United States v. Windsor e Obergefell v. Hodges
As discriminações sofridas por grupos colocados em lugar de subordinação pelos grupos dominantes são objeto de importantes julgados que analisam o alcance de direitos fundamentais. Nesse cenário, as Cortes constitucionais verificam a observância do direito à igualdade e em que medida um tratamento diferenciado pode ser considerado discriminatório. Mas como seria possível verificar essa medida? A Suprema Corte dos Estados Unidos respondeu a essa questão em casos como United States vs Windsor e Obergefell vs Hodges. Contudo, há também abordagens como as propostas por Catharine MacKinnon e Angela Harris, que podem ajudar a pensar o tratamento mais interessante para casos onde se aponta a ocorrência de uma discriminação.
Em United States v. Windsor (2013), o julgado se desenrola em torno do Ato de Defesa do Casamento (DOMA), que estabelecia que as palavras casamento e cônjuge designavam a união legal entre um homem e uma mulher, para efeitos de legislação federal. No âmbito estadual, no entanto, alguns estados permitiram o casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Foi nesse contexto que duas mulheres, Edith Windsor e Thea Clara Spyer, se casaram no Canadá, e seu casamento foi reconhecido pelo estado de Nova York. Após o falecimento de Thea, em 2009, Edith se tornou sua única herdeira. Contudo, como o seu casamento não era reconhecido no âmbito federal, o Estado entendeu que a ela não se aplicava uma isenção marital que lhe teria livrado de pagar impostos sobre a herança.
Neste caso, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu, por uma maioria de 05 votos em 09, que o Ato de Defesa do Casamento era inconstitucional, na medida em que negava aos casais do mesmo sexo, casados no âmbito estadual, os seus direitos conferidos pela quinta emenda a uma igual proteção da norma federal.
A Suprema Corte entendeu que, ao restringir a definição de casamento, o DOMA interferia na autonomia dos estados. Além disso, a normativa negava a casais do mesmo sexo direitos disponíveis a outros casais, casados legalmente no mesmo estado. A Suprema Corte, então, concluiu que o DOMA acabava por impor uma desvantagem e um estigma sobre os casais do mesmo sexo, o que violava a quinta emenda da Constituição.
Em Obergefell v. Hodges (2015), vários grupos de casais homossexuais processaram suas agências estaduais em Ohio, Michigan, Kentucky e Tennessee, arguindo a inconstitucionalidade do banimento de casamentos entre pessoas do mesmo sexo ou recusa ao reconhecimento de casamentos entre essas pessoas, ocorridos em outros estados. O argumento utilizado para sustentar a tese da inconstitucionalidade foi baseado na violação dos estatutos dos estados às Cláusulas de Igual Proteção e Devido Processo presentes na décima quarta emenda da Constituição dos Estados Unidos da América. Em todos os casos, o juízo foi favorável à tese da inconstitucionalidade. Contudo, a Corte de Apelação dos Estados Unidos para a Sexta Circunscrição reverteu a decisão, afirmando que não havia violação à décima quarta emenda.
Ao julgar a demanda, a Suprema Corte concluiu pela tese da inconstitucionalidade, entendendo que a décima quarta emenda exigia que os estados permitissem o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Em suas razões, a Suprema Corte afirmou que a Cláusula do Devido Processo garante o direito ao casamento como uma liberdade fundamental, já que é algo que integra a autonomia do indivíduo. Assim, a garantia do direito ao casamento deve ser aplicada a casais homossexuais da mesma forma que se aplica a casais heterossexuais. No que se refere à Cláusula de Igual Proteção, ela garantiria o direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, uma vez que a negação desse direito significaria a negação de uma igual proteção a esses casais. Assim, os direitos à liberdade e à igualdade estariam entrelaçados na décima quarta emenda, aplicando-se conjuntamente ao direito ao casamento.
Diferença e Dominação
Catharine MacKinnon (1987), em Difference and dominance: on sex discrimination, explica como o paradigma da equivalência/diferença na teoria da igualdade de gênero domina o direito antidiscriminatório. A autora explica como, a partir desse paradigma, a igualdade para as mulheres seria verificada na medida em que são tratadas de forma equivalente aos homens ou, por sua vez, a discriminação seria verificada na medida em que as mulheres são tratadas de forma diferente dos homens. Assim, haveria um parâmetro para se medir a igualdade que, no caso das relações de gênero, seria o homem. Nessa perspectiva, um tratamento diferenciado só seria justificável como proteção especial.
