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Justiça restaurativa.

A era da Criminologia clínica

13/06/2007 às 00:00
Leia nesta página:

Não temos que fazer do Direito Penal algo melhor, mas sim que fazer algo melhor do que o Direito Penal...
          Gustav Radbruch


Vivemos um tempo de expansão da violência e da criminalidade, ao mesmo tempo em que se percebe a ineficácia do sistema de justiça criminal - notoriamente incapaz de oferecer resposta adequada a esse fenômeno complexo e angustiante.

Nesse modesto ensaio sobre Justiça Restaurativa, não se abordam as causas históricas e sistêmicas da criminalidade, que têm raízes na própria configuração de uma ordem violenta, excludente, e que faz do Direito Penal e de seu sistema de operação um instrumento de dominação e negação do outro.

Aqui se propõe um debate sobre um novo paradigma que aflora em vários países – a chamada Justiça Restaurativa, que transcende a controvérsia criminológica que gira em torno das doutrinas da lei e da ordem e do garantismo, para lançar um novo olhar sobre o crime.

A visão restaurativa emancipa-se da abordagem típica do pensamento linear do modelo patriarcal, para, numa mudança para o eixo do pensamento complexo e matrístico, focar as necessidades que as pessoas e comunidades afetadas pela criminalidade têm em face do delito, propondo um procedimento colaborativo, solidário e inclusivo, baseado na responsabilidade e na restauração dos traumas e lesões produzidas pelo crime, e não simplesmente na punição. Não há julgamento, mas diálogo.

O que propõe o paradigma restaurativo é uma abordagem holística e relacional do conflito que cerca o fato delituoso, numa concepção ressignificada e ampliada de justiça.

O modelo restaurativo vai além do conflito jurídico apenas, para, numa atuação interdisciplinar psicossocial, dissecar esse conflito e agregar-lhe outros olhares para procurar curar as feridas, restaurando as relações, mediante encontros restaurativos entre vítima, infrator e pessoas da comunidade, conduzidos por profissionais capacitados.

O conflito, segundo Zaffaroni, envolve respostas punitivas, reparatórias, conciliatórias e terapêuticas. A justiça restaurativa pode contemplar todas essas perspectivas, embora a punição seja adotada, pela via do procedimento tradicional, só se não se lograr o acordo restaurativo.

Trata-se de propor a abertura de uma nova porta para responder adequadamente não a todos, mas a muitos crimes, que se disponibilizaria às partes como uma opção voluntária.

Já existem práticas restaurativas em muitos juizados especiais criminais, embora sem a especificidade dos princípios, valores e procedimentos recomendados por Resolução da ONU, e há meritórias iniciativas experimentais – projetos pilotos.

A Justiça Restaurativa tem um grande potencial de proporcionar maior satisfação à vítima, ao infrator e às comunidades, inclusive podendo reduzir consideravelmente a reincidência, segundo pesquisas científicas levadas a cabo por universidades da Nova Zelândia e de outros países.

Não se trata de desjudicialização nem privatização da justiça criminal, mas de democracia participativa no processo judicial, que teria, na justiça restaurativa, um complemento – uma ferramenta disponível para certos casos segundo critérios definidos em lei, em que as partes passariam ao centro do processo, deixando de ser meros espectadores mudos, com a função de meios de prova, para apropriar-se de um conflito que lhes pertence, quando quiserem e for possível esse caminho.

A Justiça Restaurativa, como uma forma de mediação penal, não teria apenas uma função de cura das feridas para os envolvidos e para a comunidade, mas também uma função transformadora – o objetivo das práticas restaurativas é proporcionar a transformação existencial dos sujeitos envolvidos.

Algumas das diferenças básicas entre o modelo de Justiça Criminal convencional e o modelo restaurativo, são expostas nos quadros a seguir, para melhor visualização dos valores, procedimentos e resultados dos dois modelos e os efeitos que cada um deles projeta para a vítima e para o infrator [01].


VALORES

JUSTIÇA RETRIBUTIVA JUSTIÇA RESTAURATIVA
Conceito estritamente jurídico de Crime – Violação da Lei Penal - ato contra a sociedade representada pelo Estado Conceito amplo de Crime – Ato que afeta a vítima, o próprio autor e a comunidade causando-lhe uma variedade de danos
Primado do Interesse Público (Sociedade, representada pelo Estado, o Centro) – Monopólio estatal da Justiça Criminal Primado do Interesse das Pessoas Envolvidas e Comunidade – Justiça Criminal participativa
Culpabilidade Individual voltada para o passado - Estigmatização Responsabilidade, pela restauração, numa dimensão social, compartilhada coletivamente e voltada para o futuro
Uso Dogmático do Direito Penal Positivo Uso Crítico e Alternativo do Direito
Indiferença do Estado quanto às necessidades do infrator, vítima e comunidade afetados - desconexão Comprometimento com a inclusão e Justiça Social gerando conexões
Mono-cultural e excludente Culturalmente flexível (respeito à diferença, tolerância)
Dissuasão Persuasão
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PROCEDIMENTOS

