8.EFEITOS ADMINISTRATIVOS E PENAIS DA AUSÊNCIA DA LEI ESPECÍFICA EM RELAÇÃO AO SERVIDOR PÚBLICO GREVISTA
8.1.DESCONTO DA REMUNERAÇÃO
É muito comum, quando da deflagração da greve, o corte do ponto do trabalhador grevista, com o conseqüente desconto salarial na proporção dos dias de ausência tida como injustificada. Neste tema, tanto a doutrina quanto os tribunais se divergem sobre a legalidade do ato administrativo repressor.
Para o Superior Tribunal de Justiça, após reconhecer a liberdade de exercício da greve, e indicando traço de contradição, entende que devem ser descontados os dias de ausência do servidor grevista. É o que se depreende do texto da ementa a seguir:
CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. PROFESSORES ESTADUAIS.
GREVE. PARALISAÇÃO. DESCONTO DE VENCIMENTOS. O direito de greve assegurado na Carta Magna aos servidores públicos, embora pendente de regulamentação (art. 37, VII), pode ser exercido, o que não importa na paralisação dos serviços sem o conseqüente desconto da remuneração relativa aos dias de falta ao trabalho, a míngua de norma infraconstitucional definidora do assunto. Recurso desprovido
(ROMS 2873/SC, relator Min. Vicente Leal, publicado no DJU de 19-08-1996, p. 28499).
Com a permissiva vênia, ao dispor sobre o princípio da legalidade, a Constituição do Brasil, em seu inciso II, do artigo 5º, dispõe que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Logo o Estado não poderá agir coativamente sobre o administrado sem que haja autorização legal neste sentido.
Além disto, nota-se sensível contradição no posicionamento do Superior Tribunal de Justiça. Se ele defende que a greve origina-se de uma norma de eficácia contida, não deveria autorizar o desconto na remuneração relativa aos dias de falta ao trabalho abusivo, à míngua de norma infraconstitucional definidora do assunto. A falta é justificada, e a justificativa é, obviamente, a proteção ao exercício de um direito constitucionalmente assegurado.
Como se viu, a jurisprudência nacional se posiciona, majoritariamente, a favor dos descontos relativos aos dias de falta ao trabalho, mesmo quando se reconhece a natureza da norma como de eficácia contida. É contraditório, pois dizer que uma norma tem semelhante classificação induz ao entendimento de que a mesma é dotada de aplicabilidade imediata e integral, restringpível apenas por lei ou outro fator constitucionalmente estabelecido.
8.2.PENALIZAÇÃO DISCIPLINAR
Pelos mesmos argumentos declinados no tópico anterior, a repercussão disciplinar do exercício do direito pendente de regulamentação dependeria da forma como se classifica a sua norma definidora. O enfrentamento do assunto acaba por desaguar na discussão sobre a possibilidade de se exercer um direito não regulamentado, ou se a não regulamentação torna inexistente esse direito.
Pela doutrina tradicional, sendo a norma de eficácia limitada, o direito subjetivo não se demonstra exigível, necessitando de um ou vários atos do poder público responsável para a viabilização. O exercício da greve, assim, não se justificaria, e as faltas oriundas desse movimento deveriam ser coibidas pela pessoa jurídica empregadora.
Entretanto, o Supremo Tribunal Federal, apesar de reconhecer a inexigibilidade do direito de greve, à míngua de norma infraconstitucional regulamentadora, editou a súmula nº 316, ditando que a simples adesão à greve não constitui falta grave.
Desta forma, o único efeito do Supremo Tribunal Federal considerar a norma como de eficácia limitada, é a ausência de guarda expressa sobre a efetividade desse preceito. Sabe-se que uma obrigação sem a recíproca penalidade pelo descumprimento tem alta probabilidade de se tornar inútil. Não adianta dizer que o exercício da greve depende de regulamentação infraconstitucional e que seu exercício é irregular, mas não mune a administração de meios para impedir esse movimento. A greve é considerada, pelo Supremo Tribunal Federal, uma proibição e ao mesmo tempo uma liberdade. A interpretação mais plausível da súmula nº 316, do STF, então deve ser que o exercício irregular da greve sujeita o servidor a penalidades previstas em lei, mas nunca importará falta grave a simples adesão.
Em apertada síntese, para aqueles que a classificam como direito de eficácia contida, a greve não é punível; já para aqueles que a classificam como de eficácia limitada, a punição se demonstra necessária, mas não ensejará enquadramento da falta como de natureza grave, se do movimento não se originou outra infração à ordem jurídica.