Apesar de MacKinnon focar sua crítica no tratamento dado à discriminação baseada no gênero, é possível traçar um parelelo com discriminações de outras ordens. Por exemplo: pode-se dizer que o paradigma da diferença se aplica à discriminação baseada na orientação sexual, quando a igualdade garantida às pessoas homossexuais se mede pela equivalência de seu tratamento ao que é conferido às pessoas heterossexuais, da mesma forma se poderia dizer da discriminação baseada na raça.
Para contrapor essa abordagem, MacKinnon propõe o paradigma da dominação, que se preocupa antes com a distribuição de poder do que com um tratamento equivalente. Para a autora, a dominação veio primeiro e depois a demarcação das diferenças para justificar a dominação. MacKinnon parte de um modelo aplicado pelas Cortes dos Estados Unidos para alcançar justiça racial nos anos 60:
Ele era baseado no reconhecimento de que a condição dos negros em particular não era fundamentalmente uma questão de diferenciação racional ou irracional baseada na raça, mas era fundamentalmente uma questão de supremacia branca, sob a qual as diferenças raciais se tornaram odiosas por consequência (MacKinnon, 1987, p. 42).
Essa abordagem permitiria englobar experiências que acontecem apenas com mulheres, independentemente de uma comparação com os homens, retirando-as do silenciamento, sem que isso significasse proteção especial: O paradigma da diferença tenta mapear a realidade; o paradigma da dominação tenta desafiá-la e modificá-la (MacKinnon, 1987, p. 44).
Igualdade e Liberdade
Angela Harris (2000), em Beyond Equality: Power and the Possibility of Freedom in the Republic of Choice, aponta o uso da Cláusula de Igual Proteção para proteger grupos oprimidos, em detrimento da Cláusula de Privilégios ou Imunidades, ambas da 14ª Emenda. O abandono da última se daria devido a uma decisão da Suprema Corte em 1873, nos Slaughter-house Cases, que associou os direitos previstos nesta cláusula apenas à cidadania no âmbito federal. Para a autora, enquanto a Cláusula de Igual Proteção trata do direito à igualdade, a Cláusula de Privilégios e Imunidades trata do direito à liberdade, ao determinar que: nenhum estado deve editar ou impor qualquer legislação que deva restringir os privilégios ou imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos (Constituição dos Estados Unidos, emenda XIV, § 1º).
Angela, a partir de Catharine MacKinnon, aborda as limitações do discurso da igualdade, que acaba por estabelecer como parâmetro o grupo dominante, como os brancos. Além disso, esse discurso levanta a discussão sobre a diferença, elegendo como sujeito de direito apenas quem é similar ao parâmetro, classificando o tratamento diferente como uma exceção à regra. Ainda, o discurso da igualdade nos levaria a um longo debate sobre o caráter essencial dos grupos, ao invés do foco estar no tratamento dado a esses grupos (HARRIS, 2000).
Uma alternativa é proposta, então, por Harris, que consistiria em mudar o foco para a liberdade e para a classe. Harris considera os perigos dessa retórica: no que diz respeito à adoção de uma concepção conservadora de liberdade, como liberdade negativa ou de variedade de escolha (proporcionada pelo mercado livre), que acaba por mascarar injustiças. Mas também no que se refere à classe, a autora menciona quando ela é utilizada no discurso para se contrapor a políticas focadas nas identidades racial ou de gênero, por exemplo, menosprezando-as por serem supostamente alienantes, ou quando o argumento da classe é utilizado contra ações afirmativas baseadas na raça, sob o fundamento de que há pessoas brancas menos privilegiadas que algumas pessoas negras, o que acaba por criar uma competição de sofrimento.
