4.APLICABILIDADE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS
Para a doutrina tradicional, que adota uma classificação sobre a aplicabilidade das normas constitucionais, tem-se em conta que algumas normas constitucionais podem ser aplicadas diretamente pelo Poder Judiciário, porquanto munidas de suficiente densidade normativa; outras, pelo contrário, necessitam de interposição legislativa que lhes confira plena aplicabilidade.
Nesta linha, pode-se falar que a carga normativa de cada dispositivo dependerá da forma em que foi textualmente estabelecida (técnica de positivação) e nesse ponto terá maior ou menor normatividade, que é a pontencialidade de um dispositivo constitucional em surtir todos os efeitos desejados pelo legislador. Ressalte-se, todavia, que a expressão conceituada não tem o condão de obstaculizar os efeitos das normas, já que, pelo princípio da máxima efetividade possível, as normas terão o sentido em que mais se aproximar da eficácia geral, positiva e negativa plenas.
Ressalte-se ainda que caso um dispositivo seja dotado de baixa normatividade, ainda assim poderá ser levado à apreciação do Poder Judiciário, que o integrará, interpretará, e pelo princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, oferecerá uma resposta resolúvel ao interessado pela garantia de um suposto direito subjetivo. A exigibilidade de um direito fundamental é total, e abrange o catálogo constitucional indistintamente.
4.1.REFLEXÃO SOBRE AS DIVERSAS CLASSIFICAÇÕES QUANTO AO GRAU DE EFICÁCIA DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS
4.1.1.Classificação adotada por Ruy Barbosa
Classificação elaborada pelo norte-americano Thomas Cooley, que classificou as normas constitucionais em auto-executáveis (self-executing) e não auto-executáveis (not self-executing), foi recepcionada, nacionalmente, por Ruy Barbosa.
Para essa teoria, as normas auto-executáveis seriam aquelas que bastam por si mesmas, não necessitando de uma interposição legislativa ou atos matérias complexos para serem plenamente aplicadas. Não necessitam de constituir ou designar uma autoridade, nem criar ou indicar um processo especial, pois o direito nela instituído se acha armado por si mesmo, pela sua própria natureza, dos seus meios de execução e preservação (BARBOSA apud SILVA, 2007, p. 74). Quanto às normas não auto-executáveis, sabe-se que estas necessitam dos atos mencionados para viabilizar a plena efetivação do comando normativo, pois, ao estabelecerem, por exemplo, atribuições a uma autoridade, não oferece os meios de exercê-las.
A crítica que se faz a essa classificação reside no fato de considerar as normas não auto-aplicáveis como desprovidas de eficácia. Como se verá, a doutrina moderna adota como princípio a máxima efetividade e a supremacia da constituição, não justificando sonegar eficácia, ainda que mínima, a seus preceitos.
Mas esta crítica não atinge o ilustre Ruy Barbosa, apesar da classificação por ele adotada, pois avançou em reconhecer que "não há, numa Constituição, cláusulas, a que se deva atribuir meramente o valor moral de conselhos, avisos ou lições. Todas elas têm força imperativa de regras, ditadas pela soberania nacional". (BARBOSA, apud SILVA, 2007, p. 75).
4.1.2.Classificação adotada por José Horácio Meirelles Teixeira
Para José Horácio Meirelles Teixeira (apud BILHAVA, 2005), na linha exposta acima, toda a norma possui certo grau de eficácia, onde se lhe atribui maior ou menor densidade normativa. Diante disso, classificou as normas como de eficácia plena e como de eficácia limitada ou reduzida.
As normas de eficácia plena são aquelas que, desde o início de sua promulgação, produzem, numa plenitude de execução imediata, todos os efeitos essenciais e desejados pelo constituinte. A normatividade é suficiente à viabilização do direito ou objeto tutelado. Já as normas de eficácia limitada são aquelas desprovidas de suficiente normatividade, não produzindo todos os efeitos essenciais desde sua promulgação, necessitando de interposição legislativa ou atos materiais de viabilização.
Entretanto, José Horácio Meirelles Teixeira (BILHAVA, 2005, p. 37) ressalta que não há disposição constitucional de eficácia jurídica absolutamente nula, por isso rechaça a classificação adotada por Ruy Barbosa. Para ele as normas de eficácia limitada revestem-se de uma eficácia negativa, condicionando o legislador ordinário a certos limites e diretrizes e influencia os processos de interpretação e integração de outras normas.
