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Não corte essa onda!

07/06/2007 às 00:00
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No jornal O Globo do último domingo de maio (28.5.2007), uma notícia esportiva mereceu destaque: pela primeira vez, um surfista brasileiro ganhou o campeonato mundial de longboard da ASP. O campeão, Phil Rajzman, filho do ex-jogador de vôlei Bernard Rajzman, começou a ter aulas com um dos pioneiros do surfe no Brasil, Rico de Souza, quando era bem criança. A matéria ainda informava que havia cerca de 30 escolinhas de surfe no Rio de Janeiro, todas funcionando basicamente por conta da dedicação e dos esforços próprios de professores surfistas e alunos, e, até onde se podia perceber, sem qualquer subvenção pública. Ah, sim: em uma parte da matéria, dizia-se que a Prefeitura já estava pensando em criar uma espécie de "selo de qualidade" dessas escolinhas, que passariam a ter que se cadastrar e que preencher papéis e mais papéis para poderem continuar a funcionar, sob controle público.

Estava demorando. O Poder Público nunca se incomodou com os surfistas, e nem com o esporte. Ainda bem. Puderam organizar-se por conta própria, criaram associações, organizaram competições, buscaram patrocínios, incluíram o Brasil na elite do surfe mundial, fizeram o que era uma brincadeira transformar-se em indústria cultural, criaram empregos diretos e indiretos, ensinaram o esporte e um modo de vida legítimo a crianças, pobres, de classe média ou ricas, freqüentemente de graça, mostraram que na água todos são iguais, e que o meio ambiente deve ser respeitado. Não sei surfar, nunca pretendi ser surfista, mas sempre os respeitei por tudo isso. Pois agora o Poder Público se anima, e pretende burocratizar algo que tem dado certo até hoje porque as pessoas resolveram agir por conta própria, voluntariamente, sem depender da boa vontade oficial.

A imaginada intervenção do Município nas escolinhas de surfe, a meu ver, é inconstitucional. Só é lícito ao Poder Público intervir nas liberdades públicas – e o surfe é não só lazer, mas também profissão – quando necessário para garantir a segurança das pessoas, ou para criar ou incentivar a formação de condições mais favoráveis ao pleno exercício das atividades pelos particulares.

Afinal, como dito por ODETE MEDAUAR, o poder de polícia, entendido como "atuação subordinada à ordem jurídica", "não é eminente, nem superior, mas regida pelo ordenamento vigente, sobretudo pelos princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade, moralidade", devendo-se salientar que "o regime de polícia não pode significar proibição geral e absoluta, que impediria o exercício efetivo do direito", assim como que, na dúvida entre a liberdade e a autoridade, entre o desempenho da atividade pelo particulr e o possível âmbito de incidência da atuação restritiva exercida pela Administração Pública, há que se inclinar pelos princípios favor libertate ou pro libertate, e assim "a resolver em favor da liberdade qualquer dúvida sobre a maior ou menor extensão da medida ou sobre a possibilidade de medida limitativa". (1)

Não está o legislador, por conseguinte, munido de uma espécie de poder ilimitado para restringir qualquer atividade, ofício ou profissão, e em qualquer extensão, como bem lhe aprouver, até porque, e por definição, em um Estado Democrático de Direito, todo poder somente encontra legitimidade se for justificável e justificado quando do seu exercício, segundo os princípios fundamentais expressos ou implícitos na Carta Magna.

Como dito por DIOGO DE FIGUEIREDO MOREIRA NETO, "toda atribuição social de poder pressupõe, portanto, uma prévia destinação social do poder", destinação esta que, "por ser jurídica, define validade jurídica do agir"; e daí porque também o Estado, quando do exercício dos "poderes que lhe são outorgados", além de tê-los "vinculados à lei", também os tem "vinculados ao interesse público, finalidade síntese do Estado". (2)

Tem o legislador, deste modo, ampla margem de discricionariedade para regrar e limitar o exercício de ofício, trabalho ou profissão, mas tal liberdade não significa arbitrariedade, no sentido de poder que não conhece outro que o limite; aliás, a competência, por princípio, significa exatamente "poder demarcado e finalisticamente preorientado". (3)

As restrições, ainda que instituídas por lei, se violarem a margem em que não houver interesse público na limitação à liberdade individual de exercício de ofício, trabalho ou profissão, ou se abusarem das limitações que forem adequadas e necessárias, serão antijurídicas e, portanto, ilícitas, e plenamente passíveis de serem reconhecidas como tais pelo Poder Judiciário, no legítimo exercício de suas competências constitucionais.

Está aí a jurisprudência do Egrégio Supremo Tribunal Federal para o demonstrar.

Assim, quando da ADI – 1040- MC – DF, Pleno, Rel. Min. Néri da Silveira, dec. p. maioria pub. DJU 17.3.1995, p. 5788, decidiu-se que "as restrições da lei à admissão em concurso para provimento de cargos ou ao exercício de ofício, decerto, não podem constituir obstáculo desarrazoado à aplicação dos princípios da acessibilidade de todos aos cargos públicos ou da liberdade para o exercício de ofício ou profissão".

