No ano de 1991, Theodoro Júnior se referiu como revolução ocorrida no Direito de Família (1991, p. 53-54) a proteção ao concubinato[1]; a igualização de todos os filhos; a igualização dos cônjuges em direitos e obrigações; a facilitação da dissolução do casamento. De fato, para aquele momento o surgimento destes institutos pode ser tido como uma revolução.
No entanto, podemos dizer que se tais fatos geraram uma revolução no Direito de Família da época, o reconhecimento recente de institutos jurídicos não o revolucionou, mas o transformou, reconstruiu-o, como o reconhecimento das famílias homoafetivas, a parentalidade socioafetiva, a pluriparentalidade e, neste artigo, destacamos o debate acerca dos novos arranjos de relações de afeto.
Temos certeza de que muitos desconhecem alguns dos institutos acima referidos. Porém, dificilmente algum leitor deste artigo desconhece a figura do saudoso funkeiro MC Catra, falecido 2018, pois além de ser um dos mais reconhecidos artistas do seu gênero musical, sempre chamou a atenção do Brasil pelo seu arranjo familiar, vivendo em relação de afeto, simultaneamente e na mesma unidade doméstica, com diversas mulheres e os filhos que teve com elas. A verdade é que o eterno Catra vivia em relação de poliamor.
Poliamorismo ou poliamor (do grego poli = muitos ou vários, e do latim amoré = amor) trata-se da possibilidade de um relacionamento simultâneo entre três ou mais pessoas com anuência de todos envolvidos, o qual será denominado polirelacionamentos (SILVA; MORAES, p. 143, 2018). Depreende-se que o poliamor tem como premissa base o número de envolvidos, três ou mais, e o conhecimento e anuência deles acerca deste fato:
O poliamorismo ou poliamor, teoria psicológica que começa a descortinar-se para o Direito, admite a possibilidade de coexistirem duas ou mais relações afetivas paralelas, em que os seus partícipes conhecem e aceitam uns aos outros, em uma relação múltipla e aberta (GAGLIANO, 2.008, p. 1841).
O número de 3 ou mais envolvidos se faz necessário pois de modo diverso estaríamos diante de casal convencional; o conhecimento e a anuência de todos é o traço distintivo de uma relação poliafetiva para traição ou infidelidade, que acaba por descaracterizá-la (SILVA; MORAES, 2018).
Apesar da existência destas premissas bases, a principal característica do poliamor é a mínima existência de normatividade, ou seja, critérios, parâmetros e delimitações conceituais; trata-se de relação humana complexa, que pode ter diversos arranjos e modelos:
relacionamentos poliamorosos podem ser abertos ou fechados entre três ou mais pessoas. Pode estar colocada a polifidelidade ou a possibilidade permanente de múltiplos e novos amores. Pode haver trisais, quadrados amorosos, redes fluidas e dinâmicas. No caso de um trisal, é possível que se estabeleça uma hierarquia entre o casal principal e uma terceira pessoa, incluída tardiamente na relação, ou ainda que haja simetria. Nas redes poliamorosas, pode ocorrer de todas as pessoas se relacionarem ou não. É possível até a formação de grupos de parceiros em que participem pessoas monogâmicas (BORNIA JUNIOR, p. 48).
Percebe-se que poliamor é gênero, do qual se incluem diversas relações afetivas, inclusive os chamados trisais, ou triângulos amorosos, formados por três sujeitos, dentre outros.
A questão do poliamor, da poligamia, sempre chamou a atenção de muitos. Tanto é que com certeza grande parte dos leitores deste artigo, que atuam na área jurídica, já enfrentaram o seguinte questionamento: é possível se casar com mais de uma pessoa?
No meio jurídico, por outro lado, a poligamia e outras formas atípicas de viver o afeto nunca tiveram a atenção que merecem, isso porque o Código Civil (BRASIL, 2002) traz uma resposta simples para ela: não pode se casar quem é casado (art. 1.521, VI) e não pode constituir união estável a pessoa casada (art. 1.723, §1º). Todavia, como disse, trata-se de resposta simples para uma problemática um tanto quanto complexa, acabando por não resolvê-la.
Para compreender a complexidade referida, é necessário ir um pouco além, refletindo sobre a concepção atual do que vem a ser família.