O autor ainda ressalta uma subclassificação entre as normas de eficácia limitada ou reduzida, atendendo ao seu conteúdo e aos seus objetivos, qual seja: a)normas programáticas e b)normas de legislação. (DIRLEY, 2004, p. 89).
4.1.3.Classificação adotada por José Afonso da Silva
Avançando sobre o tema da aplicabilidade das normas constitucionais, José Afonso da Silva (2002) classificou-as em normas de eficácia plena (de aplicabilidade direta, imediata e integral), contida (de aplicabilidade direta e imediata, mas possivelmente não integral) e limitada (subdivididas em declaratórias de princípios institutivos ou organizativos e em declaratórias de princípio programático).
Nesta classificação, são normas constitucionais de eficácia plena aquelas que, "desde a entrada em vigor da constituição, produzem, ou têm possibilidade de produzir, todos os efeitos essenciais, relativamente aos interesses, comportamentos e situações, que o legislador constituinte, direta e normativamente, quis regular" (SILVA, 2007, p. 101). Os direitos que porventura sejam originados de semelhantes normas são aptos, direta e imediatamente, a serem usufruídos, pois originados de comandos certos e definidos.
Já as normas constitucionais de eficácia contida:
são aquelas em que o legislador constituinte regulou suficientemente os interesses relativos a determinada matéria, mas deixou margem à atuação restritiva por parte da competência discricionária do Poder Público, nos termos que a lei estabelecer ou nos termos de conceitos gerais nelas enunciados. (SILVA, 2007, p. 116).
Por fim, normas constitucionais de eficácia limitada são aquelas que apresentam aplicabilidade indireta, mediata e reduzida, necessitando de providências estatais para que possam surtir os efeitos essenciais desejados pelo Poder Constituinte. Assim, o conteúdo desta norma somente se revela mediante ato de concretização posterior à vigência da mesma. No entanto, como todas as demais normas constitucionais, possuem eficácia mínima, invalidando normas posteriores ou não recepcionando as anteriores que lhes sejam contrárias.
Como mencionado, as normas de eficácia limitada subdividem-se em normas declaratórias de princípios institutivos ou organizativos e em declaratórias de princípio programático.
"As de princípio institutivo encontram-se principalmente na parte orgânica da constituição, enquanto as de princípio programático compõem os elementos sócio-ideológicos que caracterizam as cartas magnas contemporâneas". (SILVA, 2007, p. 262).
Relativamente ao direito de greve, o Supremo Tribunal Federal, em sua maioria, classificou artigo 37, VII, da CRFB/88, como norma de eficácia limitada.
MANDADO DE INJUNÇÃO COLETIVO- DIREITO DE GREVE DO SERVIDOR PÚBLICO CIVIL – EVOLUÇÃO DESSE DIREITO NO CONSTITUCIONALISMO BRASILEIRO – MODELOS NORMATIVOS NO DIREITO COMPARADO- PRERROGATIVA JURÍDICA ASSEGURADA PELA CONSTITUIÇÃO (ART. 37, VII) – IMPOSSIBILIDADE DE SEU EXERCÍCIO ANTES DA EDIÇÃO DE LEI COMPLEMENTAR – OMISSÃO LEGISLATIVA – HIPÓTESE DE SUA CONFIGURAÇÃO – RECONHECIMENTO DO ESTADO DE MORA DO CONGRESSO NACIONAL – IMPETRAÇÃO POR ENTIDADE DE CLASSE – ADMISSIBILIDADE – WRIT CONCEDIDO.
Direito de greve no serviço público: O preceito constitucional que reconheceu o direito de greve ao servidor público civil constitui norma de eficácia meramente limitada, desprovida, em conseqüência, de auto-aplicabilidade, razão pela qual, para atuar plenamente, depende de edição de lei complementar exigida pelo próprio texto da Constituição. A mera outorga constitucional do direito de greve ao servidor público civil não basta – ante a ausência de auto-aplicabilidade da norma constante do art. 37, VII, da Constituição – para justificar o seu imediato exercício.
