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As sentenças determinativas e a inteligência do art. 505, I, do CPC

28/06/2022 às 19:08
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A reanálise da “mesma lide” importa ou não em inexistência de coisa julgada material nas decisões que apreciam relações continuativas?

Resumo: Busca-se explicitar o objeto comum das sentenças determinativas, bem como a relação desse conteúdo com res judicata e a possibilidade de revisão prevista no art. 505, I, do CPC. Utiliza-se a análise crítica à doutrina especializada. Conclui-se que essas decisões transitam em julgado, porém, ainda assim, comportam modificação à luz do aludido dispositivo codificado, revisão que não necessita ordinariamente de novo provimento jurisdicional, exigível apenas ante expressa disposição normativa.

Palavras-chaves: sentença determinativa – coisa julgada – art. 505, I, do CPC – revisão – novo provimento jurisdicional – (des)necessidade


Introdução

O inciso I do artigo 505 do Código de Processo Civil (CPC) diz que “nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas relativas à mesma lide”, salvo se, “tratando-se de relação jurídica de trato continuado, sobreveio modificação no estado de fato ou de direito, caso em que poderá a parte pedir a revisão do que foi estatuído na sentença”.

No presente estudo, busca-se esclarecer a relação dessa norma com os limites temporais da coisa julgada. Para tanto, pretende-se elucidar o conceito de “relação jurídica de trato continuado”, apresentado no cerne do aludido dispositivo.

Intenta-se, outrossim, apontar qual o real objeto da revisão de que trata art. 505, I, do CPC. Em consequência, dizer se a reanálise da “mesma lide” importa ou não em inexistência de coisa julgada material nas decisões que apreciam relações continuativas.

Procura-se, ainda, verificar se a revisão disciplinada pelo texto legal demanda, necessariamente, novo provimento jurisdicional. E caso sim, quais são as modalidades de ações possíveis nessas circunstâncias.

Com esses propósitos, utilizou-se a pesquisa bibliográfica, com análise crítica a obras da doutrina especializada.

Os limites da coisa julgada e as relações jurídicas de trato continuado

Conforme o CPC, coisa julgada material é a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso (art. 502). De regra, limita-se à questão principal expressamente decidida (art. 503, caput) e às partes sobre as quais versa o título judicial, de modo a não prejudicar terceiros (art. 506).

A análise conclusiva da questão prejudicial também pode transitar em julgado, desde que preenchidos os requisitos legais (art. 503, § 1º, do CPC).

Assim, sinteticamente, o art. 503 do CPC trata dos limites objetivos, e o art. 506 do mesmo código, dos limites subjetivos da coisa julgada.

Quanto ao seu limite temporal, sabe-se que a res judicata é historicamente situada: tem o alcance estabelecido pela presença dos contornos do quadro fático-jurídico que a gerou. Essa moldura diz desde quando e até quando a coisa julgada exerce influência (MARINONI, ARENHART, MIDIERO, 2015).

Justamente por isso, ordinariamente, não se admite a prolação sentença sobre aquilo que ainda pode ocorrer (DIDIER JÚNIOR, BRAGA, OLIVEIRA, 2015). Todavia, quando se trata de relação jurídica de trato continuado, essa regra comporta exceção.

E é justamente essa situação excepcional que justifica o art. 505, I, do CPC/2015. Importa, por conseguinte, conceituar a relação continuativa de que trata o aludido dispositivo.

Pois bem, se confrontada com a circunstância temporal do respectivo fato gerador, a relação jurídica pode ser classificada como instantânea, permanente ou sucessiva.

É instantânea se decorre de fato gerador que se esgota imediatamente em dado instante, sem se arrastar pelo tempo; ou que até se desdobra temporalmente, mas somente atrai a incidência da norma quando formado por completo (ZAVASCKI, 2005).

A relação jurídica é permanente ou duradoura se “nasce de um suporte de incidência consistente em fato ou situação que se prolonga no tempo” (ZAVASCKI, 2005, p. 112).

