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Sistema nacional de combate à lavagem de dinheiro e de recuperação de ativos

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13/05/2007 às 00:00
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3.Instrumentos para a recuperação de ativos.

Pouco a pouco, o Estado Brasileiro tem realizado esforços para aperfeiçoar seus mecanismos de prevenção e combate à lavagem de dinheiro. A ENCCLA, realizada pela primeira vez em 2004, em Goiás, tem cumprido a tarefa de reunir todos os órgãos envolvidos com o problema da lavagem de dinheiro e de apresentar metas anuais para cumprimento pelos órgãos responsáveis, como o Banco Central, a Receita Federal, o Ministério da Justiça, a CVM, o COAF, etc.

Muitos dos instrumentos de investigação e de persecução hoje existentes e em utilização pela Polícia, pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário foram criados ou definitivamente implementados graças às metas da ENCCLA. É o que se deu com o Cadastro Nacional dos Clientes do Sistema Financeiro Nacional (CCS), criado por uma emenda à Lei n. 9.613/98, que nela introduziu o art. 10-A. Tal cadastro, administrado pelo Banco Central do Brasil, somente foi implantado em virtude de negociações da primeira reunião da Estratégia Nacional de Combate à Lavagem de Dinheiro em 2004.

A implantação do BACEN-Jud, sistema de bloqueio de valores em tempo real, já em uso nas varas especializadas em combate à lavagem de dinheiro, e em outros juízos no País, também derivou de uma meta da ENCCLA.

Fruto da meta 4 da Encla 2006, o Info-Jud, sistema recentemente criado pela Secretaria da Receita Federal, permitirá ao Poder Judiciário (inicialmente mediante convênios firmados com os TRFs da 1ª e da 4ª Região) e, posteriormente, ao COAF e ao MPF o acesso eletrônico a informações fiscais, mediante a utilização do Centro Virtual de Atendimento ao Contribuinte (e-CAC).

Também merecem menção outras iniciativas isoladas de órgãos públicos integrantes do sistema de prevenção e combate à lavagem de dinheiro. O BACEN estabeleceu regras tornando obrigatória a declaração de capitais brasileiros no exterior, desde que ultrapassem a cifra de cem mil dólares, conforme a Resolução CMN n. 2.911/2001.

Já o COAF expediu várias resoluções para regulamentar a atividade de certos sujeitos obrigados no cumprimento da Lei n. 9.613/98, a saber:

"Da Comunicação de Operações Financeiras

Art. 11. As pessoas referidas no art. 9º:

I - dispensarão especial atenção às operações que, nos termos de instruções emanadas das autoridades competentes, possam constituir-se em sérios indícios dos crimes previstos nesta Lei, ou com eles relacionar-se;

II - deverão comunicar, abstendo-se de dar aos clientes ciência de tal ato, no prazo de vinte e quatro horas, às autoridades competentes".

Listam-se a seguir algumas dessas normas setoriais expedidas pelo COAF para regular segmentos de mercado sujeitos à sua fiscalização direta:


4. Dificuldades operacionais

São inúmeras as dificuldades que se apresentam para a efetivo combate à lavagem de dinheiro.

Inicialmente, vale lembrar que a Polícia, o Ministério Público e o Judiciário devem respeitar as leis e as garantias individuais previstas na Constituição na persecução a todo e qualquer tipo de delito, em obediência à Lei Maior da Nação assim como ao Pacto de San José da Costa Rica (Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos).

A preocupação maior, quando se cuida da lavagem de dinheiro, está em não permitir a utilização no processo penal de provas ilicitamente obtidas e em respeitar a ampla defesa e o contraditório, garantias essas que, se ofendidas, fariam cair por terra todos os esforços para a punição dos culpados. Enquanto os agentes criminosos não têm limites em suas práticas, o Estado deve respeitar os direitos fundamentais.

Outra questão que se apresenta diz respeito ao emaranhado legislativo sobre o tema e a uma certa deficiência de nossa legislação específica, que ainda não está aptar a permitir uma persecução rápida e plena, para a proteção a importantes bens jurídicos para a sociedade. Esta afirmação é particularmente verdadeira quando se mira a Lei n. 9.613/98, com seu deficiente rol de delitos-base, e a Lei n. 9.095/95, que cuida das organizações criminosas, sem defini-las devidamente, sem tipificar o delito correspondente e sem estabelecer procedimentos adquados para a utilização de importantes técnicas especiais de investigação, como a entrega ou ação controlada e a captação de sinais ambientais.

Como se não bastasse, autoridades e servidores do Estado ainda não estão devidamente capacitados para lidar com esse tipo de criminalidade econômica, bastante complexa e que exige formação constante e a constituição de equipes multidisciplinares, para combate eficiente.

