Capa da publicação Direito à cidade: o espaço urbano como fenômeno de classe
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O espaço urbano como fenômeno de classe e o direito à cidade como mecanismo democrático de transformação da configuração urbana

22/06/2022 às 15:37

Resumo:


  • O crescimento urbano descontrolado e a urbanização como fenômeno de classe são impulsionados pelo capitalismo, gerando segregação e desigualdades sociais no espaço urbano.

  • O Direito à Cidade é reconhecido como mecanismo de transformação social, promovendo a gestão democrática e a participação popular na tomada de decisões sobre o uso e ocupação dos espaços urbanos.

  • Instrumentos jurídicos como o Estatuto da Cidade e o plano diretor, derivados da Constituição de 1988, visam assegurar o Direito à Cidade, mas enfrentam desafios práticos na sua implementação efetiva, exigindo ação e engajamento coletivo.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Os instrumentos jurídico-urbanísticos pós-Constituição não têm sido utilizados para reverter o padrão de exclusão que caracteriza a política urbana nacional.

RESUMO: Este trabalho tem como objetivo principal analisar a ocupação do espaço urbano enquanto fenômeno de classe, bem como compreender os padrões de impasses entre interesses econômicos desenvolvimentistas e a gestão democrática da cidade, com enfoque para a compreensão do Direito à Cidade como mecanismo de mobilização que se manifesta inclusive no Direito Urbanístico, que assim como o Direito Ambiental é uma área que se propõe a estudar a forma como lidamos com os territórios e o planeta. Para tanto, foi realizada uma revisão crítica de literatura a partir dos trabalhos bibliográficos de Henri Lefebvre e David Harvey, até chegar nas reformulações do direito urbanístico a partir da influência de movimentos sociais fundamentados no direito à cidade, principalmente expressos na constituinte de 1988. Dessa forma, foi possível concluir sobre a importância do Direito à Cidade para frear o processo de urbanização irresponsável, que pode se manifestar e ser reivindicado mediante o uso de mecanismos jurídicos centrais do Direito Brasileiro, os quais contribuem para o alcance de um espaço urbano democrático.

PALAVRAS-CHAVE: Direito à Cidade; Urbanização; Espaço Urbano; Fenômeno de Classe; Gestão Democrática da Cidade.


INTRODUÇÃO

Grande parte das sociedades se insere em um padrão de urbanização desenfreada, onde a cidade tem valor de troca e não de uso sendo a preocupação não de democratizar o uso dos espaços, mas de valorizar os espaços quantitativamente, como se faz com mercadorias e o mercado acaba por definir como se dará a ocupação dos espaços urbanos. Os direitos da propriedade privada se sobrepõem às demais noções de direito, como o Direito à Cidade, sendo preciso criar mecanismos que assegurem aos grupos sociais de diferentes classes o acesso aos recursos e aos espaços urbanos (HARVEY, 2012, p. 73).

Este tema é relevante para o Direito Ambiental Urbanístico por alimentar a discussão sobre os mecanismos capazes de promover uma melhor qualidade de vida aos cidadãos que habitam os centro urbanos, promovendo o direito constitucional do meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida (BRASIL, 1988, Art. 225).

É preciso pontuar que neste trabalho será considerado o conceito de classe social que diz respeito ao sentido pleno e definido dentro do discurso de Marx, de que a classe seria estratificada pelas relações de distribuição que são expressão da produção, se referindo às três grandes classes dos trabalhadores assalariados, a dos capitalistas e a dos proprietários fundiários, como apontado por Fernando Haddad em artigo que revisita a teoria marxista (HADDAD, 1997, p. 98). Estes três grandes grupos imediatamente ligados ao processo de reprodução material da sociedade foram especialmente considerados pelos teóricos marxistas David Harvey e Henri Lefebvre para discutir a problemática da urbanização, daí porque o conceito marxista de classe social será abraçado por este artigo.

Em que pese a escolha conceitual abarcada, não se pretende desconsiderar que todos os modos de análise de classes sociais podem potencialmente contribuir para melhor compreensão dos processos micro e macrossociais envolvidos na produção das desigualdades sociais e da má distribuição e uso do espaço urbano, conforme ressalva Erik Olin Wright (2009, p. 60-101).

Por outro lado, o conceito de espaço abordado por este estudo coaduna com a ideia de Milton Santos (2008, p. 46-50) de que o espaço seria algo dinâmico e unitário, onde se reúnem materialidade e ação humana, agrupando horizontalidades, entendidas como o cotidiano compartilhado, e verticalidades que são os pontos em que existe uma hierarquização e os espaços são perpassados por dimensões de poder representados pela atuação de diferentes atores.

Da mesma forma, por coadunar com o conceito de Milton Santos, este trabalho não pretende descartar a ideia de espaço tripartite defendida por David Harvey (2014, p. 20-26), de que haveria: (i) um espaço absoluto, que se refere à localização, propriedade privada, cidades, barreiras físicas e estruturas delimitadas como Estado; (ii) um espaço relativo, onde seriam várias as geometrias escolhidas e seu quadro espacial, dependendo de quem está o delimitando; e (iii) um espaço relacional, que se associa às relações internas deste espaço, que será definido a partir de tudo o que ocorre ao seu redor e dentro dele, estando estritamente relacionado ao tempo.