E é sucessiva quando “nascida de fatos geradores instantâneos que, todavia, se repetem no tempo de maneira uniforme e continuada” (ZAVASCKI, 2005, p. 112).

Assim, observa-se que, sob denominação genérica (“relação jurídica de trato continuado”), o art. 505, I, do CPC versa sobre a relação jurídica permanente e a relação jurídica sucessiva. Face a elas, a pedido da parte interessada, o dispositivo legal permite reanálise da “lide” já resolvida por decisão transitada em julgado, desde que com lastro em superveniente modificação no estado de fato ou de direito outrora apreciados.

São exemplos de relações jurídicas permanentes “as relações previdenciárias, alimentícias, de família, locatícias. Normalmente, tais relações envolvem prestações periódicas” (DIDIER JÚNIOR, BRAGA, OLIVEIRA, 2015, p. 552).

E de relações sucessivas: “a obrigação tributária de pagar contribuição à seguridade social decorrente de folha de salário e a obrigação tributária de pagar imposto de renda. Também é exemplo a relação de emprego e a relação estatutária entre servidor público e a administração” (DIDIER JÚNIOR, BRAGA, OLIVEIRA, 2015, p. 552).

Sentenças determinativas e o objeto da revisão autorizada pelo art. 505, I, do CPC

Denomina-se sentença determinativa aquela que decide sobre relação jurídica de trato continuado (CÂMARA, 2015). E como dito, o alcance desse título judicial é disciplinado por norma positivada na legislação processual.

Repita-se: o art. 505, I, do CPC diz que “nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas relativas à mesma lide”, salvo se, “tratando-se de relação jurídica de trato continuado, sobreveio modificação no estado de fato ou de direito, caso em que poderá a parte pedir a revisão do que foi estatuído na sentença”.

A cláusula rebus sic standibus se encontra presente, portanto, nas decisões judiciais que apreciam relações continuativas (DIDIER JÚNIOR, BRAGA, OLIVEIRA, 2015).

Tem-se, assim (com o art. 505, I, do CPC), a autorização para a revisão das denominadas sentenças determinativas.

Observa-se que o texto codificado trata da possibilidade de reanálise da “mesma lide”. No entanto, mais adiante, diz que esse reexame somente é possível se sob a justificativa de “modificação no estado de fato ou de direito”, ou seja, se com fundamento em alteração de causa de pedir.

Acontece que, consoante a teoria da tríplice identidade, para se caracterizar a “mesma lide”, não basta a repetição do pedido e dos polos ativo e passivo da ação; deve-se repetir, também, as causas de pedir fática e jurídica (MARINONI, ARENHART, MIDIERO, 2015).

A contradição do texto da lei é apenas aparente.

Na ação revisional, por exemplo, cabe ao autor alegar e comprovar a “modificação no estado de fato ou de direito”; ao réu, em resistência, a continuidade dos contornos estabelecidos pelas “questões já decididas relativas à mesma lide”.

Dessarte, ao considerar as alegações do réu, o julgador analisará a continuidade ou não da “mesma lide”, que, caso realmente presente na espécie, resultará na extinção do processo sem resolução do mérito, haja vista o óbice da coisa julgada (art. 485, V, do CPC), afastável apenas mediante ajuizamento de ação rescisória (arts. 966 e seguintes). Mas, se não houver repetição da causa outrora julgada, abrir-se-á a possibilidade de decisão meritória.

A rigor, ainda que se trate de relação continuativa, a lide anteriormente analisada e revestida pelo manto da coisa julgada material não poderá ser objeto de nova decisão de mérito. Por isso, ao apreciar o cerne do pleito revisional, “o juiz estará julgando uma demanda diferente, pautada em nova causa de pedir (composta por fatos/direito novos) e em novo pedido” (DIDIER JÚNIOR, BRAGA, OLIVEIRA, 2015, p. 553).

E é por essa razão que, para a melhor doutrina, “como quaisquer sentenças de mérito, as sentenças determinativas são aptas a alcançar a autoridade de coisa julgada material. E a coisa julgada que se forma sobre as sentenças determinativas é igual a qualquer outra” (CÂMARA, 2015, pp. 312-313).

