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Direito, silêncio e corrupção:

um diálogo com Niklas Luhmann e Jürgen Habermas

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4 A "blindagem" do direito diante das leis "compradas" e seus atratores

Como se vê, a autonomia do direito em face dos demais sistemas da sociedade – e inclusive em face da corrupção no sistema de organização política – garante uma blindagem até mesmo diante do questionamento da legitimidade de uma ordem jurídica produzida por uma instância de produção legislativa corrupta. Os custos sociais da corrupção na política (Speck, 2000, p. 31) não atingem o direito exatamente em face da autonomia autopoiética do direito e da política. O direito positivo prevê a forma de sua própria produção e então mesmo as leis "compradas" por sistemas corruptores terão legitimidade se e enquanto o próprio direito – especialmente o direito constitucional – garantir essa legitimidade. Essa autonomia autopoiética do direito é o que possibilita a uma decisão jurídica auto-observar a corrupção a partir de seu próprio código operacional (direito/não direito).

Em outras palavras, a corrupção só aparece quando uma decisão decide fora do seu contexto de decisão. Por isso, do ponto de vista jurídico, a emergência da corrupção na política só pode ser observada quando a diferenciação entre direito e política estiver suficientemente avançada (Luhmann, 1980, p. 56). Porque de outro modo, a corrupção apenas do ponto de vista moral seria tão ambígua quanto o dever de ajudar o próximo. A "ajuda ao próximo" efetuada pelo Partido dos Trabalhadores só pode ser observada como corrupção porque o direito, a política e a economia já são suficientemente autônomos para produzir sentidos diferenciados na sociedade. A dependência do governo de um "mensalão" em face da oposição, isto é, a inexistência de autonomia da situação diante da oposição é o que produz o sentido da corrupção.

A corrupção na política pode ser observada como um problema de insuficiência de autonomia política. Mas autonomia não deve ser entendida aqui como independência total da política em relação ao seu ambiente. Isso seria totalitarismo. Autonomia significa autonomia operacional, decisória. E por isso a autonomia operacional é paradoxalmente dependente cognitivamente do ambiente. A economia, cuja "mão invisível" é o melhor exemplo de autonomia operacional, precisou saber (dependência cognitiva) do Ministério da Fazenda as repercussões da corrupção na política econômica do governo. Somente quando o Ministério da Fazenda noticiou que, apesar de tudo e aconteça o que acontecer, a política econômica seria mantida, intacta, autônoma, "sólida", "blindada", é que o sistema econômico pôde relaxar cognitivamente e continuar a reproduzir as suas próprias operações.

Nesse contexto de autopoiese social (autonomia/dependência), o direito parece não provocar motivações significativas. A opinião pública – e a própria autodescrição dessa opinião pública pelos meios de comunicação de massa – trabalham a corrupção na ambivalência entre um problema de ética na política e um problema de conseqüências (predominantemente econômicas) perversas dessa falta de ética. Não há referências ao direito na comunicação de massa, senão no que diz respeito a procedimentos (CPI’s, hábeas corpus preventivos). O direito é levado em consideração como uma oportunidade de cálculo de riscos a respeito de procedimentos e é exatamente essa oportunidade que o direito pode potencializar como meio de corrompimento da corrupção: definir procedimentos capazes de garantir a transparência das motivações exteriores às decisões em contextos funcionais (por exemplo, no caso da política, as motivações jurídicas, econômicas, éticas, ecológicas e etc.). A própria possibilidade da revelação da corrupção na política pela imprensa e pela própria política é um sintoma de que os procedimentos políticos, condicionados pelo direito, estão de certo modo funcionando.

É através dessa forma, portanto, que o direito pode corromper a corrupção. O direito pode ser utilizado pela política como estrutura de codificação secundária na procedimentalização de decisões políticas capazes de permitir o acesso não apenas a informações políticas, mas às motivações das decisões políticas. E por isso elas podem ser politicamente controladas no jogo da situação/oposição. Face a autonomia autopoiética da política e do direito, os procedimentos jurídicos criam ambientes favoráveis ao controle político das decisões políticas. Essa ambientalização procedimental da política, criada pelo direito, é o que possibilita à "oposição" calcular os riscos de suas ações políticas em relação à "situação" e vice versa.