A tudo isso, como fatores que propiciam o crime de lavagem de dinheiro ou dificultam o sua repressão, somam-se problemas de obtenção de informações cadastrais de suspeitos junto a órgãos públicos e concessionárias de serviços públicos, a falta de controle concreto das nossas fronteiras, no que diz respeito à movimentação de pessoas e bens e à existência de um sistema paralelo e clandestino de movimentação de ativos, que utiliza casas de câmbio, doleiros, empresas de factoring e outros sistemas alternativos de remessa de valores e também se vale das facilidades dos inúmeros paraísos fiscais que existem no mundo [7].


5. Repatriação de ativos

É extremamente difícil recuperar ativos em casos domésticos de lavagem de dinheiro. Quando o crime é transnacional, as dificuldades se acentuam.

O primeiro passo das autoridades de persecução criminal é identificar o autor do delito e também os ativos objeto da lavagem de dinheiro. Cumprida esta meta, passa-se ao rastreamento dos valores, mediante o seguimento da trilha documental deixada pelos recicladores, durante as várias operações de dissimulação.

Se o rastreamento for bem sucedido, busca-se o bloqueio judicial dos ativos e de seus derivados, onde quer que estejam. No Brasil, tem-se utilizado o BACEN-Jud para esta finalidade, mediante o uso de senha pessoal do juiz competente. Todavia, quando é necessário congelar ativos fora do País é necessária a expedição de um pedido de assistência internacional, seja pelo magistrado ou pelo Ministério Público, por meio da autoridade central.

Recebido o pedido de assistência, a autoridade central brasileira (o DRCI ou o CCJI) se encarregará de remeter o pedido à sua congênere no Estado requerido, para cumprimento da solicitação. Se todos os requisitos do pedido de cooperação fundado em tratado internacional estiverem presentes, a diligência de bloqueio será cumprida pelo Estado estrangeiro. Não existindo tratado específico em matéria penal, será possível a cooperação com base no princípio da promessa de reciprocidade ou com base em uma convenção multilateral que tenha regras próprias e subsidiárias sobre o tema.

Bloqueados os ativos no Brasil, será necessário acautelá-los e aguardar a decisão final da ação penal, para que sejam declarados definitivamente perdidos em favor da União, ou restituídos ao réu declarado inocente. Para evitar a deterioração dos bens apreendidos, que podem ser veículos, aeronaves, imóveis ou semoventes, o juiz, de ofício ou mediante requerimento do Ministério Público, poderá determinar a alienação antecipada de tais bens, para lhes preservar o valor, de forma que não haja prejuízo para o réu inocente, ou, na hipótese diversa, seja preservada alguma utilidade para o Estado em caso de condenação.

Se os bens forem bloqueados no exterior, poderá haver a entrega imediata pelo Estado requerido ou a manutenção dos bens sob cautela, até a decisão em ultima instância do caso brasileiro, tudo a depender da legislação do país estrangeiro.

De todo modo, a repatriação dos ativos bloqueados no exerior não é um procedimento simples, porque exige um requerimento de assistência internacional específico, com base em tratado, em lei interna do Estado requerido ou em promessa de reciprocidade. Também pode se dar a situação de partilha de ativos ou asset sharing, procedimento pelo qual o Estado requerido reserva para si parte dos valores indisponibilizados para indenizar-se pela cooperação prestada.

Como quer que seja, o que reste dos procedimentos internos ou internacionais de recuperação de ativos, após a indenização das vítimas e terceiros de boa-fé e depois da partilha internacional, deverá ser destinado à União, tanto nas ações penais de competência federal, quanto nas de competência estadual. O anteprojeto da nova lei de lavagem de dinheiro prevê a destinação dos ativos recuperados ao tesouro estadual, quando a ação penal tiver curso perante a Justiça do Estado.

A OEA recomenda no art. 7º do Regulamento Modelo apresentado pela CICAD que os bens, produtos ou instrumentos de crimes declarados perdidos sejam destinados aos órgãos que tenham participado direta ou indiretamente do bloqueio ou do procedimento de perdimento.


6.Conclusões

O sistema brasileiro de prevenção e combate à lavagem de dinheiro está sendo montado e posto à prova. Até aqui a ENCLLA tem contribuído para aperfeiçoá-lo. As varas especializadas criminais da Justiça Federal, embora ainda não inteiramente estruturadas, representam uma excelente iniciativa para a racionalização do combate ao crime organizado e à lavagem de dinheiro.

Para que o sistema nacional anti-LD funcione a contento são necessários uma reforma legislativa que atinja as normas-chave, o aprofundamento de programas de capacitação de autoridades e servidores nos moldes do PNLD e a especialização de juízos e unidades da Ministério Público e da Polícia, na área federal e também nos Estados-membros.