O exercício do direito público subjetivo de greve outorgado aos servidores civis só se revelará possível depois da edição de lei complementar reclamada pela Carta Política. A lei complementar referida – que vai definir os termos e os limites do direito de greve no serviço público – constitui requisito de aplicabilidade e de operatividade da norma inscrita no artigo 37, inciso VII, do texto constitucional (MI 20-DF, Rel. Min. Celso de Mello, DJU, de 27/05/94).
De fato, a norma, tanto pelo texto e mais pela repercussão social que encerra seu exercício, merece um mínimo de regulamentação, a fim de que sejam fixados os termos e limites do movimento paredista. Nem todos os serviços devem sofrer com a paralisação, como nem todos os servidores públicos podem, da mesma forma, manifestar seu inconformismo com a condução da política trabalhista pertinente. Por isso, classificando a norma dentro da teoria de José Afonso da Silva, deve-se considerá-la como de eficácia limitada. Se o constituinte desejasse o contrário, teria feito apenas remissão ao direito, a exemplo do §3º, art. 39, da CRFB/88 [10], não mencionando o mesmo direito em diferentes dispositivos.
4.1.4.Outras classificações
À semelhança da classificação adotada por José Afonso da Silva, Maria Helena Diniz classificou as normas constitucionais em normas supereficazes ou de eficácia absoluta (são as cláusulas pétreas); normas com eficácia plena; normas de eficácia relativa restringível (análogas às de eficácia contida, na classificação de José Afonso da Silva); e as normas de eficácia relativa complementável (análogas às de eficácia limitada, na classificação de José Afonso da Silva) de princípio institutivo ou de princípio programático.
Ainda há que se destacar a classificação proposta por Luís Roberto Barroso em que as normas constitucionais podem ser: de organização (organizam a estrutura funcional dos poderes políticos); as definidoras de direitos (subjetivos); e as normas programáticas (traçam metas para os poderes públicos).
Entretanto, para não desviar o foco da pesquisa, e considerando que as classificações não se diferenciam substancialmente, optou-se por apenas mencioná-las.
4.2.APLICABILIDADE IMEDIATA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Todas as normas insertas na Constituição Brasileira têm status e força de norma constitucional, porquanto foi adotado em nosso país o critério formal, cujo bloco de constitucionalidade [11] compõem-se pelas normas positivadas, apenas, pouco importando que materialmente sejam fundamentais. Então, nada justificaria o fato de uma norma constitucional ser efetiva e outra não. Mas pelo que foi tratado, sobretudo por José Afonso da Silva, somente as normas constitucionais de eficácia plena e as de eficácia contida são dotadas de aplicabilidade imediata, enquanto que as normas de eficácia limitada teriam apenas aplicação indireta e mediata.
De fato, a constituição brasileira menciona que uma lei específica deverá ser editada para regulamentar o direito de greve, mas também, em seu §1º, art. 5º, prescreve que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.(grifos nossos).
À primeira vista, depreende-se que todos os direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. No entanto, para alguns estudiosos do Direito, a norma contida no dispositivo aplica-se apenas aos direitos e garantias individuais previstos no art. 5º da Lei Maior. Para eles, portanto, o constituinte disse mais que pretendia.
Por outro lado, há aqueles para os quais não se sustenta a restrição, porquanto, segundo a própria vontade do legislador, os direitos fundamentais não se limitam àqueles expressos na Constituição. Neste entendimento, o âmbito da expressão repousa no sentido da literalidade, abrangendo os direitos e garantias individuais, direitos políticos, direitos da nacionalidade e os direitos sociais. Assim, todos os direitos fundamentais têm aplicação imediata, e tal entendimento não se pode relativizar, conquanto ao se incluir um direito como fundamental, não se poderia restringir seus privilégios de aplicabilidade, como a sua incidência direta ou imediata.
Neste contexto, vislumbra-se a tentativa do legislador constituinte em proteger as normas constitucionais da omissão regulamentar, e da conseqüente negativa de aplicabilidade. O constituinte, ao estabelecer a imediação de seus direitos fundamentais, visou demonstrar, a um só tempo, a supremacia da constituição, a máxima efetividade possível, e a sua força normativa, impedindo que se faça dela, pejorativamente, a tão propagada folha de papel [12].
Ainda sobre o tópico em questão, sabe-se que é no mínimo desafiador da lógica da natureza afirmar que o conteúdo do preceito poderá transformar qualquer direito fundamental em plenamente eficaz, mesmo que a densidade normativa seja insuficiente, como é o caso das normas programáticas.
