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Liberalismo econômico e socialismo: o conflito em relação ao papel do Estado na construção de grandes obras de infraestrutura energética

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O socialismo estatal de Roosevelt influenciou a infraestrutura energética no Brasil. Como o neoliberalismo alterou esse modelo? O artigo analisa esse embate e os impactos ambientais envolvidos.

Resumo: O socialismo autoritário e estatizante, oriundo do período entre-guerras, não conseguiu se impor sobre o socialismo norte-americano proposto por Franklin Delano Roosevelt, o qual se expandiu para muitos países, inclusive o Brasil. Um dos principais exemplos adotados no Brasil foi o da Tennessee Valley Authority (TVA), uma empresa estatal de grande porte, responsável por desenvolver a infraestrutura energética dos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, por meio de grandes obras, a TVA gerava emprego e renda, atenuando os efeitos da Grande Depressão. Essa abordagem prevaleceu em muitos países capitalistas até o final da década de 1960, quando, por meio das ideias de Milton Friedman, o liberalismo econômico foi revigorado em suas diversas formas, contrapondo-se ao Estado de bem-estar social. O objetivo deste artigo é, portanto, analisar o embate entre essas duas concepções econômicas, com especial atenção às grandes obras de infraestrutura para a geração de energia elétrica. Para isso, o estudo partirá de uma análise aprofundada da TVA e sua influência no Brasil. Em seguida, abordará a Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA) e seus antagonistas. Por fim, será examinada a forma como essas duas vertentes econômicas tratam a questão ambiental.

Palavras-chave: Liberalismo, socialismo, estado, construção.


INTRODUÇÃO

Em termos políticos, sempre houve a noção de situação e oposição, ou seja, aqueles que lograram alcançar o poder governamental tiveram que enfrentar os oposicionistas para mantê-lo. Nos sistemas monárquicos da Antiguidade, essas oposições pareciam ser menos sistematizadas, pois o monarca, quase sempre, mandava prender, exilar ou assassinar seus inimigos políticos. É nesse contexto que se encontram alguns dos arquétipos ilustrados por Maquiavel em O Príncipe.

O absolutismo europeu ampliou seus pilares e, por quatro séculos, configurou os rumos de boa parte do mundo ocidental. No entanto, trazia consigo uma semente que seria a principal causa de sua derrocada: a necessidade de equilibrar forças tão díspares quanto as da Igreja Católica, da nobreza e da poderosa burguesia comercial. As duas primeiras estavam mais centradas em suas raízes feudais; a última, entretanto, lutava pelo direito a liberdades políticas e sociais.

Dessa conjuntura surgiram o mercantilismo e o metalismo como expressões do capitalismo da época. A Reforma Protestante, liderada por Lutero e outros reformadores, também se insere nesse cenário de embates entre liberalismo e autoritarismo, assim como as revoltas burguesas na Inglaterra e na Holanda.

No campo literário, o Renascimento e o Barroco serviram de alicerces para movimentos dúbios e contraditórios, cujo ápice se manifestaria no Romantismo, impregnado de insubordinação contra os sistemas, os poderes instituídos e as tradições.

Os anseios das classes comerciantes e financeiras moldaram um pujante lobby sobre as monarquias, sendo essa uma das razões do impacto provocado pela Revolução Francesa. Não se pode considerá-la, entretanto, unicamente de matiz burguês, embora muitos dos valores preconizados por essa classe tenham sido as bases da referida revolução: liberdade, igualdade e fraternidade, sobretudo. Pode-se dizer que os comerciantes e o povo em geral – desde os escolarizados e abastados até os humildes proletários – pareciam aliar-se, de comum acordo, em oposição aos interesses absolutistas, cujos pilares eram a monarquia, a nobreza tradicional e alguns segmentos da Igreja Católica.

Com a monarquia enfraquecida, evidenciaram-se os conflitos internos entre os revolucionários. De um lado, os ricos e poderosos comerciantes não desejavam a destruição imediata da monarquia, mas uma transição gradual para a democracia, passando por um modelo misto, semelhante ao inglês atual. De outro, nobres e burgueses falidos, trabalhadores autônomos, liberais e os menos afortunados reivindicavam a abolição total dos privilégios, não apenas dos nobres e do clero, mas também dos próprios burgueses.

