Não temos que fazer do Direito Penal algo melhor, mas sim que fazer algo melhor do que o Direito Penal...
Gustav Radbruch
Vivemos um tempo de expansão da violência e da criminalidade, ao mesmo tempo em que se percebe a ineficácia do sistema de justiça criminal - notoriamente incapaz de oferecer resposta adequada a esse fenômeno complexo e angustiante.
Nesse modesto ensaio sobre Justiça Restaurativa, não se abordam as causas históricas e sistêmicas da criminalidade, que têm raízes na própria configuração de uma ordem violenta, excludente, e que faz do Direito Penal e de seu sistema de operação um instrumento de dominação e negação do outro.
Aqui se propõe um debate sobre um novo paradigma que aflora em vários países – a chamada Justiça Restaurativa, que transcende a controvérsia criminológica que gira em torno das doutrinas da lei e da ordem e do garantismo, para lançar um novo olhar sobre o crime.
A visão restaurativa emancipa-se da abordagem típica do pensamento linear do modelo patriarcal, para, numa mudança para o eixo do pensamento complexo e matrístico, focar as necessidades que as pessoas e comunidades afetadas pela criminalidade têm em face do delito, propondo um procedimento colaborativo, solidário e inclusivo, baseado na responsabilidade e na restauração dos traumas e lesões produzidas pelo crime, e não simplesmente na punição. Não há julgamento, mas diálogo.
O que propõe o paradigma restaurativo é uma abordagem holística e relacional do conflito que cerca o fato delituoso, numa concepção ressignificada e ampliada de justiça.
O modelo restaurativo vai além do conflito jurídico apenas, para, numa atuação interdisciplinar psicossocial, dissecar esse conflito e agregar-lhe outros olhares para procurar curar as feridas, restaurando as relações, mediante encontros restaurativos entre vítima, infrator e pessoas da comunidade, conduzidos por profissionais capacitados.
O conflito, segundo Zaffaroni, envolve respostas punitivas, reparatórias, conciliatórias e terapêuticas. A justiça restaurativa pode contemplar todas essas perspectivas, embora a punição seja adotada, pela via do procedimento tradicional, só se não se lograr o acordo restaurativo.
Trata-se de propor a abertura de uma nova porta para responder adequadamente não a todos, mas a muitos crimes, que se disponibilizaria às partes como uma opção voluntária.
Já existem práticas restaurativas em muitos juizados especiais criminais, embora sem a especificidade dos princípios, valores e procedimentos recomendados por Resolução da ONU, e há meritórias iniciativas experimentais – projetos pilotos.
A Justiça Restaurativa tem um grande potencial de proporcionar maior satisfação à vítima, ao infrator e às comunidades, inclusive podendo reduzir consideravelmente a reincidência, segundo pesquisas científicas levadas a cabo por universidades da Nova Zelândia e de outros países.
Não se trata de desjudicialização nem privatização da justiça criminal, mas de democracia participativa no processo judicial, que teria, na justiça restaurativa, um complemento – uma ferramenta disponível para certos casos segundo critérios definidos em lei, em que as partes passariam ao centro do processo, deixando de ser meros espectadores mudos, com a função de meios de prova, para apropriar-se de um conflito que lhes pertence, quando quiserem e for possível esse caminho.
A Justiça Restaurativa, como uma forma de mediação penal, não teria apenas uma função de cura das feridas para os envolvidos e para a comunidade, mas também uma função transformadora – o objetivo das práticas restaurativas é proporcionar a transformação existencial dos sujeitos envolvidos.
Algumas das diferenças básicas entre o modelo de Justiça Criminal convencional e o modelo restaurativo, são expostas nos quadros a seguir, para melhor visualização dos valores, procedimentos e resultados dos dois modelos e os efeitos que cada um deles projeta para a vítima e para o infrator [01].
