Resumo: Os crimes de homicídio relacionados a briga entre facções criminosas sofre um plus probatório exponencial, visto que se comumente no homicídio a prova testemunhal ancora com firmeza várias condenações, nos chamados no meio jurídico policial traficídios, a mesma regra não se aplica, sendo urgente uma produção probatória cada vez mais amparada em recursos tecnológicos para o Estado cumprir o seu dever constitucional de responsabilizar criminosos.
Palavras-chave: facções, organizações criminosas, tráfico de drogas, homicídio, traficídio, prova testemunhal, tecnologia, coleta e extração de dados, metadados, persecução penal, investigação policial.
1. INTRODUÇÃO
1.1. DO CRIME DE HOMICÍDIO
Sabemos que os crimes dolosos contra a vida tem na Constituição Federal a previsão do órgão jurisdicional competente para o julgamento. Conforme previsão do art. 5°, XXXVIII, da CF/88 que diz:
XXXVIII - é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados:
a) a plenitude de defesa;
b) o sigilo das votações;
c) a soberania dos veredictos;
d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.
Destarte, o julgamento dos crimes praticados com animus necandi, tentados ou consumados, sofrem uma previsão constitucional especial quanto à competência jurisdicional, ou seja, não serão julgados como os delitos tidos como comuns, que são submetidos a um magistrado togado, mas a um órgão jurisdicional especial, formado por cidadãos comuns, desligados do mundo jurídico, escolhidos dentro do núcleo social onde aconteceu o fato julgado. Esses cidadãos se reúnem temporária e periodicamente para análise de um fato criminoso deste naipe e, ao final, deverão proferir um veredicto, é o chamado Conselho de Sentença, constituído por sete pessoas.
Diz o ilustre saudoso Professor Nelson Hungria, acerca do homicídio:
O homicídio é o tipo central de crimes contra a vida e é o ponto culminante na orografia dos crimes. É o crime por excelência. É o padrão da delinquência violenta ou sanguinária, que representa como que uma reversão atávica às eras primevas, em que a luta pela vida, presumivelmente, se operava com o uso normal dos meios brutais e animalescos. É a mais chocante violação do senso moral médio da humanidade civilizada.
1.2. DOS JULGADORES
Vale ressaltar que o legislador constituinte fez questão de destacar a importância do Tribunal do Júri, pois diferentemente dos demais órgãos julgadores, os juízes do Tribunal do Júri ficam despidos do dever imposto aos outros magistrados (togados) de motivar as suas decisões, visto que o voto é sigiloso, não havendo comando legal no sentido de fundamentar a decisão que absolveu ou condenou o réu, é um caso excepcional que foge da regra geral do dever de fundamentação das decisões judiciais (art. 93, IX, CF). Na mesma esteira de privilégios, o legislador de 1988 dotou a instituição do júri popular da garantia da soberania dos seus veredictos. Isto quer dizer que, diferentemente do julgamento comum ordinário, onde o juízo ad quem pode rever o mérito da decisão de piso, podendo mudar totalmente a decisão guerreada, nos crimes afetos ao Tribunal do Júri, no máximo, a corte de apelação poderá anular e remeter o caso a um novo julgamento, sem adentrar na justiça do caso. Destas linhas, já podemos reparar a importância de se entender as nuances do Tribunal do Júri e as consequências sociais desse julgamento.
A instituição do Tribunal do Júri em nosso país já é bicentenária, tendo sofrido várias alterações quanto a sua competência jurisdicional, ao que já foi este órgão em eras longeva responsável pelos crimes da lei de imprensa, perpassando por outros delitos, tendo hodiernamente a competência para julgar os crimes dolosos contra a vida.
O fato é que há um peso maior nesses julgamentos, pois além de tratar do principal bem humano, qual seja, a Vida, fonte primeva de todos os demais bens jurídicos humanos; o julgamento é realizado por cidadãos comuns que não tem a atividade jurisdicional como seu cotidiano, aliada ainda a desobrigação de fundamentar as suas decisões. Estes ingredientes sem dúvidas dão um tempero diferenciado ao manjar da complexidade do Júri Popular.
