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A legitimidade do Ministério Público para a defesa dos direitos individuais homogêneos do consumidor:

Um caminho para a eficácia social da norma dentro de um modelo garantista

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5) Algumas Considerações sobre o Garantismo

            A teoria do garantismo, mais voltada para o direito penal é bem verdade, se presta também a embasar a atuação dos operadores do direito no que se refere a aplicação das normas de defesa do consumidor.

            Um dos significados emprestados ao garantismo pelo próprio Luigi Ferrajoli [22] é o de que ele seria "uma teoria jurídica da "validade" e da "efetividade" como categorias distintas não só entre si mas, também, pela "existência" ou "vigor" das normas. Nesse sentido, a palavra garantismo exprime uma aproximação teórica que mantém separados o "ser" e o "dever ser" no direito; e, aliás, põe como questão teórica central, a divergência existente nos ordenamentos complexos entre modelos normativos (tendentemente garantistas) e práticas operacionais (tendentemente antigarantistas), interpretando-se como a antinomia – dentro de certos limites fisiológica e fora destes patológica – que subsiste entre validade (e não efetividade) dos primeiros e efetividade (e invalidade) das segundas".

            Assim sendo não basta para a garantia dos direitos seu enunciado na norma, mas sim a tradução em prática social constante.

            Segundo Sérgio Cademartori [23], com base nas idéias de Ferrajoli, o garantismo "designa também uma filosofia do direito e crítica da política, condensando-se numa filosofia política que impõe ao Direito e ao Estado a carga de sua justificação externa, isto é, um discurso normativo e uma prática coerentes com a tutela e garantia dos valores, bens e interesses que justificam sua existência".

            E como a filosofia do garantismo pode ser útil ao direito do consumidor?

            A resposta a essa questão se faz mais premente em sede da legitimidade do Ministério Público para a defesa dos interesses individuais homogêneos.

            Sobretudo nessa seara a jurisprudência tem se mostrado vacilante ao admitir a legitimidade para defesa dos direitos do consumidor ao argumento de que o Ministério Público só estaria legitimado a agir em defesa de interesses que além de individuais homogêneos fossem concomitantemente indisponíveis, o que limita sobremaneira a atuação ministerial, já que tais direitos dos consumidores são eminentemente patrimoniais.

            Porém, mormente em função da dispersão de lesados, muitos desses direitos ficam carentes de proteção judicial à falta de quem se disponha a deduzir em juízo questões de valor individual ínfimo.

            São muitos os exemplos a serem citados, como a cobrança indevida de tarifas bancárias ou erros de cálculo na cobrança de impostos embutidos nas tarifas públicas.

            Nesses casos a probabilidade da ilicitude ficar impune é imensa e só a legitimação para a ação coletiva permitirá o restabelecimento da ordem jurídica.

            Sob o ponto de vista econômico, como visto anteriormente, a não legitimação de entes para a defesa em juízo dos direitos individuais homogêneos representa para o fornecedor a apropriação indébita de patrimônio alheio e para o consumidor uma externalidade, já que faltarão meios para compelir o empresário faltoso a indenizar os consumidores lesados.

            Tal perspectiva gera na sociedade um descrédito nas instituições, haja vista a existência de verdadeiros vácuos, onde a ilicitude é permitida sem qualquer sanção.

            Dita possibilidade afronta a visão garantista do direito.

            Cappelletti [24] chega a mencionar que se vivencia um momento do garantismo coletivo, verbis: "Emerge, dall’altro lato, um lento ma necessário movimento di transformazione, Che coinvolge funditus l’intera temática del diritto processuale. Perfino nel campo del "garantismo", Che ha rappresentato per tanti anni ormai la nostra "fede" di processualisti, si assiste al necessario movimento verso uma forma nuova, che chiamerei di garantismo sociale o collettivo, e che significa superamento, appunto, del garantismo in senso individualistico tradizionale".


6) O Papel do Ministério Público na Defesa do Consumidor

            Especificamente no que tange à defesa dos direitos do consumidor, a legitimidade do Ministério Público também deflui do texto constitucional, art. 5°, inciso XXXII, art. 127, caput, e art. 129, inciso III.

            Editado em função de comando constitucional (art. 48 do ADCT), o Código de Defesa do Consumidor inseriu, de modo expresso, o Ministério Público como um dos legitimados para a defesa coletiva dos direitos do consumidor (art. 82, I) [25].

