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O teletrabalho nas relações laborais sob a ótica da servidão voluntária

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Examina-se o fenômeno em que o empregado dedica-se integralmente ao trabalho por imaginar que o teletrabalho é uma benesse concedida pela empresa.

Introdução

O trabalho e as suas relações sofreram inúmeras transformações ao longo da história, tanto econômica quanto social, causando modificações no direito do trabalho, em especial. O surgimento das novas tecnologias, que circulam as informações quase que instantaneamente entre as pessoas de diferentes lugares, deu causa ao novo modelo de contrato: o teletrabalho.

A sociedade da Revolução Industrial foi marcada pela especialização do trabalho, de modo que o trabalhador era submetido a condições exaustivas e degradantes de trabalho, podendo passar horas e horas em uma única atividade, repetidamente. Aos poucos, o trabalhador deixou de ser visto como uma máquina e começou a ser visto como um ser dotado de múltiplas habilidades.

A realidade do mercado de trabalho na contemporaneidade avança para a flexibilização dos direitos dos trabalhadores, de modo que possibilita a precarização do trabalho. No ordenamento jurídico brasileiro, devemos investigar a modalidade do teletrabalho, sob a regulamentação dada pela Reforma Trabalhista, se foi consequência da precarização do trabalho e da própria realidade estrutural do capitalismo flexível.

O teletrabalho aparece nesta sociedade da informação como uma forma de reduzir custos do empregador e melhorar qualidade de vida do empregado. No entanto, o fato de poder trabalhar em qualquer hora e espaço, o teletrabalhador abre mão da sua liberdade? O direito à desconexão é garantido nesta modalidade de trabalho? Essa modalidade de contrato está de acordo com o conceito de trabalho decente da OIT? Os teletrabalhadores se subordinam voluntariamente como bem representado por Étienne de La Boétie em seu Discurso da Servidão Voluntária [2] ?

Desta forma, em um primeiro momento será abordada as transformações do trabalho e o surgimento do teletrabalho. Em um segundo momento busca-se analisar a dicotomia entre o conceito de trabalho decente da OIT à luz dos direitos fundamentais e a precarização do trabalho. Sendo por fim, o estudo relacionado à obra Discurso da Servidão Voluntária de Étienne de La Boétie, que trata da capacidade dos indivíduos de abrirem mão da sua própria liberdade para servir a alguém como se se tratasse de sua própria vontade. Verifica-se um coletivo que prefere a sujeição e que depender de uma ordem superior torna-se natural.

O método de abordagem utilizado é o do estudo crítico da legislação aplicada ao teletrabalho modificada na Lei nº 3.467/2019, além da revisão da bibliografia dedicada ao tema. Ademais, são também consideradas as contribuições em ciências sociais e humanas relativas à sociedade da informação na qual se materializa o teletrabalho. Como referencial teórico, utiliza-se o Discurso da Servidão Voluntária de Étienne de La Boétie.


As modificações das relações laborais e o surgimento do teletrabalho.

É certo que o trabalho e as relações dele advindas sofreram inúmeras transformações ao longo da história, o que se faz necessário, de proêmio, construir uma linha histórica e sucessiva de raciocínio de sua metamorfose diante dos modelos de produção e suas interconexões com as reformas estruturais oriundas do capitalismo mercantilista, a fim de estudar os efeitos da precarização e da flexibilização do trabalho.

A Revolução Industrial pode ser citada como um movimento que deu origem a fortes mudanças nas relações de trabalho, pois foi um período de grande desigualdade social, onde os trabalhadores lutavam por melhores condições de trabalho, uma vez que era submetidos a condições degradantes de labor e estavam totalmente submetidos ao poder dos empregadores, os donos dos meios de produção, que detinham o poder econômico e diretivo.