A solução do problema da corrupção na política pode estar baseada em expectativas de ética na política. Mas para aqueles que já não acreditam mais na ética, o direito ainda pode servir como um mecanismo suficientemente eficaz para criar as condições sociais necessárias sob as quais a própria política, autonomamente, pode controlar-se a si própria. O direito, com efeito, não tem condições, sozinho, de evitar ou mesmo mitigar a corrupção. O que ele pode fazer é criar as condições sob as quais a política possa "autocontrolar-se" como propriedade emergente. Garantir o acesso às motivações das decisões produzidas nas organizações políticas gera a transparência, que é um dos princípios das modernas técnicas de governança baseadas na credibilidade, eficiência, coerência e responsabilidade de sistemas de organização. Não se nega que medidas políticas como o aumento da gravidade das sanções legais às práticas corruptas não possam mitigar a corrupção. Mas não se pode negar também que, na sociedade contemporânea, a proibição legal de práticas é o que as tornam mais lucrativas. Enfim, na sociedade funcionalmente diferenciada, qualquer um pode, do ponto de vista do ambiente, observar o direito como uma oportunidade de escolha entre agir licitamente ou ilicitamente. O risco da escolha por agir ilicitamente, para a economia, é gratificado como uma oportunidade igualmente arriscada de grande lucro. Porque na economia, tudo o que é proibido é escasso. E se a demanda se mantém apesar da escassez, o sistema de preços acaba controlando aquilo que o direito ambientalizou como uma expectativa não normativa e, exatamente por isso, escassa, vale dizer: lucrativa.

Garantir o acesso às motivações das decisões políticas para a própria política. Indica-se, sem competência e com a ingenuidade de quem está no ambiente do sistema político, essa prescrição normativa. Por trás dela está o atrator indireto, produzido pelo direito, no sentido de estimular uma cada vez mais alta diferenciação funcional da política. Em outras palavras, a possibilidade dos políticos se unirem moralmente para "ajudar uns aos outros" só pode ser controlada através da distinção situação/oposição. O direito, como estrutura de codificação secundária utilizada pela política para vincular coletivamente suas decisões, talvez não possa ser planejado de acordo com as expectativas de criação das condições necessárias para essa diferenciação auto-organizacional na política. O estímulo à diferença situação/oposição pode ser realizado com mais efetividade pela opinião pública, porque é ela que está no foco da abertura cognitiva da política. Mas quem poderia negar que, se essa meta fosse realmente alcançada, a política poderá reagir com estratégias cada vez mais massificadas de marketing para a manipulação dessa opinião pública?

Planos podem ser feitos, mas os resultados jamais poderão ser previstos. O direito pode ser utilizado como meio para a criação de um ambiente favorável ao autocontrole da política pela própria política. Mas a resposta da política a essas novas condições no ambiente poderá ser inesperada, produzindo novas ilusões de óticas falsificadas pela autodescrição do próprio sistema a partir do qual um observador observa os resultados. E então esse observador – e somente ele – poderá, com toda a competência garantida por esquemas simplificados (análises, classificações, comparações analógicas e etc.), observar essa nova versão falsificada do inesperado como progresso, para a partir daí renovar seus sempre penúltimos planos.

Cada sistema da sociedade autoproduz um mundo no sentido fenomenológico. Cada mundo é uma cópia holográfica de uma mundanidade geral que, também ela, só pode ser observada na forma de comunicação e com o sentido autoproduzido através de distinções. Essa cópia holográfica é, por definição, uma versão artificial da mundanidade geral e a observação não possui um lugar, fora da artificialidade das distinções oportunizadas pela linguagem, a partir de onde possa ver, com sentido, o que se sucede no mundo. Tudo ocorre de modo simultâneo e por isso um observador só pode ver o mundo artificial dos sentidos autoproduzidos por cada sistema social e isso é, paradoxalmente, a realidade. Então uma versão radical desse problema poderia sugerir que até estas descrições, na medida em que são autodescrições na forma de linguagem, também são artificiais e, por isso, irreais. E se tudo isso não é real, inclusive essa afirmação de que tudo isso não é real, então como saber realmente se há realidade ou artificialidade em tudo isso?