            Muito embora o Código de Defesa do Consumidor seja expresso ao conferir ao Ministério Público legitimidade para a tutela dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, sobre esta última modalidade de interesse transindividual recaem os maiores questionamentos quanto à interpretação da norma.

            Tudo porque o texto constitucional ao tratar da instituição do Ministério Público não previu de forma expressa a possibilidade da defesa dos interesses ou direitos individuais homogêneos [26], preferindo o constituinte ora prever a atuação ministerial na defesa dos direitos individuais indisponíveis (art. 127, caput), ora em defesa somente dos interesses ou direitos difusos e coletivos (art. 129, inciso III).

            A opção majoritária feita pelos tribunais superiores tem sido a de interpretar a norma conjugando o direito individual homogêneo com a sua concomitante indisponibilidade, de modo a permitir a atuação do Ministério Público apenas com a presença de ambos os requisitos.

            Essa corrente traz à baila, em reforço de seus argumentos o art. 25, inciso IV, alínea "a", da Lei n° 8.625/93 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público), que dispõe incumbir ao MP a promoção do inquérito civil e da ação civil pública para a proteção de interesses difusos, coletivos e individuais indisponíveis e homogêneos [27].

            A partícula aditiva "e" autorizaria a conclusão no sentido de que o interesse cuja tutela fosse pretendida pelo Ministério Público devesse possuir simultaneamente as características da indisponibilidade e da homogeneidade.

            Sem embargo do respeito que merecem os defensores dessa orientação, permite-se concluir que a mesma parte de premissas equivocadas e de paradigmas ultrapassados.

            Primeiramente, verifica-se uma influência de uma visão dicotômica do direito que possibilitaria vislumbrar na esfera do direito privado os direitos disponíveis e no direito público os indisponíveis.

            Não é incomum encontrar no bojo de acórdãos expressões como "interesse meramente patrimonial" associadas a "direito disponível" [28], como se a realidade atual fosse característica de uma sociedade compartimentada onde ainda prevalecesse o dogma da autonomia da vontade.

            Hodiernamente, é justamente sobre o patrimônio das pessoas é que incide a maioria das violações aos direitos fundamentais (ex: bloqueio de cruzados, juros abusivos, taxas inconstitucionais, como a de iluminação pública).

            Embutido nesse raciocínio ainda se insere a visão tradicional do contrato, repelida pelo legislador consumerista e ainda não totalmente assimilada pelos intérpretes do direito.

            Sob tal ótica a atuação ministerial representaria uma indevida intromissão na esfera de vontade do particular.

            Mas no rigor de tal lógica, quase todo direito proveniente das relações de consumo, até mesmo os difusos e coletivos, deveriam ser considerados disponíveis, pois se referem a direitos de ordem eminentemente patrimonial.

            Contudo, deve se perceber que, independentemente da espécie de interesse coletivo, em sentido lato, que se pretenda proteger, a base de validade da atuação do Ministério Público na defesa do consumidor há de ser a mesma.

            E dito fundamento de validade não repousa na indisponibilidade do direito do consumidor, mas sim na defesa da ordem jurídica e do interesse social.

            Outra não é a conclusão de Marcos Antônio Maselli de Pinheiro Gouvêa [29]: "Impõe-se a conclusão de que a atuação ministerial, nos termos do dispositivo mencionado, também se respalda nas funções institucionais de defesa da ordem jurídica e dos interesses sociais. São estes valores, mais do que uma interpretação extensiva da defesa dos interesses indisponíveis, que fundamentam a tutela molecular dos direitos individuais homogêneos, tutela esta cuja provocação é constitucionalmente cometida, por excelência, ao Ministério Público. Se a apropriação indevida de uma quantia que deveria pertencer a consumidor é realizada por uma empresa, não configura isto um atentado contra a ordem jurídica, a demandar a intervenção do Parquet? Se, para a satisfação de seus direitos – direitos, por vezes, a quantias ínfimas – milhares de pessoas têm de propor uma enxurrada de ações individuais, atravancando juizados especiais e juízos comuns, não haverá aí interesse social na solução rápida de inúmeras lides, através da atuação molecular do Ministério Público?".

            No mesmo sentido é o entendimento de Nelson Nery Junior e Rosa Maria Andrade Nery [30], também citado por Maselli: "O que legitima o MP a ajuizar ação na defesa de direitos individuais homogêneos não é a natureza destes mesmos direitos, mas a circunstância de sua defesa ser feita por meio de ação coletiva. A propositura de ação coletiva é de interesse social, cuja defesa é mister institucional do MP (CF, 127, caput), razão por que é constitucional o CDC 82, I, que legitima o MP a mover ação coletiva na defesa de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos. No mesmo sentido, tese de NELSON NERY JUNIOR aprovada por unanimidade no 9° Congresso Nacional do Ministério Público (Salvador-BA, setembro de 1992)".