VALORES
JUSTIÇA RETRIBUTIVA | JUSTIÇA RESTAURATIVA |
Conceito estritamente jurídico de Crime – Violação da Lei Penal - ato contra a sociedade representada pelo Estado | Conceito amplo de Crime – Ato que afeta a vítima, o próprio autor e a comunidade causando-lhe uma variedade de danos |
Primado do Interesse Público (Sociedade, representada pelo Estado, o Centro) – Monopólio estatal da Justiça Criminal | Primado do Interesse das Pessoas Envolvidas e Comunidade – Justiça Criminal participativa |
Culpabilidade Individual voltada para o passado - Estigmatização | Responsabilidade, pela restauração, numa dimensão social, compartilhada coletivamente e voltada para o futuro |
Uso Dogmático do Direito Penal Positivo | Uso Crítico e Alternativo do Direito |
Indiferença do Estado quanto às necessidades do infrator, vítima e comunidade afetados - desconexão | Comprometimento com a inclusão e Justiça Social gerando conexões |
Mono-cultural e excludente | Culturalmente flexível (respeito à diferença, tolerância) |
Dissuasão | Persuasão |
PROCEDIMENTOS
JUSTIÇA RETRIBUTIVA | JUSTIÇA RESTAURATIVA |
Ritual Solene e Público | Ritual informal e comunitário, com as pessoas envolvidas |
Indisponibilidade da Ação Penal | Princípio da Oportunidade |
Contencioso e contraditório | Voluntário e colaborativo |
Linguagem, normas e procedimentos formais e complexos – garantias. | Procedimento informal com confidencialidde |
Atores principais - autoridades (representando o Estado) e profissionais do Direito | Atores principais – vítimas, infratores, pessoas da Comunidade, ONGs. |
Processo Decisório a cargo de autoridades (Policial,Delegado, Promotor, Juiz e profissionais do Direito - Unidimensionalidade | Processo Decisório compartilhado com as pessoas envolvidas (vítima, infrator e comunidade) – Multi-dimensionalidade |
RESULTADOS
JUSTIÇA RETRIBUTIVA | JUSTIÇA RESTAURATIVA |
Prevenção Geral e Especial -Foco no infrator para intimidar e punir | Abordagem do Crime e suas Conseqüências - Foco nas relações entre as partes, para restaurar |
Estigmatização e Discriminação Penas privativas de liberdade com carcerização desumana, cruel e degradante ou Penas restritivas de direitos e multa ineficazes ou absolvições baseadas no princípio da insignificância que realimentam o conflito. | Pedido de Desculpas, Reparação, restituição, prestação de serviços comunitários Reparação do trauma moral e dos Prejuízos emocionais – Restauração e Inclusão |
Tutela Penal de Bens e Interesses, com a Punição do Infrator e Proteção da Sociedade | Resulta responsabilização espontânea por parte do infrator |
Penas desarrazoadas e desproporcionais em regime carcerário desumano, cruel, degradante e criminógeno – ou – penas alternativas ineficazes (cestas básicas) | Proporcionalidade e Razoabilidade das Obrigações Assumidas no Acordo Restaurativo |
Vítima e Infrator isolados, desamparados e desintegrados. Ressocialização Secundária | Reintegração do Infrator e da Vítima Prioritárias |
Paz Social com Tensão | Paz Social com Dignidade |
EFEITOS PARA A VÍTIMA
JUSTIÇA RETRIBUTIVA | JUSTIÇA RESTAURATIVA |
Pouquíssima ou nenhuma consideração, ocupando lugar periférico e alienado no processo. Não tem participação, nem proteção, mal sabe o que se passa. | Ocupa o centro do processo, com um papel e com voz ativa. Participa e tem controle sobre o que se passa. |
Praticamente nenhuma assistência psicológica, social, econômica ou jurídica do Estado | Recebe assistência, afeto, restituição de perdas materiais e reparação |
Frustração e Ressentimento com o sistema | Tem ganhos positivos. Suprem-se as necessidades individuais e coletivas da vítima e comunidade |
EFEITOS PARA O INFRATOR
JUSTIÇA RETRIBUTIVA | JUSTIÇA RESTAURATIVA |
Infrator considerado em suas faltas e sua má-formação | Infrator visto no seu potencial de responsabilizar-se pelos danos e conseqüências do delito |
Raramente tem participação | Participa ativa e diretamente |
Comunica-se com o sistema por Advogado | Interage com a vítima e com a comunidade |
É desestimulado e mesmo inibido a dialogar com a vítima | Tem oportunidade de desculpar-se ao sensibilizar-se com o trauma da vítima |
É desinformado e alienado sobre os fatos processuais | É informado sobre os fatos do processo restaurativo e contribui para a decisão |
Não é efetivamente responsabilizado, mas punido pelo fato | É inteirado das conseqüências do fato para a vítima e comunidade |
Fica intocável | Fica acessível e se vê envolvido no processo |
Não tem suas necessidades consideradas | Supre-se suas necessidades |
O Brasil está agora se abrindo a essa tendência, com o PL 7006/2006, que tramita na Câmara dos Deputados. Já há vários países que já a inscreveram em seus sistemas, como a Colômbia, onde o paradigma já está, desde 2002, na Constituição (art. 250) e na legislação (Art. 518 e ss. do novo Código de Processo Penal) e a Nova Zelândia, que desde 1989 já a introduziu na legislação infanto-juvenil.
É preciso debater essa nova idéia e avançarmos para a era da criminologia clínica.
Nota
01 Essa análise é baseada nas exposições e no material gentilmente cedido pelas Dras. Gabrielle Maxwell e Allison Morris, da Universidade Victoria de Wellington, Nova Zelândia, por ocasião do memorável Seminário sobre o Modelo Neozelandês de Justiça Restaurativa, promovido pelo Instituto de Direito Comparado e Internacional de Brasília, em parceria com a Escola do Ministério Público da União e Associação dos Magistrados do DF, em março de 2004.