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A legitimidade do Ministério Público para a defesa dos direitos individuais homogêneos do consumidor:

Um caminho para a eficácia social da norma dentro de um modelo garantista

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7) Conclusão

            À luz de tudo o que foi exposto, forçoso é concluir que o reconhecimento da legitimidade do Ministério Público para a defesa em juízo dos direitos individuais homogêneos do consumidor é um forte instrumento de eficácia social da norma consumerista.

            Mesmo as objeções que são feitas esbarram no argumento de que, em algumas situações (e não são poucas), a violação ao direito do consumidor ficaria impune, à falta de meios de acesso à justiça que obstem a atuação lesiva do infrator e desestimulem práticas semelhantes de seus pares.

            É necessário reconhecer que a elevação de um direito à condição de fundamental e sua consagração no texto constitucional, por si só, não é suficiente para garantir o seu reconhecimento na sociedade.

            Aliás, a consagração de um direito sem a criação de mecanismos correlatos que permitam sua tutela equivale è negação do próprio direito.

            Nesse sentido, mostra-se extremamente interessante a seguinte passagem do voto divergente do Ministro Marco Aurélio no RE 213.631-0/MG, em que se tratava da legitimidade o Ministério Público para a defesa do contribuinte: "Chegou ao meu conhecimento que certa vez, discutindo se a constitucionalidade, ou não, de um diploma que majorava ou introduzia tributo, indagou-se a percentagem, e seria essa expressão, "a percentagem de inconstitucionalidade", a qual estaria norteada não pelo teor da norma em cotejo com a Carta da República mas pelo número de cidadãos que, de regra, vêem, no acesso ao Judiciário, o exercício de um direito inerente à cidadania e formalizam a irresignação para vê-la apreciada pelo Judiciário".

            Na verdade, a "percentagem da constitucionalidade" a que se refere o i. Ministro nada mais é do que a probabilidade do infrator ser compelido a respeitar a norma.

            Sendo mínima tal probabilidade, a infração acaba sendo estimulada.

            Em sede de direitos do consumidor tal infração traduz-se em lucro para o fornecedor, provocando uma externalidade para o cliente, lesado em seu patrimônio pela queda da qualidade do produto ou do serviço prestado, em decorrência do desrespeito à norma protetiva.

            É preciso perceber que a falta de mecanismos de proteção pode decorrer tanto de uma omissão legislativa quanto de uma interpretação jurídica.

            E esse último aspecto é o que se afigura mais preocupante, sobretudo no que tange à defesa dos direitos individuais homogêneos.

            Isto porque, apesar do arcabouço legal já existente para a tutela coletiva dos direitos do consumidor, a eficácia social da norma esbarra numa visão jurisprudencial que ainda rejeita a máxima utilização dos mecanismos legais existentes, sem ter a sensibilidade de que em algumas situações, tal restrição importa a impossibilidade absoluta do acesso à justiça.

            Muito embora não se refira exatamente aos consumidores a posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal quanto à ilegitimidade do Ministério Público para a defesa do contribuinte é emblemática para exemplificar o acima referido [40].

            Também o Superior Tribunal de Justiça tem adotado a mesmo orientação [41].

            Não se pretende aqui a adoção da idéia de que a legitimidade do Ministério Público para a defesa dos direitos individuais homogêneos deve ser reconhecida sempre, de forma indiscriminada.

            Porém, o elastério da norma permite sua aplicação em situações que tem sido rejeitadas pelos Tribunais Superiores com base em premissas falsas, quais sejam a de que a legitimidade que ora se comenta deve vir atrelada à indisponibilidade do direito e ao interesse social.

            A rigor, tratando-se de direito do consumidor, as premissas seriam sempre preenchidas ante a dicção expressa do art. 1° da Lei n° 8.078/90 que estabelece que as normas de proteção ao consumidor são de ordem pública, e portanto indisponíveis, e de interesse social.

            Ou seja, a lógica argumentativa que lastreia a posição jurisprudencial dominante é falha.

            Porém, é de se reconhecer que o Ministério Público não pode se prestar a deduzir em juízo pedido em defesa de indivíduos que, por conta própria, mostrar-se-iam capazes de fazê-lo, até mesmo com maior desenvoltura.

