5. Crime de Tráfico Ilícito de Drogas e Progressão com Maior Rigor
No tocante ao crime de "tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins", surge outro problema de hermenêutica: que tipos penais devem ser incluídos no âmbito de abrangência desta expressão normativa, para o fim de se exigir os prazos de cumprimento dois e três quintos da pena, com vista à progressão de regime? A questão surge à medida em que a Lei Nº 11.343/2006 – atual Lei Antidrogas - incrimina diversas condutas sem dar-lhes nomes jurídicos próprios ou distintos.
Um ponto de convergência doutrinária e jurisprudencial repousa na distinção entre o crime de tráfico ilícito e o de porte para consumo pessoal de droga. Nesta última hipótese, encontram-se incluídas as modalidades típicas de menor e de médio potencial ofensivo, previstas na Lei Antidrogas: oferecimento de drogas para consumo em conjunto (art. 33, § 3º); prescrição culposa de drogas (art. 38); e condução de embarcação ou aeronave após consumo de droga (art. 39 e parágrafo único).
Portanto, os autores dessas condutas de menor ou de médio potencial ofensivo, previstas na Lei Antidrogas, não estão sujeitos à norma contida no art. 2º, § 2º, da LCH, que estabelece requisitos de maior rigor para o reconhecimento do direito à progressão de regime. Aliás, o autor da infração penal de porte para uso pessoal de droga não está mais sujeito à pena privativa de liberdade. Nesta hipótese, não se pode falar sequer de progressão de regime.
No entanto, é preciso não esquecer que a Lei Antidrogas define outros tipos penais associados ao tráfico: petrechos para o tráfico de drogas (art. 34); associação para o tráfico (art. 35, parágrafo único); financiamento do tráfico (art. 36), e colaboração ao tráfico de drogas (art. 37). Em relação a estes tipos penais, seria possível argumentar que constituem espécies de crime de tráfico de drogas?
No tocante aos crimes de associação e de colaboração para o tráfico, parece não haver maior dificuldade para excluí-los da condição de tipos equiparados à categoria criminosa mais grave. O primeiro, durante a vigência da lei anterior, já foi objeto de decisões no sentido de que não se trata de crime hediondo.
Quanto ao crime de colaboração para o tráfico, a Lei 6.368/76 considerava-o como um dos tipos penais equiparados ao crime de tráfico (art. 12, § 2º, inciso III). Porém, a atual Lei Antidrogas deu-lhe nova redação, diminuiu a quantidade de pena e outorgou-lhe autonomia tipológica em face do tipo penal básico de tráfico ilícito, definido no caput, art. 33, dessa lei repressiva especial. Deixou, por isso, de ser um dos tipos penais equiparados ao tráfico ilícito de drogas.
Não se tratando propriamente de crimes de "tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins", a estes dois tipos penais relacionados, mas não equiparados ao crime maior de tráfico ilícito, não se aplica a norma de maior rigor quanto à progressão de regime, prevista no § 2º, do art. 2º, da LCH.
A nosso ver, apenas os tipos penais definidos nos arts. 33, caput e suas modalidades típicas previstas no § 1º, incisos I a III, 34 e 36, da Lei 11.343/2006, é que podem ser enquadrados na denominação jurídicopenal "tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins". Em conseqüência, somente os condenados por estes tipos penais ficam sujeitos ao cumprimento de dois ou de três quintos da pena, como requisito objetivo para alcançar uma possível progressão de regime.
6. Nova Assimetria no Sistema Penal: O Enorme Hiato Temporal entre Progressão e Livramento Condicional
O reconhecimento do direito à progressão de regime para condenados por crime hediondo, acabou por criar mais uma incômoda assimetria em nosso já desordenado sistema punitivo. Antes da Lei 11.464/07, como a LCH não admitia o direito à progressão, considerava-se "lógica" ou "razoável" a exigência do cumprimento de dois terços da pena, no caso de condenado primário – ou seja, de condenado "não reincidente específico em crimes desta natureza" - para a obtenção do livramento condicional, nos termos do art. 83, inciso V, do CP.
Tratando-se de reincidente específico em crime hediondo, a lei penal não admite a idéia de concessão de livramento condicional.
Com a nova situação - e no caso de ser concedida a progressão de regime prisional - parece-nos despida de lógica jurídica a permanência do condenado durante um longo tempo nos regimes semiaberto e aberto para que lhe seja concedido o direito ao livramento condicional. A situação se torna ainda mais desarrazoada em relação ao condenado reincidente específico por crime hediondo, que agora poderá progredir de regime e, no entanto, não terá direito ao livramento.
