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O teletrabalho nas relações laborais sob a ótica da servidão voluntária

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O espírito subserviente do teletrabalhador a servidão voluntária.

A questão é: será que os teletrabalhadores se subordinam voluntariamente ao trabalho contemporâneo?

Étienne de La Boétie, filósofo humanista francês do século XVI, em sua obra Discurso da Servidão Voluntária vai tratar sobre a capacidade das pessoas em dispensarem a sua própria liberdade em troca de servir à alguém. É neste sentido que se insere o teletrabalho, tendo em vista que o trabalhador comumente dispensa o seu direito à desconexão para responder prontamente ao empregador.

Na obra, Étienne de La Boétie destaca que a vontade de servir era tão grande que o indivíduo não enxergava a sua própria liberdade. Bastaria que um indivíduo não servisse mais que influenciaria os outros servos e o poder centralizador seria extinto, pois não teria mais espaço em controlar a vida dos seus súditos. Era uma servidão voluntária pois os indivíduos seguiam o sistema de governo tirano sem se rebelar.

As três razões da servidão voluntária são: (a) o hábito, pois os indivíduos já nascem na sociedade opressora e isso acaba sendo natural, (b) a covardia, visto que os homens perdem as suas potências quando são submissos e (c) a participação na tirania, pois os indivíduos começam a ver a tirania tão proveitosa quanto à liberdade, porque vão obter ganhos e favores com o tirano, como o estabelecimento de novas funções, instituição de novos ofícios.

O teletrabalho pode ser entendido como uma servidão voluntária. O empregado dedica-se integralmente ao trabalho por imaginar que o teletrabalho é uma benesse concedida pela empresa. Os obreiros abrem mão das suas liberdades por acharem que a condição do teletrabalho é a melhor e terminam aceitando de bom grado a exploração e a privação da liberdade. O trabalhador está tão inserido nesse regime advindo com as transformações do mundo do trabalho, precarizadas, que não enxerga a violação dos seus direitos.

Admirados com a possibilidade de exercer suas atividades no conforto do seu próprio lar ou ao menos fora do ambiente físico da empresa, os teletrabalhadores parecem não ser capazes de perceber em um primeiro momento que na verdade estão sendo explorados, que seu direito ao descanso está sendo frequentemente violado, que está se tornando disponível para a empresa, para o chefe, para o trabalho, por muito mais tempo do que as oito horas que antes passava no escritório, e ainda que tivesse essa percepção, ela não parece ser suficientemente forte para induzi-lo a reagir contra essa modalidade de trabalho.[27]

Os trabalhadores desenvolvem uma certa autocobrança que os impedem de desconectar com o trabalho nos seus momentos de descanso, não separando a sua vida pessoal da profissional. Com as tecnologias, a sociedade contemporânea tem o costume de ficar constantemente conectada. O mundo capitalista não dá espaço para que os indivíduos fiquem preocupados com a sua saúde e integridade física, o que importa são os resultados.

O trabalhador, sob o regime do teletrabalho, justamente pelo uso das tecnologias e equipamentos eletrônicos, torna sempre disponível para o trabalho, com dedicação exclusiva e ilimitada. O teletrabalhador está em contato com a empresa em qualquer hora e lugar, limitando o seu direito à desconexão e à sua liberdade.

Portanto, influenciados pela sociedade contemporânea capitalista, os trabalhadores se submetem a uma servidão voluntária, ainda tratando essa modalidade do teletrabalho como se fosse uma benesse concedida pela empresa, com normas desregulamentadas que precarizam e flexibilizam o trabalho nesse regime.


Conclusão

Os centros norteadores do Direito do Trabalho estão em franco processo de descentralização ou virtualização em face das transformações das relações de trabalho e da evolução das tecnologias da informação. Desta forma, as formas de trabalho estão sendo redesenhadas, impondo novos ritmos às atividades humanas, redefinindo tempo e espaço. O teletrabalho, portanto, é consequência desta sociedade de informação que teve origem crescente desde a Revolução Industrial.