Em meados da segunda metade do século XX, os meios de produção sofreram significativas mudanças, com a chegada da modernização, da eletrônica e da informática em uma Terceira Revolução Industrial. O Toyotismo, sinônimo de reestruturação produtiva, tinha como processo o just-in-time, que é produzir no tempo certo e na quantidade exata, e como características marcantes as senhas de comando para fabricar uma peça igual kanbam, as organizações de trabalho em equipe, as relações entre as empresas gerando o que é conhecido como terceirização das atividades, a extinção dos grandes estoques e a redução dos custos da produção.

Esse sistema foi imposto pelo regime da acumulação flexível, pois O novo processo permitia a busca do lucro a partir da flexibilização do trabalhador e do espaço produtivo, apresentando como resultados o crescimento do desemprego estrutural, a reciclagem das habilidades manuais, a estagnação ou a diminuição dos aumentos salariais e o retrocesso do poder sindical[3].

Desta forma, a reestruturação produtiva deu causa a um novo padrão estrutural do trabalho, tendo como marco central a precarização do trabalho, com a existência de contratos atípicos e flexíveis que eliminam direitos, garantias e proteções aos trabalhadores. Nesse contexto, a flexibilização da organização da produção e do trabalho, filiada à complexa dinâmica do capital portador de juros, operou uma profunda transformação econômica e ideológica, portanto, na estrutura e na superestrutura da sociedade. Assim, ao promover a reestruturação da organização da produção e do trabalho, alimentou também a reação conservadora no modo de pensar e de agir, forjou a cultura e a ideologia da chamada pós-modernidade; metamorfoseou as relações de exploração, dominação e humilhação com a crescente terceirização da produção, a precarização do trabalho e a fragmentação da classe trabalhadora[4].

Sob o enfoque do fenômeno da flexibilização das condições de trabalho e da despadronização de suas estruturas, Ulrich Beck, em sua obra Sociedade de Risco: rumo a uma outra modernidade, pontua que:

O que até há pouco ainda parecia certo e predeterminado passa a ser fluido: padronizações temporais, espaciais e jurídicas do trabalho assalariado [...] a malha dos setores de produção pode ser reconfigurada eletronicamente; sistemas tecnológicos de produção podem ser alterados à revelia das estruturas humanas de trabalho; as concepções de rentabilidade tornam-se fluidas em face das exigências de flexibilidade ditadas pelo mercado, da moral ecológica e da politização das condições de produção [...].[5]

A formulação da teoria da sociedade de risco foi construída através da normalização dos riscos perante os direitos fundamentais relacionados ao trabalho, no sistema de produção capitalista. Neste tipo de sociedade, o trabalho está ligado à flexibilidade das estruturas do sistema de produção e de si próprio, com a atomização dos afazeres profissionais e a instituição de jornadas móveis, mutantes e flexíveis[6].

No ordenamento jurídico brasileiro, tem-se como consequência da precarização do trabalho e da própria realidade estrutural do capitalismo flexível, a modalidade do novo contrato de trabalho: o teletrabalho, que se utiliza das tecnologias de informação para o trabalho à distância, dispensando a presença do empregado no ambiente laboral.

É cediço que, na relação empregatícia, de um modo geral, o empregado é a parte hipossuficiente da relação, o sujeito mais frágil, enquanto que o empregador detém do poder econômico e diretivo, gozando de uma posição mais privilegiada no contrato de trabalho pactuado. Neste sentido, surgiu o princípio da proteção ao trabalhador, sob o fito de buscar a igualdade de condições entre empregado e empregador, garantindo um mínimo existencial ao obreiro na relação de emprego.

O princípio da proteção é inspirador no Direito do Trabalho, pois tenta reduzir a posição de vulnerabilidade do trabalhador e busca a igualdade das partes. Nas palavras de Carlos Henrique Bezerra Leite:

O princípio da proteção processual, portanto, deriva da própria razão de ser do processo do trabalho, o qual foi concebido para efetivar os direitos materiais reconhecidos pelo Direito do Trabalho, sendo esse ramo da árvore jurídica criado exatamente para compensar ou reduzir a desigualdade real existente entre empregado e empregador, naturais litigantes do processo laboral.[7]

O princípio da proteção surgiu com o escopo de conferir ao trabalhador, considerado o polo mais fraco da relação laboral, isto é, parte hipossuficiente, uma superioridade jurídica, lhe garantindo direitos mínimos a fim de equilibrar a relação entre empregado e empregador, uma vez que em comparação a este, o obreiro está em desvantagem de poder socioeconômico.[8]

Desta forma, o princípio da proteção ao trabalhador é o norteador dos direitos trabalhistas e limitador na questão da flexibilização das normas, visando proteger os direitos fundamentais dos trabalhadores.

