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A natureza jurídica do uso de sepultura

10/05/2007 às 00:00
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De início, devo confessar, foi com certa reticência que me dispus a escrever este pequeno artigo. Digo isso, dada a natureza do tema, que toca em um dos maiores temores do ser humano: Encarar a certeza de sua perenidade! A transitoriedade de sua existência, pelo menos, neste plano. Além do que, sempre que o abordo em sala de aula, quando do estudo do patrimônio público e dos serviços públicos, percebo claro mal estar.

O fato é, no entanto, que o denominado Direito funerário ainda é uma cadeira jurídica raramente estudada, com pouquíssimas obras publicadas, e pouquíssimos estudos e decisões judiciais que abordam diretamente o tema.

São inúmeras as implicações jurídicas deste tema, e no presente trabalho, abordaremos apenas alguns de seus aspectos, mais precisamente, a natureza jurídica do direito ao uso de sepultura em cemitérios públicos, tendo em vista que observamos que a temática tem sido abordada em concursos públicos diversos e recentes.

Daí sua brevidade e sintetismo.

O tema é complexo e extremamente controvertido, tendo sido apontadas mais de vinte teorias a respeito da natureza jurídica dos institutos envolvidos no denominado jus sepulchri.

Inicialmente, é necessário distinguir o direito ao uso de sepultura em cemitérios [01] privados e públicos.

Relativamente aos cemitérios privados, o tema pertence ao Direito Civil. Cemitério particular é aquele que pertence à iniciativa privada, e seu funcionamento, face à natureza do serviço ali realizado, está sujeita à Permissão da entidade pública, no caso, a Municipalidade, que regulamenta, disciplina e fiscaliza sua instalação e funcionamento regular, mas não altera a natureza e a titularidade do domínio do bem, que continua privado, embora sujeito às limitações decorrentes do poder de polícia administrativa.

Via de regra a legislação dos municípios somente concede a referida permissão, para entidades de caráter assistencial e sem fins lucrativos, tais como Associações Religiosas e Grêmios Assistenciais, Educacionais e Filantrópicos, desde que atendam as condições previstas nos regulamentos aplicáveis [02]. Tais cemitérios poderão ter caráter secular ou religioso.

Eduardo Henrique de Oliveira Yoshikaua, em primoroso artigo publicado no site Jus navigandi aborda exaustivamente o tema, e, discordando daqueles que vêem semelhança entre o direito de sepultar em cemitério público e privado, constata, em síntese, que relativamente ao segundo, "... que o jus sepulchri, o qual consiste, basicamente, no direito de sepultar e de manter sepultados restos mortais, em se tratando de cemitérios particulares, pode resultar de enfiteuse ou superfície (conforme seja anterior ou posterior ao Código Civil vigente o negócio jurídico que lhe deu origem), concessão de uso (DL 271/67), locação ou comodato, eis que neles se encontra o conteúdo essencial do direito à sepultura (uso de bem imóvel e possibilidade de transmissão mortis causa, que se distinguem quanto à onerosidade, ao prazo de duração e à natureza real ou pessoal do direito, o que deverá ser verificado pelo intérprete no exame de cada caso concreto)". [03]

A nós, no entanto, interessa aqui, o estudo do tema relativamente aos cemitérios públicos, tema afeto ao Direito Administrativo. Diz-se público o cemitério quando instalado em terreno público, sendo administrado diretamente pelo Município, ou explorado por terceiros através de instrumento jurídico-administrativo. Tais cemitérios terão, obrigatoriamente, caráter secular, em face do laicismo constitucional do estado brasileiro.

Necessário também se faz, aqui, estabelecermos um parêntese.