            Além disso, o excesso de demandas coletivas pode diminuir a participação direta da sociedade civil no processo, acabando por se submeter à tutela de um ente estatal, como é o Ministério Público.

            Eis a razão da preocupação dos intérpretes da lei: o desvirtuamento das funções ministeriais e o desestímulo à participação direta da sociedade civil no processo.

            Mauro Cappellletti [42], ao estudar o problema da dedução dos direitos coletivos (em sentido amplo) em juízo, vislumbrou alguns obstáculos a serem transpostos, os quais divide em problemas reais e fictícios.

            Os fictícios relacionam-se aos aspectos políticos e psicológicos do problema, os quais embora nominados de fictícios não são menos importantes.

            Para o autor a revolução por que deverá passar o direito processual para recepcionar as demandas coletivas encontra entraves políticos porque implicará em abertura de espaço para novos tipos de demandas que afetarão interesses até então intocados.

            Naturalmente, que as dificuldades processuais das demandas coletivas pressupõem uma omissão estatal que acaba por beneficiar os eventuais réus dessas ações (poluidores, conglomerados empresariais, dentre outros).

            No que tange aos empecilhos psicológicos, tem-se a rejeição ao novo que exsurge no mais das vezes no seio da comunidade jurídica, cuja formação profissional lastreou-se em paradigmas que terão que ser alterados para dar passagem às adaptações necessárias à tutela dos interesses coletivos.

            Quanto aos óbices reais à tutela coletiva, Mauro Cappelletti os identifica em número de quatro: a legitimidade, o direito de defesa, a coisa julgada e a prestação jurisdicional.

            O primeiro item refere-se ao fato de que, sendo supraindividual o direito tutelado, a quem deveria ser conferida a legitimidade para ajuizar as ações correspondentes?

            Para Cappelletti, a análise da legitimação não prescinde de uma averiguação pelo juiz da adequação da parte que se apresenta em juízo para a defesa do interesse que pretende tutelar, análise esta que deverá ser feita caso a caso.

            Contudo, reconhece os perigos de se entregar exclusivamente à discricionariedade judicial a aferição da legitimidade, reputando conveniente a prévia definição de pressupostos legais, os quais só poderão ser desenvolvidos através da experiência judiciária.

            Critica o autor o despreparo do Ministério Público para tais demandas [43].

            O segundo obstáculo seria a questão do direito de participação processual dos substituídos. Ou seja, como viabilizar uma adequada representação processual sem lesar o direito de acesso à justiça das pessoas diretamente interessadas no pleito deduzido em juízo?

            Tal problema seria resolvido com a adequada representação do interesse coletivo o que remete a análise novamente ao problema da legitimidade.

            O terceiro problema real seria a questão da coisa julgada. Devem ou não seus efeitos materiais se estenderam a todos os interessados, ainda que não tenham figurado com parte no processo?

            Para o autor, sendo adequada a representação deve a coisa julgada atingir os co-legitimados, de modo a impedir a dedução da mesma questão coletiva em juízo.

            Por fim, vislumbra Cappelletti a própria prestação jurisdicional tradicional como obstáculo à tutela coletiva, vez que, em muitas situações o aparelho processual não se tem mostrado preparado para solução de conflitos que não se reduzam a valores econômicos.

            Assim, em muitas das situações apresentadas, a tutela que se pretende é eminentemente preventiva, sendo o ressarcimento do prejuízo inócuo para satisfazer a pretensão da coletividade.

            É o que ocorre, por exemplo, com uma ação que tenha como objetivo retirar do mercado um produto considerado cancerígeno. De que valerão indenizações, ainda que milionárias, diante da perda de várias vidas à custa de grande sofrimento?

            Em seu estudo Cappelletti traz grande contribuição ao direito ao vislumbrar no fenômeno da coletivização do processo o que chama de garantismo social ou coletivo, que exigirá uma profunda reforma no direito processual, conclamando os operadores jurídicos a uma postura crítica diante de um direito que não responde aos anseios sociais.

            E é nesse sentido que deve ser analisada a questão da legitimidade do Ministério Público para a defesa dos direitos individuais homogêneos: um verdadeiro mecanismo de eficácia social da norma.


8) Referências Bibliográficas

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9.Notas

            01

2ª edição, São Paulo: Cortez Editora, 2000, p. 41.

            02

A Era dos Direitos. 4ª reimpressão. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus. 1992.