Dentro da própria Revolução, já se moldava a noção de esquerda e direita. A primeira era mais liberal em termos sociais e buscava garantias fundamentais, mas, ao mesmo tempo, mantinha uma visão tradicional sobre a função do Estado, que deveria atuar como elemento moderador, intervindo e combatendo desigualdades sociais. Já a segunda, mais conservadora nos costumes, defensora dos princípios bíblicos (seja pela perspectiva protestante ou católica), era, no entanto, liberal na economia, exigindo do Estado atribuições limitadas em relação à intervenção no sistema financeiro e familiar.

Assim, pode-se afirmar que as noções de liberalismo, igualitarismo, socialismo e comunismo, pelo menos em suas vertentes contemporâneas, nasceram ou se fortaleceram dentro do capitalismo. É claro que a ideia de um comunismo estatal, destruidor de toda forma de burguesia, só se concretizaria com Marx, Lênin e, principalmente, com Stalin e Mao. Sob essa perspectiva, o comunismo pode ser visto como um "filho rebelde" do capitalismo. Esse tipo de comunismo, no entanto, não é o foco da presente discussão, mas sim uma vertente mais moderada e estatizante, comumente conhecida como socialismo.

Nesse sentido, o socialismo é uma mescla de capitalismo e comunismo. Não nega o livre comércio nem a propriedade privada, mas busca usar o Estado como elemento nivelador e equalizador entre os indivíduos. Existem muitos exemplos de socialismo, desde o da Prússia de Bismarck até o de Franklin Delano Roosevelt nos Estados Unidos. Inclusive os regimes de Hitler e Mussolini poderiam ser enquadrados nessa perspectiva, uma vez que, assim como Roosevelt, combateram o capitalismo financeiro desmedido e buscaram, por meio de um Estado mais forte, frear as crises do capitalismo – não para destruí-lo, mas para ampará-lo.

Nessa lógica, Hitler combateu tanto o capitalismo liberal, representado pela Inglaterra e pelos Estados Unidos, quanto o comunismo, tentando destruir a União Soviética de Stalin. No entanto, o próprio partido nazista preconizava uma noção autoritária de socialismo.

O corporativismo autoritário de Hitler e Mussolini não conseguiu impor-se sobre o socialismo norte-americano proposto por Roosevelt, o qual se estendeu por muitos países, inclusive o Brasil. Um dos grandes exemplos copiados pelo Brasil foi o da Tennessee Valley Authority (TVA), uma empresa estatal poderosa e de grande porte, responsável por desenvolver as bases energéticas dos Estados Unidos, ao mesmo tempo que, por meio de grandes construções, gerava emprego e renda, amenizando assim o impacto provocado pela Grande Recessão.

Essa noção prevaleceu, em grande medida, nos países capitalistas até o final da década de sessenta do século anterior, quando, por meio de Milton Friedman, o liberalismo econômico, em todas as suas modalidades, revigorou-se, contrapondo-se ao Estado de bem-estar social. O objetivo deste artigo é, por conseguinte, analisar o choque entre essas duas posturas, sobretudo com foco nas grandes construções voltadas à geração de energia elétrica.

Para tanto, partir-se-á do aprofundamento do estudo da TVA e de sua influência no Brasil. Em seguida, buscar-se-á abordar a Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA) e seus antagonistas. Por fim, examinar-se-á como as duas vertentes estudadas tratam a questão ambiental.


1. TENNESSEE VALLEY AUTHORITY E SUA INFLUÊNCIA NO BRASIL

Pouco tempo após sua chegada à Casa Branca e amparado por sua meta de tirar os Estados Unidos da recessão provocada pela quebra da Bolsa de Valores de Nova York, Franklin Delano Roosevelt obteve permissão do Capitólio para criar uma autarquia federal: a Tennessee Valley Authority (TVA). Seus dois objetivos básicos eram gerar empregos por meio da contratação direta de milhares de trabalhadores e melhorar a infraestrutura energética do país.

E qual foi a novidade nisso? Apesar das falhas estruturais e do viés ideológico que carregava, a TVA foi a primeira grande empresa pública a angariar fundos em grande quantidade para investir na construção de hidrelétricas e outras fontes de energia.

O principal objetivo da TVA era promover o desenvolvimento econômico regional por meio de uma transformação radical na geografia da bacia do rio Tennessee, nos Estados Unidos. Esse rio, que percorre uma área de aproximadamente 106.000 km2, cruza sete estados: Tennessee, Carolina do Norte, Carolina do Sul, Geórgia, Alabama, Mississippi e Arkansas – região conhecida vulgarmente como Deep South, marcada por um histórico de violência durante a colonização e a Guerra de Secessão.