2. DOS HOMICÍDIOS RELACIONADOS AO TRÁFICO DE DROGAS
2.1. TRAFICÍDIOS
O presente artigo tem como objetivo a análise dos julgamentos dos crimes dolosos contra a vida diretamente relacionados ao pano de fundo das facções criminosas ligadas, comumente, ao tráfico de entorpecentes. São os popularmente denominados no meio policial-jurídico de traficídios. Homicídios que tem como fundamento motivacional desavenças, brigas, desentendimentos, vinganças, querelas, litígios, disputas, acerto de contas, relacionados ao tráfico de ilícito de drogas e entorpecentes.
Se, em um passado não tão distante, os homicídios tinham como fator originário brigas passionais, ciúmes, disputas de terras, honra ferida, homem ou mulher traído, desentendimento no trânsito, discussões banais em uma mesa de bilhar ou mesmo no balcão de um bar (quase regra este último), dentre outros motivos, grande parte dos homicídios na atualidade tem a ver com a guerra entre facções criminosas que disputam o espaço na geografia do crime.
Tal fenômeno criminoso trouxe uma preocupação acentuada as autoridades estatais, acostumadas a forma antiga, tradicional, clássica de investigação dos delitos de sangue, que passam agora a lidar com sangue misturado a entorpecentes. É que diferentemente do passado, quando a prova testemunhal nesses delitos era decisiva no julgamento, sobretudo a testemunha ocular que discorria detalhadamente sobre as nuances e peculiaridades do crime, nesta derivação, digamos assim, de crimes, a investigação para este delito, se nunca foi tão simples, ficou muito mais complexa.
Lembremos também que na temática que estamos abordando, vale dizer que afastamos de logo o instituto processual da conexão probatória, cujo atrai a competência de crimes outros para um órgão julgador responsável por um determinado crime, isto porque não se trataria de uma infração penal praticada para facilitar ou ocultar outra, ou mesmo para se conseguir a impunidade ou vantagem em relação a outra infração (com essa finalidade direta e específica) (art. 76, I, CPP), ou mesmo porque a prova de uma infração poderia influir na prova de outra infração (art. 76, II, CPP).
No vertente caso, a que nos propomos estudar e refletir tratam-se das execuções determinadas por grupos rivais com a clara intenção de afastar a concorrência mercadológica do crime, ou mesmo exterminar desafetos e delatores, sem qualquer preocupação, via de regra, com o escamoteamento ou ocultação de outros crimes, ou mesmo com a finalidade de destruição de provas, tais finalidades podem ao fim serem até atendidas, mas de regra nunca são o mote desses crimes. A tônica nesses casos é uma guerra declarada, onde inclusive avisos de morte são feitos através de vídeos e áudios e repassados por aplicativos de mensagem, sem muita timidez dos criminosos, fato este que reforça a ideia da prática delitiva fora do contexto de conexão do art. 76. do Código de Processo Penal.
2.2. DA EXIGÊNCIA PROBATÓRIA EXPONENCIAL
Desta forma, fixada a competência dos homicídios conforme a previsão constitucional do art. 5°, XXXVIII, as facções estão sendo levadas a julgamento, no fim das contas, pelo plenário do Tribunal do Júri. Aqui, conforme pensamos, é onde reside o perigo. Decerto que o cidadão comum teme por sua vida, por sua integridade física e almeja a paz, assim, com tais peculiaridades, como por exemplo, a periculosidade dos criminosos, a gravidade dos fatos, a presença de organização criminosa em plena atuação neste ou naquele município, a capacidade de intimidação e violência que estes grupos têm, os tentáculos em vários segmentos sociais etc, são fatores fortes para o jurado, mesmo que inconscientemente, ser levado a um veredicto absolutório, isto porque a falácia defensiva da prova cabal, diga-se de passagem, inexistente no processo penal, é utilizada sorrateiramente ou explicitamente até, para plantar a dúvida na consciência dos julgadores, no sentido de colher um decreto absolutório, sob o jargão defensivo popular do na dúvida, absolve.