No entanto, a própria Lei nº 13.467/2017 alterou diversos artigos da Consolidação das Leis do Trabalho, trazendo uma nova configuração para as relações de trabalho que permitem a flexibilização da proteção dos direitos trabalhistas e da natureza de indisponibilidade desses direitos.

Embora já houvesse previsão legal, a Lei nº 13.647/2017 da Reforma Trabalhista que disciplinou a modalidade do teletrabalho ao inserir capítulo II-A do Título da CLT, em seus arts. 75-A até 75-E, além dos novos incisos III do art. 62 e §§ 1º e 3º do art. 134 na CLT.

O conceito o teletrabalho está disposto no artigo 75-B da CLT como sendo a prestação de serviços preponderantemente fora das dependências do empregador, com a utilização de tecnologias de informação e de comunicação que, por sua natureza, não se constituam como trabalho externo..

Os outros artigos tratam da forma de pactuação do contrato de teletrabalho (art. 75-C), das disposições relativas à responsabilidade pelos equipamentos e infraestrutura para a prestação do teletrabalho (art. 75-D) e das medidas para a prevenção de doenças e acidentes de trabalho (art. 75-E). Os artigos não são exaustivos, de forma que a negociação coletiva têm espaço.

O artigo 611-A é a expressão da definição de que o negociado prevalece sobre o legislado e, dentre os incisos, está o teletrabalho que pode ser modificado via negociação coletiva, até mesmo em sobreposição à lei. A própria Lei nº 13.467/2017 apresenta medidas flexíveis quanto à regulamentação do teletrabalho, apontando disposições que prezem pela ampla liberdade de pactuação entre empregador e empregado.

A Organização Internacional do Trabalho OIT (2021) define o teletrabalho:

Considera-se teletrabalho a prestação laboral realizada com subordinação jurídica, habitualmente fora da empresa e através do recurso a tecnologias de informação e de comunicação.

O conceito dado pela OIT sobre o teletrabalho confunde com o home office, onde esta última modalidade tem a forte presença do poder de controle do empregador. Vale frisar que o trabalhador que estiver trabalhando na modalidade home office deve anotar a jornada de trabalho, como se estivesse trabalhando nas dependências da empresa, estando sujeito, portanto, a um efetivo controle de jornada por parte do empregador.

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Por outro lado, no teletrabalho, o empregado tem mais autonomia para exercer as suas atividades porque há um objetivo no aumento da produtividade para se obter um resultado satisfatório. E é essa realidade que é vivenciada por todos, que estão conectados aos celulares, redes sociais, e-mails em tempo praticamente integral e em qualquer espaço. É daí que a noção de tempo e espaço está flexibilizada.

Nos dizeres do ministro Guilherme Augusto Caputo Bastos:

Nesse contexto, o teletrabalho surge como a forma de produzir que mais atende às exigências da globalização, permitindo a flexibilidade do tempo e do espaço, em uma perspectiva diferente de ambiente e de métodos de trabalho, que atrai cada vez mais a atenção de empresários e trabalhadores.[9]

Não importa se o empregado exerce suas atividades em casa, na empresa, em uma cafeteria ou na praça de alimentação. Diante do avanço da tecnologia, o espaço físico tornou-se, para muitas atividades, irrelevante.