            03

"Ao lado dos direitos sociais, que foram chamados de direitos de segunda geração, emergiram hoje os chamados direitos de terceira geração, que constituem uma categoria, para dizer a verdade, ainda excessivamente heterogênea e vaga, o que nos impede de compreender do que efetivamente se trata". Op. cit., p. 41.

            04

Aliás, a redação do comando constitucional é enfática nesse sentido: O Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor (art. 5°, inciso XXXII, da Constituição Federal).

            05

O termo "densificação" é utilizado com uma felicidade ímpar por Canotilho (apud ESPÍNDOLA. Ruy Samuel. Conceito de Princípios Constitucionais. São Paulo: RT. 1998, p. 233), que esclarece:

            "Densificar uma ‘norma’ significa preencher, complementar e precisar o espaço normativo de um preceito constitucional, especialmente carecido de concretização, a fim de tornar possível a solução, por esse preceito, dos problemas concretos.

            As tarefas de concretização e de densificação de normas andam, pois, associadas: densifica-se um espaço normativo (=preenche-se uma norma) para tornar possível sua concretização e a conseqüente aplicação a um caso concreto".

            06

Na lição de Canotilho (in Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2ª edição. Coimbra: Almedina. 1998, p. 211) "numa sociedade plural e complexa a constituição é sempre um produto do "pacto" entre forças políticas e sociais. Através de "barganha" e de "argumentação", de convergências e "diferenças", de cooperação na deliberação mesmo em caso de desacordos persistentes, foi possível chegar, no procedimento constituinte, a um compromisso constitucional ou, se preferirmos, a vários "compromissos constitucionais".

            07

Bobbio (in Teoria do Ordenamento Jurídico, 5ª edição. Tradução de Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos. Brasília: Unb. 1994. p. 92) assevera que apenas as antinomias insolúveis são reais.

            08

Ao tratar do princípio da unidade da Constituição, Luís Roberto Barroso (in Interpretação e Aplicação da Constituição. 2ª edição. São Paulo: Saraiva. 1998, p. 196) ressalta a idéia de antinomias aparentes: "O fundamento subjacente a toda a idéia de unidade hierárquico-normativa da Constituição é o de que as antinomias eventualmente detectadas serão sempre aparentes e, ipso facto, solucionáveis pela busca de um equilíbrio entre as normas, ou pela legítima exclusão da incidência de alguma delas sobre dada hipótese, por haver o constituinte disposto nesse sentido."

            09

Eros Roberto Grau (in A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 3ª edição. São Paulo: Malheiros. 1997, p. 97), abeberando-se em Dworkin, ao distinguir os princípios das regras, o faz com base na realidade das antinomias, o que destoa um pouco da posição ora defendida. Para o autor as antinomias reais (ou próprias ) só existem entre regras, sendo o conflito resolvido com a necessária eliminação de uma das regras do sistema. Enquanto em relação aos princípios, o conflito não importa a eliminação do princípio desprestigiado, o qual poderá prevalecer em conflito semelhante numa situação posterior. Contudo, preferimos, juntamente com Bobbio, entender que as antinonias solúveis são aparentes, sejam entre regras, sejam entre princípios.

            A idéia parte de Bobbio. Teoria do ordenamento jurídico.

            10

A idéia de valor, notadamente em sede de princípios da Constituição brasileira, assume relevância se considerarmos a natureza comunitária de nossa Carta. Sobre o tema, mostra-se de grande valia a obra Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva. Rio de Janeiro: Lumen Jures. 1999, p. 46, em que A Prof. Gisele Cittadino assevera: "...na linha do constitucionalismo "comunitário", o cumprimento dos princípios fundamentais equivale a uma realização de valores. A dimensão axiológica supera, portanto, a dimensão deontológica, pois o conceito de bom tem primazia sobre o de dever ser, na medida em que os princípios expressam os "valores fundamentais" da comunidade."

            11

A idéia é de Robert Alexy (apud GRAU, Eros Roberto Grau. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 3ª edição. São Paulo: Malheiros. 1997, p. 98).

