Conclusões
É razoável concluir que o impacto da justiça restaurativa no contexto da comunidade jurídica brasileira e em nosso sistema de justiça criminal é ainda difícil de se avaliar, ou mesmo prever, porque não há ainda registro de divergências muito significativas no debate que existe a respeito, que é ainda incipiente.
É possível que aflorem incredulidades, ceticismos, divergências, críticas, resistências e dificuldades que requererão estratégias adequadas de sensibilização.
Embora seja muito desejável e mesmo essencial um marco legal [16] permissivo do uso de práticas restaurativas na área criminal, é sustentável a tese de que a lei 9.099/95 pode respaldar procedimentos restaurativos, como complemento do sistema.
Uma coisa é certa: apesar das possíveis vantagens que podem oferecer as práticas restaurativas, no sistema de justiça criminal elas devem ser implementadas com cautela e controle, e devem estar sempre sendo monitoradas e avaliadas.
Cumpre atentar também para a premissa de que se trilharmos esse caminho é preciso construir uma justiça restaurativa brasileira e latino-americana, considerando que nossa criminalidade retrata mais uma reação social, inclusive organizada, a uma ordem injusta, cruel, violenta e, por que não, também criminosa.
O que não devemos permitir, releva alertar, é que ela, a justiça restaurativa, não seja imposta como uma receita neoliberal, baseada numa criminologia pós-estrutural, pós-moderna ou pós-social, que aponta para a desjudicialização do processo e com um abandono das pessoas, principalmente pobres, à própria sorte na resolução de conflitos de natureza penal, sob pretexto de estarem "empoderados" para operarem micro-sistemas de justiça criminal da "comunidade".
Seria um erro legitimar o movimento restaurativo brasileiro um modelo baseado nessas teorias, já abandonadas em diversos países, ou seja, uma concepção de governança, que no campo da segurança pública, teve resultados desastrosos na Austrália, como descrito pelo Professor Benoit Dupont [17].
A propósito, uma lúcida e aprofundada crítica ao modelo de criminologia neoliberal é feita por Pat O´Malley, Professora da Universidade La Trobe, da Austrália, em Criminology and The New Liberalism [18], em que ela diz:
"the unity and determinacy accorded to the social, in the emerging political imagination, is now being fractured or even shattered. These regimes displace and discredit the social as a focus of government in a multiplicity of ways. In place of society, government increasingly is to be effected by mobilising individuals, families, "the market" and voluntary associations such as "communities" (eg Thatcher 1993:626); in place of social forces are self reliance and entrepreneurialism linked together cooperatively in private sector´´`and community´´ initiatives; in place of social services and security there is increasing emphasis on individual practices"
Mas, considerado esse alerta necessário, o que se espera é que a Justiça Restaurativa floresça como produto de debates em fóruns apropriados, com ampla participação da sociedade, para que seja um programa concebido e desenvolvido para funcionar e se ver legitimado no Brasil, onde é manifesta a falência do sistema de justiça criminal e o crescimento geométrico da violência e da criminalidade, gerando, na sociedade, uma desesperada demanda por enfrentamento efetivo desse complexo fenômeno.
Afinal, nosso sistema, em que pese algumas reformas, continua obsoleto, ineficaz e carcomido, sendo certo que a criminalidade dobrou nos anos 80 e triplicou nos anos 90 – e continua a expandir – e a aumentar a cada dia a descrença nas instituições democráticas, inclusive com o complicador da influência da mídia sensacionalista mobilizando a opinião pública rumo a uma atitude fundamentalista que agrava o quadro e produz uma sensação geral de insegurança.
Talvez seja possível a Justiça Restaurativa no Brasil, como oportunidade de uma justiça criminal participativa que opere real transformação, abrindo caminho para uma nova forma de promoção dos direitos humanos e da cidadania, da inclusão e da paz social, com dignidade.
Justiça Restaurativa se aprende fazendo, principalmente fazendo perguntas.
GUIMARÃES ROSA, em Grande Sertão: Veredas, a propósito, dizia: "vivendo, se aprende, mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas..."
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Notas
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Uma pesquisa bastante conhecida é a que desenvolveram as professoras Gabrielle Maxwell e Allison Morris, do Centro de Criminologia da Universidade de Wellington, na Nova Zelândia, e que foram expostas por ocasião de um seminário promovido pelo Instituto de Direito Comparado e Internacional de Brasília e Escola Superior do Ministério Público da União, em 2004, em Brasília.