Na verdade, o que o inciso I do art. 505 do CPC autoriza é a reanálise da mesma relação jurídica de trato continuado julgada, porém posteriormente modificada por alguma circunstância fática ou jurídica. Explica-se.

É célebre a máxima atribuída a Heráclito de Éfeso: “não se pode banhar duas vezes no mesmo rio”. Desse modo, o pré-socrático “afirma a fluidez do ser (que apesar da sua pluralidade fluida mantém assim sua unidade estável)” (BITTAR, ALMEIDA, 2009, p. 75).

Deveras, sobre o julgamento com lastro no art. 505, I, do CPC, mutatis mutandis, como na máxima de Heráclito, trata-se de banhar-se no que seria o mesmo rio (relação jurídica de trato continuado) não fosse as alterações promovidas pelo passar das águas (modificação no estado de fato ou de direito).

Em razão da mudança provocada pelo fluir, o rio é transformado; torna-se outro, porém permanece diferente do curso d’água natural localizado em região desconhecida pelo banhista (lide completamente diversa).

Das ações cabíveis com fundamento no art. 505, I, do CPC

De regra, quanto às relações continuativas, a alteração do status quo (modificação no estado de fato ou de direito) gera efeitos automáticos e imediatos, de modo a afastar a incidência da sentença determinativa, independente de novo pronunciamento judicial (ZAVASCKI, 2005). E isso desde o CPC/73 (art. 471, I).

Somente disposição normativa pode condicionar a referida revisão ao ajuizamento da ação revisional (ZAVASCKI, 2005).

Especificamente sobre o art. 505, I, do CPC/2015, nessa mesma ordem de ideias, a doutrina leciona: “[a] ‘revisão’ da sentença pode dar-se automaticamente (lei nova concede adicional antes reconhecido pela sentença como indevido; cura superveniente do segurado que recebe auxílio-doença etc.) ou por meio de ação de revisão, como acontece na relação alimentícia e locatícia” (DIDIER JÚNIOR, BRAGA, OLIVEIRA, 2015, p. 554).

Com efeito, a sentença que fixa alimentos decide relação de trato continuado e somente pode ser modificada por intermédio de revisional, haja vista a disciplina do art. 1.699 do Código Civil (CC) e, por exemplo, a Súmula n. 358 do Superior Tribunal de Justiça (STJ). A mesma lógica vale para o caso da decisão que estabelece os aluguéis em contrato de locação, em razão da inteligência dos arts. 19 e 68 da Lei n. 8.245/1991. Nesses dois exemplos, portanto, há disposição normativa que torna indispensável o ajuizamento da ação de modificação; segundo Teori Zavascki (2005), trata-se de direito potestativo à revisão que somente pode ser exercido por intermédio de novo provimento jurisdicional. Contudo, são hipóteses excepcionais que, justamente por isso, devem receber interpretação estrita (ZAVASCKI, 2005).

Fora esses casos (nos quais há disposição de lei que condiciona a revisão ao ajuizamento da revisional), outro tipo de ação com fundamento no art. 505, I, do CPC é cabível, por exemplo, se o prejudicado pelos efeitos da alteração fática ou jurídica apresentar resistência à pretensão da parte beneficiada e, por tal motivo, for necessária a intervenção do Judiciário. Sem esse conflito, aliás, não haveria lide a ser apreciada nem sequer, consequentemente, interesse em movimentar a máquina judiciária (art. 17 e art. 485, VI, ambos do CPC).

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Em verdade, se a “‘revisão’ da sentença pode dar-se automaticamente [...] ou por meio de ação de revisão” (DIDIER JÚNIOR, BRAGA, OLIVEIRA, 2015, p. 554), tem-se, pelo menos, duas hipóteses que merecem ser tratadas conforme as respectivas distinções.

Em virtude disso, importa dizer que a revisional não visa anular nem rescindir a decisão transitada em julgado. Tem natureza (des)constitutiva; e caso procedente, eficácia ex nunc. Isso pois, com lastro na cláusula rebus sic stantibus, a ação de modificação intenta alterar ou extinguir a relação de direito material apreciada, e não a sentença determinativa (ZAVASCKI, 2005).