Às denominadas agências funerárias cabe o recolhimento, preparo, guarda e translado dos restos mortais ao cemitério. Tais entidades prestam relevante serviço público, tendo para tanto permissão da entidade administrativa competente. Logo, as funerárias são permissionárias de serviço público [04], sujeitas às normas regulamentares aplicáveis ao serviço que prestam, e à prática das tarifas estabelecidos em tabela pelo poder municipal, tendo as mesmas que obedecer ao princípio da modicidade e, no caso de indigentes, a regulamentação de diversos municípios as obrigam a proceder gratuitamente, como um ônus administrativo pela sujeição a uma atividade permitida. Há ainda, as casas de artigos funerários, que estão sujeitas à licença do poder público.

Bem, os cemitérios públicos são classificados, de forma unânime pelos administrativistas, como bens públicos [05] de uso especial [06].

Podem os mesmos ser diretamente administrados pelo próprio Município, ou explorados por terceiros. O título jurídico-administrativo que melhor se adequa a espécie é a concessão de uso de bem público, no entanto, várias legislações municipais referem-se à permissão de uso. Novamente nos vemos às voltas com a generalizada confusão que o legislador faz com os referidos institutos. Uma análise e conhecimento mais aprofundado dos institutos nos levam, forçosamente, à conclusão que somente a concessão de uso, dada sua natureza de contrato bilateral, confere ao explorador do bem, a necessária segurança jurídica para proceder ao seu mister, e, ao mesmo tempo, confere à administração o necessário poder de fiscalização e regulamentação do mesmo, já que se trata de uso privativo normal incidente sobre bem público de uso especial.

Já no que se refere ao uso específico de parcela do terreno - a sepultura, o título jurídico que o legitima, a nosso ver, pode ser a concessão [07] ou permissão de uso.

No caso dos denominados jazigos perpétuos, mausoléus ou assemelhados vemos que há verdadeira construção de benfeitoria, a cargo do interessado, muitas vezes de custo elevado, que, obviamente, adere ao solo, e ainda que sujeita à regulamentação às normas de utilização aplicáveis, somente a concessão de uso perpétua confere, à administração, ao concessionário, e também a coletividade [08], a necessária segurança jurídica, havendo aqui, um misto entre a utilidade pública e a utilidade privada, logo, concorrência tríplice de interesses, elemento caracterizador da concessão administrativa. Trata-se, pois, de concessão, conferida à título perpétuo, remunerada e transmissível mortis causa. É comum a cobrança de uma tarifa anual destinada à manutenção, conservação e segurança do cemitério a ser paga pelo concessionário.

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No caso de utilização temporária, é possível também a permissão de uso [09]. Muitas legislações municipais a prevêem, estabelecendo para as mesmas, prazos relativamente longos, em torno de dez anos, sendo possível a prorrogação, desde que requerida pelo titular do termo de permissão ou por seus herdeiros, antes do advento do termo final.

A utilização da denominada "cova" destinada ao sepultamento rotativo também, a nosso ver, está sujeita a permissão, aqui, marcada por uma precariedade mais premente e prazos menores em face da necessidade constante de sua reutilização. Não seria o caso de autorização [10], pois a mesma sempre se dá quando a utilização do bem público se faz apenas para atender interesse do utente (autorizatário), o que não ocorre na espécie, pois, como vimos, tratam-se, aqui, de interesses convergentes do Poder Público, do particular e da coletividade.

Conclui-se, portanto, que o direito de uso de sepultura em cemitérios públicos, diferentemente do que ocorre em cemitérios particulares, se constitui através de instrumento jurídico de natureza publicista, sendo a concessão de uso, e, excepcionalmente, a permissão de uso, os meios jurídicos adequados a legitimar a utilização desta categoria de bem público de uso especial.


Notas

01 Para José dos Santos C. Filho, os cemitérios públicos constituem áreas do domínio público, e os cemitérios privados são instituídos em terrenos do domínio particular, embora sob o controle do Poder Público. Para que haja a instituição de um cemitério particular, é necessário consentimento do Poder Público Municipal, através de permissão ou por concessão. Os cemitérios públicos qualificam-se como bens de uso especial, já que há em suas áreas prestação de um serviço público específico. O serviço funerário, por se tratar de interesse local, é da competência municipal (art. 30 ,I, da CRFB).

