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A OAB pode impedir alguém de advogar?

22/05/2022 às 18:55
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Comissões de prerrogativas de advogados de todo o país irão uniformizar a forma de encaminhar e processar denúncias de violações e, assim, operacionalizar o Cadastro Nacional de Violadores de Prerrogativas, criado pelo provimento 179/2018.

A Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994, estabelece em seu artigo 8º, como requisito para inscrição como advogado, dentre outras coisas, a idoneidade moral.

O parágrafo quarto do dispositivo acima, diz: "Não atende ao requisito de idoneidade moral aquele que tiver sido condenado por crime infamante, salvo reabilitação judicial".(grifei)

Posto isso, ventila-se que a OAB pretende impedir a inscrição de possíveis servidores públicos que violarem as prerrogativas, como policiais, promotores de justiça e membros da magistratura, quando se aposentarem ou deixarem suas funções.

A questão reside sobre a legalidade de tal pretensão. O conceito de inidoneidade moral me parece inatingível na era em que estamos.

Estabelecer se uma pessoa é idônea moralmente para exercer sua profissão como autônomo, por se tratar de instituto de difícil aferição, mostra-se desarrazoado e desproporcional. 

No mais, além do Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil OAB, a classificação de inidoneidade moral é raríssima no ordenamento jurídico do Brasil.

Igualmente, salvo as mentes férteis de imaginações abstratas, que tentam a toda sorte, com argumentos frágeis, anêmicos, capengas e sem nenhuma consistência jurídica, o conceito de crime infamante também é impossível de encontrar.

Assim, tem-se que, por mais repulsivo que seja o crime, classificá-lo como infamante, visando unicamente impedir o exercício de qualquer profissão, é no mínimo desdenhar de preceitos básicos no aprendizado jurídico.  

Tentam utilizar como alicerce para classificar o crime como infamante argumentos no seguinte sentido: denominação dada ao crime que, devido aos meios empregados e às circunstâncias em que se realizou, ocasiona no meio social uma reprovabilidade maior manifestada sobre o autor do crime e que o desonra, rebaixa e avilta, principalmente levando-se em conta os motivos que levaram o agente a delinquir e que causam repulsa (Enciclopédia Saraiva do Direito, v. 21, p. 398)

Ocorre que tal classificação tem sido usada indistintamente nos tribunais internos da OAB, o que foge do próprio embasamento utilizado pela instituição para lastrear seus próprios desígnios.

Como se não bastasse, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, ao dispor sobre os direitos e garantias fundamentais, estabelece que é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer.

Nesse ponto, é nítido que não quis o legislador, ao grafar atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer, permitir que se utilize de conceitos tão vagos para limitar o exercício de qualquer profissão.

Some-se a tudo isso o seguinte: no caso de impedir a inscrição de possíveis violadores de prerrogativas, sem que tenha uma condenação penal do servidor público, estaria a OAB, impondo verdadeira pena de caráter perpétua ao indivíduo, o que é proibido pela nossa lei maior.

Já no caso de haver uma condenação criminal com trânsito em julgado, tem sido praxe nas comissões de inscrição da Ordem, impor a obrigatoriedade da reabilitação criminal, para que se faça novo pedido. E só após o deferimento judicial é que o bacharel ficaria apto a solicitar sua inscrição como advogado. É sobre esse instituto que discorreremos a seguir.

Ocorre que a reabilitação é um instituto ultrapassado e imprestável para conferir a idoneidade moral da pessoa. Tanto é verdade que é um instrumento pouco utilizado por pessoas que sofreram condenações judiciais. Servindo tão somente para assegurar o sigilo dos registros referentes à condenação.

Além disso, apesar de continuar existido em nossa legislação penal, por pura displicência dos legisladores brasileiros, já temos norma mais moderna, que afasta a necessidade de se manejar pedidos judiciais de reabilitação.  

A esse respeito, Guilherme de Souza Nucci, assim posicionou-se:

Suas metas principais são garantir o sigilo dos registros sobre o processo e a condenação do sentenciado, bem como proporcionar a recuperação de direitos perdidos por conta dos efeitos da condenação. Ocorre que, no art. 202 da Lei de Execução Penal, consta que, cumprida ou extinta a pena, não constarão da folha corrida, atestados ou certidões fornecidas por autoridade policial ou por auxiliares da Justiça, qualquer notícia ou referência à condenação, salvo para instruir processo pela prática de nova infração penal ou outros casos expressos em lei. (grifei)

No mais, funções de igual envergadura, não exige de seus candidatos tal condição. Veja por exemplo, os cargos públicos, que precedem da aprovação em concursos, não estabelecem essa obrigatoriedade. Não havendo falar, portanto, na continuidade da imposição.    

Não desconheço que o tema merece um aprofundamento maior, contudo, por uma questão didática, nos ateremos ao que foi prefaciado.

Deste modo, insistir em impedir a inscrição de violadores de prerrogativas, estaria a OAB violando mais direitos do que os próprios servidores que desconhecem o tratamento a ser dispensado aos advogados.

Sustentar que não atende a idoneidade moral, exigido no art 8° §4° do Estatuto da Advocacia e da OAB (Lei 8906/94), em razão de comportamento de falta de urbanidade, em que pese não ser o adequado, não me parece o suficiente para tamanha gravidade.

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A se confirmar tal inclinação, cria-se também um cenário para futuros questionamento judicial, o que irá onerar, inquestionavelmente ainda mais a sociedade, o que não se deve esperar de uma instituição como a OAB.

Nessa linha, como consignou certa vez um magistrado, a quem peço escusas por não haver encontrado a fonte segura para a devida citação, não é aceitável que 'uma entidade do porte da OAB, a qual se apresenta à sociedade brasileira como depositária de valores constitucionais tão caros ao nosso Estado democrático de Direito, defendendo bandeiras como as do contraditório, da ampla defesa e da dignidade da pessoa humana, assuma, em seu contencioso administrativo, postura que vai de encontro ao seu discurso externa corporis'.

O que se extrai desse ensinamento é que tolher o cidadão de suas garantias constitucionais, além de esvaziar, por completo, o núcleo essencial de uma instituição que opera o direito, contradiz tudo aquilo que o advogado representa para a sociedade em geral.

O advogado é, em muitas situações, a única chance de se reverter uma situação de agrura, daí o órgão que lhes representa, não poder se assemelhar, mesmo que em análises de processos administrativos, a instituições policiais, da magistratura e ministério público que fazem investigações sociais para o ingresso em seus quadros.

Postar-se de tal forma é nivelar-se a um Estado policialesco e autoritário, que tenta impor uma perfeição brutal àquele que passou por algum infortúnio durante a vida.

Portanto, não há como conceber a ideologia que ora se pretende por parte desse órgão de classe, exatamente por tudo que se argumentou até aqui.

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Sobre o autor
Valter dos Santos

Acesse: www.professorvalterdossantos.com

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Valter. A OAB pode impedir alguém de advogar?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6899, 22 mai. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/98028. Acesso em: 20 abr. 2024.

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