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A ONU e as PMs

07/08/2022 às 16:25
Leia nesta página:

Examina-se a manifestação da Dinamarca no ACNUDH consistente em recomendar que o Brasil se encamine para abolir o sistema independente de polícia militar.

A mídia, em geral, a partir de 31 de maio passado, difundiu a notícia de que o Conselho da ONU, atendendo proposta da Dinamarca, teria recomendado, ao Brasil, a extinção das Polícias Militares (PMs).

Conhecendo essa instituição secular de proteção da sociedade, particularmente a de Minas Gerais, patrimônio do povo mineiro, e desconhecendo as razões que teriam levado aquele órgão a se intrometer em nossas questões internas, num primeiro momento, no impulso, a recomendação foi tida como inconveniente, inoportuna, inconsequente, intempestiva, irresponsável até. Certamente, um enquadramento recíproco muito forte, muito severo com ambas instituições: a ONU e as PMs.  

E, para não ocorrer precipitações, a própria PM ensina a se trabalhar com fatos e não com versões, o que sugere buscar-se a origem da notícia, ou seja, o sítio da ONU. Pesquisando-se, chega-se ao Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH - www.ohchr.org).

À medida que se aprofunda na pesquisa, constata-se, cristalinamente, que a extravagante notícia não foi um furo, mas, uma estrondosa barrigada (no jornalismo, é a divulgação de uma notícia falsa como sendo um furo de reportagem). É que, em momento algum, o representante da Dinamarca sugere a extinção das PMs e, por via de conseqüência, o Conselho da ONU também não o fez. Aliás, nem se fazia presente, pois os trabalhos eram dirigidos pelo ACNUDH.

Na verdade, alguém traduziu erradamente trecho do relatório do ACNUDH e, efeito dominó, foi derrubando quem repercutiu a notícia falsa.

Esse relatório, Universal Periodic Review – UPR – é o ápice de uma metodologia utilizada pelo Alto Comissariado para identificar a real situação em que estão os Direitos Humanos, nos países da ONU, seguindo-se recomendações (isso, recomendações, não são sugestões) para correções.

O primeiro relatório, referente ao Brasil, foi produzido em 2008 e apresentou 15 (quinze) recomendações. O segundo foi divulgado na 13ª Sessão¸ de 30 de maio, em Genebra, Suíça, com a presença da ministra Maria do Rosário, chefiando uma delegação de 40 (quarenta) membros. Embora não tenha ficado claro se e quantos eram da área da segurança, o fato é que esse grupo trouxe, como dever de casa, 170 (cento e setenta) “recomendações” para o Brasil.

Para chegar a esse relatório, o ACNUDH envia ao país um Relator Especial, um observador, que coleta informações de instituições públicas e privadas, apresentando sínteses periódicas, que se juntam a comunicações enviadas para a sede de várias fontes, incluídas as dos mal intencionados.

O relator especial sobre execuções extrajudiciais, sumárias ou arbitrárias, Philip Alston, apresentou, em 26 de maio de 2010, o andamento de cada recomendação anteriormente encaminhada, de onde extraímos:

4. In the longer term the Government should work towards abolishing the separate system of military police. This recommendation has not been implemented, although it is presently being discussed by officials.

5. The federal Government should implement more effective measures to tie state funding to compliance with measures aimed at reducing the incidence of extrajudicial executions by police. This recommendation has not been implemented,

ou seja, em tradução livre:

4. A longo prazo, o Governo deve trabalhar para acabar com o sistema independente de polícias militares. Esta recomendação não foi implementada, embora esteja atualmente sendo discutida por funcionários.

5. O Governo Federal deve implementar medidas mais eficazes para vincular financiamento estatal o cumprimento das medidas destinadas a reduzir a incidência de execuções extrajudiciais pela polícia. Essa recomendação não foi implementada.

O surpreendente é que essas duas observações aparecem fundidas nas Conclusões do UPR, como sendo uma recomendação proposta pela Dinamarca e acatada pelo ACNUDH: 119.60.

Constatou-se que a manifestação da Dinamarca é: Work towards abolishing the separate system of military police by implementing more effective measures to tie State funding to compliance with measures aimed at reducing the incidence of extrajudicial executions by the police (Denmark). Ou seja:

Trabalhar para abolir o sistema independente de polícia militar implementando medidas mais efetivas para assegurar financiamento estatal para cumprimento de medidas destinadas à redução da incidência de execuções extrajudiciais pela polícia (Dinamarca).