Veja-se, inclusive que, de forma aparentemente suplicatória, aparente por que na verdade tem por baixo mais um conteúdo intimidatório, costuma-se dizer:
Senhores jurados, os senhores vão condenar esse homem, sem provas, quando há dúvida? Vão mandar esse homem para o cárcere, de onde sairá um dia mais revoltado? Pior que absolver um culpado é condenar um inocente a culpa é do Estado que não cumpriu o seu papel de provar os fatos...
Aliás, como reza a cartilha do advogado criminalista do Tribunal do Júri, a tarefa para se safar de uma condenação obedece a um esquema programado, sendo ele, primeiro desacreditar as testemunhas e, sobretudo, a vítima quando sobrevivente; segundo apresentar e jogar a culpa em uma terceira pessoa, é claro que não seja o seu cliente; terceiro desacreditar e emporcalhar a prova produzida, sobretudo, todo o trabalho da polícia, no mínimo a nomeando de desestruturada, sem profissionalismo até chegar ao argumento mantrico da tortura para se obter confissão e, ao final, o arremate, ou seja, a suscitação no espírito dos jurados de uma dúvida inexistente.
Assim muitos jurados que se intimidam com tal discurso, muitas vezes só necessitam de uma filigrana, mesmo que sem nenhuma importância para a essência do fato, sem qualquer sustância, sem a vitamina da verdade, sem a proteína da fidedignidade, ou seja, uma tese natimorta pela inanição intelectual honesta, para ratificar a tal dúvida. Neste diapasão, lembro-me de um Tribunal do Júri que o réu era líder de uma facção criminosa e que estava sendo julgado por dois homicídios, um consumado e um tentado, onde a vítima da tentativa em plenário negou peremptoriamente conhecer o réu, aduzindo jamais tê-lo visto, que não tinha nada contra o mesmo, inclusive.
Vejamos que há um peso muito forte para o jurado quando a própria vítima do crime nega o fato e afasta rigorosamente a autoria que é apontada sob o réu em julgamento. A defesa, neste ponto, inclusive, atuou com má-fé, aproveitando-se da fragilidade da vítima, para se insurgir contra o pedido do Ministério Público de apresentar aos jurados os depoimentos gravados, anteriormente, da vítima na fase policial, assim como na primeira fase judicial do rito do júri, onde a mesma relatava em imagem e voz os detalhes do fato e a autoria, diligência das mais simples esta que poderia ser claro revigorador da mente esquecida da vítima.
Neste ponto, para não ficar qualquer dúvida, a defesa inclusive rechaçou a determinação judicial de apresentar os vídeos da vítima para os jurados, alegando que o que valeria seria tão somente os depoimentos reproduzidos em plenário, como se o Tribunal do Júri fosse um teatro de fantoches, como se naquele momento não pudesse ser oportunizado aos jurados, juízes de caso, através de seus meios cognitivos, a busca pela verdade dos fatos, a fim de se realizar um julgamento realmente justo.
No caso exemplificado, não se tratava de uma vitima ameaçada, como poderia parecer da narrativa, mas algo que também pode ocorrer, vítima e réu passaram a integrar a mesma facção criminosa e esta com suas leis já tinha resolvido aquele problema.
2.3. NOVOS MEIOS DE PRODUÇÃO PROBATÓRIA
Diante dessas fragilidades probatórias em tais tipos de casos, onde não somente os jurados têm, via de regra, receio de julgar, mas pelo próprio meio de prova (testemunhal por exemplo) ser extremamente volátil, diante das adversidades reais do processo, é que urge que as autoridades estatais responsáveis pela investigação criminal e pela persecução, criem, fomentem, implementem novos recursos investigativos e novos modelos probatórios a fim de se contrapor a essa realidade que, sem dúvida, entrava a eficaz e a eficiente responsabilização criminal desses delinquentes.
