O Estado constitucional e humanitário de Direito (ECHD) está regido pela constitucionalidade plena (que corresponde ao que Ferrajoli, no seu sistema gatistista, chama de legalidade estrita), cujas fontes normativas (Constituição, Direito humanitário internacional – tratados e convenções de Direitos humanos - e legislação ordinária) são hierarquicamente distintas (voto do Min. Gilmar Mendes, RE 466.343-SP).
Da premissa que acaba de ser exposta podemos (e devemos) inferir o seguinte decálogo:
(Tese 1) a produção do direito, agora, está sujeita a uma dupla compatibilidade vertical (compatibilidade com o Direito humanitário internacional assim como com a Constituição), fundada (Tese 2) em limites tanto formais (Quem pode legislar? Como se pode legislar) como materiais (o texto legal não pode violar o conteúdo essencial dos direitos e garantias fundamentais).
Todo exercício de poder, especialmente o punitivo, por conseguinte, deve ser regido (necessariamente) per leges (legalidade da atuação) assim como sub lege, ou seja, (Tese 3) já não basta admitir que os direitos e garantias fundamentais ostentam natureza positiva (já não basta a mera positivação deles), mais que isso, é preciso sempre investigar se o conteúdo do texto legal produzido não afetou desarrazoadamente o núcleo essencial de tais direitos e garantias. E se agora temos que questionar sempre o produto legislativo produzido, isso conduz (Tese 4) a admitir o fim da democracia puramente formal (democracia das maiorias), que foi substituída pela democracia material ou substancial, que define o que se pode ou deve e o que não se pode ou não se deve legislar, o que se pode e o que não se pode fazer etc. Em outras palavras, todo exercício de poder, incluindo-se primordialmente o punitivo, (Tese 5) tem limites, que não podem ser ultrapassados e que se materializam por meio de regras, valores, normas e, sobretudo, de princípios (da legalidade, proporcionalidade ou razoabilidade, dignidade, ofensividade, presunção de inocência, devido processo criminal etc.).
Do que foi exposto conclui-se:
(Tese 6) que nem tudo que o legislador ordinário produz (textos normativos) é válido. O Direito se expressa por meio de normas e há dois "modelos óticos interpretativos" dessas normas: um fundado no juspositivismo dogmático (que se contenta com a mera legalidade) e outro no juspositivismo crítico (que exige a constitucionalidade plena de todo ordenamento jurídico). O primeiro confunde vigência com validade. O segundo, coerente com o ECHD, distingue com clareza tais conceitos. Lei vigente nem sempre é lei válida. Ela só é válida quando conta com dupla compatibilidade vertical;
(Tese 7) que o Direito não é harmônico, coerente, pleno, completo etc. Ao contrário, as incoerências (antinomias) e incompletudes (lacunas) são dois vícios absolutamente inseparáveis de qualquer modelo de Estado e de Direito;
(Tese 8) que o controle de constitucionalidade das leis (ou seja: das suas antinomias e lacunas) deve ter eficácia plena, isto é, deve ser otimizado o máximo possível por todos os juízes (pelos de primeira instância ou de tribunais, no sistema difuso; pelo STF, no sistema concentrado). Todos eles, doravante, contam com o impostergável dever de sempre examinar o conteúdo legislativo produzido (a premissa maior), antes de dirimir cada um dos conflitos de interesses deduzidos em juízo (premissa menor). A conclusão do juiz obrigatoriamente deve se atrelar ao Direito fundado na constitucionalidade plena (ou seja: de acordo com essa premissa maior ou secundum ius);
(Tese 9) que o modelo ideal de juiz, destarte, já não é o legalista (de origem napoleônica, que aplica a lei em seus estritos termos, sem nunca questionar sua constitucionalidade) ou o alternativista (que sustenta a superioridade ou a prioridade dos seus critérios pessoais para a realização do valor justiça) ou o escatológico (que destoa completamente da razoabilidade), sim, o constitucionalista (que investiga sempre a dupla compatibilidade vertical de todas as leis, isto é, com o Direito humanitário internacional bem como com a Constituição);
(Tese 10) que o modelo de jurista ideal já não é o legalista (que cumpre papel puramente descritivo e sistematizador do produto legislativo), sim, o constitucionalista (que desempenha papel crítico e valorativo de todo texto produzido pelo legislador).
Foi fundado em todas essas premissas que o STF, analisando várias ADIns ajuizadas contra o Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826/2003), reconheceu três inconstitucionalidades (anomalias): (a) do parágrafo único do art. 14, que proibia a concessão de fiança no caso de porte ilegal de arma de fogo de uso permitido, (b) do parágrafo único do art. 15, que fazia idêntica proibição em relação ao disparo de arma de fogo e (c) do art. 21, que proibia liberdade provisória nos crimes de "posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito", "comércio ilegal de arma de fogo" e "tráfico internacional de arma de fogo".
As duas primeiras acham-se fundamentadas no princípio da razoabilidade (não é razoável a proibição de fiança em crime de perigo com pena mínima não superior a dois anos); a terceira nos princípios da presunção de inocência, devido processo criminal, princípio da liberdade (a Constituição brasileira não autoriza a prisão ex lege, automática ou sem motivação) assim como no da obrigatoriedade de fundamentação de todas as prisões (CF, art. 5º, LXI), que se coliga com os princípios da ampla defesa e do contraditório.
Conclusão: estudar e conhecer os limites do exercício do poder punitivo, sejam os formais ou os materiais, expressos em grande parte por meio de princípios, é a tarefa, na atualidade, mais imperiosa e inadiável do juiz e do jurista.