adjudicação.
Tais modalidades, ressalte-se, são meramente exemplificativas, havendo, além delas, outras expressamente previstas no Código Civil ou decorrentes de sua interpretação sistemática, como se verá em determinados casos de usucapião, por exemplo. Veja-se, também, que no CCB/1916 eram elencadas como causas de extinção, além daquelas reproduzidas na nova lei, a sentença passada em julgado e a prescrição (Art. 849).
Em relação à sentença judicial, é de se ver que, não obstante sua supressão no texto legal, mantém-se plenamente válida como causa extintiva, pelo princípio da inafastabilidade da jurisdição (CF/1988: Art. 5º, XXXV).
Quanto à prescrição, é de se notar que quando ela for relativa à obrigação principal, ela sempre acarretará a extinção da hipoteca, vez que "vale o registro da hipoteca, enquanto a obrigação perdurar" (art. 1.498). Note-se que a prescrição não extingue a obrigação principal, mas a torna inexigível, extinguindo tão somente a pretensão de cobrá-la. No entanto, em se tratando de hipoteca, se a obrigação principal está prescrita, não haverá mais pretensão à execução da garantia acessória, acarretando, pela redação da norma referida, a sua extinção2.
O Código de 1916, como referido, trazia no art. 849, VI, a prescrição como uma das hipóteses legais de extinção da hipoteca, inciso que foi suprimido na redação do CCB/02. Tal prescrição, contudo, dizia respeito à ação real hipotecária, e não à prescrição da obrigação principal. Em ocorrendo a prescrição da ação real, haveria a extinção da hipoteca em si, o que não extinguiria a pretensão de cobrar obrigação principal, que se submeteria ao seu prazo prescricional próprio.
Para Pontes de Miranda, essa prescrição da ação real teria sido elevada a suporte fático da preclusão da hipoteca mesma, por força da norma em questão (1958, tomo XX, p. 303):
Ao completar-se o tempo da prescrição em vez de só se encobrir a eficácia da pretensão, o direito de hipoteca preclui. Portanto, a ação executiva hipotecária extingue-se, em vez de apenas prescrever. (...) Uma vez que se considerou a prescrição da pretensão causa da extinção do direito (Código Civil, 849, VI), a alegação de prescrição da ação com efeito de preclusão do direito é alegação de preclusão, por conseguinte objeção, e não exceção. Não há momento em que não mais se possa opor a prescrição, porque, aí, a prescrição foi elevada à categoria de suporte fáctico da preclusão.
Têm-se, assim, duas preclusões do direito de hipoteca: a preclusão pela prescrição da ação real e a preclusão por se ter atingido o prazo de vinte anos sem prorrogação.
Entretanto, tal prescrição não teria o condão de extinguir a hipoteca no caso de o bem ser do próprio devedor, pois esta estaria subordinada à prescrição da obrigação principal, em razão do caráter de acessoriedade da garantia (art. 830. do CCB/16, atual art. 1.498). Por isso, ela só poderia ser invocada por eventual terceiro adquirente do imóvel hipotecado. Esse é o pensamento de Clóvis Bevilácqua, que assim escreve (1956, v. II, p. 299):
A hipoteca, sendo direito real, a ação que origina está incluída nessa regra [a do Art. 849, VI, do CCB/1916], em relação a terceiros; mas não em relação ao devedor, porque a hipoteca é direito acessório e, conseqüentemente, a sua existência se acha, intimamente, ligada à obrigação, cuja execução assegura, e a sua prescrição para o devedor será, naturalmente, a da obrigação.
O fato é que essa questão perdeu força com a vigência do novo Código Civil, visto que, nele, o prazo prescricional da pretensão real hipotecária jamais será inferior ao das ações pessoais relativas à obrigação principal, por força da norma geral do art. 205, ao contrário do que ocorria com o código antigo (CCB/1916, Art. 177). No caso de dívida líquida, por exemplo, o prazo prescricional em relação à obrigação principal é de cinco anos (Art. 206, § 5º, I), mantendo-se os dez anos para a ação real.
Por essa razão, passou a ser redundante manter a prescrição da pretensão executiva hipotecária, que é ação real, como causa de extinção da hipoteca, visto que, antes dela, necessariamente haverá a prescrição da pretensão relativa à obrigação principal, extinguindo, por conseqüência, a garantia acessória. Ademais, ainda que haja eventuais causas de suspensão da prescrição quanto à obrigação principal, tal suspensão abrangerá, igualmente, a garantia acessória, na forma do art. 1.498. do CCB/02.