            12

Ao salientar tal aspecto em relação à Constituição Portuguesa, que muito se assemelha à nossa, Canotilho (Op. cit., p. 1055/1056) esboça as regras gerais de solução de conflitos:

            "O facto de a constituição constituir um sistema aberto de princípios insinua já que podem existir fenómenos de tensão entre vários princípios estruturantes ou entre os restantes princípios constitucionais gerais e especiais. Considerar a constituição como uma ordem ou sistema de ordenação totalmente fechado e harmonizante significa esquecer, desde logo, que ela é, muitas vezes, o resultado de um compromisso entre vários actores sociais, transportadores de ideias, aspirações e interesses substancialmente diferenciados e até antagónicos ou contraditórios. O consenso fundamental quanto a princípios e normas positivo-constitucionalmente plasmados não pode apagar, com é óbvio, o pluralismo e o antagonismo de ideia subjacentes ao pacto fundador.

            A pretensão de validade absoluta de certos princípios com sacrifício de outros originaria a criação de princípios reciprocamente incompatíveis, com a conseqüente destruição da tendencial unidade axiológico-normativa da lei fundamental. Daí o reconhecimento de momentos de tensão ou antagonismo entre os vários princípios e a necessidade, atrás exposta, de aceitar que os princípios não obedecem, em caso de conflito, a uma "lógica do tudo ou nada", antes podem ser objecto de ponderação e concordância prática, consoante o seu "peso" e as circunstâncias do caso."

            13

A despeito de serem tratados como fundamentos são verdadeiro princípios estruturantes do Estado de Direito Brasileiro.

            14

3ª edição. São Paulo: Malheiros, 1998.

            15

Muito se discute acerca da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais. Isso porque, em sua origem os direitos fundamentais representaram uma defesa do cidadão frente ao Estado. As desigualdades oriundas do sistema capitalista levaram ao surgimento de outros direitos tidos como fundamentais, mas que se prestavam à proteger o economicamente mais fraco da classe social hegemônica, cujos componentes eram igualmente sujeitos de direitos fundamentais. Daí o questionamento quanto à vinculação de particulares aos direitos fundamentais. Sobre o tema, surgiram, principalmente na Alemanha, várias teorias, dentre as quais se destaca a teoria da aplicação direta defendida por Nipperdey, segundo a qual as normas que positivam direitos fundamentais dirigem-se também aos cidadãos, fazendo surgir um direito subjetivo de um indivíduo em face do outro, e a teoria da aplicação indireta, defendida por Günther Dürig, segundo a qual a aplicação das normas que corporificam os direitos fundamentais não prescindem da intermediação do legislativo na edição de ato normativos dirigidos, estes sim, aos particulares, e da intermediação do Judiciário, no julgamento dos casos concretos em que lançará mão dos direitos fundamentais como normas de interpretação e de integração. Sem embargo da crítica efetuada por Alexy, de que ambas as teorias levariam às mesmas conseqüências práticas, filiamo-nos à posição adotada por Ingo Wolfgang Sarlet ("Direitos Fundamentais e Direito Privado: algumas considerações em torno da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais".In Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: RT, nº 36, outubro/dezembro 2000, p. 54/104), que opta pela aplicação imediata de tais direitos aos particulares, asseverando que "a opção por uma eficácia direta traduz uma decisão política em prol de um constitucionalismo da igualdade, objetivando a efetividade do sistema de direito e garantias fundamentais no âmbito do Estado Social de Direito, ao passo que a concepção defensora de uma eficácia apenas indireta encontra-se atrelada ao constitucionalismo de inspiração liberal-burguesa." No mesmo sentido a posição adotada por Canotilho (in Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2ª edição. Coimbra: Almedina. 1998), muito embora não concorde com a visão de um "poder privado" ou "poder social", que norteia a tese de Nipperdey.

            16

Ferraz, Antonio Augusto Mello de Camargo e Ferraz, Patrícia André de Camargo. Ministério Público e Enforcement (Mecanismos que Estimulam e Imponham o Respeito às Leis). In Ministério Público: Instituição e Processo. São Paulo: Atlas. 1997, p. 117.

            17

Mankiw, N. Gregory. Introdução à Economia: princípios de micro e macroeconomia. Tradução da 2ª edição original de Maria José Cyhlar Monteiro. Rio de Janeiro: Campus, 2001.

            18

No dizer de Fabio Ulhoa Coelho "externalidade é todo efeito (negativo ou positivo) que uma pessoa produz sobre a atividade econômica, a renda ou o bem-estar de outra, sem compensar os prejuízos que causa nem ser compensada pelos benefícios que traz". (In Curso de Direito Comercial. Vol 1. 2ª edição. São Paulo: Saraiva. 1999, p. 32).