Entretanto, como visto, a teoria da aplicabilidade das normas constitucionais não é a melhor diretriz para a efetivação dos direitos fundamentais. A interpretação deve ser flexível. Assim, inobstante a ausência de regulamentação, caso os servidores grevistas ajustem o exercício do movimento ao interesse social, mantendo contínua a prestação dos serviços públicos, não se justifica a punição do mesmo, considerando a lógica de que não se pune quem está no exercício regular de um direito, exercendo-o sem abusos [31].
8.2.1.Inabilitação em estágio probatório
A Constituição do Brasil estabeleceu que os servidores recém ingressos no cargo público deverão sujeitar-se a um processo de avaliação periódica de desempenho funcional, constituindo-se no estágio probatório.
O servidor em estágio probatório, em que pese algumas controvérsias [32], não goza de estabilidade no serviço público, somente a adquirindo após três anos de efetivo exercício. Assim prescreve o art. 41 da Constituição do Brasil:
Art. 41. São estáveis após três anos de efetivo exercício os servidores nomeados para cargo de provimento efetivo em virtude de concurso público.
§ 1º O servidor público estável só perderá o cargo:
I - em virtude de sentença judicial transitada em julgado
II - mediante processo administrativo em que lhe seja assegurada ampla defesa;
III - mediante procedimento de avaliação periódica de desempenho, na forma de lei complementar, assegurada ampla defesa.
Numa leitura isolada do dispositivo constitucional, pode-se ter uma idéia errônea de que o servidor em estágio probatório goza de menor prestígio que o servidor estável no que concerne à penalização disciplinar, perdendo o cargo sem submissão a um processo administrativo regular. O servidor em estágio probatório não pode perder o cargo sem que seja respeitada a garantia da ampla defesa e do contraditório [33]. Não é outro o entendimento adotado pela jurisprudência dominante. De acordo com a súmula nº 21 do Supremo Tribunal Federal, "o funcionário em estágio probatório não pode ser exonerado nem demitido sem inquérito ou sem as formalidades legais de apuração de sua capacidade" [34].
Ainda no sentido da proteção do servidor em estágio probatório, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul desconhece diferença de tratamento quando comparado ao servidor estável
EMENTA: MANDADO DE SEGURANCA. SERVIDOR EM ESTAGIO PROBATORIO. PARTICIPACAO NA GREVE DOS SERVIDORES DA JUSTICA. DEMISSAO POR NAO PREENCHER O REQUISITO "EFETIVIDADE". ESTADO DE GREVE E ESTADO DE INQUIETUDE. A SIMPLES ADESAO A GREVE NAO CONSTITUI FALTA GRAVE QUE AUTORIZA DEMISSAO DO SERVIDOR, AINDA QUE NA FLUENCIA DE SEU ESTAGIO PROBATORIO. O ESTADO DE GREVE CRIA NO TRABALHADOR O ESTADO DE INQUIETUDE, QUE GERA SITUACAO DE GRAVE CONSTRANGIMENTO EM FACE DOS COLEGAS DE TRABALHO E EM FACE DA ADMINISTRACAO. E PORQUE A GREVE IMPOE A SUSPENSAO DO TRABALHO, E JUSTA CAUSA PARA AFASTAR A EXIGENCIA DA ASSIDUIDADE, ENQUANTO ELA DURAR. A CORREGEDORIA-GERAL DA JUSTICA INFORMA QUE NADA CONSTA EM DESABONO DO SERVIDOR IMPETRANTE E LOGO SO A GREVE FOI CAUSA PARA SUA DESPEDIDA. INJUSTICA DA DEMISSAO. ORDEM CONCEDIDA PARA TORNAR SEM EFEITO A EXONERACAO E REINTEGRAR O IMPETRANTE NO CARGO, POR MAIORIA DE VOTOS. (Mandado de Segurança nº 596164046, relator: João Aymoré Barros Costa, Julgado em 16/12/1996)
Assim, vê-se que não se justifica diferenciação entre servidores em virtude da participação no movimento grevista, porquanto sempre se fará necessário um processo administrativo para apuração das faltas eventualmente cometidas durante a paralisação.
Finalmente, como a participação em movimento grevista não configura falta de habilitação para o desempenho da função pública, não pode o estagiário ser penalizado pelo simples exercício do direito constitucional por ele, também, titularizado.
8.3.EFEITOS PENAIS
Os crimes contra a organização do trabalho, tipificados no Título IV, do Código Penal, em linhas gerais, encontram-se em pleno vigor. Entretanto, sobre os delitos constantes dos artigos 200 e 201, há que se fazer algumas considerações.