A Constituição Federal (BRASIL, 1.988), em seu art. 226 reconhece como famílias aquelas matrimoniais, ou seja, decorrentes do casamento; as famílias convivenciais, cujo núcleo central é uma união estável; e, as monoparentais, em que há a figura de apenas um genitor com seu filho. No plano infraconstitucional, o Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1.990) reconhece as famílias substitutas (art. 28), sendo aquelas decorrentes da adoção, tutela e guarda e as famílias extensas (art. 25, parágrafo único), que se estendem para além da unidade pais e filhos ou da unidade do casal, formada por parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade.
Estas são as famílias positivadas em nosso ordenamento. No entanto, não precisa ser um teórico familiarista para perceber que se trata de concepção um tanto quanto limitada do que vem a ser entidade familiar. Para ilustrar, este que vos escreve possui duas tias-avós, irmãs, que viveram a vida toda juntas, sob o mesmo teto; trata-se de relação íntima de afeto. Percebe-se que partindo dos conceitos legais e constitucionais referidos elas não seriam membro de nenhuma espécie familiar.
Família não é fim, é meio, meio para se buscar a plenitude de vida. Partindo-se dessa premissa constitucional, a Jurisprudência e a Doutrina têm dedicado esforços para alargar ao máximo o conceito de família.
No REsp n. 57.606/MG o STJ (1995) reconheceu que o imóvel em que residem duas irmãs solteiras constitui bem de família. Nota-se que se reconheceu como entidade familiar aquela do exemplo a pouco exposto. Trata-se da chamada família Anaparental[2], em que inexiste a figura dos pais (BARROS, 2010)
Em 2011 houve o histórico julgamento da ADPF 132/RJ e ADIN 4.277/DF, em que se reconheceu a existência das famílias homoafetivas, ou seja, cujo núcleo central é a união entre pessoas do mesmo sexo.
Em suma, é louvável o papel desempenhado pela Jurisprudência e Doutrina na reconstrução do significado de família.
Ocorre que recentemente o STF agiu no sentido oposto, quando, no julgamento do RE n. 1.045.273/SE decidiu pela impossibilidade de se reconhecer união estável quando haja casamento de um dos conviventes ou duas uniões estáveis simultâneas:
A preexistência de casamento ou de união estável de um dos conviventes, ressalvada a exceção do artigo 1723, § 1º, do Código Civil, impede o reconhecimento de novo vínculo referente ao mesmo período, inclusive para fins previdenciários, em virtude da consagração do dever de fidelidade e da monogamia pelo ordenamento jurídico-constitucional brasileiro (STF, 2020).
De plano, esclarecemos que aqui não se está alegando a inconstitucionalidade do artigo 1723, § 1º, do Código Civil ou refutando os deveres de monogamia e fidelidade, existentes na ordem jurídica. Na verdade, pretendemos demonstrar o quão superficial e simplória foi a decisão do STF, que ignorou a realidade vivida por muitos em seus lares.
Com o fenômeno da constitucionalização do direito privado, todos seus institutos devem ser lidos a partir da Constituição Federal, sobretudo, no que se refere às famílias, que tocam questões tão sensíveis da existência humana[3].
Quando se fala em existência humana, deve-se tomar como vetor interpretativo a dignidade da pessoa humana (BRASIL, 1988), que traz ao Estado o dever de oferecer todos os meios necessários para que se viva com plenitude, sob a perspectiva da satisfação pessoal:
É inconcebível reduzir-se o sentido da dignidade da pessoa humana à defesa dos direitos pessoais tradicionais, esquecendo-a nos casos de direitos sociais, ou invocá-la para construir efêmera teoria do núcleo da personalidade, calcada em vetores individuais, desprezando teses que tratem de garantir as bases da existência humana sob a ótica da satisfação pessoal acima do Estado (RIBEIRO, 2012, p. 159)
Não é que o Estado deve ser súdito de todas as vontades particulares, mas sim que ao tomar suas decisões políticas como quando o STF exerce jurisdição deve ter como preocupação primeira o valor da dignidade da pessoa humana. Em suma, o princípio fundamental determina que o Estado não haja com fim nele mesmo, mas naqueles que o formam[4].
Você deve estar se perguntando: entendo, mas qual a relação direta entre a dignidade da pessoa humana e o reconhecimento destas novas famílias? Respondo-lhe: a valoração do afeto.