Esse paradoxo, provocado propositalmente, serve para ilustrar o fato de que toda observação pressupõe uma operação de indicação e distinção criativas. As formas de distinção são absolutamente contingentes e, por isso, a observação pode ganhar complexidade substituindo a identidade pela diferença e o controle pela autonomia. Porque a sociedade contemporânea é dinâmica o suficiente para produzir sempre muito mais possibilidades do que a observação pode experimentar. Tal como o outro lado do artificial é um projeto sempre aberto de real, o "silêncio" dos intelectuais de esquerda, diante dessa experiência incorporada de corrupção na Política brasileira, tem o outro lado como um projeto ainda aberto de "fala política". A assimetrização desse paradoxo, através da indicação de um terceiro valor, será o resultado impredizível dessa experiência incorporada. O direito selecionará os culpados, diferenciando-os dos inocentes. Se essa prestação do direito às expectativas normativas da sociedade será suficiente para manter a estabilidade dinâmica da política, só a assimetrização política do paradoxo silêncio (niilismo)/fala política (vontade de potência) poderá informar.


5 O outro lado do silêncio: o projeto aberto da ação comunicativa de Habermas

Essa perspectiva luhmanniana permite observar que a situação de "silêncio" dos intelectuais de esquerda, diante da experiência do niilismo, está obrigada a uma assimetrização através da indicação de um terceiro valor criativo. Em outras palavras, os intelectuais de esquerda estão obrigados a desenvolver criativamente o paradoxo no qual eles se encontram (silêncio/fala política), através da indicação de um terceiro valor criativo com capacidade de realizar conexões de sentido, isto é, através de uma gödelização desse paradoxo. Esse terceiro valor é indeterminado e, por isso, impredizível. Existem inúmeras possibilidades de assimetrização desse paradoxo, conforme a totalidade dos sentidos disponíveis na sociedade mundial. Dentre essas inúmeras possibilidades impredizíveis, destaca-se a ação comunicativa de Habermas (1996; 1997; 2001) pelo potencial de conexão do paradoxo ao sentido de uma democracia deliberativa. Em outras palavras, propõe-se a assimetrização do paradoxo silêncio/fala política pela conexão da ação comunicativa de Habermas como terceiro valor criativo.

Essa "prescrição" não necessária justifica-se porque a perspectiva deliberativa proposta por Habermas resgata a dimensão moral da sociedade, indispensável à sobrevivência da democracia liberal. Ela oportuniza (re)pensar o projeto da modernidade a partir da racionalidade e da justificação filosófica da democracia, construindo uma teoria capaz de unir aspectos filosóficos e práticos. Trata-se de um desacoplamento da comunicação política relacionado exclusivamente à economia, dando espaço ao poder político vinculado ao processo comunicativo de formação da vontade de opiniões políticas, através do uso público da razão. A concepção liberal não está ligada ao consenso, mas pressupõe valores como a tolerância, o respeito às minorias, inclusão social, dentre outros (Habermas, 2002; Macpherson, 1978). Dessa forma, o desafio é o resgate dos princípios (valores) iluministas, sem reduzi-los ao pensamento científico, fazendo com que esses valores façam parte da vida social. Ao invés de reduzir os atores ao pensamento técnico, à razão instrumental, ou ainda ater-se apenas às particularidades dos indivíduos, Habermas acredita que é possível o consenso através da comunicação, sem se olvidar das particularidades do mundo vivido (Lebenwelt) e, por óbvio, da cultura local.

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Através do discurso dialógico é possível um entendimento entre as diferenças, no sentido de redução da complexidade dos problemas sociais que surgem, respeitando-se, inexoravelmente, as diversidades. Caso contrário, a opressão e o medo da diversidade continuarão sendo o mise en sene das sociedades contemporâneas (Châtelet, 1983). Nesse contexto, o direito torna-se fundamental. Porque na medida em que um indivíduo socializado pode distinguir se um ato é ou não vinculado a uma regra, emerge um conteúdo racional de uma moral baseada no respeito mútuo e na responsabilidade solidária que cada indivíduo tem pelo outro (Touraine, 2000, p. 355), tendo como objetivo a inclusão de todos na comunidade. Assim, a democracia deliberativa encontra seu sustentáculo na Teoria da Ação Comunicativa de Habermas.