Por ser ilógico, não poderia o julgador aplicar diretamente e de forma indistinta todas as normas constitucionais. O magistrado não tem, por si só, o "poder de Hércules" ou de outro personagem mitológico, e isso não ocorre devido a negações levianas, senão por problemas de ordem superior. Diante desse fato, a solução mais racional seria pensar de qual instrumento se deve valer o indivíduo para obter o gozo de todos os efeitos possíveis da norma jurídica incompleta. A mera vontade do titular do direito também não basta, o que muitas vezes se faz necessária uma interposição instrumental.
A interposição instrumental aludida tem referência expressa na própria Constituição, quando trata das garantias do mandado de injunção e da ação direta de inconstitucionalidade por omissão. Tais instrumentos só reforçam a idéia de que não bastaria apenas dizer que os direitos e garantias fundamentais têm tal ou qual aplicabilidade, mas necessitou tratar sobre instrumentos que fizessem a norma produzir os efeitos essenciais desejados. Neste sentido, manifestou-se Ingo Wolfgang Sarlet (2006, p. 276):
No que concerne aos instrumentos processuais referidos, entendemos ser possível advogar o ponto de vista de acordo com a qual a previsão constitucional de institutos de natureza de um Mandado de Injunção contra omissões dos poderes públicos, e da ação direta de inconstitucionalidade por omissão não tem, por si só, o condão de outorgar a todas as normas constitucionais a qualidade da aplicabilidade direta e a sua plenitude eficacial, sendo, pelo contrário, justamente uma prova contundente de que existem normas na Constituição que dependem de interposição do legislador, constituindo tal circunstância a própria razão dos instrumentos citados.
A existência de instrumentos de concretização judicial das normas dependentes de atos administrativos ou legislativos futuros vai de encontro à própria necessidade do §1º, art.5º da Constituição do Brasil. É que, ou todas as normas são, originariamente, aplicáveis imediatamente, prescindindo dessa disposição constitucional, ou não são, e o indivíduo se vale naturalmente dos instrumentos concretizadores.
Diz-se, então, que há um impasse sobre o conteúdo do dispositivo em análise. Para dirimi-lo, pode-se recorrer à conclusão de Ingo Wolfgang Sarlet, para quem:
a melhor exegese da norma contida no art. 5º, §1º, de nossa Constituição é a que parte da premissa de que se trata de norma de cunho inequivocamente principiológico, considerando-a, portanto, uma espécie de mandado de otimização (ou maximização), isto é, estabelecendo aos órgãos estatais a tarefa de reconhecerem a maior eficácia possível aos direitos fundamentais.( 2006, p.282).
Acrescente-se que, para todas as normas constitucionais, mesmo as que não definem direitos fundamentais, deve-se dar a máxima efetividade. Todas as normas, inclusive as de eficácia limitada, são dotadas desse atributo principiológico, recebendo eficácia de, no mínimo, parâmetro negativo de aplicação [13]. Vale dizer, todas elas, por menor densidade que se tenham, são base para a harmonia do ordenamento jurídico, sendo que não deverá haver conflito real entre as mesmas.
Nesta busca do melhor sentido para a aplicabilidade imediata dos direitos e garantias fundamentais, ainda se pode observar que
o princípio da aplicabilidade directa vale como indicador de exeqüibilidade imediata das constitucionais, presumindo-se a sua perfeição, isto é, a sua auto-suficiência baseada no caráter líquido e certo do seu conteúdo de sentido. Vão, pois, aqui incluídos o dever dos juízes e dos demais operadores jurídicos de aplicarem os preceitos constitucionais e a autorização de para esse fim os concretizarem por via interpretativa. (ANDRADE apud SARLET, 2006, p. 288).
Em termos técnicos, não se poderá interpretar que o dispositivo que estabelece a aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais é desnecessário ante o princípio hermenêutico da máxima efetividade das normas constitucionais. Pelo contrário, a tese constitucional da aplicabilidade imediata teve a virtude de positivar este princípio otimizador.
4.3.CRÍTICA ÀS TEORIAS DA APLICABILIDADE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS
As questões de ordem política e social, antes afetas aos órgãos representativos, passaram a ser levadas à apreciação judicial, devido às sérias crises de inobservância por parte dos Poderes Públicos. Acostumados a serem meros aplicadores da lei, os julgadores vêm deparando-se com assuntos cada vez mais complexos.