Um dado relevante é que o vale do Tennessee está situado entre duas regiões geográficas bastante distintas. De um lado, uma área montanhosa, que constituiu uma barreira física e imaginária, impedindo por cerca de duzentos anos o acesso dos colonizadores ao interior. Esse fator contribuiu para uma alta densidade populacional ao longo do litoral (BROSE, 2015, p. 8), enquanto o interior permaneceu pouco habitado por muito tempo. Do outro lado, uma região densamente povoada.

Por ser um vale cercado por montanhas e de difícil acesso, até a década de 1930 essa era uma das regiões mais pobres do país:

O vale do rio Tennessee constitui o terço sul da Cordilheira dos Apalaches. Essa cordilheira estende-se desde o Canadá até o Alabama por 3.000 km, sendo formada por um sistema de morros, picos e vales alinhados na direção norte a sul, com altitude média de 1.000 m. A largura da cordilheira varia de 160 km a 480 km, sendo coberta por densas florestas nas quais povos indígenas do litoral procuraram refúgio dos colonos europeus (BROSE, 2015, p. 08).

A região sempre foi marcada por um contraste: grandes fortunas concentradas nas mãos de poucos e pobreza para a maioria da população, especialmente os ex-escravos. Embora o Sul escravista tenha perdido a Guerra Civil, as fortunas não mudaram drasticamente de mãos, nem houve uma política eficaz de combate ao racismo. Durante décadas, o apartheid foi uma realidade nos estados sulistas, agravando-se ainda mais com a Grande Recessão de 1929.

O avanço da industrialização no Norte trouxe consigo os problemas inerentes ao capitalismo industrial: grandes migrações provenientes do Sul, cidades superpovoadas, violência urbana, desemprego e criminalidade. Enquanto isso, o Sul permanecia racista e socialmente desigual, o que contribuiu para o recrudescimento dos movimentos sociais. O Crash da Bolsa tornou a situação insustentável.

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Foi nesse contexto que Roosevelt saiu vitorioso nas eleições presidenciais de 1932. Com um discurso antiliberal na economia e propostas notadamente keynesianas, recebeu financiamento, em parte, de grandes empresários, como Henry Ford e Pierre S. du Pont – um dos magnatas da General Motors –, justamente para impor regras ao sistema financeiro cambaleante de Wall Street. No entanto, esse apoio não durou muito, e Roosevelt acabou se voltando também contra os grandes capitalistas, chegando a criar tributos sobre grandes fortunas.

Nesse cenário de rearranjo do capitalismo, Roosevelt não podia perder o apoio dos políticos do Sul no Congresso. Esses parlamentares, sempre preocupados com as reeleições, buscavam formas de tirar seus estados da miséria em que se encontravam. Foi dessa necessidade que surgiu a preocupação com a bacia do Tennessee:

Para que o Governo Federal pudesse intervir diretamente nas raízes da pobreza em uma das regiões mais miseráveis do país, a bacia do rio Tennessee, a ideia foi criar uma autarquia federal, com autonomia e acesso garantido ao Tesouro, composta somente por funcionários qualificados selecionados por meritocracia. Esta organização unificaria sob sua coordenação os programas setoriais usualmente fragmentados por diversas organizações públicas: educação, extensão rural, apoio à micro e pequenas indústrias, crédito subsidiado, mecanização da agricultura, reflorestamento e similares, potencializando o impacto e minimizando a ingerência externa. (BROSE, 2015, p.13).

Assim, surgiu uma autarquia política com matizes keynesianos para investir pesadamente na região. No entanto, ela não seria administrada por sulistas (Brose, 2015). A autarquia teria, por conseguinte, superpoderes. Como unidade básica desse experimento, foi escolhida uma bacia hidrográfica, rompendo, assim, com a lógica administrativa baseada em municípios ou unidades federativas, característica da política partidária. Dessa forma, conferiu-se um foco suprapartidário à nova autarquia, que seria responsável pelo território com poderes quase ditatoriais (BROSE, 2015, p. 08).

Mas por que a bacia do Tennessee foi escolhida? Simplesmente porque era ocupada por agricultores familiares brancos empobrecidos, o que aumentava a legitimidade da autarquia. Toda a nação conhecia a fama das famílias da Greater Appalachia e dificilmente haveria resistência ideológica em ajudá-los. Essa população era politicamente aliada dos fazendeiros brancos das planícies do Deep South. Além disso, por estar em uma área remota e economicamente subdesenvolvida, a bacia não possuía um sistema ferroviário ou rodoviário que impedisse a formação dos lagos das barragens.

