Em doutrina, debate-se a problemática do consentimento do ofendido na prática do fato típico penal. O consentimento, como sendo o ato de permissão, anuência ou aprovação tácita/ expressa, é visto pela doutrina como uma causa supralegal de exclusão da antijuridicidade, tendo em vista que a nossa lei não aludiu expressamente a esta matéria, diferentemente do código penal italiano que em seu art. 50 dispõe: "não é punível quem lesa ou põe em perigo um direito, com o consentimento da pessoa que desse direito pode validamente dispor".
Tenho, pois, como próprias as palavras abalizadoras do inolvidável professor Aníbal Bruno: "Abordando a questão do consentimento do titular do bem como causa de exclusão do ilícito, não pisamos em terreno pacífico, nem quanto à sua natureza e fundamento, nem quanto ao seu alcance e mesmo nem quanto à própria realidade do problema, que é sumariamente negada por alguns"(1).
Com efeito, é fundamental salientarmos, no que tange à questão do consentimento, que, em matéria penal, três hipóteses encontram-se presentes:
A primeira diz respeito ao consentimento como causa de exclusão da própria tipicidade, pois o consentir do indivíduo faz com que o tipo não se configure pela sua ausência. Por exemplo, aquele que pratica a conjunção carnal, sem o devido consentimento da mulher, incorre na pena do art. 213 do vigente diploma penal brasileiro. Entretanto, o consentimento dessa terá o condão de excluir a tipicidade do fato. Outros exemplos são citados em doutrina: a permanência do indivíduo em casa alheia ou em suas dependências com o devido consentimento do possuidor, que não configura o crime de violação de domicílio (art. 150); a subtração de uma coisa com a devida aquiescência do dono - retirada consentida da coisa - que não se confunde com o delito de furto (art. 155); etc.
Todavia, nessas hipóteses, é necessário que haja aptidão para o consentimento. Caso contrário, responderá por estupro aquele que mantém conjunção carnal com menor de 14 anos (art. 213, P.U.); por invasão de domicílio, aquele que penetrou em residência alheia sem o consentimento do possuidor ou preposto seu; por furto, aquele que subtraiu coisa alheia sem a anuência do proprietário.
A segunda hipótese implica no consentimento como elemento integrante do tipo penal, porque há casos em que o consentimento do titular do bem é elemento próprio do tipo, por exemplo, a provocação de aborto com o consentimento da gestante (art. 124); o rapto consensual (art. 220); etc.
A terceira e última hipótese - objeto maior de nosso estudo - refere-se ao consentimento como causa de exclusão da antijuridicidade. Aqui há a caracterização do fato típico, presentes todos os seus elementos (conduta, nexo de causalidade, resultado e tipicidade), entretanto, o consentimento do ofendido faz com que não ocorra a concretização do segundo elemento do crime (antijuridicidade). Assim, o fato é típico mas não antijurídico.
"Para funcionar como causa de exclusão do ilícito deve o consentimento decorrer de vontade juridicamente válida. Aquele que consente deve ser capaz de querer com eficácia jurídica, e o consentimento deve exprimir a sua vontade real, ser voluntário, não obtido por violência ou erro essencial. Só pode concedê-lo validamente o titular do bem jurídico, aquele que dele pode legitimamente dispor"(2).
De antemão cabe-nos explicitar que, nesta hipótese, quando há a existência de bens disponíveis, ou seja, bens jurídicos onde predomina o interesse privado, o consentimento produz a eficácia de excluir a ilicitude ou antijuridicidade, pois o juízo de conveniência da defesa ou não do bem é exclusiva do particular. Como bem anota Aníbal Bruno: "Não há, por exemplo, crime de dano, se o dono da coisa consente na sua destruição, nem viola direito de autor quem age com o consentimento do titular do bem(3)".
Entretanto, a peculiaridade da matéria diz respeito justamente aos bens indisponíveis. Nesta espécie, há a predominância do interesse coletivo, e o Estado tem interesse em tutelar o bem agredido mesmo que haja a anuência do ofendido. São bens indisponíveis: a vida (art. 5º, caput da CF/88), a integridade física, a administração pública, a família, etc.