Assim, em razão da modificação dos prazos prescricionais no novo Código Civil, tornou-se inócuo elencar a prescrição como causa de extinção da hipoteca, vez que as ações que tutelam as pretensões reais jamais terão prazos prescricionais menores do que as pessoais.
Por fim, vale dizer que, na hipótese de prescrição como causa extintiva no Código de 1916, não pode ser enquadrada a prescrição aquisitiva, que ocorre na usucapião. Esta espécie de prescrição, como se verá, é relativa à pretensão que visa garantir a posse da coisa, e não a eventual inércia relativa à execução da hipoteca.
2.3. Preclusão da hipoteca
Como já referido, é da essência da hipoteca que constem dos contratos que a instituem o valor do crédito, o prazo fixado para pagamento, a taxa de juros e a descrição do bem dado em garantia, sob pena de ineficácia da avença. Em havendo o vencimento da dívida, pelo não cumprimento da obrigação ou por qualquer outra causa, nascerá para o titular do direito real a pretensão de excutir o bem e satisfazer o seu crédito.
No entanto, nada obsta que, mediante acordo entre as partes, haja a dilatação do prazo contratual estabelecido para a obrigação, podendo, igualmente, ser pactuada a dilatação do prazo da hipoteca, mediante simples averbação. No tocante à garantia, o art. 1.498. do CCB/02 fixa em 20 anos o prazo máximo de validade a contar do contrato que a institui. Após esse termo, deve ser a hipoteca prorrogada (Art. 1.498), sendo que o art. 1.485. do CCB/02 fixa em 30 anos3, a contar da data do contrato, o prazo máximo de prorrogação. Para ultrapassar esse prazo, será necessária a lavratura de novo título e novo registro, mantendo-se, contudo, a precedência do anterior (Art. 1485).
Caso não seja prorrogada a hipoteca, atingido o prazo de 20 anos ocorrerá a sua preclusão, ainda que subsista a obrigação principal. Veja-se que esta preclusão é apenas da garantia, não se confundindo com eventual prescrição relativa à obrigação principal, que extinguirá também eventual pretensão de cobrança do débito, tornando igualmente inexigível a garantia acessória.
3. A usucapião no direito brasileiro
3.1. Breve histórico e conceito
A usucapião não tem uma origem precisa, acreditando-se que ela tenha sido praticada pelos gregos e posteriormente migrado para o direito romano, antes mesmo da Lei das XXII Tábuas, que se referiu a ela proibindo a usucapião de coisas roubadas. Há quem sustente que sua origem deu-se junto ao povo hebreu, em razão de uma referência a ela no Livro dos Juízes, cap. 11, versículo 26 (NEQUETE, 1981, p. 12).
No direito clássico, a usucapio requeria posse mansa por todo o período aquisitivo e justo título. Posteriormente, dado que a usucapio não se aplicava aos imóveis provinciais, possuídos por peregrinos, foi criada a praescriptio longi temporis, uma fórmula (prescrição) judicial utilizada como meio de defesa contra eventuais ações possessórias, fundada na posse prolongada. Atribui-se a Justiniano a posterior unificação dos dois institutos, simplificando-os e fixando, como prazo, 10 anos entre presentes e 20 entre ausentes, bem como 3 anos para as coisas móveis (PETIT, 1924, p. 275).
Por fim, o Imperador Teodósio introduziu uma nova modalidade de usucapião, que independia de boa-fé e justo título, extinguindo toda e qualquer ação de rei vindicatio se houvesse posse ininterrupta por 30 anos, sendo chamada de praescriptio longissimi temporis.
Hodiernamente, pode-se definir a usucapião como um meio originário de aquisição da propriedade e de outros direitos (usufruto, uso, habitação e enfiteuse4), os quais, de maneira geral, transferem-se ao usucapiente desde que decorrido lapso temporal de posse com animus domini, sem qualquer oposição, preenchidos os requisitos legais.
Diz-se que ela é um meio ‘originário’ porque não há propriamente a transmissão da propriedade por parte do antigo dono, ou seja, o direito de propriedade adquirido pela usucapião não deriva do direito de outrem. Por isso, através da usucapião, não se adquire a propriedade de ‘alguém’ determinado. O direito é que, preenchidos os requisitos legais, outorga a propriedade ao possuidor.