Neste diapasão, vemos como uma grande oportunidade a ser utilizada como meios de prova, a apreensão e extração de aparelhos smartphones. Ora, se em um passado relativamente recente a queridinha dos meios de produção probatória era a interceptação telefônica, no contexto hodierno as ligações telefônicas foram ultrapassadas pelas mensagens instantâneas em aplicativos de redes sociais, onde arquivos de imagem, áudio e vídeo são enviados e recebidos em uma velocidade estonteante, deixando rastros (metadados) além, é claro, dos próprios conteúdos produzidos voluntariamente pelos interlocutores.
Uma característica comum a estas OrCrims (facções criminosas) é a necessidade que as mesmas têm de promover uma espécie de ostentação, umas mais que outras é claro, isso no afã de propalar um pseudopoder que detém, com a intenção também de intimidar grupos rivais, assim como, criar um sentimento de força e pertencimento aos seus membros. Por esta razão é que esses grupos criminosos, sobretudo os mais novos e debutantes na vida do crime, a fim de angariar novos membros, respeito e causar temor em seus desafetos, filmam as suas atrocidades mais selvagens, como julgamentos e execuções do tribunal do crime e, depois, as disseminam na rede.
É bem verdade que se tal modo de agir é característico de grupos pequenos, menos organizados, mas não menos violentos que as facções tradicionais, o fato é que as facções mais antigas detém um maior grau de organização, uma divisão bem definida de tarefas do grupo e uma hierarquização das atividades o que faz com que tenham mais cuidado com tal tipo de comunicação, ocorre que um fato é incontroverso, com a evolução tecnológica, mesmo com as ameaças advindas com ela, no caso aqui em estudo uma produção probatória contra si mesmo, os criminosos não deixam de utilizar tal ferramenta, isso por vários motivos, dentre eles, a relação custo/benefício entre a utilização desses objetos tecnológicos e a não utilização, já que dependem de uma comunicação rápida e eficiente para vender seus produtos ilícitos, assim como para dar comandos e ordens a comparsas do crime.
No caso dos homicídios um fato muito importante, por vezes, é o metadado, o qual pode ser uma forte prova no sentido de evidenciar a presença do suspeito no local ou na região do crime, isto através dos georreferenciadores, sinais wi-fi e ERBs (estação rádio base) utilizadas pelos aparelhos dos criminosos, sendo assim mais uma fonte de prova para o processo. Ressaltando neste ponto que os aparelhos que podem guardar tais dados têm uma amplitude bem vasta, desde smartphones, a computadores, relógios, aplicativos de música, dentre outros.
3. CONCLUSÃO
Conclui-se, portanto, que o aparato estatal persecutório, policias investigativas sobretudo, necessitam de investimentos em tecnologia moderna a fim de coletar tais rastros deixados pelos criminosos, tratá-los e, depois, colocarem a disposição do Estado-acusação e Estado-juiz como conhecimento produzido para a análise dos casos de homicídios, nestas circunstâncias, sob um prisma cada vez mais técnico, afastando-se de achismos, das imperfeições da memória humana, sobretudo dos lapsos advindos com o tempo e, sobretudo, da omissão as vezes até entendível motivada pelo medo, comum nestes casos peculiares. A prova cada vez mais técnica, impassível e auditável é uma meta constante a ser buscada.
É evidente que os meios probatórios clássicos continuam em plena vigência e também possuem a sua eficiência e eficácia constatada, o que está a se defender no presente ensaio é a convivência entre os mais variados meios de prova, devendo, na medida do possível, sempre se incrementar cada vez mais a investigação a partir dos meios tecnológicos e dados colocados a disposição dos investigadores e analistas, produzindo assim um conhecimento que auxiliará a todos os atores do processo na tomada de decisão, inclusive, aos jurados.
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