Com o objetivo de combater a precarização das formas e das condições do trabalho do capitalismo flexível, a Organização Internacional do Trabalho OIT, em 1999, conceituou o trabalho decente, relacionando quatro objetivos estratégicos: a promoção dos direitos fundamentais, o emprego produtivo e de qualidade, a proteção social e o fortalecimento do diálogo social tripartite.

No entanto, a realidade do mercado de trabalho na contemporaneidade avança para a flexibilização dos direitos dos trabalhadores, de modo que possibilita a precarização do trabalho. O presente estudo trouxe o teletrabalho para análise.

As novas disposições legislativas que regulamentam o teletrabalho não conferem segurança jurídica, nem para o empregado nem para o empregador. Tão somente confirmam uma tendência de flexibilização e de desregulamentação da legislação trabalhista, pelo uso de recursos tecnológicos avançados, exigência de mão de obra qualificada e superexploração do trabalho.

Portanto, é inegável que o modelo do teletrabalho pode ser entendido como uma servidão voluntária, pois os trabalhadores abrem mão das suas liberdades, tornando-se totalmente disponíveis para os empregadores.


Referências

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Notas

  1. .......

  2. LA BOÉTIE, Étienne de. Discurso da servidão voluntária. 2. ed. Tradução de Casemiro Linarth. São Paulo: Martins Claret, 2009.

  3. HARVEY, David. Condição pós-moderna. Tradução: Adail Ubirajara Sobra; Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Edições Loyola, 1989, p.141.

  4. LOPES, Josefa Batista. 50 anos do Movimento de Reconceituação do Serviço Social na América Latina: da crítica ao Serviço Social tradicional à construção de uma alternativa crítica. São Luís: Impresso, 2016, p.243.

  5. BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. 2. Ed. São Paulo: Editora 34,2011, p.315-316.

  6. DAL ROSSO, Sadi. O ardil da flexibilidade: os trabalhadores e a teoria do valor. São Paulo: Boitempo, 2017, p.9.

  7. LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de direito do trabalho. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 108.

  8. DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 10 ed. São Paulo: LTr, 2011, p. 192-193.

  9. BASTOS, Guilherme Augusto Caputo. Teletrabalho (telework ou telecommutting): uma nova forma de ver o tempo e o espaço nas relações de trabalho. Em evidência Revista Magister de Direito Empresarial. Porto Alegre, v. 10, n. 58, jan./fev. 2014, p. 26.

  10. BRAMANTE, Ivani Contini. Teletrabalho: nova forma de trabalho flexível. Aspectos contratuais. Tese de doutorado defendida perante banca examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, na data de 19.11.2003, sob orientação do Prof. Dr. Renato Rua de Almeida, p. 26.

  11. BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. 2. Ed. São Paulo: Editora 34,2011, p.207-209.

  12. COLUMBO, Francesca e MASSONI, Túlio de Oliveira. Tempo de trabalho e teletrabalho. In COLNAGO, Lorena de Mello Rezende, CHAVES JÚNIOR, José Eduardo de Resende e PINO ESTRADA, Manuel Martín (Orgs.). Teletrabalho. São Paulo: LTr, 2017, p. 26.

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  13. COLUMBO, Francesca e MASSONI, Túlio de Oliveira. Tempo de trabalho e teletrabalho. In COLNAGO, Lorena de Mello Rezende, CHAVES JÚNIOR, José Eduardo de Resende e PINO ESTRADA, Manuel Martín (Orgs.). Teletrabalho. São Paulo: LTr, 2017, p. 34.

  14. MASSI, Alfredo. Teletrabalho análise sob a óptica da saúde e da segurança do teletrabalhador. In COLNAGO, Lorena de Mello Rezende, CHAVES JÚNIOR, José Eduardo de Resende e PINO ESTRADA, Manuel Martín (Orgs.). Teletrabalho. São Paulo: LTr, 2017, p. 89.