O afeto talvez seja apontado, atualmente, como o principal fundamento das relações familiares. Mesmo não constando a expressão afeto do Texto Maior como sendo um direito fundamental, pode-se afirmar que ele decorre da valorização constante da dignidade da pessoa humana e da solidariedade (TARTUCE, 2019, p. 1.065). Em suma, o que caracteriza uma família não é o vínculo sanguíneo ou jurídico-legal, mas sim o afeto.
Destaca-se que a afetividade, enquanto valor jurídico, vai além do reconhecimento das novas famílias, sendo, com toda certeza, a espinha dorsal do Direito de Família contemporâneo[5], servindo para reconhecer a paternidade socioafetiva, a pluriparentalidade, dentre outros institutos.
Conforme dito a pouco, o objetivo do presente artigo não é refutar a existência do dever legal de monogamia ou de fidelidade, até porque isso seria impossível. No entanto, o que se percebe é que o STF, na decisão do RE n. 1.045.273/SE decidiu sem mensurar que além daquelas circunstâncias adulterinas, em que inexiste efeitos na esfera do Direito das Famílias, ou naqueles casos de poliamor, em que ausente animus familiae[6], (BORNIA JÚNIOR, 2018), há relações familiares decorrentes da duplicidade de união estável ou de formação desta simultaneamente ao casamento: é o caso das famílias paralelas ou simultâneas:
Famílias simultâneas é o termo cunhado pela doutrina para indicar uma situação em que uma pessoa, não necessariamente o homem, convive com outra pessoa, não necessariamente uma mulher, em dois núcleos distintos e simultâneos. É o caso clássico da literatura em que um homem que muito viaja tem dois núcleos familiares distintos em localidades distintas. Para a delimitação teórica é importante compreender que a pessoa tem dois núcleos distintos em que todos os membros componentes destes núcleos não residem sob o mesmo o teto (SIMÃO, 2020).
Vejamos a hipótese de família paralela trazida na conceituação acima: homem que viaja muito, e nas suas idas e vindas mantém duas ou mais famílias, uma matrimonial e outra fruto de união estável. No entendimento do STF, no RE n. 1.045.273/SE, só será reconhecida como família a primeira, independentemente da ciência e boa-fé da segunda; ainda neste caso hipotético, poderia ocorrer de a companheira viver com a mesma comunhão de vidas que o cônjuge e contribuir na mesma intensidade que aquele para a construção da vida do de cujus. Percebe-se, claramente, que inexiste razoabilidade proteger juridicamente apenas a relação de afeto que o falecido manteve com o cônjuge (ou companheira de união estável constituída primeiro), mesmo que presentes os pressupostos para se reconhecer família a relação dele, em vida, com a outra convivente.
Merece destaque que embora no caso hipotético as famílias simultâneas desconheciam a existência uma da outra, ainda sim teriam essa natureza se do contrário fosse (TARTUCE, 2019).
Família não é instituto de direito, mas sim de fato. Deste modo, é necessário se analisar, caso a caso, para concluir se é ou não hipótese jurídica de família. Neste sentido, destaca-se o didático precedente jurisprudencial do TJMA:
Direito de Família. Apelação cível. Ação declaratória de união estável post mortem. Casamento e união estável simultâneos. Reconhecimento. Possibilidade. Provimento. 1. Ainda que de forma incipiente, doutrina e jurisprudência vêm reconhecendo a juridicidade das chamadas famílias paralelas, como aquelas que se formam concomitantemente ao casamento ou à união estável. 2. A força dos fatos surge como situações novas que reclamam acolhida jurídica para não ficarem no limbo da exclusão. Entre esses casos, estão exatamente as famílias paralelas, que vicejam ao lado das famílias matrimonializadas. 3. Para a familiarista Giselda Hironaka, a família paralela não é uma família inventada, nem é família imoral, amoral ou aética, nem ilícita. E continua, com esta lição: na verdade, são famílias estigmatizadas, socialmente falando. O segundo núcleo ainda hoje é concebido como estritamente adulterino, e, por isso, de certa forma perigoso, moralmente reprovável e até maligno. A concepção é generalizada e cada caso não é considerado por si só, com suas peculiaridades próprias. É como se todas as situações de simultaneidade fossem iguais, malignas e inseridas num único e exclusivo contexto. O triângulo amoroso sub-reptício, demolidor do relacionamento número um, sólido e perfeito, é o quadro que sempre está à frente do pensamento geral, quando se refere às famílias paralelas. O preconceito, ainda que amenizado nos dias atuais, sem dúvida, ainda existe na roda social, o que também dificulta o seu reconhecimento na roda judicial. 4. Havendo nos autos elementos suficientes ao reconhecimento da existência de união estável entre a apelante e o de cujus, o caso é de procedência do pedido formulado na ação declaratória. 5. Apelação cível provida (TJMA, 2014).