Sobre o tema, assim escreveu Pontes de Miranda (1958, t. XI, p. 117)
"Não se adquire, pela usucapião, ‘de alguém’. Na usucapião, o fato principal é a posse, suficiente para originariamente se adquirir; não, para se adquirir de alguém. É bem possível que o novo direito se tenha começado a formar, antes que o velho se extinguisse. Chega momento em que esse não mais pode subsistir, suplantado por aquele.".
Além disso, é de ser ressaltado que a usucapião não é decorrente de uma "renúncia tácita" ao direito de propriedade, ou uma decorrência do abandono. Isso porque a propriedade e todos os direitos que dela emanam não se extinguem, de per se, pela não fruição. A respeito disso, Nascimento (1984, p. 10) escreve que
"nem da inércia se pode presumir uma manifestação de vontade tácita de abandonar ou renunciar o imóvel nem se pode qualificar a mesma inércia como fundamento único do usucapião. Ninguém perde a posse pelo não-uso".
Em realidade, o direito de propriedade – e as pretensões dele decorrentes – são por essência, imprescritíveis, salvo se se constituir uma situação contrária a esse direito, capaz de ensejar a sua extinção (PEREIRA, 1994, IV, p. 4), como é o caso da usucapião, por exemplo. De fato, como refere Lafayette (1940, p. 155), o que ocorre na usucapião é um fenômeno duplo. De um lado, a prescrição age como forma geradora de direitos em favor do usucapiente; de outro, como conseqüência, tem-se a extinção do direito do antigo proprietário em fade de sua inércia.
Em realidade, há uma nítida diferença entre a prescrição extintiva e a usucapião, chamada de pretensão aquisitiva. Na prescrição extintiva, a inércia do titular não extingue o direito em si mesmo, havendo tão somente a extinção da pretensão de exigi-lo (AMORIM FILHO, 1961). Prova disso é que o devedor que paga dívida prescrita não terá direito à repetição do indébito alegando prescrição. Diverso, contudo, é o que ocorre no caso da prescrição aquisitiva. Nesta, a inércia do proprietário na defesa de sua posse, além de extinguir sua pretensão, faz nascer simultaneamente um novo direito em favor do usucapiente, havendo a própria extinção do direito do antigo dominus (NEQUETE, 2005). Outro aspecto é que a prescrição extintiva só pode ser alegada por meio de exceção, enquanto que a prescrição aquisitiva pode ser também alegada em ação.
Nesse sentido, em relação ao reconhecimento judicial da usucapião, questiona-se se é necessário requerimento expresso da parte interessada ou se poderia o juiz, ex officio, declará-la. A questão não apresentava maiores complicações, vez que na redação do CCB/1916 o reconhecimento da prescrição dependia de pedido expresso da parte, tendo sido essa regra reproduzida na redação original do CCB/02, no art. Art. 194. Ocorre que tal artigo foi revogado pela Lei 11.280, de 16/02/2006, tendo sido modificado o § 5º do art. 219. do CPC, o qual passou a determinar que "o juiz pronunciará, de ofício, a prescrição".
A respeito disso, pode-se dizer que, no caso da usucapião, tal disposição é inaplicável, vez que, como referido, não se trata de simples prescrição extintiva de eventuais pretensões possessórias, essa, sim, passível de declaração ex officio. A declaração de usucapião tem o efeito positivo de declarar determinado possuidor o proprietário da coisa, ainda que seja alegada em sede de exceção. Além disso, para a realização do suporte fático da usucapião, é indispensável que haja animus domini por parte do possuidor, só podendo ser reconhecido esse aspecto em seu favor mediante requerimento seu (NEQUETE, 2005, p. 10).
3.2. Modalidades e requisitos essenciais da usucapião de bem imóvel
Em se tratando das espécies de usucapião, a lei brasileira disciplina, atualmente, cinco modalidades, havendo requisitos particulares para cada uma delas, que variam de acordo com a finalidade a que se destinam. Há quem desdobre tais espécies em sete, em razão de possibilidades de redução nos prazos da usucapião extraordinária e ordinária, mas parece mais adequado falar apenas em cinco, já que essas modalidades seriam "subespécies" não autônomas. Assim, tem-se hoje no direito brasileiro a usucapião extraordinária, ordinária, especial urbana, especial rural e coletiva (esta última prevista no Estatuto da Cidade, lei 10.257/2001).