            19

Op. cit., p. 36.

            20

Nesse sentido ULHOA, op. cit. p. 44.

            21

Imagine-se um determinado banco que resolva, a título de cobrança de uma taxa não prevista em contrato ou em qualquer ato normativo do BACEN, descontar das contas de seus correntistas R$1,00.

            Certamente poucos seriam os consumidores que tomariam alguma medida concreta, ainda que extrajudicial, no intuito de contrapor-se ao ato nitidamente ilícito.

            Todavia, se imaginarmos, ainda, que o Banco de nosso exemplo, possua 500.000 clientes, seu ato terá possibilitado um ingresso de caixa na ordem de R$500.000,00, em detrimento da massa de seus consumidores.

            Em situações como esta apenas a ação coletiva propiciará a manutenção da ordem jurídica e a higidez do mercado.

            22

In Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. São Paulo: RT. 2002, p. 684.

            23

In Estado de Direito e Legitimidade, Uma Abordagem Garantista. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 1999.

            24

In Appunti Sulla Tutela Giurisdizionale di Interessi Collettivi o Diffusi. Padova: CEDAM. 1976.

            25

Além da Lei n° 8.078/90, a legitimidade do Ministério Público para a defesa do consumidor está prevista em outros atos normativos infraconstitucionais: art. 25, inciso IV, alínea "a", da Lei n° 8.625/93 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público) e art. 1°, inciso II, c/c o art. 5°, caput, da Lei n° 7.347/85. No caso do Estado do Rio de Janeiro, a constituição estadual prevê a proteção do consumidor como função institucional do Ministério Público (art. 173, inciso III).

            26

Muito embora tenha havido certa divergência terminológica entre a utilização de direito ou interesse, preferiu o legislador fugir à polêmica, abarcando as duas acepções no texto legal. De modo geral tal opção mereceu aplausos até mesmo para impedir interpretações divergentes do comando constitucional de proteção ao consumidor. Sobre tal discussão ver MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Manual do Consumidor em Juízo. 2ª edição. São Paulo: Saraiva. 1998, p. 23 e segs..

            27

Art. 25 - Além das funções previstas nas Constituições Federal e Estadual, na Lei Orgânica e em outras leis, incumbe, ainda, ao Ministério Público:

            ...

            IV - promover o inquérito civil e a ação civil pública, na forma da lei:

            a) para a proteção, prevenção e reparação dos danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, e a outros interesses difusos, coletivos e individuais indisponíveis e homogêneos;

            ...

            28

A título de exemplo permite-se citar o seguinte acórdão:

            AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. ILEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO

            - Inafastável o reconhecimento da ilegitimidade ativa do agente do Ministério Público para, em ação civil pública, pleitear a tutela de interesses individuais homogêneos de cunho meramente patrimonial, disponíveis, portanto, sem relevância ou repercussão para a coletividade em geral. (TJ-RS – Ac. Unân. da 3ª Câm. Cív., de 26-8-99 – Ap. 599.291.697 – Rel. Des. Luiz Azambuja – Ministério Público x Grêmio Esportivo Brasil).

            29

A Legitimidade do Ministério Público para a Defesa de Direitos Individuais Homogêneos. In Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, n° 11, jan./jun. 2000, p. 199/233.

            30

In Código de Processo Civil e Legislação Processual Civil em Vigor. 3ª edição. São Paulo: RT. 1997, p. 1.029.

            31

Evolução Institucional do Ministério Público Brasileiro. In Ministério Público: Instituição e Processo. São Paulo: Atlas. 1997, p. 53.

            32

É necessário registrar que, muito embora haja um forte apelo social na questão dos loteamentos clandestinos, o que de certa forma tem sensibilizado os Tribunais no acolhimento da legitimidade ministerial, não se pode deixar de lembrar que a solução da questão é facilitada pela Lei n° 6.766/79 que prevê expressamente a participação do Ministério Público na fiscalização da regularidade dos loteamentos (art. 38).

            33

No STJ: Resp 137.889/SP (DJ 29/05/00); Resp 108.249-SP (DJ 22/05/00).