Apesar dos perigos apontados por ela, Angela propõe articular liberdade e classe de outra forma, para pensar como o sistema capitalista impõe restrições à nossa liberdade, nos sujeitando à disciplina do mercado livre. Ela ressalta que, quando se refere ao capitalismo, não trata somente do mercado, mas também das instituições e normas que fazem parte e perpetuam esse sistema. Assim, seria possível trabalhar com a retórica da liberdade para pensar as opressões.
Igualdade ou Liberdade?
Em United States vs. Windsor, a Corte faz uma comparação entre casais do mesmo sexo e casais do sexo oposto para demonstrar que estavam recebendo tratamento diferenciado injustificadamente, de modo que os casais heterossexuais podiam gozar da isenção de impostos sobre a herança que era negada aos homossexuais. Aqui, é possível vislumbrar a utilização do paradigma da diferença, criticado por MacKinnon, onde é necessário um parâmetro para a aferição da igualdade. O parâmetro são os heterossexuais e, assim, igualdade significaria ter os mesmos direitos de que gozam os casais de sexo oposto.
Em Obergefell vs. Hodges, a Suprema Corte também compara casais do mesmo sexo a casais de sexo oposto para afirmar que, se o direito ao casamento é garantido às pessoas heterossexuais, deve também ser garantido aos homossexuais, para que seja observada uma igual proteção. Por outro lado, a Corte considera o direito ao casamento enquanto uma garantia individual essencial para a autonomia do indivíduo e, portanto, para sua liberdade. Nesse caso é possível verificar uma aplicação conjunta da retórica da igualdade, a partir do paradigma da diferença, e da retórica da liberdade.
A análise da violação à liberdade em Obergefell não se iguala àquela proposta por Harris, uma vez que não se aprofunda nos mecanismos de dominação capitalista que resultam na restrição de direitos. Há, no entanto, uma perspectiva já de liberdade positiva associada à igualdade, no sentido de reconhecimento da obrigação do Estado em garantir direitos para casais homossexuais. Contudo, a discussão sobre liberdade proposta por Harris permitiria constatar a forma como as normas do sistema capitalista existem para controlar e submeter os grupos não dominantes e impor as normas de comportamento dos homens, dos brancos e dos heterossexuais, restringindo a autonomia dos grupos subordinados. Assim, o não reconhecimento do casamento de pessoas homossexuais e dos direitos daí advindos seria uma forma de dominação e de não repartição do poder com esses grupos. Nesse aspecto há uma confluência entre o paradigma da dominação, proposto por MacKinnon, e a retórica da liberdade, proposta por Harris. Isso porque a dominação implica em restrições da liberdade, em controle, de modo que a análise da desigualdade a partir do paradigma da dominação implica em levar também a liberdade em consideração.
O vislumbramos, então, é que tanto a análise da igualdade a partir do paradigma da dominação, quanto a da liberdade a partir da disciplina do sistema capitalista, se complementam e contribuem para a superação de uma leitura das opressões limitada por um parâmetro hegemônico e homogeneizante, que vem do paradigma da diferença, reconhecendo que liberdade e igualdade são equiprimordiais.
Referências Bibliográficas
ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Constituição dos Estados Unidos. 1789.
HARRIS, Angela. Beyond Equality: Power and the Possibility of Freedom in the Republic of Choice. Cornell Law Review, v. 85, issue 5, article 1, p. 1181-1193, July 2000. Disponível em: https://scholarship.law.cornell.edu/clr/vol85/iss5/1/
MACKINNON, Catharine A. Difference and dominance: on sex discrimination. In: MACKINNON, Catharine A. Feminism unmodified: discourses on life and law. Cambridge/London: Harvard University Press, 1987. Disponível em: https://cpb-us-e1.wpmucdn.com/blogs.cornell.edu/dist/5/5699/files/2017/07/MacKinnon-Difference-and-Dominance-1xd2ebw.pdf
SUPREMA CORTE DOS ESTADOS UNIDOS. United States v. Windsor. 2013. Disponível em: https://supreme.justia.com/cases/federal/us/570/744/#tab-opinion-1970765 . Acesso em: 02 de merço de 2021.
SUPREMA CORTE DOS ESTADOS UNIDOS. Obergefell v. Hodges. 2015. Disponível em: https://supreme.justia.com/cases/federal/us/576/14-556/. Acesso em: 02 de merço de 2021.