2.1 A Função social das empresas estatais
Segundo estudiosos do Direito Empresarial, foi nos Estados Unidos da América que se originou a discussão sobre a responsabilidade social da empresa. O momento culminante foi a Guerra do Vietnã, quando a sociedade começou a protestar contra as políticas que estavam sendo adotadas pelo país e pelas empresas, principalmente aquelas que estavam diretamente envolvidas na fabricação de arsenais bélicos.[23] Desde então, a concepção da função social da empresa começou a se dissipar pelo mundo, chegando também ao Brasil.
Mister observar que, consoante doutrina modernamente aceita, a função social não precisa estar positivada para fazer com que a entidade empresarial atue de acordo com o bem comum. Porém, estando, colabora a sua observância e exigência realizada pela sociedade e Estado. Nessa perspectiva, a função social passa a ser um dos princípios que trouxe maior grau de justiça nas relações sociais, objetivando evitar os abusos individuais e promover a coletivização. Ademais, a função social da empresa alcança a percepção de que as entidades não devem visar tão somente ao lucro, mas também se importar com os reflexos que seus vereditos têm perante a sociedade, seja de forma geral, adicionando ao bem privado uma utilização voltada para a coletividade, ou de forma específica, ocasionando realização social ao empresário e para todos aqueles que cooperam para alcançar tal finalidade.[24]
Consoante o que preceitua Mayara Gasparoto Tonin, a ideia de função social representa a superação de uma concepção puramente individualista da propriedade, que posteriormente atingiu o contrato e os demais institutos jurídicos de Direito Privado.[25] Assim, a responsabilidade social consiste numa incumbência coletiva e numa nova interpretação em torno das atribuições que permeiam o comportamento jurídico, quando da subsunção de regramentos afeitos a atividade empresarial.[26]
Com o surgimento do Estado do bem-estar social, todo e qualquer regramento forense passa a ter uma função que tem como última ratio o bem-estar da sociedade. Tudo deve estar voltado ao que será melhor à sociedade e, portanto, tudo passa a exercer determinada função em face da comunidade.[27] Além disso, a função social deve ser interpretada como um princípio compositor dos institutos jurídicos. Mais do que meramente qualificá-los, a função social reformula o próprio conceito de propriedade, da empresa e do contrato.[28]
Nesse contexto, no Brasil, com a Carta Magna de 1988, instaurou-se um ordenamento social que tem como supedâneo o primado do trabalho e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais.[29] A função social dos institutos jurídicos passou a fazer parte do ordenamento jurídico pátrio de maneira muito mais evidente. Dessa forma, altera-se o foco dos institutos fundamentalmente de direito privado, cujo enfoque estava muito mais na estrutura do que na sua incumbência, a qual passa a ser essencialmente social com a ascensão do bem-estar social.[30]
Sendo assim, a razão que justifica a constituição de determinada empresa estatal é o grande delimitador da sua atuação e da sua função para a coletividade.[31] Tanto é assim que o art. 2º, §1º, da Lei nº 13.303/2016 estabelece que a constituição da estatal dependerá de prévia autorização legal que indique, de forma clara, relevante interesse coletivo ou imperativo de segurança nacional.[32] Em assim sendo, depreende-se que, com o advento da Lei das Estatais, os requisitos constitucionais para a criação de uma Empresa governamental que explore atividade econômica devem ser claramente demonstrados. Ou seja, a constituição de empresa pública ou de sociedade de economia mista dependerá de prévia autorização legal que indique, de forma clara, relevante interesse coletivo ou imperativo de segurança nacional, nos termos do caput do artigo 173 da Constituição Federal.