            34

Recurso Extraordinário n° 213.631-0. Pleno. Relator Ministro Ilmar Galvão. Não conhecido por maioria. Julgado em 09 de dezembro de 1999. Publicado em 07 de abril de 2000.

            35

Nesse sentido LARENZ. Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução de José Lamego. 3ª edição. Lisboa: Fundação Calouste Goulbekian. 1997, p. 479/484.

            36

RE-213631/MG – Rel. Min. Ilmar Galvão – maioria – 1ª turma – 09/12/99. Ver nota n° 40 infra.

            37

Interessante análise crítica sobre a posição que acabou por se sedimentar nos Tribunais Superiores acerca da ilegitimidade do Ministério Público para a defesa do contribuinte encontra-se em GARCIA, Emerson. Da Legitimidade do Ministério Público para a Defesa dos Contribuintes. Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, n° 12, jul/dez 2000.

            38

EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA PROMOVER AÇÃO CIVIL PÚBLICA EM DEFESA DOS INTERESSES DIFUSOS, COLETIVOS E HOMOGÊNEOS. MENSALIDADES ESCOLARES: CAPACIDADE POSTULATÓRIA DO PARQUET PARA DISCUTI-LAS EM JUÍZO.

            1. A Constituição Federal confere relevo ao Ministério Público como instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (CF, art. 127).

            2. Por isso mesmo detém o Ministério Público capacidade postulatória, não só para a abertura do inquérito civil, da ação penal pública e da ação civil pública para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente, mas também de outros interesses difusos e coletivos (CF, art. 129, I e III).

            3. Interesses difusos são aqueles que abrangem número indeterminado de pessoas unidas pelas mesmas circunstâncias de fato e coletivos aqueles pertencentes a grupos, categorias ou classes de pessoas determináveis, ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base.

            3.1. A indeterminidade é a característica fundamental dos interesses difusos e a determinidade a daqueles interesses que envolvem os coletivos.

            4. Direitos ou interesses homogêneos são os que têm a mesma origem comum (art. 81, III, da Lei n° 8.078, de 11 de setembro de 1990), constituindo-se em subespécie de direitos coletivos.

            4.1. Quer se afirme interesses coletivos ou particularmente interesses homogêneos, stricto sensu, ambos estão cingidos a uma mesma base jurídica, sendo coletivos, explicitamente dizendo, porque são relativos a grupos, categorias ou classes de pessoas, que conquanto digam respeito às pessoas isoladamente, não se classificam como direitos individuais para o fim de ser vedada a sua defesa em ação civil pública, porque sua concepção finalística destina-se à proteção desses grupos, categorias ou classe de pessoas.

            5. As chamadas mensalidades escolares, quando abusivas ou ilegais, podem ser impugnadas por via de ação civil pública, a requerimento do Órgão do Ministério Público, pois ainda que sejam interesses homogêneos de origem comum, são subespécies de interesses coletivos, tutelados pelo Estado por esse meio processual como dispõe o artigo 129, inciso III, da Constituição Federal.

            5.1. Cuidando-se de tema ligado à educação, amparada constitucionalmente como dever do Estado e obrigação de todos (CF, art. 205), está o Ministério Público investido da capacidade postulatória, patente a legitimidade ad causam, quando o bem que se busca resguardar se insere na órbita dos interesses coletivos, em segmento de extrema delicadeza e de conteúdo social tal que, acima de tudo, recomenda-se o abrigo estatal.

            Recurso extraordinário conhecido e provido para, afastada a alegada ilegitimidade do Ministério Público, com vistas à defesa dos interesses de uma coletividade, determinar a remessa dos autos ao Tribunal de origem, para prosseguir no julgamento da ação. (RE 163231-3/SP, unân., rel. Min. Maurício Correa, Pleno, j. em 26.12.97, publicado no DJ de 29.06.01, p. 00055). Sem grifo no original.

            39

Código Civil Alemão Muda para Incluir a Figura do Consumidor – Renasce o "Direito Civil Geral e Social" ?. Mimeo.

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MINISTÉRIO PÚBLICO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TAXA DE ILUMINAÇÃO PÚBLICA DO MUNICÍPIO DE RIO NOVO-MG. EXIGIBILIDADE IMPUGNADA POR MEIO DE AÇÃO PÚBLICA, SOB ALEGAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE. ACÓRDÃO QUE CONCLUIU PELO SEU NÃO-CABIMENTO, SOB INVOCAÇÃO DOS ARTS. 102, I, a, E 125, § 2°, DA CONSTITUIÇÃO.