Nas lições de Ivani Contini Bramante, o teletrabalho é forma de trabalho atípico da sociedade contemporânea pós-industrial, surgida no contexto de obsolescência, e inadequação do sistema organizacional fabril clássico, em face das mutações da Revolução da Informação da era digital[10]

Pode-se concluir, portanto, que os centros norteadores do Direito do Trabalho estão em franco processo de descentralização ou virtualização em face das transformações das relações de trabalho e da evolução das tecnologias da informação. Essa flexibilização do tempo e do espaço pode gerar (e gera) grandes riscos para o trabalhador, como afirmava Beck:

O fato de que a norma do trabalho vitalício de jornada integral foi suplantada por formas plurais de flexibilização da jornada de trabalho é uma constatação que já invadiu mesmo os últimos recônditos (amuados) da sociedade.

[...] O vínculo cooperativo empresarial, ao menos em certos setores (administração, escritório, gerência, prestação de serviços), já pode ser gerado por meios eletrônicos e portanto organizado de forma descentralizada, espacialmente difusa e espacialmente independente.

[...] os ganhos de soberania obtidos pelos trabalhadores sobre seu trabalho com a flexibilização espacial do trabalho assalariado podem ser combinados com uma privatização dos riscos que o trabalho oferece à saúde física e psicológica. Normas de segurança no trabalho escapam ao controle público nas formas de trabalho descentralizado e os custos por desconsiderá-las ou suspendê-las são transferidos aos próprios trabalhadores (assim como as empresas acabam economizando os custos da organização central do trabalho assalariado, desde a manutenção das instalações até a proteção dos equipamentos eletrônicos).[11]

É incontroverso que essa flexibilização no tempo e no espaço não poder dar espaço à falta de responsabilidade do empregador perante à saúde e à segurança dos trabalhadores neste regime do teletrabalho. Isso implica dizer que o obreiro não pode ficar disponível 24 (vinte e quatro horas) por dia, devendo existir limites de acordo com as legislações atinentes. Para Columbo e Massoni:

As fronteiras entre o tempo de trabalho e o tempo livre, atualmente, em especial no teletrabalho, estão cada vez mais incertas e fluidas, o que exige novos esforços interpretativos e propostas para uma legislação adequada, até o momento inexistente.[12]

As questões relativas ao meio ambiente de trabalho foram objeto de análise do legislador com base no artigo75-E da CLT, em que se determina ao empregador a obrigação de instruir os empregados, de maneira expressa e ostensiva, quanto às precauções a tomar a fim de evitar doenças e acidentes de trabalho, cabendo ao empregado assinar termo de responsabilidade comprometendo-se a seguir as instruções fornecidas pelo empregador.

No entanto, como a disposição acima não esgota o tema do meio ambiente laboral, talvez essa seja uma das maiores preocupações dos empregadores, pois é incontroversa a dificuldade acerca da fiscalização do modo de execução das atividades pelos teletrabalhadores, inclusive quanto à ergonometria.

Sob o enfoque do empregador, podem ser citadas algumas vantagens do teletrabalho como por exemplo: a) economia de espaço nos locais de trabalho; b) economia de energia; c) economia quanto a intervalos de jornada; d) aumento na produtividade; e) surgimento de novos produtos; f) internacionalização e descentralização da produção.[13] Já segundo Alfredo Massi: [...] As desvantagens, por sua vez, estão atreladas à maior dificuldade de fiscalização dos trabalhos, aumentando-se o risco de quebras de sigilo, com transmissão de informações internas e confidenciais da empresa a concorrentes[14].

Do ponto de vista do empregado, as vantagens são: a) maior disponibilidade para a convivência familiar; b) racionalização das atividades profissionais; c) redução de gastos com transporte e alimentação; d) redução da perda de tempo com deslocamentos no trânsito e e) facilitação de trabalho para pessoas com deficiência e para idosos[15]. E as desvantagens: 1) isolamento do trabalhador em relação aos demais colegas de trabalho; 2) dificuldade de inserção e de promoção na carreira; 3) menor nível de proteção social, em razão da menor tutela sindical e administrativa; 4) aumento de conflitos familiares, pela dificuldade em se distinguir a fronteira entre o trabalho e o convívio com a família; 5) afronta à intimidade do trabalhador e à de sua família; 6) aumento do risco de problemas relacionados à saúde e à segurança do trabalho, em razão da menor esfera de vigilância do empregador sobre o empregado[16].