Interessante observar, ainda, que esse relatório enfoca, quase na totalidade, questões específicas do eixo Rio-São Paulo, o que, em absoluto, não representa a realidade, em outros Estados, da insegurança gerada pela criminalidade violenta.

Ratificando a observação de desconhecimento de nossa ampla e diversificada realidade social, veja-se a recomendação da Austrália: 119.62. That other state governments consider implementing similar programs to Rio de Janeiro’s UPP Police Pacifying Unit (Australia), isto é, que outros governos estaduais considerem implementação de programas similares às UPP do Rio de Janeiro. Ora, UPP integra um específico esforço do Estado do RJ para ocupar espaços peculiares, então controlados por marginais, em razão de distopia estatal (ausência ou funcionamento anômalo de órgãos sociais). São realidades culturais distintas, dentro do território brasileiro.

Enfim, a questão, aqui, ficou restrita à supressão gradual do que chamaram trabalho independente das polícias militares (seria ausência de interação entre os organismos policiais?).

Obviamente, tal colocação deve ter sido feita por não saberem que, no Brasil, o espectro institucional contempla as polícias Administrativas (inúmeras), a Ostensiva (a PM), a Judiciária (a Polícia Civil), a de Socorrimento Público (Corpo de Bombeiros Militar - CBM) e a Penal (com a Custódia e Ressocialização de apenados).

As chamadas Polícias Militares são mais conhecidas pelo que fazem, sendo que o próprio nome induz a isso. Na verdade, elas são as forças públicas estaduais, instituições seculares que exercem atividades civis de proteção social e de garantia do funcionamento dos poderes estaduais constituídos.

Vale dizer, em breve síntese, são garantidoras da ordem social, realizando, conforme a variação dessa ordem, operações sucessivas e justapostas de polícia ostensiva (operações de policiamento ostensivo, de choque, de restauração, etc.).

O que, admite-se, não é muito bem compreendido aqui dentro (imagine-se lá fora?!...). 

Conforme as conclusões do relatório do ACNUDH, as 170 (cento e setenta) recomendações serão examinadas pelo Brasil, que irá fornecer respostas em devido tempo, mas não depois da XXI sessão do Conselho de Direitos Humanos, o mais tardar em setembro de 2012. Exaustiva tarefa para a ministra Maria do Rosário.

Quanto à recomendação 60, sugiro que a ministra trabalhe para mudar cognomes para nomes que, efetivamente, identifiquem as instituições e acabem com o entendimento equivocado de que há, nos Estados, apenas duas polícias e “fazendo a mesma coisa”: Polícia Militar para Força Estadual e Polícia Civil (todas, exceto as PMs e os CBMs, são civis) para Polícia Judiciária Estadual.

Certamente, o relator e o Alto Comissariado entenderão por que as polícias no Brasil são independentes e, desse modo, devem continuar, sendo oportuno um órgão de coordenação de esforços interativos.

Evidentemente, se nossos casmurros assim compreenderem, antes!...

Voltando à notícia inicial “ONU cobra desmilitarização da polícia no Brasil”, pesquisamos no site “United Nations Human Rights Council” – UNHRC – e encontramos, em “Notícias do Conselho de Direitos Humanos”, o seguinte texto “Brasil: especialistas da ONU denunciam atos de brutalidade policial racializada”. A data da publicação é 06 de julho 2022 e, agora, repasso aos amigos, acreditando ser a fonte de duas abordagens equivocadas: “brutalidade policial racializada”? É de se pressupor que os “especialistas da ONU” estão contaminados pelo vírus da estigmatização da Polícia, quando lhe é impingida a pecha de racializar suas ações, de atuar somente contra jovem, preto e pobre. Há vários caminhos para se estudar a violência e, em particular, a violência policial, que deve ser abominada. Se antes havia a indignidade de alguns em atribuir eventuais excessos policiais como sendo componentes de uma violência estrutural, hoje temos que lutar contra a torpeza de serem divulgados como violência cultural.   O segundo equívoco está relacionado à última reportagem “ONU cobra desmilitarização da polícia no Brasil”, cuja origem deve ter sido o artigo da UNHRC “Brasil: especialistas da ONU denunciam atos de brutalidade policial racializada”, uma abordagem errônea, conforme se falou. Ao final deste artigo (para não perder a oportunidade de macular e, consequentemente, enfraquecer os órgãos policiais) é sugerido, de passagem, “desmilitarizar a polícia”. Observa-se que, de um amplo contexto, em que prevalece a desacertada abordagem estrangeira da “brutalidade policial racializada”, são retiradas três palavras para uma parcial reportagem nacional sobre “desmilitarização da polícia”. Mais uma vez, ficou claro que grande parte da imprensa conhece a PM pelo que ela faz (Polícia Ostensiva) e não pelo que ela é (Força Pública Estadual, cujo caráter militar lhe é intrínseco).    A seguir, transcrevo o artigo da UNHRC:

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Brasil: especialistas da ONU denunciam atos de brutalidade policial racializada GENEBRA (6 de julho de 2022) - Após a morte de pelo menos 23 pessoas pela polícia em dias consecutivos, especialistas da ONU pediram ao governo brasileiro que adote reformas abrangentes para acabar com a violência policial, desmilitarizar todas as agências de aplicação da lei e abordar vigorosamente o racismo sistêmico e a discriminação racial.

Em 25 de maio de 2022, as forças de segurança brasileiras dispararam indiscriminadamente durante uma operação na Favela Cruzeiro, no Rio de Janeiro, matando pelo menos 23 pessoas, incluindo crianças, a maioria afro-brasileiras.

No dia seguinte, a polícia parou um afro-brasileiro neurodivergente andando de moto em Umbaúba. Apesar da vítima estar desarmada, os três policiais teriam usado spray de pimenta e gás lacrimogêneo e colocaram o homem no porta-malas do carro. Ele morreu pouco tempo depois.

“Esses relatórios chocantes sugerem um desrespeito inconcebível pela vida humana”, disseram os especialistas.

“Nós levantamos repetidamente nossas preocupações sobre o uso excessivo e letal da força usado por policiais brasileiros e o impacto desproporcional sobre os brasileiros afrodescendentes. No entanto, os últimos relatórios de brutalidade policial parecem mostrar que tais violações de direitos humanos continuam impunes”.

Os especialistas reiteraram os apelos para aderir aos padrões internacionais que regem o uso da força. “O uso de força potencialmente letal é uma medida extrema, que pode ser utilizada apenas quando estritamente necessário para proteger a vida ou evitar ferimentos graves de uma ameaça iminente”, disseram os especialistas.

Eles enfatizaram a necessidade de investigar de forma eficaz, independente e imediata os incidentes mais recentes, inclusive de acordo com o Protocolo de Minnesota de 2016 sobre a Investigação de Mortes Potencialmente Ilícitas e os Princípios das Nações Unidas sobre a Prevenção e Investigação Eficazes de Execuções Extrajudiciais, Arbitrárias e Sumárias , e garantir justiça para as vítimas e suas famílias. “As vítimas desses assassinatos merecem justiça. O governo brasileiro deve garantir que suas mortes sejam investigadas de forma efetiva e independente e que as vítimas, suas famílias e comunidades afetadas recebam reparação adequada”.

Os especialistas pediram uma reforma abrangente da aplicação da lei no Brasil. “A nova onda de violência é a mais recente manifestação do uso sistêmico e sustentado do uso excessivo e letal da força por policiais no Brasil”, disseram.

“Pedimos ao governo brasileiro que aborde as causas profundas dessa violência por meio de reformas abrangentes em todos os ramos relevantes da aplicação da lei. Essa reforma deve abranger esforços direcionados para eliminar o perfil racial e a discriminação racial, desmilitarizar a polícia e melhorar as leis e diretrizes que regem o uso da força”.

Os especialistas da ONU estão em comunicação oficial com o governo brasileiro para tratar dessas alegações e esclarecer suas obrigações perante o direito internacional.

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Sobre o autor
Amauri Meireles

coronel da Polícia Militar de Minas Gerais, policiólogo, ex-professor da Academia da Polícia Militar de Minas Gerais

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEIRELES, Amauri. A ONU e as PMs. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6976, 7 ago. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/99432. Acesso em: 19 abr. 2024.

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