Paralisação de trabalho, seguida de violência ou perturbação da ordem
Art. 200 - Participar de suspensão ou abandono coletivo de trabalho, praticando violência contra pessoa ou contra coisa:
Pena - detenção, de um mês a um ano, e multa, além da pena correspondente à violência.
Parágrafo único - Para que se considere coletivo o abandono de trabalho é indispensável o concurso de, pelo menos, três empregados.
Paralisação de trabalho de interesse coletivo
Art. 201 - Participar de suspensão ou abandono coletivo de trabalho, provocando a interrupção de obra pública ou serviço de interesse coletivo:
Pena - detenção, de seis meses a dois anos, e multa.
A greve, por muito tempo considerada um movimento arbitrário e ofensivo a ordem social, atualmente ganhou o status de liberdade pública. Entretanto, a fim de preservar os direitos alheios, houve necessidade de se fixar limites a essa mesma liberdade, considerando a significante possibilidade de os participantes cometerem abusos. Para coibir tais abusos, o Estado se vale dos instrumentos jurídicos postos a sua disposição, e é nesse contexto que a tutela penal se mostra como uma alternativa.
Logo, não se pode, apressadamente, argumentar que, como a atual Constituição do Brasil reconhece na greve um direito do trabalhador, os dispositivos penais citados estariam revogados. Quanto ao art. 200 do CP, percebe-se que se encontra em plena sintonia com o novo regramento constitucional. A greve, nessa hipótese legal, é permitida, desde que não se pratique violência contra pessoa ou contra coisa (bens de terceiros). Em caso de violação, durante o movimento, de tais bens jurídicos, os participantes estarão sujeitos às penalidades administrativas e criminais, além da responsabilidade civil pelos danos materiais e morais que porventura causarem. A paralisação deve ser pacífica e respeitosa dos direitos de terceiros.
Por outro lado, o art. 201 do CP, ao referir-se à greve pacífica provocadora de interrupção de obra pública ou serviço de interesse coletivo, parece confrontar com a nova sistemática constitucional. É que é lícito aos trabalhadores participar de greves em atividades essenciais, assim definidas em lei. Ora, adotando as cautelas legais, não havendo a interrupção total dos serviços, os trabalhadores estão a agir sob a proteção jurídica e, portanto, não cometem crime algum.
Ressalte-se, por oportuno, que a interrupção de obra pública ou serviço de interesse coletivo somente constituirá o crime previsto no art. 201 quando for total. A greve parcial, e não violenta, garante a continuidade dos serviços públicos ou de interesse público. Eventual incriminação esbarra, contraditoriamente, no permissivo constitucional, onde se autoriza a paralisação em serviços essenciais.
É de notar-se que, quanto aos servidores públicos, à míngua de norma infraconstitucional regulamentadora, não se definiu o que se entende por "serviço essencial". Para efeitos penais, essa omissão é irrelevante, pois, de qualquer forma, os serviços públicos serão considerados, em sua totalidade, como essenciais. Não há, conseguintemente, exceção, importando, apenas, que a greve seja parcial.
Em apertada síntese, temos que o art. 200 do CP está em pleno vigor, e assim deve ser, porquanto o nosso ordenamento jurídico repele atos de violência injustificados. Quanto ao art. 201 do CP, o reconhecimento de sua vigência passa pela interpretação restritiva, em que, para haver tipicidade, a paralisação deve atingir a prestação dos serviços em sua totalidade.
9.CONCLUSÃO
Os posicionamentos dos tribunais sobre o direito de greve dos servidores públicos civis mostram-se em descompasso com a realidade social, ainda mais quando os servidores, ao arrepio das decisões contrárias, continuam, irregularmente, procedendo a paralisações. Resta, assim, um estado de insegurança jurídica, tanto para os servidores quanto para o Estado.
O fundamento de que não se poderá concretizar o direito de greve porque a norma definidora desse direito é de eficácia limitada traz consigo uma infeliz contradição. É que somente as normas constitucionais de eficácia limitada são suscetíveis de controle de constitucionalidade omissiva, sendo que as normas de eficácia plena e contida não necessitam da interposição legislativa futura, pois produzem os efeitos essenciais desde as suas vigências.
A questão da efetividade do direito de greve desafia matérias superáveis pelas regras hermenêuticas e jurídicas pertinentes. Não há óbice intransponível, bastando o julgador valer-se de convincente argumentação jurídica. A concretização do direito de greve é possível.