Compreendidos estes conceitos, ressalta-se que são as características nefastas do hodierno mundo urbano que nos fazem questionar o espaço enquanto fenômeno de classe, que pode ser interpretado como fruto do capitalismo. Dessa forma, é preciso entender os padrões de impasse entre os interesses econômicos desenvolvimentistas e a gestão democrática da cidade na certeza precoce de que eles existem e se mostram todos os dias de formas diferentes.

Para tanto, é preciso entender como as diferenças de classes constituem o espaço urbano e o Direito à Cidade, questionando a importância do Direito à Cidade, que é direito humano ainda pouco reputado, como mecanismo de luta capaz de frear o processo de urbanização que mantém o status quo das estruturas urbanas proporcionadoras da segregação de classes sociais no espaço.

As indagações acima apresentadas são indispensáveis para que nenhum grupo social suporte uma parcela desproporcional das consequências do processo de urbanização, especialmente com relação às operações econômicas, às decisões de políticas públicas e de programas governamentais, assim como da ausência ou omissão destas políticas até mesmo porque a história nos mostra que deixar de promover políticas públicas também é uma forma de fazer política no Brasil, sobretudo quando se considera que a atividade urbanística é uma função pública da Administração.

O processo de urbanização e a supervalorização do desenvolvimento econômico em detrimento da urbanidade, aqui tomado pela civilidade do convívio entre as classes no espaço urbano, já é responsável pela chamada miséria urbana, termo cunhado por Henri Lefebvre, onde os trajetos casa-trabalho norteiam a vida do homem e os lugares de encontro, de lazer e discussão política são deixados de lado quando da distribuição do espaço. Na sociedade da alienação urbana, o lucro vem antes da sadia qualidade de vida.

Neste ínterim, deixar de compreender a estrutura que explora a cidade enquanto mercadoria é permitir que a ocupação dos espaços urbanos siga fomentando desigualdades.

Dessa forma, é objetivo do trabalho, analisar a ocupação do espaço urbano enquanto fenômeno de classe, compreender os padrões de impasse entre os interesses econômicos desenvolvimentistas e a gestão democrática da cidade, destacando o Direito à Cidade como mecanismo de luta e transformação da realidade urbana, tendo em conta o Direito Urbanístico e os mecanismos jurídicos centrais, do Direito Brasileiro, que contribuem para o alcance de um espaço urbano democrático.

A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO URBANO ENQUANTO FENÔMENO DE CLASSE

Foi Henri Lefebvre, filósofo e sociólogo francês, quem primeiro tratou do Direito à Cidade em seu livro homônimo (Le droit à la ville), cuidando de apresentar e expor a problemática urbana que para ele nasceu com o processo de industrialização, que seria há um século e meio, o motor das transformações na sociedade (LEFEBVRE, 1968, p. 78). Ele traz a dimensão social da problemática das cidades, criticando as ideias cartesianas e simplistas, baseadas no urbanismo positivista, de que a cidade seria mero espaço a ser ocupado conforme interesses impostos pela Administração Pública. Para Lefebvre, é preciso garantir uma cidade pensada a partir da visão dos cidadãos e não dos detentores de poder, voltando-se ao integralizado e equânime uso do espaço social.

Para Ira Karznelson (1992), Lefebvre teria sido o primeiro a mostrar o caminho de volta à cidade para o marxismo. Ele diz caminho de volta porque Marx e Engels teriam tratado da cidade em suas obras, apesar de que essa não era a preocupação central deles. Entretanto, o caminho é questão em aberto, que pode mudar no contexto histórico-cultural-social em que esteja inserido. Isto quer dizer que o caminho de volta ao marxismo deverá estar em aberto para tentar resolver a problemática da cidade, mesmo porque a problemática também mudará ao longo do tempo, como defende Bianca Tavolari no artigo Direito à Cidade: Uma Trajetória Conceitual (TAVOLARI, 2016).

Lefebvre indica que a industrialização é força motriz das transformações sociais, mas ressalta que a cidade preexiste à industrialização e que quando do seu início, a cidade já dispunha de uma poderosa realidade (LEFEBVRE, 1968, p.12).

O sociólogo e filósofo francês adverte que a cidade teria crescido a partir do subproduto da agricultura, acumulando riquezas que constituíram os centros urbanos com exuberante riqueza monetária, científica e técnica, obtida pela usura, comércio e concentração populacional. É contraditório quando comparado ao rumo tomado, mas a cidade cresce apoiando as comunidades camponesas e sua libertação com interesses burgueses neste viver livre. Problema é que no meio disso a cidade se tornou produto com valor de uso e, nessa lógica, passou a ter valor de troca também, momento em que se pode entender que a libertação camponesa era, na verdade, a expropriação dessas comunidades (LEFEBVRE, 1968, p.12).