Esta inconveniente assimetria, agora inserida em nosso sistema punitivo, revela-se ainda mais despropositada no caso de progressão após o cumprimento de um sexto da pena, direito assegurado a partir da referida decisão do STF. Como conseqüência, o apenado por crime hediondo cometido antes da Lei 11.464/07, permanecerá um longo tempo de cumprimento da pena em regime aberto, que estará ocupando a função e o espaço penal reservados ao livramento condicional.
7. Retroatividade da Normas Contida na Lei 11.464/07: Uma Hermenêutica Conforme a Decisão do STF
7.1 Divergências da Doutrina quanto à Retroatividade da Nova Lei
Esta questão está dividindo a doutrina. ( 8 ) Boa parte dos doutrinadores entende que a nova lei, aparentemente mais favorável ao infrator, é na verdade mais severa. Portanto, sua eficácia retroativa, consagrada nos arts. 5º, inciso XL e 2º, parágrafo único, do CP, deve ser afastada, Não sendo norma penal mais benéfica, não pode ser aplicada aos casos pretéritos, mas tão somente aos crimes cometidos a partir de sua vigência, em 29 de março de 2007.
Em síntese, esta corrente doutrinária entende que a decisão do STF, que julgou inconstitucional a proibição de progressão de regime, contida na versão original do § 1º, do art. 2º, da LCH, tem eficácia erga omnes e que, portanto, garantiu o direito a este benefício executório penal a todos os condenados por crime hediondo, a partir de 23.02.2006. Os requisitos, legalmente exigidos para a concessão da progressão, são os previstos no art. 112, da LEP, ou seja, bom comportamento carcerário e cumprimento de um sexto da pena.
Como a nova lei passou a exigir, no mínimo, dois quintos de cumprimento da pena para a progressão, é evidente que se trata de norma de natureza penal mais rigorosa. Portanto, deve ser submetida à regra da irretroatividade, em termos de sua eficácia temporal.
Parte da doutrina, no entanto, entende que a decisão do STF não tem eficácia erga omnes, pois foi proferida no espaço hermenêutico judicial do controle difuso, para atender tão somente à demanda jurídica de um caso concreto. Em conseqüência, a decisão não teria força vinculante para desconstituir as demais situações jurídicas relacionadas à progressão de regime dos apenados por crime hediondo, que permaneceriam regidas por uma lei vigente e aprovada segundo o processo legislativo previsto na CRFB.
Há, ainda, o argumento, de que, no espaço políticojurídico do Estado Democrático, a produção do Direito é função constitucionalmente privativa do Poder Legislativo, não cabendo ao Poder Judiciário extrapolar a sua competência estritamente jurisdicional para criar o direito, principalmente, contra expressa disposição legal. Para esta corrente doutrinária, a mencionada decisão do STF não criou um direito à progressão após o cumprimento de um sexto da pena.
Em conseqüência, a norma contida na lei em exame deve ser considerada mais favorável ao infrator, se comparada com a anterior, agora revogada e que não admitia a progressão de regime prisional. Sendo norma penal mais benéfica, está sujeita, portanto, à regra da retroatividade consagrada nos arts. 5º, inciso XL e 2º, parágrafo único, do CP, devendo ser aplicada não somente aos casos futuros, mas também a todos os casos pretéritos.
7.2 Irretroatividade da Nova Lei Aparentemente mais Benéfica
É verdade que a decisão do STF, manifestada pela maioria de seus membros, não ficou devidamente explicitada quanto ao alcance de sua eficácia, em relação ao direito à progressão para os demais condenados por crime hediondo. Na verdade, a questão relativa aos efeitos erga omnes da decisão, embora por diversas vezes discutida durante a longa e polêmica votação, não foi objeto da necessária notificação ao Senado Federal para que, nos termos do art. 52, inciso X, da CRFB, tomasse a iniciativa de suspender a execução da norma acoimada de inconstitucional.
No entanto, é preciso ressaltar que "o Tribunal, por votação unânime, explicitou que a declaração incidental de inconstitucionalidade do preceito legal em questão não gerará conseqüências jurídicas com relação às penas já extintas nesta data, pois esta decisão plenária envolve, unicamente, o afastamento do óbice representado pela norma ora declarada inconstitucional, sem prejuízo da apreciação, caso a caso, pelo magistrado competente, dos demais requisitos pertinentes ao reconhecimento da possibilidade de progressão". ( 9 )
Desta forma, parece-nos evidente que o STF, ao reconhecer – mesmo que de forma incidental - a inconstitucionalidade da norma proibitiva da progressão de regime, prevista na LCH, garantiu o direito dos condenados por crime hediondo a postular a obtenção deste benefício penal, após o cumprimento de mais de um sexto pena. Pode-se dizer que, após a declaração de inconstitucionalidade pelo STF, a norma contida no § 1º, do art. 2º, da LCH, em exame, manteve sua vigência formal, mas perdeu sua completa eficácia jurídica.