            Mas como aferir o interesse social que legitimaria a atuação do Ministério Público?

            Note-se que entender que a indisponibilidade do direito não se mostra apta a permitir divisar as hipóteses em que exsurge a legitimidade do Ministério Público para a tutela de interesses coletivos, na verdade, importaria em deslocar o foco da discussão para o problema do interesse social, sem, no entanto, resolver a questão.

            Ora, o que se deve entender por interesse social?

            Um das chaves para a resposta do problema em comento vem do que Ronaldo Porto Macedo Junior [31] chamou de moderno direito social.

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            Segundo o autor "o direito contemporâneo, típico do Welfare State, também chamado Direito social, caracteriza-se, grosso modo, por sua estruturação feita com base em um novo padrão ou paradigma de racionalidade jurídica. Nesse paradigma de pensamento jurídico a Justiça é pensada como um princípio de equilíbrio (ou balanceamento) de interesses sociais irredutíveis a uma medida de Justiça transcendente ou universal..."

            E prossegue mais adiante: "O papel do Ministério Público está diretamente relacionado às novas características do Direito Social, à medida que o fundamento de intervenção do promotor de justiça no âmbito do Aparelho Judicial é o de defensor direto dos interesses sociais (sejam eles coletivos, difusos ou individuais homogêneos imbuídos de interesse social)..."

            Dentre os interesses que justificam a atuação do MP está o interesse na tutela do consumidor coletivamente considerado.

            Na verdade, o interesse social que legitima a atuação ministerial é o interesse constitucionalmente eleito, oriundo do princípio da dignidade da pessoa humana, na perspectiva de um equilíbrio real e não meramente formal nas relações de consumo.

            Trata-se de um verdadeiro mecanismo de mitigação do desequilíbrio contratual nas relações de consumo, que, em última análise, tem como meta a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3°, inciso I, da CF) e a erradicação das desigualdades sociais (art. 3°, inciso III, da CF/88) e como parâmetro o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1°, inciso III, da CF).

            Assim, por exemplo, com base no interesse social [32], se admitiu a inclusão da defesa dos adquirentes de lotes em loteamentos clandestinos no rol dos interesses tuteláveis pela via coletiva através de ação movida pelo Ministério Público [33].

            Muito interessante enfatizar sobre a questão do interesse social a posição adotada pelo Ministro Sepúlveda Pertence em voto proferido por ocasião do julgamento do recurso extraordinário n° 213.631-0/MG [34], em que se discutia a legitimidade do Ministério Público na defesa do contribuinte.

            Naquela ocasião o Ministro Sepúlveda Pertence, ao observar a dificuldade de se calcar num conceito aberto como o de interesse social o parâmetro de aferição da legitimidade ministerial em sede de ações civis públicas, propôs o critério a que denominou de "interesse social conforme a Constituição", traduzido da seguinte forma: "afora o caso de previsão legal expressa – a afirmação do interesse social para o fim cogitado há de partir da identificação do seu assentamento nos pilares da ordem social projetada pela Constituição e na sua correspondência à persecução dos objetivos fundamentais da república, nela consagrados".

            Por certo, há certo paralelo entre a expressão utilizada pelo Ministro Sepúlveda Pertence e o critério da interpretação conforme a Constituição que procura dentre as várias possibilidades hermenêuticas a que melhor se coadune com os princípios constitucionais, afastando, via de conseqüência, as interpretações incompatíveis [35].

            O que há de mais interessante nesse raciocínio é que na medida em que se confere uma interpretação conforme a Constituição, ao mesmo tempo se empresta concreção aos princípios vetores da Carta.

            Tal posição possui o mérito de permitir divisar com maior nitidez o interesse social como critério definidor de legitimidade nas ações coletivas.

            Mas, a contrario sensu, não se prestou a embasar a legitimidade do Ministério Público na defesa do contribuinte, já que o acórdão do STF em referência [36] concluiu pela ilegitimidade, com a anuência do próprio Ministro Sepúlveda Pertence, muito embora o relevante interesse social da atuação ministerial nessa área. [37]

            Note-se que, no mais das vezes, quando se trata de proteção de interesses individuais homogêneos, a visão do julgador não se atém ao direito do consumidor, reclamando que a este direito venham atrelados outros direitos, como o direito à saúde, à educação ou à vida.