Ainda, importante ressaltar que, sob o viés econômico, o teletrabalho é intimamente ligado à produtividade e à redução de gastos, tendo a tecnologia papel importante.

Desta forma, as formas de trabalho estão sendo redesenhadas, impondo novos ritmos às atividades humanas, redefinindo tempo e espaço. O teletrabalho, portanto, é consequência desta sociedade de informação que teve origem crescente desde a Revolução Industrial.


A dicotomia entre o conceito de trabalho decente da OIT à luz dos direitos fundamentais e a precarização do trabalho.

Com o objetivo de combater a precarização das formas e das condições do trabalho do capitalismo flexível, a Organização Internacional do Trabalho OIT, em 1999, conceituou o trabalho decente como sendo um trabalho produtivo e de qualidade, em condições de liberdade, equidade, segurança e dignidade humanas, sendo considerado condição fundamental para a superação da pobreza, a redução das desigualdades sociais, a garantia da governabilidade democrática e o desenvolvimento sustentável. [17] .

Os quatro objetivos estratégicos que dão estrutura ao trabalho decente são: a promoção dos direitos fundamentais, o emprego produtivo e de qualidade, a proteção social e o fortalecimento do diálogo social tripartite.

A promoção e a garantia dos direitos fundamentais devem ser efetivadas para a vivência digna no trabalho e do trabalho. Emprego tem o seu sentido amplo, não se restringindo apenas ao trabalho assalariado e subordinado[18]. A proteção social está intimamente ligada ao Estado do Bem-Estar Social e a intervenção estatal nas relações de trabalho, devendo ser promovido a todos o acesso com igualdade ao trabalho e as condições adequadas para desenvolver o trabalho. O diálogo social se configura pelo intercâmbio de informações entre Estado, empresas e trabalhadores, promovendo a construção de um consenso e da democracia.

No Centenário da Organização Internacional do Trabalho (OIT), constou no IV Relatório da Declaração[19] a necessidade de reforçar as instituições do trabalho para garantir proteção adequada aos trabalhadores num contexto caracterizado por formas de trabalho novas e emergentes e que independentemente da sua situação profissional ou vínculo contratual todos os trabalhadores devem ter asseguradas garantias.

Entre as garantias estão os seguintes direitos fundamentais: limite à duração máxima do trabalho; segurança e saúde no trabalho; proteção à privacidade e dados pessoais e oportunidades para conciliar vida pessoal e profissional por meio de controle sobre o seu tempo de trabalho, em condições que respeitem as necessidades da empresa e promovam uma eficiência produtiva e benefícios comuns.

Em sua obra Dignidade do trabalhador: um conceito construído sob o paradigma do trabalho decente e da honra, Thereza Cristina Gosdal apresenta uma visão sobre o trabalho decente em convergência com o conceito formulado pela OIT:

O trabalho decente está voltado à promoção do progresso social, à redução da pobreza e a um desenvolvimento equitativo e integrador, em face da crescente situação de interdependência dos diferentes países na atualidade. Não se coaduno com todas as reformas trabalhistas que vêm sendo propostas por segmentos empresariais, voltadas à total flexibilização de direitos. Não é compatível com a violação dos direitos fundamentais reconhecidos pelo ordenamento jurídico [...].[20]

A República Federativa do Brasil, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem o valor social do trabalho como fundamento, na forma da Constituição Federal de 1988, que enumera o trabalho como uma espécie de direito social, elenca os direitos sociais visando uma progressão da condição social dos trabalhadores urbanos e rurais, baseia a ordem econômica na valorização do trabalho humano digno e a ordem social no trabalho. É possível observar esses fundamentos nos dispositivos da Constituição Cidadã, o que pressupõe uma garantia dos direitos fundamentais, voltada ao primado da pessoa humana, principalmente no que tange ao trabalho digno em consonância com o trabalho decente.