Dessa forma, ao modificar a sociedade rural da bacia do rio Tennessee por meio da educação e da melhoria da qualidade de vida das famílias, o governo federal estaria minando as bases políticas das lideranças arcaicas do Deep South (BROSE, 2015, p. 08). Isso contribuiu para enfraquecer o poder dos grandes fazendeiros locais.

Como se vê, a realidade norte-americana se assemelhava à de muitos países sul-americanos, sobretudo ao Brasil. O modelo de governo adotado na época por Getúlio Vargas era similar ao norte-americano. Não por acaso, a partir da década de 1940, o modelo da TVA começou a se difundir pelo Brasil. Alguns intelectuais e políticos passaram a exigir do governo federal a adoção desse modelo no país.

Em 1945, Getúlio Vargas autorizou, via decreto, a criação da Companhia Hidroelétrica do São Francisco (CHESF), que, no entanto, só foi efetivamente materializada em 1948. Um pouco antes, em 1947, Vargas enviou ao Congresso Nacional um projeto para criar a Comissão de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (CVSF), que foi aprovado em 1948. No entanto, a CVSF acabou se preocupando mais com os interesses das oligarquias locais do que com o desenvolvimento da região:

As forças que haviam assumido o comando da CVSF estavam muito mais interessadas numa série de pequenos projetos, que ofereciam a oportunidade de recompensar os amigos e influenciar pessoas [...] representando apenas uma transferência para a CVSF de atividades anteriormente executadas por outras agências federais ou estaduais. (HIRSCHMAN, 1965, p. 69).

A CVSF, inspirada nos modelos desenvolvimentistas da TVA, foi rechaçada por muitos setores liberais conservadores. Segmentos da burguesia exportadora cafeeira se opuseram à prática do planejamento e ao próprio conteúdo do plano, considerado dirigista e contrário aos interesses da lavoura (PAULA, 2011, p. 9). Mesmo assim, sua aprovação ocorreu em 1950, durante o governo Café Filho.

O objetivo da CVSF não era apenas a construção de obras, mas também a implementação de um princípio desenvolvimentista mais solidário com a distribuição de renda (LOPES, 1991). No entanto, na era Juscelino Kubitschek, a empresa já era vista como um cabide de empregos.

Em 1967, a CDSF teve seu nome alterado, passando a chamar-se Superintendência do Vale do São Francisco (SUVALE). O modelo da TVA também foi incorporado a outras companhias nacionais, como a CESP (Companhia Energética de São Paulo). Em todas essas empresas, o objetivo era o mesmo: conciliar o progresso econômico com o desenvolvimento regional, por meio de um Estado forte que interviesse diretamente na economia, evitando que o capitalismo financeiro, por meio de suas constantes especulações, comprometesse o desenvolvimento do país.


2. O RETORNO DO LIBERALISMO ECONÔMICO AO BRASIL

O modelo estatizante socialista começou a sofrer duros reveses a partir da década de 1960, justamente com o ressurgimento de ideias neoliberais, sobretudo as defendidas por Milton Friedman, que propunha uma mudança radical na política econômica do Estado. Suas ideias ganharam força devido à grande onda inflacionária que atingiu o mundo em dois períodos: um na década de 1970 e outro em meados da década de 1980.

Para combater a inflação global, as potências mundiais decidiram unir-se na capital norte-americana e pactuaram medidas para as próximas décadas. Essa reunião ficou conhecida como Consenso de Washington.

Influenciadas pelo modelo econômico dos Estados Unidos, as burguesias latino-americanas adotaram o neoliberalismo, que teve seu auge no Brasil durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. Ele foi eleito graças ao êxito de sua política econômica com a implantação do Plano Real, que trouxe os seguintes impactos:

  • Redução dos gastos públicos sem depender da corrosão orçamentária causada pela inflação;

  • Inflação próxima de zero por meio de reforma monetária;

  • Ausência de congelamento de preços, o que diferenciava essa tentativa das anteriores;

  • Juros altos, favorecendo o capital especulativo;

  • Recuperação da receita tributária por meio de ajuste fiscal e combate à sonegação;

  • Renegociação das dívidas dos estados e municípios com a União;

  • Controle rígido sobre os bancos estaduais e saneamento dos bancos federais;

  • Privatizações (Vale, siderúrgicas, bancos, telefonia etc.);

  • Criação de agências reguladoras, mantendo alguns setores sob controle público, mesmo após a privatização;

  • Estabilidade econômica, que impulsionou o consumo interno;

  • Abertura econômica, facilitando a entrada de investimentos externos;

  • Retomada do financiamento externo, viabilizando novos investimentos.