Saliente-se, ainda, que o novo Código Civil reduziu consideravelmente os prazos para usucapião, especialmente considerando aspectos relativos à destinação social da propriedade, dando "uma maior ênfase no caráter dinâmico da propriedade, como instrumento de realização da dignidade da pessoa humana" (DEBS, 2003, p. 33).
Em todas as modalidades, tem-se como requisito essencial a posse cum animo domini, da qual adiante se tratará. Igualmente, todas as modalidades colocam como requisito que a posse seja pública, ininterrupta e sem oposição durante todo o lapso temporal exigido.
Por isso, à usucapião, enquanto fenômeno que contém em si a prescrição, aplicam-se as regras previstas para o devedor de obrigações em geral, havendo a interrupção ou suspensão do lapso temporal em todas as hipóteses previstas para tanto, uma vez que "estende-se ao possuidor o disposto quanto ao devedor acerca das causas que obstam, suspendem ou interrompem a prescrição, as quais também se aplicam à usucapião" (CCB/02, art.. 1.244). Nesse particular, verifica-se que não poderá ocorrer prescrição aquisitiva entre descendentes e ascendentes durante o poder familiar, marido e mulher na constância do casamento, etc. (CCB/02, Arts. 197. a 200). Igualmente, não poderá ocorrer usucapião de fração ideal por condômino em face dos demais, a menos que haja a posse exclusiva do imóvel (RT 472/82-84).
Além disso, como referido, a posse que se requer para a consecução da usucapião deve ser qualificada com o móvel de ser dono, com o animus domini. Dessa forma, não se considera posse ad usucapionem aquela do mero detentor, do locatário, do comodatário e de qualquer pessoa que tenha conhecimento de que não é proprietária e assim exerça a sua posse. Veja-se que tal aspecto é fundamental para que se possa configurar a usucapião, não bastando que haja simples prova da posse. O que se deve provar é a posse ad usucapionem.
No tocante aos requisitos do justo título e da boa-fé, estes são apenas requeridos para a hipótese legal da usucapião ordinária. O justo título, segundo NASCIMENTO (1984, p. 94), pode ser conceituado como o ato jurídico escrito público ou particular, externamente, hábil para transferir o domínio ou outro direito real limitado, mas que se encontra carente de alguns dos requisitos essenciais para operar, eficazmente, a transferência. Em outros termos, é o que tem a natureza extrínseca de transladar o direito real, só não o fazendo por ocorrência de uma falha ou defeito.
Dessa forma, mesmo em não sendo regularmente o dono da coisa, o possuidor exerce a sua posse como se o fosse, com base no título que possui. O título existe, mas por alguma razão resta prejudicada sua validade e eficácia5. É o que ocorre nos casos, por exemplo, de contrato de compra e venda de imóvel por instrumento particular (ressalvadas as exceções legais), e nos casos de venda a non domino, neste caso faltando o requisito da legitimidade.
Quanto à boa-fé, esta vem a ser uma decorrência do justo título, ou seja, a crença do possuidor de que é dono, ou o desconhecimento do vício que o impede de sê-lo. Veja-se que a lei cria uma presunção juris tantum de boa-fé ao portador de justo título, sendo desnecessária sua comprovação fática (CCB/02, Art. 1.201).
Da mesma forma, a boa-fé deve dar-se durante todo o período da usucapião, ao contrário do direito romano, para o qual era irrelevante a má-fé superveniente6. Contudo, é irrelevante que o início da posse tenha sido de má-fé, desde que posteriormente se tenha convertido em boa-fé. Isso porque não é aplicável ao direito brasileiro a regra romana (retomada pelo direito canônico) mala fides superveniens nocet, a qual exige que a posse tenha boa fé desde o seu início (cf. MIRANDA, 1958, XI, p. 120).
Quanto a outros requisitos, é de se notar que algumas espécies de usucapião exigem requisitos específicos quanto à destinação do imóvel, tais como o estabelecimento de moradia dos possuidores, o investimento em obras produtivas, a destinação produtiva do imóvel, além exigir não serem os possuidores proprietários de outro imóvel.