Diante dessa constatação, a justiça assume um papel de protetor final dos direitos subjetivos e das promessas intencionalmente demagógicas disseminadas e neutralizadas pelos governantes. Passa-se com isso, a justificar fundadas reflexões acerca do conceito de democracia e das restrições à atuação judicial.
Neste contexto, vale aqui mencionar que a teoria da aplicabilidade da norma constitucional é um importante instrumento de auto-restrição da atividade jurisdicional, sobretudo no que concerne às normas ditas de eficácia limitada. Entretanto, com os mais modernos estudos acerca da eficácia dos direitos fundamentais, a doutrina evoluiu no sentido de conferir, cada vez mais, cogência a estas normas, principalmente para aquelas definidoras de princípio programático.
Por muito tempo era difundido, com certo ar de conformismo, que as normas programáticas dependiam, necessariamente, de uma normatividade futura ou, tratando-se de direitos sociais, da disponibilidade financeira para integrar-lhe a eficácia. Ressalte-se, todavia, que não são apenas essas normas que representam dispêndio econômico; a concretização dos direitos civis de liberdade também necessita de gastos, ainda que indiretos. Portanto, não se pode generalizar que um direito é de cunho prestacional e outro não. Como já foi explicado, as normas necessitam de maior ou menor gasto público para sua concretização, assumindo feições de preponderância, de acordo com outros fatores associados (territorial, cultural etc.) [14].
Por outro lado, são as normas definidoras de direitos sociais as que mais demandam procedimentos complexos de concretização. Exige-se, igualmente, ações governamentais na implementação de políticas públicas. É nesse diapasão que se originou a teoria da "reserva do possível" [15].
Mas o que se quer, aqui, afinal, é demonstrar que o constituinte tanto desejou imprimir eficácia aos direitos prestacionais [16] que ofereceu duas garantias: a ação direta de inconstitucionalidade por omissão e o mandado de injunção.
Por isso, vê-se que a aplicação das normas ditas de eficácia limitada não é, somente pela leitura do texto constitucional, ineficaz. O judiciário poderá superar qualquer obstáculo à efetivação de um direito, seja ele oriundo de uma norma de eficácia plena, contida ou limitada. A eles, portanto, cabem, valendo-se das técnicas hermenêuticas, demonstrar com argumentos convincentes o acerto ou desacerto de uma vontade concretizadora.
Nesse sentido, assevera Sergio Fernando Moro:
Poder-se-ia falar que a concretização judicial da Constituição está sujeita ao limite da "reserva de consistência". No controle judicial de ato legislativo, cumpre ao julgador demonstrar com argumentos convincentes o acerto de sua interpretação da Constituição e o desacerto daquela que levou à edição do ato legislativo. Em se tratando de concretização judicial à margem de vazio legislativo, o déficit democrático do julgador obrigará a demonstração de que o ato judicial resulta de correta interpretação do texto constitucional, sob pena de franquear-se a via do abuso.
[...]
Como limite relacionado à "questão interpretativa", não se trata de barreira intransponível à concretização das normas constitucionais. Basta, o que não se faz sem dificuldades e recorrendo a amplos dados empíricos, inclusive, de ciências não-jurídicas, verificar quais prestações são facticamente atendíveis, e em que grau, e quais não são. (grifos nossos). (2007, p. 3).
Assim, fica registrado que a reserva de consistência, como faceta da "reserva do possível" [17], e a argumentação jurídica, são os critérios mais seguros de auto-restrição judicial. Observando estas "barreiras", qualquer direito fundamental poderá ser efetivado por meio de um provimento judicial. O apego inarredável a elementos meramente semânticos mais atrapalham que colaboram para a afirmação da supremacia constitucional.
Portanto, em reforço à citação supra, Peter Häberle nos ensina que
colocado no tempo, o processo de interpretação constitucional é infinito, o constitucionalista é apenas um mediador (Zwischenträger). O resultado de sua interpretação está submetido à e reserva da consistência (Bewährung), devendo ela, no caso singular, mostrar-se adequada e apta a fornecer justificativas diversas e variadas, ou, ainda, submeter-se a mudanças mediante alternativas racionais. (1997, p. 42).