Essas medidas deram ao presidente poder político para conduzir uma série de privatizações, enfraquecendo o modelo desenvolvimentista implantado por Roosevelt por meio da TVA. Em suma, houve uma modernização do setor estatal, consolidando o conceito de Estado Mínimo, no qual a intervenção governamental na economia e na vida dos cidadãos deveria ser reduzida ao mínimo possível.

Nesse contexto, surgiu uma tentativa de combater o nepotismo impregnado na máquina pública, os favorecimentos pessoais e, sobretudo, a burocracia excessiva. Assim, foi promulgada a Emenda Constitucional nº 19/1998, que alterou substancialmente o artigo 37 da Constituição Federal de 1988. Desde o seu caput, o artigo passou a ter a seguinte redação:

"A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência [...]".

O ponto central dessa alteração foi o acréscimo de um novo princípio: o da eficiência, que passou a exigir que o funcionalismo público não apenas prestasse um serviço, mas o fizesse de forma eficaz.

Essa mudança representou o prelúdio do que viria a seguir: a Lei Complementar nº 101/2000, mais conhecida como Lei de Responsabilidade Fiscal. Essa lei combateu, sobretudo, os resquícios do coronelismo nos estados da federação. Muitos governadores, representantes das oligarquias locais, usavam os bancos estaduais como fonte ilimitada de empréstimos, os quais eram utilizados para consolidar alianças políticas e garantir reeleições por meio da distribuição direta ou indireta de recursos para campanhas eleitorais.

Os bancos estaduais, por sua vez, não recebiam de volta os valores emprestados aos governadores, acumulando um déficit crescente. Quando a situação se tornava insustentável, solicitavam auxílio ao Banco Central, que, para evitar a falência dessas instituições, acabava assumindo suas dívidas. Esse problema não se restringia aos bancos estaduais: muitas empresas estatais e autarquias operavam de forma semelhante, sem um controle rigoroso sobre suas finanças e orçamentos.

Diante desse cenário, as privatizações foram amplamente aceitas pela população, apesar da oposição de alguns setores políticos. Um exemplo desse embate foi o caso da Eletronorte, que, conforme o Decreto nº 1.503, de 25 de maio de 1995, havia sido incluída na lista de empresas a serem privatizadas. Como a privatização não ocorreu imediatamente, o presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC) desmembrou a empresa por meio da Lei nº 9.648, de 27 de maio de 1998. No entanto, com a mudança do governo federal, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva retirou a Eletronorte da lista de empresas passíveis de privatização.

Esse contexto reflete o embate entre duas grandes tendências econômicas que ainda disputam hegemonia: o modelo estatizante-socialista, baseado no pensamento keynesiano, e o modelo neoliberal, fundamentado nos preceitos de Milton Friedman. No entanto, essas correntes não possuem limites rigidamente definidos e, muitas vezes, se mesclam de tal forma que torna-se difícil diferenciá-las. Essa interseção pode ser melhor visualizada nos debates entre os defensores e opositores da Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA).

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Sobre o autor
Elton Emanuel Brito Cavalcante

Doutorando em Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente - UNIR; Mestrado em Estudos Literários pela Universidade Federal de Rondônia (2013); Licenciatura Plena e Bacharelado em Letras/Português pela Universidade Federal de Rondônia (2001); Bacharelado em Direito pela Universidade Federal de Rondônia (2015); Especialização em Filologia Espanhola pela Universidade Federal de Rondônia; Especialização em Metodologia e Didática do Ensino Superior pela UNIRON; Especialização em Direito - EMERON. Ex-professor da rede estadual de Rondônia; ex-professor do IFRO. Advogado licenciado (OAB: 8196/RO). Atualmente é professor do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Rondônia - UNIR.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAVALCANTE, Elton Emanuel Brito. Liberalismo econômico e socialismo: o conflito em relação ao papel do Estado na construção de grandes obras de infraestrutura energética. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 7927, 15 mar. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/99446. Acesso em: 2 abr. 2025.

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