A luta de classes ganhou a cidade como palco quando os violentos contrastes entre a riqueza e a pobreza começam a ter maior força, na industrialização. Nesse momento, a riqueza deixa de ser principalmente imobiliária e as terras passam das mãos dos senhores feudais para os capitalistas urbanos enriquecidos por bancos, comércio e usura. A cidade vira arena para a disputa sobre o amor da cidade e não à cidade (LEFEBVRE, 1968, p. 16). Isto é, a pobreza e a riqueza rivalizam a dominação dos espaços da cidade, que para Lefebvre é uma obra de valor de troca e de uso.

Dessa forma, Lefebvre coloca a vida urbana como pressuposto de encontros, confrontos das diferenças, conhecimentos e reconhecimentos recíprocos dos modos de viver, dos padrões coexistentes na cidade. É normal e necessário o confronto e o convívio das subjetividades e intersubjetividades (LEFEBVRE, 1968, p. 24).

O problema é que com a expansão da democracia de origem camponesa no século XIX e do pensamento revolucionário, a democracia poderia ganhar viés urbano, encerrando a disputa pelo amor da cidade a partir da negociação dos espaços urbanos para todas as camadas. Percebe-se, então, que a democratização dos espaços urbanos foi ameaça para os privilégios da nova classe dominante a burguesia e a expulsão do proletariado dos espaços urbanos, com a destruição da urbanidade enquanto bom-convívio entre os cidadãos, foi e ainda é a forma de garantir a manutenção dos privilégios das classes dominantes (LEFEBVRE, 1968, p. 24).

Portanto, para o filósofo Henri Lefebvre, o processo global de industrialização, as modalidades do habitar e as modulações do cotidiano fizeram nascer uma contradição crítica, a tendência para a destruição da cidade, para a intensificação do urbano e da problemática urbana (LEFEBVRE, 1968, p. 85). O amor pelo que a cidade pode proporcionar enquanto produto, com valor de troca, fez com que a cidade virasse palco de disputa entre as classes. Nessa lógica, a ocupação do espaço urbano pode ser compreendida como um fenômeno de classe, como proposto neste capítulo, especificamente, a partir da constante luta de classes que determina onde proletário e burguesia aqui tomado como empresários e outros detentores de poder e capital poderão ocupar os espaços urbanos.

Seguindo a revisão literária dos grandes pensadores do Direito à Cidade, é preciso mencionar David Harvey, um dos marxistas mais influentes da atualidade, que vem destacando, com papel atuante na militância global pela democratização dos espaços urbanos, a importância de conhecer que tipo de cidade cada uma das sociedades deseja reconhecendo as diferenças entre as sociedades históricas, ocidental e oriental, por exemplo. Ele ressalta a cidade como associada aos tipos de vínculos sociais, relacionamentos com a natureza, estilos de vida, tecnologias e valores estéticos nós desejamos (HARVEY, 2013, não p.).

Diga-se de passagem, por muito tempo Harvey sequer mencionou o termo Direito à Cidade em qualquer de suas obras, pois suas preocupações eram voltadas ao funcionamento do capitalismo e ao impacto que esse sistema econômico tinha na formação da cidade. Entretanto, é daqui que se extrai a importância desse pensador para este trabalho, pois Harvey desde sempre falou da ocupação do espaço urbano a partir dos fenômenos de classe advindos da estrutura capitalista. Segundo ressalva Bianca Tavolari sobre Harvey (2016), por imobilizar investimentos no espaço, a urbanização passa a ser central para a criação de valor e, assim, para a superação das crises de sobre a cumulação engendradas no interior do sistema capitalista. Nesse esteio, ao mesmo tempo em que havia uma fixação de investimento no espaço, é também o espaço urbano capaz de consertar as crises e problemas da urbanização, vistas como consequência do capitalismo e de seus fenômenos de classe.

Harvey (2014, p. 30) via a urbanização como um fenômeno de classes, pois as cidades teriam emergido da concentração social e geográfica do produto excedente, o qual era e é concentrado na mão de poucos. A urbanização depende da mobilização de excedente para que se obtenha mais-valia e haja reinvestimento a fim de ampliar a mais-valia. O resultado do reinvestimento contínuo é a expansão da produção excedente ligada à acumulação de capital, a qual tem curva paralela à do crescimento da urbanização sob o capitalismo (HARVEY, 2013, não p.). Há, portanto, estreita relação entre o desenvolvimento do capitalismo e a urbanização.

David Harvey (2013, não p.), sobre o assunto, aponta que há uma conexão interna entre capitalismo e urbanização, de modo que para obter lucro (mais-valia1), o capitalismo depende da produção de produtos emergentes que são absorvidos pela urbanização que, por sua vez, depende da existência desse excedente para acontecer. De modo geral, a existência do excedente de produção é a possibilidade de existência da cidade, pois os moradores da cidade são consumidores, mas também é a partir da cidade que a produção é impulsionada.