Em suma, o fato de o STF dizer que família paralela não é família não lhe tira essa natureza. Na verdade, o teor da decisão da Corte Constitucional apenas aumenta a problemática imensa já existente.
Como dito a pouco, é graças à Doutrina e Jurisprudência que os novos modelos de família têm alguma proteção jurídica. No que toca às famílias paralelas ou simultâneas, deixamos nossa contribuição para a solução da presente controvérsia: é certo que há dever de monogamia e de fidelidade em nossa ordem jurídica, e que a existência de matrimônio ou união estável anteriores é fator impeditivo da constituição de nova família convivencial. Mas é certo que em meio à constitucionalização do direito privado devem todos os institutos jurídicos serem lidos a partir da dignidade da pessoa humana, para que assim os destinatários dos direitos possam exercê-los e vivê-los com plenitude.
Diante disso, entendemos que os magistrados em especial o STF em ocasiões futuras devem realizar julgamento conforme a constituição[7], reforçando que de fato há o dever de monogamia e de fidelidade, mas que estes não devem ser suficiente para obstar o reconhecimento de outras famílias, com fundamento na dignidade da pessoa humana.
REFERÊNCIA
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BORNIA JUNIOR, Dardo Lorenzo. Amar é verbo, não é pronome possessivo: Etnografia das relações não-monogâmicas do Sul do Brasil. Orientador: Daniela Riva Knauth. 2018. 233 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2018. Disponível em: https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/193166/001091361.pdf?sequence=1.Acesso em: 6 jun. 2022.
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TJMA, Recurso 19.048/2013, Acórdão 149.918/2014, 3.ª Câmara Cível, Rel. Des. Jamil de Miranda Gedeon Neto, j. 10.07.2014, DJEMA 17.07.2014.
- Este entendimento doutrinário foi exposto há mais de 30 anos. Atualmente união estável e concubinato são tidos como institutos jurídicos distintos. Tartuce (2019, p. 1.194) explica que união estável é entidade familiar protegida pela CF, ao passo que concubinato é mera sociedade de fato; união estável é constituída, apenas, por pessoa solteira, viúva, divorciada ou separada, de fato ou judicialmente, ao passo que no concubinato pelo menos uma das partes são casadas, vivem em união estável reconhecida ou em contexto em que existe impedimento matrimonial; na união estável há direito à meação patrimonial, direito a alimentos e garantias sucessórias, ao passo que no concubinato, no que toca à questão patrimonial, há aplicação da antiga Súmula 380, do STJ; por fim, a união estável, por ser entidade de familiar constitucionalmente protegida, deve ser reconhecida em Vara de Família, ao passo que o concubinato, por ser mera sociedade de fato, deve ser reconhecido em Vara Cível.
- A terminologia família anaparental se atribui a Sérgio Resende de Barros (2010), que retrata bem o que busca significar: a (ausência) e parental (pais).
- Ao tutelar diversos institutos nitidamente civilistas, como a família, a propriedade, o contrato, dentre outros, o legislador constituinte redimensionou a norma privada, fixando parâmetros fundamentais interpretativos (GONÇALVES, 2012, p. 44)
- Nery Júnior e Nery (2009, p. 151) relembram a lição de que o direito é constituído hominum causa, ou seja, por causa do homem. Aqui se defende que esta é a mais genuína ideia de dignidade da pessoa humana, pois coloca o destinatário do direito como centro da ordem jurídica.
- Embora presente em nosso Direito pensamento doutrinário e legal orientado pela biologização da paternidade, o fato é que se tornou necessário considerá-la sob enfoque diverso e dirigido pelo Princípio da Socioafetividade, em que a inexistência de ligação biológica é um simples dado e não solução no sentido da impossibilidade de se afirmar o filho como tendo esta qualidade (COLTRO, 2011, p. 20).
- É o termo que a doutrina emprega para se referir ao objetivo de constituir família (TARTUCE, 2019).
- Em vez de declarar a norma inconstitucional, o Tribunal escolhe alternativa interpretativa que a conduza a um juízo de constitucionalidade (BULOS, 2012, p. 467).