Melhor esclarecendo o assunto, para concretização de determinadas normas constitucionais, o juiz envidará todos os esforços necessários à garantia do direito lesado ou ameaçado. Assim, lastreada em razoável argumentação jurídica, a concreção faticamente possível é o único medidor da densidade eficacial das normas jurídicas. Fatores empíricos, longe de serem tachados de inseguros, devem ser considerados quando da efetivação de um direito subjetivo. Quando o fato social permite a concretização de um direito fundamental, abstraem-se os meros elementos semânticos impeditivos.
Não se quer desmerecer a lei como instrumento jurídico de conformação das normas à realidade social. Não obstante sua importância, ela não é necessária quando se trata de direito fundamental. A norma dita como de eficácia limitada, longe de encerrar uma negação a um direito subjetivo, corresponde apenas a um mandado de cautela. Assim, apesar de a Constituição prescrever que a greve será exercida nos termos e limites de uma lei específica, ela não quis negar o direito em si, mas desejou imprimir maior segurança jurídica ao seu exercício.
Uma objeção que pode ser feita a esta discussão é que, por ter sido desenvolvida numa forma digressiva, acabou-se por escolher a teoria de que a norma definidora do direito de greve é de eficácia contida, com todos os efeitos ensinados por José Afonso da Silva. Entretanto, esta crítica simulada não teria fundamento.
Apesar de o enfoque adotado guardar semelhanças com os ensinamentos tradicionais, vê-se que há uma sensível diferença: na norma de eficácia contida, a restringibilidade não é constitucionalmente desejada, mas permitida; enquanto que, pelo enfoque adotado, a norma é plenamente aplicável, mas a restrição de seu alcance não é só possível, mas constitucionalmente desejada. Resume-se, então, num misto dos efeitos da norma de eficácia contida com o intuito cautelar da norma de eficácia limitada.
No intuito de revisitar a teoria da aplicabilidade das normas constitucionais, Sergio Fernando Moro vai mais além que a presente crítica. Para ele:
a doutrina brasileira da aplicabilidade das normas constitucionais e seu dogma subjacente implicam, na prática, a cisão da Constituição em duas partes, uma aplicável e outra não, negando-se, na realidade, a condição de norma jurídica a essa segunda parte.
[...]
Via de regra, tal postura é indefensável, pois contraria o princípio da supremacia da Constituição. Todavia, ela assume ares de acentuada gravidade quando estiverem em jogo direitos fundamentais. (2004, p.255).
De fato, reina visível contradição quando se nega eficácia a um direito fundamental, com o argumento de que sua norma definidora está a depender de regulamentação. Caso assim não se entenda, que sentido teria o controle de constitucionalidade por omissão? Quando um direito subjetivo prescinde de norma regulamentadora nem haveria de se falar em omissão inconstitucional.
Postas estas considerações, já se denota que a fundamentalidade de um direito diz com a existência digna do seu titular e, negando o que se reconhece, viola, a um só tempo, a vontade soberana do constituinte e a dignidade da pessoa humana. Os direitos fundamentais são bens jurídicos que a Constituição elegeu como mínimo existencial do indivíduo e da sociedade. Se o poder reformador não pode anular ou reduzir um desses direitos, mediante ação (p.ex., emenda constitucional), também não o poderá por via inversa, mediante omissão.
Quando se falou em concreção faticamente possível, quis-se sustentar que, bastando ser viável, no mundo fático, o exercício de um direito fundamental, é-lhe assegurada a fruição nos limites desta mesma possibilidade.
Portanto, a providência reclamada para a concretização legislativa do direito de greve, assim como a decisão judicial, são apenas regulamentações públicas, dotadas de coercitividade. Na ausência de tais regramentos, o direito poderá ser exercido [18], pois de concreção faticamente possível, mas sujeitará seus titulares ao controle administrativo ou judicial posterior, a fim de penalizar os participantes pelos abusos que porventura tenham cometidos.
Por fim, a única ressalva que se faz é que, ante a inexistência de limites predefinidos, o titular do direito fica numa posição de desvantagem e incerteza, principalmente sobre as conseqüências jurídicas das opções tomadas durante o movimento. Num eventual processo disciplinar, à míngua de regulamentação, haverá, logicamente, maior espaço discricionário para o administrador [19].