Sendo assim, o capitalismo dependeria da urbanização para absorver o excedente de produção que nunca deixará de produzir, pois é preciso consumir o que o capitalismo produz, assim como é preciso que haja terreno fértil, com mão-de- obra e recursos naturais, para que a produção de excedente tenha continuidade (HARVEY, 2013, não p.).

Harvey tenta articular a acumulação de capital e os rearranjos espaço- temporais advindos desse contexto capitalista, que geraram e geram até hoje a estruturação das cidades. Esse rearranjo espaço-temporal tem ligação direta com os fenômenos de classe.

Quando não há poder aquisitivo suficiente no mercado estruturado dentro das sociedades , é preciso encontrar outros mercados outros espaços urbanos onde se possa recriar a sociedade , promovendo novos produtos e estilos de vida, criando novos gastos estatais e privados, além de formas de crédito e financiamento (usura). Sem o rompimento desta barreira de mercado, o capitalista não poderá reinvestir seu lucro e a máquina capitalista desvalorizará o dinheiro pela inflação e haverá desemprego em massa (HARVEY, 2014, p. 46-47). O capitalismo é, então, uma estrutura de exploração que jamais poderia se sustentar sozinha.

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Nesse sentido, o conceito de cidade na sociedade moderna e industrializada envolve um local relacionado à urbanização e à ideia de desenvolvimento, pois a corrida pelo progresso tornou as cidades metrópoles em centros do capitalismo e promoveu a ideia de cidade como máquina de crescimento (ARANTES, 2013, p. 27). Os países que não alcançaram essa posição na corrida capitalista, não dispondo de cidades metrópoles impactantes no contexto do capitalismo financeiro globalizado, são ditos por subdesenvolvidos pela própria Organização das Nações Unidas (ONU)2, uma vez que, tradicionalmente, não alcançaram o estilo de vida capitalista, se mantendo rurais e pouco desenvolvidos fracassados no ideal capitalista.

Fato é que o interesse desenvolvimentista-financeiro fabrica um senso comum de que vale o crescimento econômico a qualquer preço (ARANTES, 2013, p. 27). Nessas condições, a identidade urbana, a cidadania e o sentimento pertencimento não são sustentados pelos indivíduos, pois o crescimento econômico compensaria todas essas mazelas. Introduzidos nesta ideia desenvolvimentista de aumento de circulação monetária e criação de empregos, os indivíduos se inserem em um mecanismo capitalista, deixando de questionar os processos que geram desigualdades na ocupação do espaço urbano (HARVEY, 2013, não p.).

O DIREITO À CIDADE ENQUANTO MECANISMO DE LUTA E TRANSFORMAÇÃO DA REALIDADE URBANA

Para começar este capítulo, cabe explicar que o Direito à Cidade não surge no campo jurídico, mas sim no campo das ciências sociais, como se verá adiante. O direito à Cidade, hoje reconhecido como um direito fundamental amplamente debatido e que influenciou fortemente a ordem urbanística presente na legislação brasileira, por meio da Constituição de 1988 e do Estatuto da Cidade de 2001, foi concebido a partir de contestações profundas do modo sobre como a sociedade moderna capitalista se estrutura (SANCHES, SOBREIRA E JUNIOR, 2017, não p.), tendo se consolidado a partir de importantes transformações no Direito, principalmente no conhecido Direito Urbanístico, que consolidou princípios como o da gestão democrática da cidade e da função social da propriedade.

País subdesenvolvido é aquele que, de acordo com a Organização das Nações Unidas, apresentam os mais baixos indicadores de desenvolvimento socioeconômico e humano entre todos os países do mundo. Será classificado como subdesenvolvido o país que, dentre outras coisas, estiver em situação de vulnerabilidade econômica, com base na instabilidade da produção agrícola, a instabilidade das exportações de bens e serviços, a importância econômica das atividades não tradicionais, exportar mercadoria concentrada, e desvantagens económicas, bem como a percentagem de população deslocada por desastres naturais. Portanto, será considerado subdesenvolvido aquele país que fracassou na corrida capitalista pela promoção de lucro, sobretudo.

Esse capítulo pretende pensar o Direito à Cidade como mecanismo capaz de frear o processo de urbanização desordenada e gerar a gestão democrática das cidades. Para tanto, considerará o Direito à Cidade desde a sua perspectiva sociológica, passando pela descrição de elementos deste direito recepcionados em documentos jurídicos como a Carta Mundial, a Constituição Federal e o Estatuto das Cidades, com o viés do Direito Urbanístico, alcançando, então a visão jurídico- sociológica que pode se dar ao Direito à Cidade. Na perspectiva jurídico-sociológica, dar-se-á início a crítica atrelada à desigualdade social e baixa participação democrática na construção das cidades, mesmo diante das previsões legais.

Como defende David Harvey (2012, não p.), a urbanização desordenada seria consequência da problemática da cidade como mercadoria, que gera uma despreocupação geral com a ocupação responsável dos espaços urbanos, criando as mazelas da cidade moderna. Por sua vez, a gestão democrática da cidade diz respeito à democratização da decisão sobre o uso e ocupação dos espaços urbanos, com a participação popular nos processos de controle social, implementação, avaliação e planejamento das políticas públicas voltadas às cidades (GEHLEN, 2016, não p.).