Ao propor a noção procedimental de democracia, que é incompatível com a idéia de sociedade centrada no Estado ou no indivíduo, Habermas retoma o projeto histórico-filosófico da modernidade, atribuindo à opinião pública a função de legitimar o domínio político por meio de um processo crítico de comunicação sustentado nos princípios de um consenso racionalmente motivado. O consenso social deriva da Ação Comunicativa, que corresponde ao interesse cognitivo por um entendimento recíproco e ao interesse prático pela manutenção de uma intersubjetividade permanentemente ameaçada. Os riscos da democracia, no entanto, não poderão ser evitados, porque é impossível "definir" e "aplicar" a democracia. Nos ideais democráticos apresentados não será possível prever um único futuro para a democracia. Mas através do modelo deliberativo poderá se dar soluções aos conflitos que surgirão, porque a concepção de uma pluralidade de esferas públicas espontâneas e organizadas informalmente, produz maior sensibilidade em detectar problemas sociais do que o sistema político burocrático estatal ou o sistema individualista.

Para que o direito mantenha uma legitimidade nessa concepção, é fundamental que os cidadãos utilizem suas liberdades comunicativas e tenham interesse em participar ativamente das questões políticas, não apenas como liberdades subjetivas de ação para a defesa de interesses próprios, mas também como liberdades comunicativas para fins do uso da razão (Habermas, 1997, p.352). Assim, Habermas abandona uma concepção unitária de esfera pública e a substitui por uma concepção multiforme, quando se refere às redes diferenciadas de esferas públicas, sejam literárias, científicas e políticas, interpartidárias ou específicas de associações, em que ocorrem processos discursivos de formação da opinião e da vontade, cujo objetivo é a difusão do conhecimento e da informação, bem como a sua interpenetração nos outros sistemas. As fronteiras entre estas múltiplas esferas públicas são, por definição, permeáveis, dado que cada esfera pública está aberta a todas as outras. Por isso se pode observar que a soberania popular, entendida como um fluxo de comunicação no poder dos discursos públicos, é capaz de interferir no sistema burocrático estatal, modificando-o.

No entanto, não se trata de substituir o sistema de organização estatal por outro, até porque a responsabilidade pela formação da vontade derivada da soberania popular exige a necessidade de conversão destas opiniões em decisões tomadas por corpos deliberativos democraticamente constituídos (Lefort, 1983). A responsabilidade pela formação/concretização da vontade deve, pois, assentar-se no poder administrativo do Estado, uma vez que os discursos geram um poder comunicativo de legitimação pelo procedimento. Em outras palavras, o processo democrático se dá pelo procedimento. Trata-se, em última análise, de um resgate do sistema liberal, no que diz respeito aos valores que instituíram as sociedades modernas. Porque o poder comunicativo não pode substituir a lógica sistêmica do Estado, assim como a solidariedade também não pode substituir o poder administrativo. Mas na medida em que a garantia da decisão só terá eficácia pelo processo político institucionalizado, ela será capaz de concretizar as problematizações sociais levantadas e decididas nos palcos dialógicos.

Assim, a noção de esfera pública na Teoria da Ação Comunicativa possui duas funções distintas: referente à comunicação que ocorre na esfera pública, com o intuito de detectar, discutir e influenciar na solução dos diversos problemas dos sistemas sociais, reduzindo-lhes a complexidade; e a função de interferir com a decisão nos canais parlamentares e judiciais, para que estes últimos, legitimados para tanto, possam garantir a concretização das tomadas de decisão. Pode-se, ainda, atribuir uma terceira função diretamente ligada ao problema da corrupção: a tomada de decisão política, praticada nesse modelo de esfera pública, oportuniza a supervisão e o monitoramento públicos das motivações nas decisões políticas. Em outras palavras, conquista-se um nível muito mais avançado de transparência nas decisões e, por isso, de auto-controle da corrupção.

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Sobre os autores
Daniela Miranda

mestre em Direito pela Unisinos, professora do Departamento de Direito Público da Universidade de Caxias do Sul (RS)

Rafael Lazzarotto Simioni

Doutor em Direito (Unisinos), Mestre em Direito (UCS), professor e pesquisador da FDSM.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MIRANDA, Daniela ; SIMIONI, Rafael Lazzarotto. Direito, silêncio e corrupção:: um diálogo com Niklas Luhmann e Jürgen Habermas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1396, 28 abr. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9797. Acesso em: 28 mar. 2024.

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