            Assim o foco de atenção acaba muitas vezes desviado da tutela do consumidor para a tutela de outros interesses a ele vinculados, de modo que mesmo que não existentes as normas de proteção ao consumidor a prestação jurisdicional seria favorável aos demandantes, ainda que calcada em base legal não contratual.

            Nesse sentido é sintomática a questão das mensalidades escolares, na qual a legitimidade do Ministério Público para a propositura de ação civil pública foi aos poucos sendo pacificada nos Tribunais não em função do direito do consumidor, mas em função do direito à educação [38].

            É claro que tais direitos analisados em conjunto só enfatizam o interesse social no ajuizamento da causa, interesse este que acaba por justificar a legitimidade ativa ad causam do Ministério Público.

            Contudo, a questão do interesse social como critério de aferição da legitimidade do MP para a defesa do consumidor fica ainda sem definição.

            O interesse social que se deve aferir para exame da legitimidade ministerial na defesa do consumidor é o interesse intrínseco nas normas de proteção do CDC, consoante disposição expressa do art. 1°, caput, da Lei n° 8.078/90.

            Sob tal aspecto, a defesa do consumidor consubstanciaria um desdobramento do princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado no direito positivo pelo art. 1°, inciso III, da Constituição Federal.

            E como tal representa um novo paradigma de equilíbrio contratual que extrapola os limites das relações de consumo.

            Este é o caminho que, por exemplo, o direito alemão parece seguir com a recente reforma de seu Código Civil, através da qual inseriu no referido Codex normas tendentes a adequar os dispositivos legais vigentes à correta proteção da parte contratante vulnerável, característica da sociedade de massa, o consumidor.

            Optou o legislador alemão por não criar um código próprio para o consumidor.

            Cláudia Lima Marques [39] ao analisar o novo texto do Código alemão tece a seguinte observação: "Como se observa, o futuro do Direito do consumidor começou a mudar. De elemento descodificador e especial, renasce como elemento unificador e harmonizador do Direito Privado, reforçando o Direito Civil geral, impregnando-o de valores sociais, de justiça distributiva e de tratamento desigual e pós-moderno aos sujeitos de direito, desiguais e importantes na estrutura da sociedade de massas atuais. Tudo sem quebrar o sistema e sim fazendo parte do sistema, adaptando-o às novas realidades sociais e culturais. Os alemães tentam iniciar um DIREITO CIVIL GERAL E SOCIAL. Bem conhecendo a solidez, tenacidade e força criativa da doutrina alemã, é esta sem dúvida uma novidade a ser noticiada e uma experiência a ser acompanhada de perto por todos os juristas".

            Muito embora no Brasil tenha havido uma opção pela adoção de um Código próprio para as relações de consumo, não se pode negar que a elevação de tais direitos ao patamar constitucional revela uma verdadeira mudança de paradigmas no tratamento legal dos contratos.

            O homem é colocado no centro das preocupações jurídicas.

            O ordenamento pátrio passou a preocupar-se, de maneira prioritária, com a concretude dos direitos da personalidade, relegando a um segundo plano questões de ordem puramente patrimonial.

            Nesse sentido, os órgãos estatais, dentre eles o Ministério Público, passaram a ter o dever de zelar pela aplicação dos princípios constitucionais de valorização do ser humano, na busca de sua felicidade e, em sede contratual, do ideal de eqüidade.

            Há por determinação constitucional relevante interesse social no equilíbrio real e não meramente formal das relações de consumo, e toda vez que restar ameaçado tal equilíbrio devem ser disparados os mecanismos de correção das distorções, dentre os quais se insere a atuação do Ministério Público na tutela coletiva do consumidor.

            O MP é, portanto, um ente estatal de concreção dos direitos da personalidade em suas mais variadas formas de manifestação.

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Sobre o autor
Luiz Cláudio Carvalho de Almeida

promotor de Justiça no Estado do Rio de Janeiro, professor de Direito Comercial da Faculdade de Direito de Campos (RJ), mestre em Direito pela Faculdade de Direito de Campos, diretor do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (BRASILCON)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, Luiz Cláudio Carvalho. A legitimidade do Ministério Público para a defesa dos direitos individuais homogêneos do consumidor:: Um caminho para a eficácia social da norma dentro de um modelo garantista. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1397, 29 abr. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9818. Acesso em: 20 abr. 2024.

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