Se isto é juridicamente verdadeiro, é preciso admitir que, até a vigência da Lei 11.464/07, prevalecia uma situação jurídica bem mais favorável aos condenados por crime hediondo, que tiveram o direito garantido de postular a progressão de regime, após cumprimento de um sexto da pena.
Mesmo que tenha sido criado por decisão judicial, a verdade é que se trata de um direito aplicável a todos os condenados por crime hediondo que, naquele momento jurídico, encontravam-se na mesma situação jurídica, em termos de progressão de regime prisional.
Em conseqüência, todos os que tenham praticado crime hediondo antes da vigência da Lei 11.464/07 – aí incluídos os autores dos crimes de tráfico ilícito de drogas e tortura - poderão pleitear a progressão de regime prisional após o cumprimento de um sexto da pena. Basta que comprovem o bom comportamento carcerário.
Assim sendo, cremos que a nova norma penal, aparentemente mais benéfica por reconhecer um benefício até então negado pela lei, agora formalmente revogada, é indiscutivelmente mais rigorosa. Por isso, não se pode reconhecer-lhe eficácia retroativa. Sua eficácia somente alcançará os condenados por crime hediondo praticado após a sua vigência, em data de 29.03.2007.
8. Nova Situação JurídicoPenal em Face da Política Criminal e dos Princípios Constitucionais Penais
Finalmente, cabe um breve comentário sobre a Lei 11.464/07, à luz da moderna Política Criminal e dos princípios penais consagrados pela Constituição Federal. Quanto a estes, cremos que, com a nova lei, o subsistema punitivo de maior severidade penal representado pela LCH, reconciliou-se com os princípios da individualização da pena, da igualdade penal e, em parte, também, com o princípio da humanidade da pena, consagrados no art. 5º, caput e incisos XLVI e XLVII, da CRFB.
A partir de agora, todos os condenados têm o direito assegurado de pleitear a progressão de regime prisional. Basta que atendam aos requisitos legais. Com isto, a nova lei colocou o processo de execução penal nos trilhos por onde trafega o princípio da igualdade penal. Trata-se, é verdade, de uma igualdade relativa, pois ainda dispensa tratamento de maior severidade aos condenados por crime hediondo, mas garante-lhes, assim mesmo, o mesmo direito assegurado aos demais condenados por crime não hediondo.
Com o direito à progressão assegurado, o pressuposto prático do princípio da individualização da pena foi restabelecido pela lei penal em exame. A partir de agora, os juízes não se encontram mais impedidos de decidir, com a devida discricionariedade, sobre este relevante e básico componente do princípio individualizador.
Quanto ao princípio da humanidade da pena, já foram formuladas críticas ao rigor - visto como desproporcional - representado pela nova exigência de cumprimento de dois ou de três quintos da pena para a progressão de regime. ( 10 ) Realmente, é preciso reconhecer a severidade deste lapso temporal bem maior de cumprimento da pena, se comparado ao prazo exigido dos demais condenados por crime não hediondo – mesmo os reincidentes – que é de apenas um sexto para a progressão de regime.
Neste ponto, cremos que a nova lei representa uma resposta do Parlamento à opinião pública que tem se manifestado, com veemência, a favor de um Direito Penal de maior severidade como instrumento de combate – discutível é verdade – aos elevados e assustadores índices da violência brasileira. Esqueceu o legislador que, após 17 anos de vigência da LCH, com o seu leque normativo de maior severidade, a criminalidade violenta não diminuiu em nosso país.
Se estes novos marcos temporais de cumprimento de pena em regime inicialmente fechado são efetivamente desumanos e, portanto, juridicamente inadmissíveis, é uma questão que precisa ser discutida e refletida com base nos princípios da moderna Política Criminal. Cremos que uma reflexão séria e desideologizada acerca das regras politicamente mais adequadas do sistema punitivo em seu conjunto e do processo de execução penal de forma específica, deve considerar os princípios constitucionais penais garantidores da liberdade individual, mas também o princípio da segurança pública, dever do Estado e direito e responsabilidade de todos os cidadão.