Carla Teresa Martins Romar nos ensina que:

todo homem tem direito a um trabalho, mas não qualquer tipo de trabalho. Direito a um trabalho decente. Trata-se de tema essencial quando se trata da questão relativa ao respeito à dignidade humana do trabalhador. Trabalho decente é aquele que resume as aspirações das pessoas durante sua vida de trabalho e, exatamente por isso, pode ser considerado como trabalho digno.[21]

No entanto, embora a Constituição Federal reconheça a proteção ao trabalho como direito fundamental, além de existir princípios do Direito do Trabalho, normas e organizações internacionais instituindo o trabalho decente como primordial, a realidade do mercado de trabalho na contemporaneidade avança para a flexibilização dos direitos dos trabalhadores, de modo que possibilita a precarização do trabalho.

É certo que os direitos trabalhistas foram conquistados com muita luta, havendo necessidade da proteção dos trabalhadores, e o instrumento de flexibilização das normas deve ser utilizado quando os interesses do empregado e empregador forem concretos, como por exemplo a diminuição de certos direitos do trabalhador em favor da sua manutenção no emprego, não podendo somente o lado hipossuficiente abrir mão de seus direitos sem qualquer fundamentação. Há entendimento de que a flexibilização das normas trabalhistas sejam um retrocesso histórico, uma vez que diminuiria direitos fundamentais conquistados pelos trabalhadores.[22]

Como pode-se observar, no teletrabalho a jornada de trabalho rígido dá espaço à jornada flexível, precarizando o trabalho.

As novas disposições legislativas que regulamentam o teletrabalho não conferem segurança jurídica, nem para o empregado nem para o empregador. Tão somente confirmam uma tendência de flexibilização e de desregulamentação da legislação trabalhista, pelo uso de recursos tecnológicos avançados, exigência de mão de obra qualificada e superexploração do trabalho.

A própria Lei nº 13.467/2017 representou para o teletrabalho a concretização de várias características das relações laborais contemporâneas, como por exemplo a intensificação da jornada de trabalho, a relativização da subordinação jurídica e a flexibilização e desregulamentação das normas trabalhistas.

Essa intensificação da jornada de trabalho é traduzida pelo artigo 62, inciso III, da CLT, que excluiu os teletrabalhadores do controle de jornada, se mostrando uma modalidade bastante flexível.

Segundo Antunes:

[...] se utiliza de outros espaços fora da empresa, como o ambiente doméstico, para realizar suas atividades laborativas. Isso pode trazer vantagens, como a economia de tempo em deslocamentos, permitindo uma melhor divisão entre o trabalho produtivo e reprodutivo, dentre outros pontos positivos. Mas com frequência é, também, uma porta de entrada para a eliminação dos direitos do trabalho e da seguridade social paga pelas empresas, além de permitir a intensificação da dupla jornada de trabalho, tanto o produtivo, quando o reprodutivo (sobretudo no caso das mulheres). Outra consequência negativa é a de incentivar o trabalho isolado, sem sociabilidade, desprovido do convívio social e coletivo e sem representação sindical[23]

Na verdade, o teletrabalhador tem uma falsa autonomia, pois embora pense que tem a maior sensação de liberdade, ele fica à disposição do empregador. O teletrabalho pode significar para o trabalhador uma fuga do ambiente laboral, sob a falsa busca de uma maior qualidade de vida, mas na verdade não é raro que esses trabalhadores se sujeitem a jornadas de trabalho exorbitantes, que resulta em uma provação da liberdade.

É justamente por essa ideia de liberdade e disponibilidade integral do trabalhador, que não se pode deixar de observar as garantias dos direitos fundamentais assegurados constitucionalmente aos trabalhadores.

Sanfelici e Fleischmann alertam que apesar das características sedutoras, tais como a ausência física do empregado nas dependências da empresa, a autorregulação de horário e a redução do tempo de deslocamento, o teletrabalho esconde um terrível fantasma que a é jornada exaustiva.[24].