O magistrado italiano Giovanne Falcone, que se tornou famoso por sua luta contra a máfia, disse em 1992 que "a coisa mais revolucionária que alguém pode fazer na Sicília é aplicar a lei e punir os culpados". Falcone foi assassinado tentando alcançar essa meta: fazer cumprir a lei. Esta deve ser também a nossa revolução no Brasil.


7. Referências bibliográficas

ARAS, Vladimir. Lavagem de dinheiro, evasão de divisas e cooperação internacional: o caso Banestado. In: ROCHA, João Carlos de Carvalho; HENRIQUES FILHO, Tarcísio Humberto Parreiras; CAZETTA, Ubiratan (coord.). Crimes contra o sistema financeiro nacional: 20 anos da Lei n. 7.492/86. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.

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BANCO CENTRAL DO BRASIL. Sistema financeiro nacional. Disponível em: www.bcb.gov.br. Acesso em: 14. mar. 2006.

BRASIL. Estratégia nacional de combate à lavagem de dinheiro. Brasília: Ministério da Justiça, 2004-6. Disponível em: http://www.mj.gov.br/drci. Acesso em: 14. mar. 2006.

BRASIL. Lei n. 9.613/98. Dispõe sobre a lei de lavagem de dinheiro. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/legisla.htm. Acesso em: 6. nov. 2006.

BRASIL. Decreto n. 5.015, de 12 de março de 2004. Promulga a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional

. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/legisla.htm. Acesso em: 6. nov. 2006.

BRASIL. Decreto n. 5.016, de 12 de março de 2004. Promulga o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, relativo ao Combate ao Tráfico de Migrantes por Via Terrestre, Marítima e Aérea.

. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/legisla.htm. Acesso em: 6. nov. 2006.

BRASIL. Decreto n. 5.017, de 12 de março de 2004. Promulga o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças.

. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/legisla.htm. Acesso em: 6. nov. 2006.

CONSELHO DE ACOMPANHAMENTO DE ATIVIDADES FINANCEIRAS. Relatório de Atividades de 2005. Disponível em: http://www.fazenda.gov.br/coaf. Acesso em: 6. nov. 2006.

CONSELHO DE ACOMPANHAMENTO DE ATIVIDADES FINANCEIRAS. Resoluções. Disponível em: http://www.fazenda.gov.br/coaf. Acesso em: 6. nov. 2006

DEPARTAMENTO DE COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL E DE RECUPERAÇÃO DE ATIVOS. Disponível em: http://www.mj.gov.br/drci. Acesso em: 6. nov. 2006.

FORTUNA, Eduardo. Mercado financeiro. Rio de Janeiro: Qualitymark, 2005.


Notas

  1. Para um conceito de organização criminosa, ou grupo criminoso organizado, vide o art. 2 da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (Convenção de Palermo), integrada ao direito brasileiro pelo Decreto n. 5.014, de 12 de março de 2004. É esse conceito que baliza a especialização das varas criminais federais encarregadas do julgamento de crimes praticados por organizações criminosas, a exemplo das varas especializadas federais de Curitiba/PR. Assim, grupo criminoso organizado é o "grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na presente Convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material".

  2. Embora consagrada em outros idiomas, é de se evitar a expressão "branqueamento" de capitais.

  3. O anteprojeto da nova lei de lavagem de dinheiro prevê a eliminação do rol hoje existente. Se aprovado, qualquer infração penal (e não apenas "crime") que produza alguma forma de vantagem econômica será considerada crime antecedente para efeito de lavagem de dinheiro.

  4. "Siga o dinheiro". A expressão indica a necessidade de seguir a trilha dos valores ilícitos para determinar a autoria do crime. Hoje, também representa a necessidade de buscar os bens e valores ilícitos para apreendê-los e confiscá-los.

  5. Vide www.egmontgourp.org

  6. O novo "C" da antiga sigla ENCLA foi introduzido na etapa de 2007, na reunião preparatória realizada em Pirenópolis, em novembro de 2006, para a inclusão expressa da corrupção nas metas da estratégia nacional.

  7. A Instrução Normativa SRF n. 188/2002 lista os países e territórios que o Brasil considera paraísos fiscais, onde a tributação é favorecida e há dificuldade de obtenção de dados bancários, comerciais e fiscais.

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Sobre o autor
Vladimir Aras

Professor Assistente de Processo Penal da UFBA. Mestre em Direito Público (UFPE). Professor da Escola Superior do Ministério Público da União (ESMPU). Procurador da República na Bahia (MPF). Membro Fundador do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAS, Vladimir. Sistema nacional de combate à lavagem de dinheiro e de recuperação de ativos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1411, 13 mai. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9862. Acesso em: 26 abr. 2024.

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