Próximo conceito a ser aprofundado, então, é o de Direito à Cidade pela perspectiva sociológica, enfatizando que é o Direito à Cidade um direito coletivo e não individual de mudar a si mesmos e de mudar a cidade, pois esta transformação inevitavelmente depende do exercício de um poder coletivo para dar forma ao processo de urbanização (LEFEBVRE, 1968, p. 78). Para Lefebvre (1968, p. 134), o Direito à Cidade é uma forma superior do direito à liberdade, à individualização na socialização, ao habitat e ao habitar. Percebe-se, neste conceito, a importância dada à participação dos indivíduos na construção do que seria o Direito à Cidade.

Em âmbito nacional são esclarecedores os sentidos presentes na Carta Mundial pelo Direito à Cidade (2016), que consolidou a multifacetada preocupação do Direito à Cidade, firmando que todas as pessoas devem ter o direito a uma cidade sem discriminação de gênero, idade, raça, condições, de saúde, renda, nacionalidade, etnia, condição migratória, orientação política, religiosa ou sexual, devendo preservar a memória e identidade em conformidade com os princípios e normas estabelecidos na Carta Mundial. Da mesma forma, todos têm o direito de participar da elaboração, definição, implementação e fiscalização das políticas públicas e orçamento municipal das cidades, fortalecendo as organizações populares e colaborando com a administração das políticas públicas.

Destaca-se que é a classe social um dos integrantes da Cidade a não ser excluído ou silenciado. Da mesma forma, é o fenômeno de classe um dos vetores responsáveis pela distribuição do espaço urbano, daí porque a própria Carta Mundial pelo Direito à Cidade (2016, não p.) trouxe tal direito como usufruto equitativo das cidades dentro dos princípios de sustentabilidade, democracia, equidade e justiça social.

Não obstante, da análise da Carta Mundial pelo Direito à Cidade (2016, não p.) é possível concluir que por meio do Direito à Cidade se pretende evitar a exclusão e silenciamento da sociedade urbana, entendendo a cidade como um espaço coletivo culturalmente rico e diversificado que pertence a todos os seus habitantes. Dessa forma, o Direito à Cidade, pela referida Carta, seria direito humano coletivo que confere aos habitantes legitimidade de ação e organização, baseado em seus usos e costumes, com o objetivo de alcançar o pleno exercício do direito à livre autodeterminação e a um padrão de vida adequado. Mais uma vez vê- se a preocupação da participação popular na construção de uma cidade responsável e com espaços de uso e ocupação democráticos.

A Carta Mundial pelo Direito à Cidade é bastante recente, datada de 2016, mas não foi fácil alcançar o patamar estabelecido internacionalmente. Numa perspectiva histórica, próxima da Constituição Cidadã, a partir de movimentos sociais como o Diretas Já, a União Nacional dos Estudantes, entre outros que lutaram durante o período que compreendeu os anos de 1975 a 1985, o processo de democratização no Brasil representou a retomada dos direitos políticos da população após a ditadura militar instaurada com o Golpe de 1964, criando novas perspectivas e direitos coletivos ou homogêneos e difusos, o que refletirá diretamente no Direito à Cidade abraçado pela perspectiva jurídica atual.

No sentido dos novos direitos e conquistas, o legislador reconheceu a legitimidade dos entes associativos na participação da defesa dos interesses coletivos, criando uma cooperação entre cidadão e poder público, fixando, expressamente, no artigo primeiro, parágrafo único, da Constituição Federal, a democracia participativa. José Afonso da Silva (2004, p.130) preconizou que a democracia tem como fundamento dois princípios: o da soberania popular, no qual toda fonte de poder emana única e exclusivamente do povo; e o da participação do povo no poder. Estes os princípios jurídicos que são salvaguardados pela lógica participativa do Direito à Cidade, cujo cerne é a possibilidade de o cidadão participar da criação de uma cidade mais adequada à sua realidade.

Neste momento, portanto, é preciso deslocar o Direito à Cidade para um outro lugar: o de objeto do Direito Urbanístico. José Afonso da Silva (2018, p. 78) elucida que o qualitativo urbanístico indica a realidade sobre a qual esse Direito incide, que é o Urbanismo palavra que vem do Latim urbs, que significa cidade. Não há dúvida, portanto, que o conceito de urbanístico está estritamente relacionado ao conceito de cidade e às necessidades dos indivíduos com relação à cidade. Por isso, o urbanismo evolui com a cidade e é o Direito à Cidade objeto do Direito Urbanístico.

É este Direito que promoverá e estimulará o planejamento local integrado e as obras e serviços de infraestrutura, com objetivo principal de racionalizar o crescimento das áreas urbanas brasileiras de maneira democrática. Também, é o Direito Urbanístico responsável por fixar as diretrizes e objetivos do desenvolvimento urbano nacional, o controle da poluição e a preservação do meio ambiente, fixando as leis de uso e ocupação do solo, de combate à poluição, de proteção ao patrimônio histórico e cultural, de parcelamento do solo, de regiões metropolitanas, etc.