Formalmente, cabe reconhecer que a nova lei, ao afastar uma proibição inconstitucional, por atentar contra os princípios da humanidade e da individualização da pena e restabelecer o direito à progressão, avançou no sentido de tornar nosso direito penal menos rigoroso e mais coerente com o sistema penitenciário progressivo.
9. Considerações Finais
1. Pelo novo texto legal, o condenado por crime hediondo continua obrigado a iniciar o cumprimento de sua pena em regime fechado. Mas, não está mais condenado a permanecer neste regime mais rigoroso até alcançar o livramento condicional (quando for o caso!) ou a extinção da pena.
2. A mudança operada no texto original foi defendida por boa parte da doutrina que, desde o primeiro momento, apontou para a inconstitucionalidade do art. 2º, § 1º, da LCH. Os penalistas sempre entenderam que esta norma - de absoluta proibição a priori - contrariava os princípios constitucionais da individualização e da humanidade da pena, além dos princípios do devido processo legal e da igualdade.
3. A jurisprudência percorreu um caminho contrário àquele trilhado pela doutrina, com decisões divergentes e marcadas por uma hermenêutica de comprometimento com o sentido literal da lei positiva, até a votação pelo STF, do HC 82.959/SP, ocorrida em 23.02.2006 e que passou a admitir o direito à progressão.
4. A progressão de regime é uma das fases do sistema penitenciário progressivo, adotado pelo Código Penal brasileiro, em seu art. 33, § 2º. Portanto, a proibição absoluta deste benefício, contraria um dos princípios consagrados por nosso sistema penal.
5. A proibição absoluta do direito à progressão contrariava, também, osprincípios da individualização e da humanidade da pena.
6. A Lei 11.464/07 reflete o novo entendimento jurisprudencial do STF, além de perfilhar dispositivos das duas leis penais que tratam de crimes hediondos. Está de acordo, também, com o pensamento da doutrina penal, que sempre defendeu a tese da progressão de regime prisional.
7. Com a nova redação dada ao § 2º do art. 2º, o condenado por crime hediondo poderá progredir de regime prisional, desde que comprove, por atestado do diretor do estabelecimento prisional, bom comportamento carcerário.
8. Para o fim de aplicação desta norma penal especial mais rigorosa, primário deve ser considerado todo aquele que ainda não tenha sido condenado por crime um hediondo, no momento da prática do crime hediondo posterior e objeto da segunda condenação judicial.
9. No caso de reincidente, o tempo de cumprimento da pena para a progressão é de três quintos. O conceito de reincidência não deve coincidir com aquele descrito no art. 63, do Código Penal e aplicável ao condenado pelas demais infrações penais não hediondas.
10. Somente o condenado pelos crimes dos art. 33, caput, § 1º, incisos I a III, 34 e 36, da Lei Antidrogas, devem ficar sujeitos ao cumprimento de dois ou de três quintos da pena para alcançar uma possível progressão de regime.
11. O reconhecimento do direito à progressão de regime para condenados por crime hediondo criou mais uma incômoda assimetria em nosso já desordenado sistema punitivo, pois parece despida de lógica jurídica a permanência do condenado durante um longo tempo nos regimes semiaberto e aberto antes do livramento condicional.
12 A maior parte dos doutrinadores entende que a nova lei, aparentemente mais favorável ao infrator, é na verdade mais severa. Portanto, sua eficácia retroativa, consagrada nos arts. 5º, inciso XL e 2º, parágrafo único, do CP, deve ser afastada, Não sendo norma penal mais benéfica, não pode ser aplicada aos casos pretéritos, mas tão somente aos crimes cometidos a partir de sua vigência, em 29 de março de 2007.
13. Ao julgar o HC 82.959-SP, o STF não deixou claro os efeitos erga omnes, pois não houve notificação ao Senado Federal para a revogação da norma acoimada de inconstitucional. No entanto, ao reconhecer - mesmo que de forma incidental - a inconstitucionalidade da norma proibitiva da progressão de regime, prevista na LCH, o STF garantiu o direito dos condenados por crime hediondo a postular a obtenção deste benefício penal, após o cumprimento de mais de um sexto pena.
14. A nova norma penal, aparentemente mais benéfica por reconhecer um benefício até então negado pela lei formalmente revogada, é indiscutivelmente mais rigorosa. Não se pode reconhecer-lhe eficácia retroativa.
15. Ante o exposto, a nova norma contida no art. 2º, § 2º da LCH deve ser aplicada tão somente aos crimes hediondos e seus assemelhados praticados a partir da vigência da Lei 11.464/07. Em conseqüência, o condenado por crime desta natureza, praticado antes da vivência desta lei, tem o direito à progressão de regime prisional após o cumprimento de um sexto da pena.