Observa-se que o artigo 238 da Lei das Sociedades Anônimas preceitua que:
A pessoa jurídica que controla a companhia de economia mista tem os deveres e responsabilidades do acionista controlador (arts. 116 e 117), mas poderá orientar as atividades da companhia de modo a atender ao interesse público que justificou a sua criação.[33]
Percebe-se, portanto, que é o interesse público específico que motivou a criação da estatal que pautará a sua atuação. Por este motivo, a doutrina estabelecida mesmo antes da publicação da Lei das Estatais já alertava para a importância do interesse público específico definido na lei de criação das empresas governamentais e da precisão do objeto social, a ser definido no estatuto, como parâmetros fundamentais para limitar a discricionariedade dos gestores. Destarte, somente seria possível a dilatação da atuação da empresa estatal ou do interesse público que justificaria a sua ação por meio de nova intervenção legislativa, e não apenas decisão administrativa tracejada em pretenso interesse público.[34]
A função social da empresa pública e da sociedade de economia mista foi a denominação dada ao Capítulo III, do Título I, da Lei nº 13.303/2016, cujo regulamento localiza-se no art. 27 do referido diploma legislativo. O dispositivo legal em comento, além de deliberar sobre o regime jurídico das empresas estatais, das normas societárias que lhe são aplicáveis, das regras envolvendo o processo licitatório e contratações, e da dinâmica de atuação interna e externa da sua atividade, previu expressamente que as empresas estatais terão função social de realização do interesse coletivo ou de atendimento a imperativo da segurança nacional expressa no instrumento da autorização legal para sua criação.[35] Portanto, conquanto a função social das estatais não seja novidade no ordenamento jurídico pátrio, a Lei nº 13.303/2016 delimitou-a à concretização da finalidade específica constante da autorização do Estado para a concepção da empresa.
Observa-se que a realização da função social por parte das empresas estatais ocorre mediante o alcance do bem-estar econômico, a destinação socialmente eficiente dos recursos geridos pelas entidades estatais, a possibilidade de acesso dos consumidores aos seus bens e serviços e o crescimento e emprego de tecnologia brasileira.[36] Neste contexto, depreende-se que a sociedade empresarial pode ser usufruída pelo Estado como substituta da atuação administrativa direta. Tal fato sucede no momento em que o Estado, por intermédio das concessões e serviço público, delega à iniciativa privada o desemprenho de atividades que deveriam ser prestadas por ele próprio. Outrossim, a atuação empresarial também pode ser empregada pelo Estado diretamente para o desempenho de determinadas funções, nos casos previstos no art. 173 da Constituição Federal. Isso acontece por meio da criação das empresas governamentais, as quais se tratam de entidades de direito privado que fazem parte da Administração Pública Indireta. Com isso, o assunto empresa adquire maior relevância na atualidade, haja vista a ampliação dos limites de sua atuação e da transferência para o setor privado de obrigações até então assumidas pelo Estado.[37] Sendo assim, a utilização de empresas estatais pelo Estado na realização de parte de suas atividades consiste numa opção por um instituto de Direito Privado, mas sem descuidar dos interesses coletivos que justificam a utilização da empresa pelo governo.
Ressalta-se que as empresas estatais, em que pese possuírem função social, detém a perspectiva de perseguirem o lucro em sua atividade. Ou seja, quando a Constituição condescende expressamente que o Estado intervenha por intermédio de empresas, deixa cristalino que o fez por consentir que essa atuação administrativa não é inconciliável com uns dos fins essenciais da atuação empresarial, qual seja, gerar riqueza.[38] Portanto, com a constituição dessas entidades estatais, as quais são dotadas de personalidade jurídica de direito privado, o Estado se recorre para possibilitar a execução de algum tipo de atividade de seu interesse com maior flexibilidade, sem as amarras do emperramento burocrático imanentes das pessoas jurídicas de direito público e sem se imiscuir de almejar o lucro para a manutenção da própria empresa.
Nesta seara, analisados o contexto de publicação da Lei nº 13.303/2016, bem como examinada função social das empresas estatais, mister verificar a distinção conceitual ente as Empresas Públicas e as Sociedades de Economia Mista, principais entes tratados ao longo da novel legislação, as quais devem ser estudas em conjunto, tendo em vista os diversos pontos em comum que apresentam.
2.2 Distinção entre Empresas Públicas e Sociedades de Economia Mista
Empresas Públicas e Sociedades de Economia Mista são ferramentas de ação do Estado, auxiliares do Poder Público, que buscam interesses superiores aos tão somente privados. São entidades muito congêneres, assemelhando-se em seu perfil e igualando-se nos objetivos pretendidos pelo Estado. Pode-se verificar que, na prática, existem poucas informações que possam levar o Governo a optar por uma ou por outra entidade. O fato é que, no ordenamento jurídico brasileiro, as sociedades de economia mista e as empresas públicas desempenham um importante papel, constituindo elas o instrumento pelo qual o Estado realiza a sua finalidade no campo econômico. Dessa forma, a mais adequada interpretação que se dá é que as sociedades de economia mista e as empresas públicas são dedicadas à prestação de serviços públicos, devendo distanciar-se das empresas mercantis.[39] Não obstante, encontram-se distinções conceituais importantes a serem feitas em relação a estes entes governamentais.