Com efeito, a eutanásia, morte tranqüila ou abreviação da vida do paciente em estado terminal e doloroso, embora necessite do consentimento do paciente, não tem o amparo legal no Direito pátrio pelo fato de ser a vida um bem indisponível.
Não recebe o amparo legal, da mesma forma, o consentimento na prática de lesões corporais. Entretanto, encontramos aqui uma fonte abundante de discussões de cunho doutrinário. O ilustre penalista Heleno Cláudio Fragoso assim se pronuncia: "Ao nosso ver a integridade corporal também é bem jurídico disponível, mas não é esse o entendimento que prevalece em nossa doutrina"(4). Em sentido contrário, Feu Rosa leciona: "Nosso Direito Penal, todo ele impregnado em suas origens cristãs, não haveria de admitir, em hipótese alguma, que bens personalíssimos, como a vida e a integridade pessoal pudessem ser disponíveis. Não o são"(5).
"Diante da preocupação no mundo moderno no que se refere a casos especiais, de lesão à vida ou à integridade corporal, como os do aborto, eutanásia, transplante de órgãos, operações de mudança de sexo, vasectomia, laqueadura etc., tem-se reacendido a discussão a respeito da classificação rígida de bens disponíveis e indisponíveis, propondo-se uma atenuação dessa divisão"(6).
Não chegaremos ao extremo de definir a integridade corporal como sendo um bem disponível pois, como bem acentuou Feu Rosa, não o é. Aliás, neste mesmo sentido, citemos José Afonso da Silva: "Agredir o corpo humano é um modo de agredir a vida, pois esta se realiza naquele. A integridade físico-corporal constitui, por isso, um bem vital e revela um direito fundamental do indivíduo"(7). Assim como esse ilustre constitucionalista, vemos a integridade físico-corporal como inserida no conteúdo do direito à vida, daí o seu caráter eminentemente indisponível.
Apesar disso, não podemos ter esta assertiva como uma verdade intocável pois é certo que, tendo em vista a boa hermenêutica, devemos abrir mão de certa rigidez e, assim, restringir certas exigências.
Exemplo de fato que não constitui crime de lesões corporais porque o consentimento do ofendido afasta a antijuridicidade é o daquele que doa um de seus rins para familiar seu. Acontece, nesta hipótese, que, devido aos avanços da medicina, sabe-se hoje que o indivíduo saudável pode viver normalmente não obstante a ausência daquele órgão. O mesmo acontece com a doação de medula óssea e com o fígado que é um órgão regenerativo. Não nos parece de bom tom que o Estado possa permitir qualquer outra doação de órgão de pessoa viva que não estas citadas.
É comum, e todos nós sabemos, furarem-se as orelhas da criança recém nascida (prática adquirida de longas datas). São lesões admitidas pelo costume e que não geram nenhuma seqüela grave para a criança. Aqui, não há razão para a intervenção estatal.
De tudo que foi posto, concluímos que o consentimento do ofendido, quando não fizer parte do próprio fato típico ou o excluir, poderá eliminar a ilicitude do fato desde que este mesmo fato não ofenda os bons costumes (assim como está inserido na dogmática alemã) e nem lese a integridade física do ofendido ao ponto de provocar sérias seqüelas, tanto do ponto de vista psicológico (arrependimentos, traumas, etc.) quanto do ponto de vista físico-corporal (amputações, escoriações, mutilações, etc.).
Com efeito, não vemos razão para o Estado permitir as práticas de sadismo (por ofender os bons costumes); as operações de transexuais, circuncisões religiosas e mutilações decorrentes do uso exagerado de brincos - piercings - (por ofenderem, substancialmente, a integridade corporal do indivíduo - tanto no seu aspecto psicológico quanto no físico-corporal).
NOTAS
1. BRUNO, Aníbal. Direito Penal: parte geral. Rio de Janeiro: Editora Nacional de Direito Ltda, 1956, tomo 2º, pg. 401.
2. BRUNO, Aníbal. ob. cit. p. 403.
3. _______________. p. 402.
4. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal: parte geral. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense, p. 200.
5. ROSA, Antônio José Miguel Feu. Direito Penal: parte geral. São Paulo: RT, 1995, p. 360.
6. MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de Direito Penal. 13 ed. SP: Atlas, 1998, pg. 190.
7. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 7 ed. São Paulo: RT, 1991. p. 178.