Para os neozelandeses, não ocorre mediação, mas facilitação no processo restaurativo. Os argentinos usam a expressão mediación. [(Morris, Allison and Warren Young. 2001) e (Paz, Silvina et Silvana, 2000)]
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propósito, WARAT e LEGENDRE lembram que a lei, no ocidente judaico-cristão, cumpre um papel totêmico, de superego da cultura, baseado no sentimento de moralidade culposa, conf. WARAT, Luis Alberto. O Monastério dos Sábios – O Sentido Comum Teórico dos Juristas, in Introdução Geral ao Direito, Porto Alegre, Sergio Fabris Editores, 1995, vol II, p. 57 e sgts.
Neto, P. Scuro - The Restorative Paradigm: Just Middle-Range Justice, disponível em http://www.restorativejustice.org/articlesdb/articles/1785 . Acesso em 25.12.2005. 16h.
Num debate realizado no fórum permanente da internet (grupo de discussão sobre justiça restaurativa – http://www.grupos.com.br/group/justicarestaurativabrasilia), Pedro Scuro Neto adverte que o maior desafio da Justiça Restaurativa é contrapor-se à sólida base científica do paradigma retributivo, e que para vence-lo, o caminho a ser trilhado pela Justiça Restaurativa deveria ser experimental e pragmático e não analítico, propondo-nos um salto quântico.
Veja os documentos no endereço eletrônico http://www.restorativejustice.org/resources/policy/inter/Acesso em 20/02/2006
Versão portuguesa livre produzida por PINTO, Renato Sócrates. Princípios Básicos para Utilização de Programas de Justiça Restaurativa em Matéria Criminal, disponível em http://www.idcb.org.br/documentos/sobre%20justrestau/TRADUCAODARESOLUCAODAONUSOBREJUSTICARESTAURATIVA.pdf. Acesso em 20 de março de 2006.
Essa análise é baseada nas exposições e no material gentilmente cedido pelas Dras. Gabrielle Maxwell e Allison Morris, da Universidade Victoria de Wellington, Nova Zelândia, por ocasião do memorável Seminário sobre o Modelo Neozelandês de Justiça Restaurativa, promovido pelo Instituto de Direito Comparado e Internacional de Brasília, em parceria com a Escola do Ministério Público da União e Associação dos Magistrados do DF, em março de 2004.
Nesse caso o procedimento se assemelharia a um sentencing circle, mas só podendo subsistir juridicamente se a pena alternativa sugerida fosse menos gravosa, porque do contrário evidentemente não teria acatamento judicial, pelo princípio favorabilia amplianda, odiosa restringenda.
11 A expressão valeria para os mediadores ou facilitadores restaurativos –psicólogo, advogado, assistente social ou outro profissional devidamente capacitado em técnicas de mediação restaurativa.
12 Ao contrário do que se pode pensar, o Advogado e o Defensor Público não perdem espaço nesse processo, pois eles intervêm desde a opção das partes pelo programa até na avaliação de sua validade, sob o ponto de vista jurídico, questionando-a, se for o caso.
Sigla correspondente a Pobres, Pretas e Prostitutas, de uso pejorativo no Brasil.
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Souza Neto, Cláudio Pereira. Balcão de Direitos, Retórica e Mediação: Notas sobre a Possibilidade de Uma Metodologia Jurídica Própria, in Jorge Ribeiro, Paulo et Srozenberg, Pedro, orgs., Imagens e Linguagens – Balcão de Direitos – Resoluções de Conflitos em Favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2001: Mauad Editora Ltda, p. 81/98
Tramita na Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos Deputados uma Sugestão Legislativa encaminhada pelo Instituto de Direito Comparado e Internacional de Brasília de se introduzir práticas restaurativas na legislação, tendo ocorrido já uma grande audiência pública para debater o paradigma, em outubro de 2005. O teor da sugestão está disponível em http://www.idcb.org.br/documentos/artigo0102/Sugestao.doc
Vide, a respeito, interessante artigo do Prof. Benoit Dupont, intitulado The new governance of Australian Police Services, disponível em http://www.crim.umontreal.ca/cours/cri1600/revue/dupont3.pdf , acesso em 03.02.2005
Conferência proferida cujo teor está disponível em http://criminology.utoronto.ca/edwardslect/omalley.html. Acesso em 03.02.2005
Abstract: This paper discusses the impact of restorative justice in the brazilian criminal system, providing a conceptual approach to the idea of restorative justice and to the differences between restorative justice and conventional criminal justice. It also addresses the issue of the legal sustainability of restorative justice and its compatibility with the brazilian legal system, with comments on the role of legal professionals in the operation of the new paradigm. The author intends to demonstrate that it is viable to test the model in Brazil for crimes and minor offences, provided that it is considered both restorative justice principles, values and proceedings and the specific characteristics of the brazilian legal system, with the legislation in force, but concedes that it is desirable changes in the legislation to allow such practices.
Keywords: Justice, Restorative Justice, Criminal Justice System, Restorative Paradigm, Retributive Paradigm, Legal Sustainability.