A Constituição de 1998 deu muita atenção à matéria urbanística, reservando vários dispositivos sobre as diretrizes do desenvolvimento urbano (art. 21, XX e 182), sobre preservação ambiental (arts. 23, III, IV, VI e VII; 24, VII e VIII e 225), sobre planos urbanísticos (arts. 21, IX, 30, VIII e 182) e sobre a função urbanística da propriedade urbana (SILVA, 2018, p. 56). Nesse ínterim, cuidou de estabelecer o que é cláusula pétrea sobre a política urbana, numa tentativa de trazer a participação popular para a constituição das cidades brasileiras, mas voltaremos a dar enfoque aos fundamentos constitucionais do desenvolvimento urbano que abaixo serão aprofundados.

O art. 21, IX, da Constituição concede competência à União para elaboração e execução dos planos nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social. Tal norma é importante porque confere competência à União para elaborar e executar planos urbanísticos nacionais e regionais, pois a isso corresponde o conceito de planos de ordenação do território, denotando uma vinculação adequada no nível federal, com bons frutos se soubermos extrair da norma toda sua potencialidade no plano interurbano (SILVA, 2018, p. 56).

O planejamento urbanístico local é fundamentado no art. 30, VIII, da Constituição Federal. Diz que é de competência dos Municípios, não comportando interferência da União ou Estados, promover, no que couber, adequando ordenamento territorial, o planejamento e controle do uso, parcelamento e ocupação do solo urbano. Segundo José Afonso da Silva, o solo qualifica-se como urbano quando ordenado para cumprir destino urbanístico, especialmente a edificabilidade e o assentamento de sistema viário (SILVA, 2018, p. 57).

Nessa linha, o art. 21, XX, da Constituição Federal declara ser de competência da União instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos. Por sua vez, o art. 182 da Constituição estabelece que a política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público Municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes.

Na execução da política urbana de que trata o art. 182 da Constituição Federal, se aplica o plano diretor aprovado pela Câmara Municipal. Tal ordenamento foi elevado, pela Constituição Federal, à condição de instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana (art. 182, §1º), estabelecendo as normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental (art. 1 da Lei Federal nº 10.257, de 10 de julho de 2001).

O plano diretor é o instrumento pelo qual se efetiva o projeto de planejamento urbanístico local, mas sua regulamentação só veio 13 (treze) anos após a previsão constitucional que lhe obriga (art. 182, §1º, CF), em razão da disputa entre o Movimento Nacional Pela Reforma Urbana (MNRU) e aqueles ligados ao capital. Pelo plano diretor, instituído pelo Estatuto da Cidade (Lei Federal nº 10.257, de 10 de julho de 2001), deve-se garantir os instrumentos para a gestão democrática da cidade, tomando como marco central da política urbana a participação popular, desde a formulação de políticas até sua implementação, controle e revisão (art. 2º, II, da Lei Federal nº 10.257, de 10 de julho de 2001).

Mais uma vez tomando os ensinamentos de José Afonso da Silva (2018, p. 49), tem-se que o direito urbanístico é o conjunto de normas que tem por objetivo organizar os espaços habitáveis de modo a propiciar melhores condições de vida ao homem da comunidade, obviamente, isso só seria possível com a participação dos indivíduos que compõem a cidade, capazes de ditar suas necessidades. Nessa lógica, como se vê dos parágrafos antecedentes, com a Constituição de 1988 a perspectiva do Direito Urbanístico, que é objeto do Direito à Cidade, se expande:

Se antes o Direito Urbanístico limitava-se a regular tecnicamente as possibilidades de uso e ocupação do espaço das cidades brasileiras, desde 1988 seu protagonismo torna-se indubitavelmente singular. Agora, não só adstrito à fabricação de normas técnicas para o manejo político da ocupação populacional nos centros de normas técnicas para o manejo político da ocupação populacional nos centros urbanos, o Direito Urbanístico é uma ferramenta elementar para a efetivação dos compromissos constitucionais em todos seus aspectos, que demandam, nitidamente, uma tutela jurídica da democratização do espaço de nossos centros urbanos. (ANDRADE, 2019, p. 43).

Pelo que se vê da legislação acima, bem como pelo que foi assertivamente colocado por José Afonso da Silva (2018, p. 88), fato é que o processo de planejamento dos espaços urbanos se tornou um mecanismo jurídico por meio do qual o administrador deverá executar sua atividade governamental na busca da realização das mudanças necessárias à execução do desenvolvimento econômico- social. Não se trata mais de mero processo dependente de vontade dos governantes, mas de obrigação constitucional determinada pelo art. 21, IX, da Constituição Federal.