O alcance da sentença anterior vai até o ajuizamento da revisional (ZAVASCKI, 2005), pois se presume a manutenção dos contornos fático-jurídicos por ela apreciados até esse marco. Justamente por isso, por intermédio dessa ação, não se mostra possível cobrar valores em decorrência da modificação ou extinção da relação continuativa.

Por conseguinte, ante todo esse rigor na manutenção da primeira decisão até o ajuizamento da revisional, revela-se plausível essa ação ser exigida apenas em razão de disposição normativa.

Como expresso em linhas anteriores, outras pretensões podem ser defendidas com fundamento no art. 505, I, do CPC. Toda controvérsia relacionada à existência ou extensão da alteração (fática ou jurídica) nas relações continuativas pode ser levada à apreciação do Judiciário.

O objeto dessa outra ação não é extinguir ou modificar a relação de trato continuado, mas, sim, declarar que, nela, os efeitos da extinção ou modificação já foram operados pela própria mudança do status quo (ZAVASCKI, 2005); pode-se, ainda, cobrar o que se entende de direito em razão dessa alteração

Nesses casos, a sentença de procedência tem natureza declaratório e/ou condenatória e eficácia ex tunc, a contar da data da comprovada modificação fática ou jurídica (ZAVASCKI, 2005).

Conclusão

Ordinariamente, os limites temporais da coisa julgada inviabilizam a prolação de sentença sobre acontecimentos futuros. Essa regra, todavia, comporta exceção quando se tem sob análise judicial as relações jurídicas de trato continuado.

A denominada relação continuativa de que trata o art. 505, I, do CPC é gênero que abarca a relação jurídica permanente e a relação sucessiva.

Esse dispositivo codificado versa sobre a possibilidade de revisão das sentenças determinativas (aquelas que julgam relações de trato continuado e, por esse motivo, têm em si a cláusula rebus sic stantibus).

Na verdade, o art. 505, I, do CPC não permite a análise da “mesma lide”, mas, sim, da relação jurídica julgada, porém posteriormente modificada (“alteração no estado de fato ou de direito”).

Sem essa alteração fática ou jurídica, a lide outrora apreciada por sentença determinativa continua revestida pelo manto da coisa julgada material, óbice que, em tese, somente pode ser superado pelo ajuizamento de ação rescisória.

De regra, com a mudança no status quo, a “revisão” da sentença determinativa ocorre de maneira automática e imediata, isto é, sem necessidade de novo provimento jurisdicional. A exceção é obrigatoriedade do ajuizamento da ação de modificação, exigível apenas por disposição normativa expressa.

Referências

BITTAR, Eduardo C. B.; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curdo de Filosofia do Direito. 7. ed. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2009.

CÂMARA, Alexandre Freitas. O Novo Processo Civil Brasileiro. São Paulo: Editora Atlas S.A, 2015.

DIDIER JÚNIOR, Fredie; BRAGA, Paulo Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandre de. Curso de Direito Processual Civil: teoria da prova, direito probatório, decisão, precedente, coisa julgada e tutela provisória. 10. ed. Salvador: Juspodivm, 2015.

MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MIDIERO, Daniel. Curso de Processo Civil: tutela de direitos mediante procedimento comum. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.

ZAVASCKI, Teori Albino. Coisa Julgada em Matéria Constitucional: eficácia das sentenças nas relações jurídicas de trato continuado. Doutrina do Superior Tribunal de Justiça: edição comemorativa 15 anos / (organizado pelo) Gabinete do Ministro-Diretor da Revista. Brasília: STJ, 2005.

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Sobre o autor
Leandro Weder da Silva Marra

Bacharel em direito pela UCB. Especialista em Direito Processual pela PUC Minas. Advogado com inscrição na OAB-DF.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARRA, Leandro Weder Silva. As sentenças determinativas e a inteligência do art. 505, I, do CPC. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6936, 28 jun. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/98819. Acesso em: 21 nov. 2024.

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