            Ausência de legitimação do Ministério Público para ações da espécie, por não configurada, no caso, a hipótese de interesses difusos, como tais considerados os pertencentes concomitantemente a todos e a cada um dos membros da sociedade, como um bem não individualizável ou divisível, mas, ao revés, interesses de grupo ou classe de pessoas, sujeitos passivos de uma exigência tributária cuja impugnação, por isso, só pode ser promovida por eles próprios, de forma individual ou coletiva.

            Recurso Não conhecido.

            RE-213631/MG – Rel. Min. Ilmar Galvão – maioria – 1ª turma – 09/12/99.

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AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DIREITOS INDIVIDUAIS DISPONÍVEIS. ICMS. ILEGITIMIDADE DO MP

            - Estabelece o artigo 127, caput, da Constituição Federal, que o Ministério Público "é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e indisponíveis". Assim, cabe ao Ministério Público a defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis. A Lei Complementar n° 75/93 atribui a ele competência para proteção de interesses individuais homogêneos (art. 6°), indisponíveis (art. 6°, inciso VII, letra "d"). Sua legitimidade é para cuidar de interesses sociais difusos e coletivos e não para patrocinar direitos individuais, privados e disponíveis. A defesa a título coletivo só será por ele exercida, quando se tratar de direitos difusos ou interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, de acordo com o Código do Consumidor (art. 81, caput), os transindividuais de natureza indivisível (parágrafo único, item II). Para estas finalidades está ele legitimado (artigo 81, inciso I). Só tem o Ministério Público legitimidade para propor ação civil pública, versando proteger o meio ambiente, o consumidor, os bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, qualquer outro interesse difuso, ou coletivo e a ordem econômica (Lei n° 7.347/85, art. 1°). No caso concreto, ação civil pública não foi proposta por nenhuma destas hipóteses. Nela, não se pretende proteger o consumidor ou qualquer interesse difuso ou coletivo e sim os interesses privados de alguns contribuintes, disponíveis. O interesse ou direito difuso, para efeito do Código do Consumidor, são "os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato" (Lei n° 8.078/90, artigo 81, inciso I). Ora, no caso, não se trata de nenhum direito transindividual, de natureza indivisível de que sejam titulares pessoas indeterminadas. Interesses ou direitos coletivos são os transindividuais de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si com a parte contrária por uma relação jurídica base (Lei n/ 8.078/90, artigo 81, inciso II). Na hipótese não se trata de direitos transindividuais de natureza indivisível. Os contribuintes do ICMS incidente sobre a circulação de energia elétrica não são considerados consumidores e não estamos diante de direitos individuais homogêneos indisponíveis. (STJ – Ac. Unân. Da 1ª T., publ. em 29-5-2000 – Resp. 248281-SP – Rel. Min. Garcia Vieira – Fazenda Pública Estadual x Ministério Público)

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In Appunti Sulla Tutela Giurisdizionale di Interessi Collettivi Diffusi. Le Azioni a Tutela di Interessi Collettivi. Padova: CEDAM. 1976.

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Imperioso é registrar que Cappelletti já afirmou que tais críticas, que, via de regra, espelham a opinião da doutrina européia "não se aplicam ao Ministério Público brasileiro, sobretudo depois que sua independência foi assegurada pela Constituição, e, em conseqüência também do fato de que em algumas cidades do Brasil se criaram seções especializadas em matéria de interesses difusos, nos quadros do Ministério Público" (Apud MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses Difusos: Conceito e Legitimação para Agir. 4ª edição. São Paulo: RT. 1997, p. 199).
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Sobre o autor
Luiz Cláudio Carvalho de Almeida

promotor de Justiça no Estado do Rio de Janeiro, professor de Direito Comercial da Faculdade de Direito de Campos (RJ), mestre em Direito pela Faculdade de Direito de Campos, diretor do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (BRASILCON)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, Luiz Cláudio Carvalho. A legitimidade do Ministério Público para a defesa dos direitos individuais homogêneos do consumidor:: Um caminho para a eficácia social da norma dentro de um modelo garantista. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1397, 29 abr. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9818. Acesso em: 26 abr. 2024.

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