Quando da Rp 930 – embargos – DF, Pleno, Rel. Min. Antônio Néder,dec. Pub. DJU 27.4.1979, p. 3.379, decidiu que é "inconstitucional a lei que atenta contra a liberdade consagrada na Constituição Federal, regulamntando e conseqüentemente restringindo exercício de profissão que não pressupõe "condições de capacidade", no caso, a de corretor de imóveis.

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E quando da Rp 1023-RJ, Pleno, Rel. Min. Décio Miranda, dec. Un. pub. DJU 21.3.1980, p. 1550, decidiu-se ser inconstitucional, "por afronta ao art. 153, par. 23 da Constituição", o "art. 18 do Código de Ética Médica, elaborado pelo Conselho Federal de Medicina, que declara vedado ao médico aceitar emprego deixado por colega que tenha sido exonerado sem justa causa, salvo anuência do Conselho Regional", já que "a liberdade do exercício de trabalho, ofício ou profissão somente pode ser limitada pelas condições que a lei estabelecer".

Esses precedentes exemplificam o que acima foi dito, ou seja: 1) as restrições à liberdade de exercício de ofício, trabalho ou profissão somente podem ser imostas por lei, e apenas admitem justificativa, logo, legitimidade, se forem socialmente relevantes; 2) não podem, as restrições, serem de modo tal que acabem por impossibilitar aquela liberdade fundamental de vir a ser exercida; 3) as restrições somente podem ser admitidas se forem adequadas à finalidade legal que motivou a instituição da correlata competência de polícia a determinado órgão ou entidade, e na estrita medida em que for necessária para o atingimento da finalidade social que orientou a edição da respectiva norma legal.

A atualidade deste entendimento, no âmbito dos Tribunais ordinários, pode ser exemplificada pelas decisões proferidas quando do julgamento das AC no. 2001.01.990458222-MG, TRF-1ª. Região, Rel. Des. Fed. Maria Isabel Gallotti Rodrigues,dec. un. pub. DJU 02.7.2002, p. 80; REO no. 2002.3500012900-GO, TRF-1ª. Região, 7ª. Turma, Rel. Des. Fed. Antônio Ezequiel da Silva, dec. un. pub. DJU 17.2.2004, p. 66; e REO no. 1995.01.276678-GO, TRF-1ª. Região, 4ª Turma, Rel. Juíza Eliana Calmon, dec. un. pub. DJU 26.5.1997, p. 37.562, nos quais decidiu-se que apenas o fato de possuírem, conservarem e utilizarem como local de exercício físico, piscinas, não obrigava escola e academias a registrarem-se em Conselho Regional de Química, inclusive porque qualquer pessoa, sem outra necessidade senão seguir o manual do fabricante, estaria apta a tratar a água, carecendo, assim, de possuir conhecimentos técnicos especializados a respeito.

O surfe e os surfistas já mostraram que não precisam do Governo para se desenvolverem, crescerem e se divertirem. No máximo, provavelmente agradeceriam se os governantes limpassem e mantivessem limpas as praias, instalando e fazendo funcionar centros de tratamento de esgoto – domiciliar, comercial ou industrial. A parte dos surfistas eles já vêm fazendo há tempos. Quem disse que eles são alienados? Pois é: há décadas, quando ninguém sequer sonhava que pudesse existir algo como o direito a um meio ambiente sadio e equilibrado, direito chamado da "quarta geração" por Norberto Bobbio, e que só veio a ser reconhecido no Brasil como um direito social e coletivo pela Constituição Federal de 1988, e já os surfistas faziam por onde para que as praias onde "pegavam" as suas ondas fossem limpas e assim conservadas.

Ao Poder Público, em geral, e ao Prefeito do Município do Rio de Janeiro, e ao seu Secretariado, um pedido: NÃO CORTEM ESSA ONDA!


NOTAS DE REFERÊNCIA

1.Odete Medauar, Poder de Polícia, RDA 199/95.

2.Diogo de Figueiredo Moreira Neto, Legitimidade e Discricionariedade, Rio de Janeiro, Ed. Forense, 1989, p. 14.

3.Celso Antônio Bandeira de Mello, Discricionariedade e Controle Jurisdicional, São Paulo, Malheiros Editores, 2ª. ed., 1993, p. 31.

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Sobre o autor
Alberto Nogueira Júnior

juiz federal no Rio de Janeiro (RJ), mestre e doutor em Direito pela Universidade Gama Filho, professor adjunto da Universidade Federal Fluminense (UFF), autor dos livros: "Medidas Cautelares Inominadas Satisfativas ou Justiça Cautelar" (LTr, São Paulo, 1998), "Cidadania e Direito de Acesso aos Documentos Administrativos" (Renovar, Rio de Janeiro, 2003) e "Segurança - Nacional, Pública e Nuclear - e o direito à informação" (UniverCidade/Citibooks, 2006); "Tutelas de Urgência em Matéria Tributária" (Forum/2011, em coautoria); "Dignidade da Pessoa Humana e Processo" (Biblioteca 24horas, 2014); "Comentários à Lei da Segurança Jurídica e Eficiência" (Lumen Juris, 2019).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NOGUEIRA JÚNIOR, Alberto. Não corte essa onda!. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1436, 7 jun. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9987. Acesso em: 24 abr. 2024.

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