Entretanto, a enxurrada de figuras jurídicas advindas da Constituição Federal, como as audiências públicas, iniciativas populares, a garantia do direito à moradia digna, à regularização fundiária, o reconhecimento de ocupações e a participação social pela revisão dos planos diretores, entre outros instrumentos, apesar de gerar elogios e, obviamente, direitos e conquistas importantes para a população, não garantem, entretanto, que a democratização das relações sociais vá ocorrer. Para tanto, a proposta deve ser operacionalizada e isso implica em ação e enfrentamento de conflitos (MARICATO, 2019, p. 74).

A questão que traz Erminia Maricato (2019, p. 48) é de que por ser o planejamento de competência do Estado, e este ser a expressão das classes dominantes, haveria uma impossibilidade da realização do planejamento democrático e igualitário. Por outro lado, ela assevera que aceitar a interpretação generalizante e ortodoxa sobre a inevitabilidade do planejamento é reproduzir o status quo que leva à condenação de qualquer urbanismo [...] É a sentença de morte do urbanismo crítico propositivo. A salvação aqui, então, seria criar um efetivo espaço de debate democrático, dando visibilidade aos conflitos que predominantemente envolve a luta de classes (MARICATO, 2019, p. 71).

No Brasil não há a tradição do debate democrático, mas, ao contrário, há uma tradição da versão única e dominante sobre a realidade (CHAUÍ, 2000). Portanto, construir um espaço de participação social é dar voz aos que nunca a tiveram, permitindo emergir os diferentes interesses sociais para que a elite tome contato de algo que nunca antes admitiu: o contraponto (MARICATO, 2019, p. 72). É preciso criar, então, um espaço de convivência e administração de conflitos, formando cidadãos interlocutores sobre os principais problemas da cidade.

Nesse sentido, adotar uma perspectiva jurídico-sociológica do Direito à Cidade pode levar a caminhos mais democratizantes, igualitários e de maior justiça social. Ou seja, é preciso examinar a influência dos fatores sociais sobre o direito e as incidências deste último na sociedade. Assim, permitir-se-á considerar a existência de subsistemas legais desenvolvidos a partir da necessidade de regular a conduta de particulares excluídos do sistema legal estatal, permitindo ao Direito funcionar como instrumento de mudanças sociais significativas, que concedem a participação de setores tradicionalmente excluídos da produção da política urbana nacional.

Somente analisando o direito à cidade sob a perspectiva jurídico-sociológica, que traz os autores referenciados neste trabalho, é possível afirmar que há um processo histórico de afirmação do direito político de participação da produção política, incluindo no conteúdo jurídico de direito à cidade o poder de definir os destinos da cidade, a partir de projetos utópicos e desejos na cidade, bem como da prática exercida no espaço urbano (GUIMARÃES, 2017, p. 659).

David Harvey cuidou de propor que a participação popular e democrática depende da implementação de um movimento de oposição e reinvindicação do povo nas ruas, isto é, espera-se um esforço de construção do conteúdo jurídico do direito à cidade que emerge das lutas sociais e do momento sócio-histórico vivenciado. A partir dos movimentos e organizações sociais seria possível um maior e melhor controle democrático sobre a produção e o uso do excedente da urbanização, com possível implicação da esfera legislativo-jurídica, evitando o que, para Harvey, desencadeia a má distribuição de riqueza e a desregulada ocupação do espaço urbano (HARVEY, 2014, p. 61).

No mesmo sentido, Lefebvre desde o século XX vem dizendo que o centro urbano não pode ser retirado daqueles que operam os meios de produção e que somente estes podem se encarregar da atividade social e política da sociedade urbana. Assim, a importância da atuação e reinvindicação popular estava clara há muito tempo: deveria ser inventado o urbanismo do homem urbano, cujo objetivo seria retomar a cidade e retirar-lhe a posição de mercadoria, criando uma nova vida cotidiana que dará à cidade o valor de uso e não de troca (LEFEBVRE, 1968, p.140).

Portanto, Lefebvre e Harvey, enquanto pensadores marxistas, muito influenciaram as perspectivas do Direito à Cidade, ressaltando-o como mecanismo de participação popular e, por assim dizer, destacando a importância da gestão democrática da cidade, o que reveste o ordenamento jurídico atual sobre as políticas urbanas. Entretanto, é preciso reconhecer que o Direito à Cidade de Lefebvre vem sendo recepcionado de diferentes maneiras pelo direito, por intermédio de decisões judiciais, da implementação da função social da cidade e da gestão democrática dos espaços urbanos.