Ressalte-se que o juiz dispõe de meios para aplicar a norma, imediatamente, na solução do caso concreto. Basta-lhe romper as barreiras impostas pelas doutrinas tradicionais e socorrer-se da analogia, dos costumes e dos princípios do Direito. Por isto que a Lei nº 7.783/89, que regula a greve no setor privado, poderá ser utilizada como modelo normativo, importando no grande mérito de, também, valorizar a segurança jurídica.
Fala-se aqui em segurança jurídica, pois somente uma adequada regulamentação possibilita aos servidores antevêem as limitações ao exercício do direito. Por outro lado, ela não necessita ser originada de uma lei em sentido estrito, mas poderá ser, igualmente, proveniente da atuação judicial [35].
Esta atuação, por sua vez, afigura-se um dever jurídico diante do princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, ainda mais quando se depara com uma inércia inequivocamente duvidosa. É que, sendo o direito de greve dos servidores voltado contra o Poder Público, a ausência de limites preestabelecidos somente a ele favorece. A Constituição do Brasil já conta com quase vinte anos, e até então não foi editada a lei reclamada pelo art. 37, VII [36].
Como se percebe, não há alternativa viável à concretização judicial que não exija a relativização de certos dogmas lesivos à sociedade. A constituição, ao munir o magistrado de mecanismos de supressão de lacunas normativas, traçou um novo modelo de Estado, onde a prioridade se encontra no respeito aos direitos e garantias fundamentais, sobretudo na busca da vida digna e dos valores sociais do trabalho.
No dizer de Lenio Luiz Streck (2005, p. 320), há que se abrir uma clareira no Direito, pois é a partir dessa clareira que aquilo que circunscreve a Constituição poderá vir à tona. O resgate das promessas da modernidade pressupõe a superação da crise de paradigmas que obstaculiza essa surgência constitucionalizante em toda a sua principiologia.
Portanto, há que se revisitar a teoria segundo a qual as normas de eficácia limitada só se aplicam mediante normatividade futura. No caso do direito de greve, a normatividade é importante, mas não necessária a sua plena operação. Logo, a menção aos termos e limites de uma lei apenas importa num mandado de cautela, nada mais. Importa que os participantes do movimento devam pautar-se em critérios moderadores constitucionalmente estabelecidos, como a preservação da ordem e da continuidade dos serviços essenciais.
Aceitando estas premissas, em primeiro arremate, infere-se que a regulamentação pública [37] almeja proteger e não restringir (ou negar) certo direito subjetivo. Ela consiste numa proteção jurídica para o indivíduo, para a sociedade e para o Estado.
Nesta linha, não se pode ir mais longe que a consideração da greve dos servidores públicos civis como um direito de defesa, onde se necessita, apenas, da abstenção dos Poderes Públicos. Não se podem punir os servidores grevistas quando, mesmo diante da omissão regulamentar, o exercício do direito se fez com respeito aos procedimentos de ordem prática e jurídica, adotando-se as cautelas devidas.
Por outro lado, o fato de se reconhecer a plena efetividade ao direito de greve não importa em autorização para a prática de arbitrariedades. A plenitude de uma norma não é "um cheque em branco". Assim, os grevistas estarão sujeitos ao controle posterior da legalidade do movimento, no que concerne aos abusos porventura cometidos. Este controle, à míngua de regulamentação legal, será conduzido segundo enfoque resultante da discricionariedade administrativa.
E por que justifica o exercício da greve mesmo quando a constituição referiu-se à edição futura de uma lei específica? A norma definidora desse direito não seria de eficácia limitada? Ou seria de eficácia contida?
Em resposta a estas três perguntas, preferiu-se não enquadrá-lo nas classificações tradicionais, para não incorrer no risco do esvaziamento de seu conteúdo fundamental. A greve do servidor público civil é de concreção faticamente possível, e sua fruição está assegurada nos limites desta mesma possibilidade.
Finalmente, mas não encerrando este debate, verificou-se que esta monografia ocupou de dois extremos aparentemente inconciliáveis: de um lado, exprimiu a vontade de se dar plena aplicabilidade à norma definidora do direito de greve; de outro, pretendeu mostrar a necessidade de restringir sua amplitude.
Incorrendo-se em trocadilho, considera-se que, para esta contradição, existe uma razão. De fato, a greve no setor público é movimentada segundo restrições impostas pelo regime jurídico-administrativo, sendo que sua repercussão social requer restrições proporcionais. Portanto, não se pode equiparar à greve do setor privado, onde os limites da executividade ficam a critério dos trabalhadores. Logo, se o constituinte desejasse esta equiparação, teria feito expressamente, e não teria mencionando direitos da mesma natureza em diferentes dispositivos constitucionais. O legislador não traz palavras inúteis, porque nada deve ser por acaso.