JUSTIÇA RETRIBUTIVA JUSTIÇA RESTAURATIVA
Ritual Solene e Público Ritual informal e comunitário, com as pessoas envolvidas
Indisponibilidade da Ação Penal Princípio da Oportunidade
Contencioso e contraditório Voluntário e colaborativo
Linguagem, normas e procedimentos formais e complexos – garantias. Procedimento informal com confidencialidde
Atores principais - autoridades (representando o Estado) e profissionais do Direito Atores principais – vítimas, infratores, pessoas da Comunidade, ONGs.
Processo Decisório a cargo de autoridades (Policial,Delegado, Promotor, Juiz e profissionais do Direito - Unidimensionalidade Processo Decisório compartilhado com as pessoas envolvidas (vítima, infrator e comunidade) – Multi-dimensionalidade

RESULTADOS

JUSTIÇA RETRIBUTIVA JUSTIÇA RESTAURATIVA
Prevenção Geral e Especial -Foco no infrator para intimidar e punir Abordagem do Crime e suas Conseqüências - Foco nas relações entre as partes, para restaurar
Estigmatização e Discriminação Penas privativas de liberdade com carcerização desumana, cruel e degradante ou Penas restritivas de direitos e multa ineficazes ou absolvições baseadas no princípio da insignificância que realimentam o conflito. Pedido de Desculpas, Reparação, restituição, prestação de serviços comunitários Reparação do trauma moral e dos Prejuízos emocionais – Restauração e Inclusão
Tutela Penal de Bens e Interesses, com a Punição do Infrator e Proteção da Sociedade Resulta responsabilização espontânea por parte do infrator
Penas desarrazoadas e desproporcionais em regime carcerário desumano, cruel, degradante e criminógeno – ou – penas alternativas ineficazes (cestas básicas) Proporcionalidade e Razoabilidade das Obrigações Assumidas no Acordo Restaurativo
Vítima e Infrator isolados, desamparados e desintegrados. Ressocialização Secundária Reintegração do Infrator e da Vítima Prioritárias
Paz Social com Tensão Paz Social com Dignidade

EFEITOS PARA A VÍTIMA

JUSTIÇA RETRIBUTIVA JUSTIÇA RESTAURATIVA
Pouquíssima ou nenhuma consideração, ocupando lugar periférico e alienado no processo. Não tem participação, nem proteção, mal sabe o que se passa. Ocupa o centro do processo, com um papel e com voz ativa. Participa e tem controle sobre o que se passa.
Praticamente nenhuma assistência psicológica, social, econômica ou jurídica do Estado Recebe assistência, afeto, restituição de perdas materiais e reparação
Frustração e Ressentimento com o sistema Tem ganhos positivos. Suprem-se as necessidades individuais e coletivas da vítima e comunidade

EFEITOS PARA O INFRATOR

JUSTIÇA RETRIBUTIVA JUSTIÇA RESTAURATIVA
Infrator considerado em suas faltas e sua má-formação Infrator visto no seu potencial de responsabilizar-se pelos danos e conseqüências do delito
Raramente tem participação Participa ativa e diretamente
Comunica-se com o sistema por Advogado Interage com a vítima e com a comunidade
É desestimulado e mesmo inibido a dialogar com a vítima Tem oportunidade de desculpar-se ao sensibilizar-se com o trauma da vítima
É desinformado e alienado sobre os fatos processuais É informado sobre os fatos do processo restaurativo e contribui para a decisão
Não é efetivamente responsabilizado, mas punido pelo fato É inteirado das conseqüências do fato para a vítima e comunidade
Fica intocável Fica acessível e se vê envolvido no processo
Não tem suas necessidades consideradas Supre-se suas necessidades

O Brasil está agora se abrindo a essa tendência, com o PL 7006/2006, que tramita na Câmara dos Deputados. Já há vários países que já a inscreveram em seus sistemas, como a Colômbia, onde o paradigma já está, desde 2002, na Constituição (art. 250) e na legislação (Art. 518 e ss. do novo Código de Processo Penal) e a Nova Zelândia, que desde 1989 já a introduziu na legislação infanto-juvenil.

É preciso debater essa nova idéia e avançarmos para a era da criminologia clínica.


Nota

01 Essa análise é baseada nas exposições e no material gentilmente cedido pelas Dras. Gabrielle Maxwell e Allison Morris, da Universidade Victoria de Wellington, Nova Zelândia, por ocasião do memorável Seminário sobre o Modelo Neozelandês de Justiça Restaurativa, promovido pelo Instituto de Direito Comparado e Internacional de Brasília, em parceria com a Escola do Ministério Público da União e Associação dos Magistrados do DF, em março de 2004.

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Sobre o autor
Renato Sócrates Gomes Pinto

procurador de Justiça aposentado, pós-graduado em Direitos Humanos e Liberdades Civis pela Universidade de Leicester (Reino Unido) e em Direito e Estado pela Universidade de Brasília, presidente do Instituto de Direito Comparado e Internacional de Brasília (DF)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PINTO, Renato Sócrates Gomes. Justiça restaurativa.: A era da Criminologia clínica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1442, 13 jun. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9879. Acesso em: 12 nov. 2024.

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