Até o advento da estudada Lei nº 13.303/2016, as empresas estatais eram reguladas pelo Decreto Federal nº 200/67 com redação dada pelo Decreto Federal nº 900/69, o qual dispõe sobre a organização federal, incluindo a divisão da Administração Federal em Administração Direta, constituída dos serviços integrados na estrutura administrativa da Presidência da República e dos Ministérios, e Administração Indireta, que são formadas por entidades de personalidade jurídica própria, entre elas as empresas públicas e as sociedades de economia mista.[40]
De acordo com o Decreto Federal nº 200/67, em seu art. 5º, inciso II, a Empresa Pública era considerada:
a entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, com patrimônio próprio e capital exclusivo da União, criado por lei para a exploração de atividade econômica que o Governo seja levado a exercer por força de contingência ou de conveniência administrativa podendo revestir-se de qualquer das formas admitidas em direito.[41]
Por outro lado, positivada no art. 5º, inciso III, do Decreto Federal nº 200/67, a Sociedade de Economia Mista conceituava-se como:
a entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, criada por lei para a exploração de atividade econômica, sob a forma de sociedade anônima, cujas ações com direito a voto pertençam em sua maioria à União ou a entidade da Administração Indireta.[42]
Atualmente, conforme se depreende do art. 3º da Lei nº 13.303/2016, Empresa pública pode ser considerada como:
a entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, com criação autorizada por lei e com patrimônio próprio, cujo capital social é integralmente detido pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal ou pelos Municípios.[43]
Já as Sociedades de Economia Mista, de acordo com o art. 4º da Lei nº 13.303/2016, são consideradas:
as entidades dotadas de personalidade jurídica de direito privado, com criação autorizada por lei, sob a forma de sociedade anônima, cujas ações com direito a voto pertençam em sua maioria à União, aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios ou a entidade da administração indireta.[44]
Diante da atual sistemática, pode-se considerar que a Empresa Pública consiste na pessoa jurídica de Direito Privado, cuja criação é autorizada por lei, constituída por capital exclusivamente público, com o objetivo de exploração de atividade econômica e pode revestir-se em qualquer uma das modalidades empresariais admitidas em Direito. O seu estatuto jurídico é baixado por lei, no qual serão regulados sua função social, formas de fiscalização pelo Estado, sujeição de seu regime jurídico, licitação e contratação de obras, serviços, compras, alienações, constituição e funcionamento de seu conselho administrativo, os mandatos, avaliação de desempenho e a responsabilidade de seus administradores. Nesse sentido, Diogenes Gasparini conceitua e empresa pública como:
A sociedade mercantil, industrial ou de serviço, constituída mediante autorização de lei e essencialmente sob a égide do Direito Privado, com capital exclusivamente da Administração Pública ou composto, em sua maior parte, de recursos advindos da administração ou de entidades governamentais, destinada a realizar imperativos da segurança nacional ou relevante interesse coletivo.[45]
São exemplos de Empresas Públicas, entre outras tantas, a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, a FINEP Financiadora de Estudos e Projetos, a Casa da Moeda do Brasil, a Caixa Econômica Federal, o BNDES Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social etc. Observa-se que inúmeras outras empresas públicas estão vinculadas a Estados e a Municípios, o que estará delimitado na lei ou nos decretos organizacionais dessas pessoas políticas.[46]
Por outro lado, as Sociedades de Economia Mista são pessoas jurídicas de Direito Privado, constituídas por capital público e privado. Sua criação também é autorizada por lei, devendo ser organizada sob a forma de sociedade anônima, onde as ações com direito a voto pertençam em sua maioria à União ou entidade de sua Administração indireta, tendo por objetivo, como regra, a exploração de atividades gerais de cunho econômico e, em alguns casos, a prestação de serviços públicos.[47] Por conseguinte, seguindo essa linha de entendimento, Celso Antônio Bandeira de Mello afirma que a sociedade de economia mista deve ser entendida como:
A pessoa jurídica cuja criação é autorizada por lei, como um instrumento de ação do Estado, dotada de personalidade de Direito Privado, mas submetida a certas regras especiais decorrentes desta sua natureza auxiliar de atuação governamental, constituída sob a forma de sociedade anônima, cujas ações com direito a voto pertençam em sua maioria à União ou entidade de sua Administração indireta, sobre remanescente acionário de propriedade particular.[48]