Não obstante, na lógica jurídico-sociológica do Direito à Cidade, há necessidade de garantir, por meio de mecanismos jurídicos, a atuação da participação social no processo de produção da política urbana em todas as esferas dos entes públicos, de forma a garantir que estejam presentes as condições necessárias para que a participação da sociedade civil consiga influenciar efetivamente a condução dessa política, evitando o controle do aparelho técnico- burocrático do Estado pelo capital (GOMES, 2018, p. 508). É preciso, portanto garantir a democratização dos espaços de tomada de decisão sobre a política urbana.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise histórica abarcada, permite concluir que o surgimento das cidades é compreendido enquanto fenômeno social e político, ainda que a cidade já tenha se identificado apenas com uma concentração de pessoas em determinado ponto espacial. Ocorre que, em um dado momento, principalmente com a industrialização, a cidade tomou a roupagem de fenômeno econômico, concebendo-se enquanto produto no sistema capitalista. Com arrimo na filosofia marxista, é possível dizer que a cidade passou a ser vista como produto com valor de uso e valor de troca, sendo que os países cuja cidade não tem valor, por serem essencialmente rurais, ficaram para trás na corrida capitalista e são compreendidos como subdesenvolvidos ou em desenvolvimento.

O capitalismo passou a definir os países desenvolvidos e subdesenvolvidos, conceito que tem estreita relação com a existência ou não de cidades metrópoles. Dessa forma, pode-se concluir, a partir da leitura bibliográfica referenciada, que o valor das cidades tem relevância para a corrida global capitalista e que os espaços urbanos passaram a servir como moeda de troca. Expulsar ou incluir precariamente as classes sociais não-dominantes faz parte do processo de dominação pelos detentores de poder e de manutenção do capitalismo. Portanto, a ocupação do espaço urbano pode ser considerada fenômeno de classe, pois manifesta e perpetua segregações sociais que se manifestam no espaço, perpassado por outros marcadores de diferença social, como raça e gênero.

Justamente porque a ocupação do espaço urbano é considerada fenômeno de classe, as mazelas da urbanização desorganizada também acabam por servir a um interesse capitalista: segregação espacial, desigualdades sociais, favelas, crise urbana, poluição, ausência de políticas públicas, etc. Há claro impasse entre os interesses econômicos desenvolvimentistas, de expansão do modelo econômico capitalista, e a gestão democrática da cidade.

É preciso refletir, então, que o Direito à Cidade foi consolidado na denominada Constituição Cidadã, de 1988, a partir de um processo redemocratizante, pós-ditadura militar, fruto de lutas populares como o Movimento Diretas Já. Em que pese o movimento popular de ruptura com a ditadura não tenha pedido, expressamente, o Direito à Cidade, este veio como inerente a uma nova perspectiva de cidade: democrática. O contexto sócio-histórico de consolidação deste direito era de luta e por isso a importância dos movimentos populares em favor do Direito à Cidade.

Henri Lefebvre teve importante papel na formação das regras jurídicas de todo o mundo, fixando o Direito à Cidade como mecanismo de mudança da realidade urbana e propondo a participação popular que hoje pode ser vista como gestão democrática da cidade.

Como lembrou David Harvey, a expansão do processo urbano faz necessário que o Direito à Cidade seja slogan e ideal político, no sentido de mostrar quem comanda a relação entre urbanização e a produção do lucro: o povo ou proletariado. A democratização do Direito à Cidade e a construção de um movimento social de força, que traga a voz daqueles historicamente silenciados, é o que trará novas perspectivas para o processo de urbanização, renovando as políticas públicas sobre o assunto a partir da gestão democrática e da participação popular.

Não obstante, é preciso ter em mente que os instrumentos jurídico-urbanísticos pós-constituição não têm sido utilizados para reverter o padrão de exclusão que caracteriza a política urbana nacional, pois o planejamento urbano tradicionalmente utilizado no Brasil privilegia os interesses do capital em detrimento dos interesses dos habitantes da cidade. Dessa forma, imprescindível garantir os canais de participação popular nos processos de produção de políticas urbanas, pensando sobre a participação com relação aos aspectos que enfraquecem o poder de decisão dos setores ligados aos movimentos sociais em favor do capital.

Nessa lógica, a perspectiva jurídico-sociológica do Direito à Cidade permite a transformação social significativa, principalmente a partir de questionamentos sobre a inserção de setores tradicionalmente excluídos no processo de tomada de decisões públicas sobre a cidade; a necessidade de introduzir canais democráticos e efetivos de participação do caráter deliberativo para que possam influenciar efetivamente a tomada de decisões e o estabelecimento de um equilíbrio, verdadeiramente equânime, de forças entre os diversos setores da sociedade (público, sociedade, capital, etc.), o que vem inclusive sendo tomado em consideração em decisões judiciais e processos de revisão legislativas atuais.

Dessa forma, o Direito à Cidade pode e é mecanismo de luta e transformação da realidade urbana, que está presente e pode ser instrumentalizado pelo direito urbanístico, sem deixar de lado a participação popular efetiva, como por exemplo através do Estatuto da Cidade e suas regras, no plano diretor, no parcelamento de solo, no estatuto da metrópole, na lei de regularização fundiária, entre outros instrumentos jurídico-urbanísticos que servem de exemplo e confirmação de que o Direito à Cidade, que embasa o Direito Urbanístico, é mecanismo de luta.


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COSTA, Débora. O espaço urbano como fenômeno de classe e o direito à cidade como mecanismo democrático de transformação da configuração urbana. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6930, 22 jun. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/98760. Acesso em: 23 dez. 2024.

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