  15. COLUMBO, Francesca e MASSONI, Túlio de Oliveira. Tempo de trabalho e teletrabalho. In COLNAGO, Lorena de Mello Rezende, CHAVES JÚNIOR, José Eduardo de Resende e PINO ESTRADA, Manuel Martín (Orgs.). Teletrabalho. São Paulo: LTr, 2017, p. 35.

  16. MASSI, Alfredo. Teletrabalho análise sob a óptica da saúde e da segurança do teletrabalhador. In COLNAGO, Lorena de Mello Rezende, CHAVES JÚNIOR, José Eduardo de Resende e PINO ESTRADA, Manuel Martín (Orgs.). Teletrabalho. São Paulo: LTr, 2017, p. 89.

  17. ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Trabalho decente, https://www.ilo.org/brasilia/temas/trabalho-decente/lang--pt/index.htm, acessado em 19 de novembro de 2021

  18. Com esta ideia, a própria OIT dá margem para a flexibilidade do trabalho, pois estabelece o emprego como gênero, abrangente qualquer forma de trabalho.

  19. OIT. Conferência Internacional do Trabalho, 108.ª Sessão. Relatório IV. Documento final do Centenário da OIT. 2019. Disponível em: [www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---europe/---ro-geneva/---ilo-lisbon/documents/publication/wcms_706928.pdf]. Acesso em: 20/11/2021.

  20. GOSDAL, Thereza Cristina. Dignidade do trabalhador: um conceito construído sob o paradigma do trabalho decente e da honra. São Paulo: LTr, 2007, p. 130.

  21. ROMAR, Carla Teresa Martins. Direito do Trabalho e dignidade da pessoa humana. In MIRANDA, Jorge e MARQUES DA SILVA, Marco Antônio (coordenadores). Tratado Luso-Brasileiro da Dignidade Humana. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 1288.

  22. COSTA, Natasha Mirella Melo; RAZABONI JUNIOR, Ricardo Bispo. Flexibilização das normas trabalhistas e seus aspectos positivos e negativos. In: Revista Aporia Jurídica (on-line). Revista Jurídica do Curso de Direito da Faculdade CESCAGE. 6ª Edição. Vol. 1 (jul/dez-2016). p. 381.

  23. ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 27.

  24. SANFELICI, Patrícia de Mello; FLEISCHMANN, Rogério Uzun. Teletrabalho: liberdade ou escravidão? In: COSTA, Ângelo Fabiano Farias da; MONTEIRO, Ana Claudia R.B.; BELTRAMELLI NETO, Silvio (Coord.). Reforma trabalhista - na visão de Procuradores do Trabalho. Salvador: Editora JusPodivm, 2018, p. 102..

  25. RESEDÁ, Salomão. O direito à desconexão: uma realidade no teletrabalho, p. 169-170.

  26. CASSAR, Vólia Bomfim. Direito do trabalho. 14 ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2017, p. 661.

  27. Barbosa, Marco Antonio; Souza, Magali Rodrigues de. Teletrabalho: dominação ou servidão voluntária? Uma análise sob a ótica da teoria de Michel Foucault e de Étienne de La Boétie. Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas, Pouso Alegre, v. 33, n. 2, p. 356, jun./dez. 2017.

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Sobre a autora
Maria Eduarda Moreira de Medeiros

Mestranda em Direito do Trabalho pela PUC/SP. Pós-Graduada em Direito Previdenciário pela Escola Paulista de Direito EPD/SP. Graduada em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco UNICAP. Membro da Comissão de Seguridade Social da OAB/PE. Membro da Associação dos Advogados Previdenciaristas de Pernambuco AAPREV. Advogada no Coelho e Dalle Advogados.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEDEIROS, Maria Eduarda Moreira. O teletrabalho nas relações laborais sob a ótica da servidão voluntária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6973, 4 ago. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/98624. Acesso em: 19 abr. 2024.

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