3.3. A natureza jurídica da usucapião e da sentença que a declara
Muitas são as teorias a respeito da natureza jurídica da posse, questionando-se se ela é apenas fato, ou fato e direito, discussão essa que o âmbito do presente estudo não permite adentrar. Contudo, há que se consignar que a posse, considerada em si mesma, é um fenômeno que se dá primordialmente no mundo dos fatos, vez que ela não se funda exclusivamente em um direito. No caso da posse exercida como decorrência da propriedade, o direito que se está a exercer é o de propriedade, através do exercício de fato da posse. Sobre o tema, com muita propriedade escreveu Clóvis Bevilácqua (1956, v. I, p. 39):
Não direi que [a posse] seja um direito real, porque, na sistemática do direito civil pátrio, não há outros direito reais, além dos declarados no art. 674. do Código Civil [de 1916]; mas, segundo acima se disse, um direito especial – a manifestação de um direito real, seja a propriedade ou um de seus desmembramentos. A posse é estado de fato. Se a lei a protege, é visando à propriedade de que ela é manifestação.
No entanto, em se tratando de usucapião, a posse vem a ser um dos elementos da sua hipótese abstrata, transformando a posse, fato stricto sensu, num dos pilares do seu suporte fático. Assim, com a realização da hipótese prevista na lei, preenchidos os requisitos da usucapião, dá-se o nascimento de um fato jurídico. Sobre o fenômeno, assim escreve Melo (1982, p. 28):
"O elemento nuclear do suporte fático tem sua influência diretamente sobre a existência do fato jurídico, quer dizer, a sua falta não permite que se considerem os fatos concretizados como suporte fáctico suficiente à incidência da norma jurídica".
Por essa razão, a usucapião, em concretizando seu suporte fático, é fato jurídico que independe de declaração judicial. Esta, quando for requerida, tem apenas como conseqüência a sua publicidade, permitindo-se formalizá-la mediante o seu registro, facilitando o exercício do novo direito de propriedade. Assim, no momento em que foram, no plano dos fatos, preenchidos os requisitos legais, ela se consuma ipso iure.
Sobre o tema, assim refere Câmara Leal (apud NEQUETE, 1981, p. 18):
"A argüição da prescrição não a cria, nem lhe dá eficácia, apenas a invoca, como fato consumado e perfeito, a ele preexistente. Argüir a prescrição não é determinar a sua eficácia, mas exigir que esta seja reconhecida, por isso que a prescrição já existia e havia operado os seus efeitos extintivos."
Nesse sentido, consumada a usucapião, ela poderá ser alegada como defesa (Súmula 237 do STF), sendo considerado esbulho ou turbação qualquer ato de outrem que ofenda a posse de quem completou o prazo para usucapir. Neste caso, contudo, não será a sentença hábil ao registro no Ofício Imobiliário (RT 548/189), salvo no caso de usucapião especial e urbano (Leis 6.969/81 e 10.257/01), conforme ensina Negrão (2006, p. 960).
Assim, no tocante aos efeitos da sentença que reconhecer a usucapião, é de se verificar que ela terá efeito preponderantemente declaratório, visto que o Direito apenas reconhece o que já se consumou no mundo dos fatos. Sílvio Rodrigues, contudo, afirma que tal sentença tem efeito constitutivo, e não declaratório, em razão de o possuidor ter mera expectativa de direito antes dela (2003, p. 113). Tal entendimento, contudo, não parece estar de acordo com a natureza da usucapião, vez que o efeito constitutivo advém da consumação dos requisitos da usucapião, e não da sentença que o declara. Com razão escreve NASCIMENTO (1984, p. 168) sobre o tema:
A sentença, na ação de usucapião, é meramente declaratória e serve como título para haver o registro imobiliário em nome do autor da ação. O efeito constitutivo se dá independentemente da sentença, bastando estarem reunidos os requisitos exigidos pela lei. A sentença tem, entre outros efeitos, o de, possibilitando a inscrição no Registro de Imóveis, permitir a disponibilidade do bem.
Pontes de Miranda, corroborando esse entendimento, traz como exemplo legislativo a Constituição de 1946, que, ao falar da usucapião, já referia expressamente seu efeito declaratório7. Além disso, acrescenta o tratadista um efeito mandamental da sentença (1958, t. XI, p. 148), ao ser determinado o seu registro junto à matrícula do imóvel, o que consta do CPC, art. 945, com a finalidade de dar publicidade à usucapião contra terceiros e permitir ao usucapiente a disposição da coisa.