São Exemplos de Sociedades de Economia Mista, também na esfera federal, o Banco do Brasil S.A, o Banco da Amazônia S.A, a PETROBRAS Petróleo Brasileiro S.A, e outras várias vinculadas a administrações estaduais e municipais.[49]
Observa-se que, em que pese as empresas públicas e as sociedades de economia mista sejam espécies diferentes de entidades, não há distinção quanto ao objeto e quanto às possíveis áreas de atuação. O Decreto Federal nº 200 apenas menciona a criação das entidades estatais para a exploração de atividade econômica. No mesmo viés, a Constituição Federal refere expressamente que as empresas governamentais estão autorizadas a explorar atividades econômicas. Sendo assim, constata-se que, enquanto uma Empresa Pública é constituída por recursos provenientes de pessoas de Direito Público ou de entidades de suas Administrações indiretas, cujo capital está 100% em poder do Estado, estruturada sob qualquer das formas admitidas em direito, a Sociedade de Economia Mista aceita a reunião de recursos particulares com recursos procedentes de pessoas de Direito Público ou de entidades de suas Administrações indiretas, com prevalência, na prática, do capital público, estruturada sob a forma de sociedade anônima. Disso decorre que a primeira consiste em sociedade civil ou comercial, sendo que a segunda sempre será uma sociedade comercial.[50] Outra relevante distinção entre os entes ora analisados consiste na eleição do Foro Processual. A Lei Maior de 1988 privilegiou as empresas públicas federais no que tange ao foro das ações e que figuram como autoras, rés, assistentes ou oponentes. Consoante o que dispõe o art. 109, inciso I, da Constituição Federal, as empresas públicas federais, quando nessas posições processuais, têm seus litígios julgados perante a Justiça Federal. As Sociedades de Economia Mista, ao contrário, têm suas ações judiciais processadas e julgadas perante a Justiça Estadual, porquanto a Constituição silenciou sobre elas no referido dispositivo.[51] Conclui-se então, que Empresas Públicas e Sociedades de Economia Mista apesar de serem pessoas jurídicas de Direito Privado, criadas e extintas por leis específicas, com os mesmos objetivos, possuem várias distinções em outros aspectos, o que não pode ser confundido pela doutrina, nem pelo aplicador do direito.
Importante mencionar que no dia 28/12/2016 foi publicado no Diário Oficial da União, o Decreto Federal nº 8.945, de 27 de dezembro de 2016, que regulamenta, no âmbito da União, a Lei nº 13.303/2016.[52] O decreto apresenta normas para a nomeação de administradores e conselheiros das estatais, visando a evitar seu aparelhamento por partidos ou grupos políticos. O regulamento conceitua empresa estatal, empresa pública, sociedade de economia mista, subsidiária, conglomeração estatal, sociedade privada e administradores. O referido dispositivo é composto por capítulos que abordam de forma específica sobre a constituição da empresa estatal, condições para participações minoritárias de empresa estatal em sociedade privada, regime societário das empresas governamentais, regras de estrutura e práticas de gestão de riscos e controle interno, comitê de elegibilidade estatutário, regras mínimas que o estatuto social da empresa estatal deve conter, requisitos obrigatórios que os administradores de empresas estatais deverão observar, responsabilidade do acionista controlador da empresa, vedações para indicação para composição do Conselho de Administração, requisitos e as vedações para administradores e Conselheiros Fiscais, Conselho de Administração, Comitê de Auditoria Estatutário, regras a respeito do Conselho Fiscal, função social da empresa estatal, treinamento e seguro de responsabilidade dos administradores das estatais, forma de fiscalização pelos órgãos de controle externo e tratamento diferenciado para empresas estatais de menor porte.[53] Nesse diapasão, percebe-se que o Decreto regulamentou uma série de situações já implantada pela Lei das Estatais, sendo que várias imposições da norma seguiram a linha já estabelecida no aludido diploma legal. Assim, observa-se legislação estudada abrange todas as companhias controladas pelo Estado, inclusive empresas públicas, sociedades de economia mista e subsidiárias, e sociedades cuja maioria do capital votante pertença direta ou indiretamente à União. Ademais, trata dos mecanismos e estruturas de transparência e governança e das licitações das estatais.
Analisados o contexto, a função social e as distinções das empresas estatais, faz-se necessário minudenciar em capítulo próprio as normas gerais de licitações e contratos, haja vista que as inovações trazidas pela Lei 13.303/2016 modificam e inovam em diversos parâmetros acerca do assunto a ser tratado.