02 São inúmeras e diversas as exigências administrativas, referindo-se a quesitos de higiene, saúde e segurança pública, aspectos urbanísticos, estéticos etc. Exige-se idoneidade financeira e prova inequívoca da propriedade territorial por parte da Permitente, devendo as mesmas ser titulares do domínio pleno, sem ônus ou gravames do imóvel destinado ao cemitério, admitida, em alguns casos, a promessa de compra e venda irrevogável e irretratável, inscrita no Registro Geral de Imóvel, além da obrigação de destinar determinado número de sepulturas para sepultamento rotativo, sendo vedada a alienação das mesmas, prevendo a legislação aplicável, um prazo mínimo de permanência dos restos mortais. Tais cemitérios normalmente são classificados em cemitérios tradicionais, tipo parque ou verticais.

03 YOSHIKAWA, Eduardo Henrique de Oliveira. Natureza jurídica do direito à sepultura em cemitérios particulares. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1122, 28 jul. 2006. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/8714>. Acesso em: 23 abr. 2007.

04 O mesmo ocorre com os fornos crematórios e capelas de velórios.

05 Cretella Júnior conceitua domínio público como o "conjunto de bens móveis e imóveis destinados ao uso direto do Poder Público ou à utilização direta ou indireta da coletividade, regulamentados pela Administração e submetidos a regime de Direito Público."(CARVALHO FILHO, José dos Santos. Apud CRETELLA JUNIOR. Manual de Direito Administrativo. Ed. Lúmen Júris. RJ. 13ºed., 2005: p. 845).

06 São aqueles que visam a execução dos serviços administrativos e dos serviços públicos em geral (CARVALHO FILHO, 2005:851). São exemplos desses bens os edifícios públicos (escolas e hospitais), prédios do Executivo, Legislativo e Judiciário, cemitérios públicos, museus etc.

07 Segundo José dos Santos Carvalho Filho, "é o contrato administrativo pelo qual o Poder Público confere a pessoa determinada o uso privativo de bem público, independentemente do maior ou menor interesse público da pessoa concedente." (CARVALHO FILHO, 2005:877). A concessão é empregada nos casos em que a utilização do bem público objetiva o exercício de atividades de utilidade pública de maior vulto.Pode ser remunerada ou gratuita, de exploração ou de simples uso, temporária ou perpétua.

08 O respeito aos mortos é um bem jurídico tutelado, inclusive pelo direito penal, pertencente à coletividade.

09 Trata-se de ato administrativo unilateral, discricionário e precário, gratuito ou oneroso, pelo qual a Administração Pública faculta a utilização privativa de bem público, para fins de interesse público, podendo tal permissão recair sobre bens públicos de qualquer espécie.

10 Autorização de uso, segundo Maria Sylvia Di Pietro, é o ato administrativo unilateral e discricionário, pelo qual a Administração consente, a título precário, que o particular se utilize de um bem público com exclusividade. É precária, podendo ser ainda gratuita ou onerosa.

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Sobre o autor
Almir Morgado

bacharel e licenciado em Ciências da Natureza pela Faculdade de Humanidades Pedro II (RJ), bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela UFRJ, especialista em Direito Público, especialista em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho, diretor-geral do CE Nilo Peçanha da SEE/RJ, coordenador do curso de Pós-Graduação em Direito Público da UNEC/FUNEC, professor titular de Direito Administrativo da FABEC/Academia do Concurso Público (RJ), professor visitante de Direito do Trabalho e Processo do Trabalho do curso de Pós-graduação em Direito da Universidade Estácio de Sá (RJ), professor de Direito Administrativo do Curso Gabarito (RJ), professor de Direito Administrativo e Constitucional do Metta Cursos Jurídicos

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORGADO, Almir. A natureza jurídica do uso de sepultura. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1408, 10 mai. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9851. Acesso em: 22 dez. 2024.

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