Acontece que, a limitação de jornada tem como base a proteção da saúde do trabalhador. O direito ao descanso deve estar presente no teletrabalho, mais comumente chamado de direito à desconexão, que é quando o empregado deve se desvincular de qualquer meio de comunicação relacionado ao labor, ainda que de forma virtual. Salomão Resedá afirma que a disponibilidade do empregado e o poder diretivo do empregador resultam na ausência de desconexão do empregado:

Ao ter a disponibilidade de exercer a sua atividade em qualquer lugar, desde que conectado por computador, o empregado estará vinculado à empresa de forma virtual, sendo possível, portanto, uma disponibilidade maior ao empregador, visto que sempre que estiver utilizando-se da informática poderá estar lincado com a empresa. Em outras palavras, o superior hierárquico também sairá dos limites físicos da empresa adentrando em outros âmbitos da vida do seu subordinado[25]

Além disso, a relativização da subordinação jurídica está presente na medida em que prevalece a autonomia da vontade, dando às partes oportunidade de negociar direitos e condições de trabalho. É chamado parassubordinação, nomenclatura dada pelo Direito italiano aos trabalhadores nas relações de coordenação que, embora executem trabalho pessoal, mediante paga, têm uma subordinação tênue, mais frágil [26]

Neste ponto, vale ressaltar que o artigo 75-D da CLT possibilita a transferência para o empregado da responsabilidade pela aquisição, manutenção ou fornecimento dos equipamentos tecnológicos e da infraestrutura necessária e adequada à prestação do trabalho remoto, a partir do contrato escrito.

No entanto, verifica-se que o legislador parte do pressuposto que a relação laboral é pautada na igualdade, e não é. Na relação empregatícia, de um modo geral, o empregado é a parte hipossuficiente da relação, o sujeito mais frágil, enquanto que o empregador detém do poder econômico e diretivo, gozando de uma posição mais privilegiada no contrato de trabalho pactuado. Neste sentido, surgiu o princípio da proteção ao trabalhador, sob o fito de buscar a igualdade de condições entre empregado e empregador, garantindo um mínimo existencial ao obreiro na relação de emprego.

Portanto, o que se verifica das normas que regulamentam o teletrabalho é uma ampla liberdade para as partes negociarem sobre as condições contratuais, uma exclusão do teletrabalhador do controle de jornada, além da responsabilidade atribuída ao empregado por acidentes de trabalho e/ou doenças ocupacionais ocorridas no desempenho das funções.

Ademais, tem-se que a Reforma Trabalhista introduzida pela Lei nº 13.467/2017 ampliou a flexibilização das normas trabalhistas, diante da autonomia da vontade. O negociado sobre o legislado foi a expressão máxima dessa autonomia, visto que autoriza a renúncia de direito e torna disponíveis direitos que deveriam ser indisponíveis absolutamente. O artigo 611-A da CLT estabeleceu hipóteses flexíveis de direitos, dando ênfase ao princípio da intervenção mínima do Estado sobre a autonomia da vontade, como ocorreu no teletrabalho.

Assim, a flexibilização das normas trabalhistas é consequência das transformações do mercado de trabalho. No entanto, essa flexibilização não cumpre o compromisso do Brasil frente à OIT, pois vai de encontro ao conceito de trabalho decente.

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Sobre a autora
Maria Eduarda Moreira de Medeiros

Mestranda em Direito do Trabalho pela PUC/SP. Pós-Graduada em Direito Previdenciário pela Escola Paulista de Direito EPD/SP. Graduada em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco UNICAP. Membro da Comissão de Seguridade Social da OAB/PE. Membro da Associação dos Advogados Previdenciaristas de Pernambuco AAPREV. Advogada no Coelho e Dalle Advogados.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEDEIROS, Maria Eduarda Moreira. O teletrabalho nas relações laborais sob a ótica da servidão voluntária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6973, 4 ago. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/98624. Acesso em: 2 nov. 2024.

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