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Arma de fogo não é brinquedo

06/06/2007 às 00:00
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No ano de 2005, o Brasil utilizou o referendo como forma de aceitação, ou não, de uma norma jurídica reguladora do convívio social. A consulta popular versava sobre a posse legal de arma de fogo e, dentro do conceito de processo legislativo, foi o que mais se aproximou da democracia direta no país; como sabemos nosso sistema é fundado na democracia representativa. Apesar das inúmeras críticas dos céticos à consulta popular, pois afirmam que o ingrediente emocional do senso comum macularia a racionalidade exigida pelo direito, o referendo sobre a aquisição de arma de fogo representou uma tendência de oposição à hegemonia da vontade dos grandes grupos econômicos, em relação às regras de controle social, independentemente do resultado da consulta.

Apurada a decisão do eleitor no sentido de manter o direito do cidadão comum "possuir" uma arma de fogo, afloraram teorias e opiniões no campo da psicologia social para tentar explicar aquele comportamento armamentista. Uns escritos buscaram fulcro nas raízes belicosas do povo brasileiro – guerras de expulsão dos estrangeiros (holandeses), movimentos nacionalistas e republicanos, cangaço, colunas, revoltas, golpes travestidos de revolução, militarismo etc. –, que teriam forjado uma cultura de violência e permeado o imaginário popular de segurança armada, nos assemelhando, erroneamente, à cultura norte-americana. Outros tantos estudiosos e articulistas puseram o norte da decisão do referendo na sensação de insegurança vivida pelo povo brasileiro na atualidade. Essa última tese afirma, em síntese, que a violência brutal dos criminosos gerou a perspectiva de impossibilidade de defesa, no caso de o cidadão não poder comprar uma arma de fogo, mesmo que nunca o faça.

Passados os arroubos do debate e das explicações comportamentais, com somenos importância se apresentam os fundamentos da decisão popular diante das conseqüências jurídicas da entrada em vigor pleno da Lei nº. 10.826/2003, conhecida pelo apelido de Estatuto do Desarmamento. Certamente, ao optar pela não proibição da venda de arma de fogo, a vontade da população não era ver nas ruas as pessoas com armas na cinta, comemorando gol de futebol com tiros para o alto, ou duelando pela posse da mulher amada, como dantes. O nosso entendimento se abriga no lado de quem defende ter havido uma decisão clara em prol da legalidade de possuir uma arma de fogo; ressalte-se bem: possuir. Quanto ao ato de "portar" arma de fogo, não havia celeuma nesse sentido, tendo em vista que o disciplinamento da questão já estava consagrado e em vigor no Estatuto supramencionado.

A finalização do referendo assegurou a qualquer pessoa, atendidas as exigências da lei, o direito de comprar uma arma e registrá-la em seu nome, assumindo todos os encargos dessa atitude legal, explícita e, agora, legitimada pela consulta popular. No corpo da lei do desarmamento, antes mesmo do referendo, constam regras de conduta a serem seguidas por quem tem e porta arma de fogo, assim como constam penalidades e medidas processuais para coibir o mau uso da arma de fogo e seu porte ilegal, seja ela legalizada ou não. Vale ressaltar, que arma legalizada é aquela registrada em nome do seu proprietário, pessoa que responderá pelo porte ilegal e pelas conseqüências do uso – homicídio com arma registrada, por exemplo. O parágrafo único do artigo 14 do Estatuto do Desarmamento considera crime inafiançável o porte ilegal de arma, sem o devido registro. Essa norma jurídica garantia, universalmente, a retirada de circulação, ou seja, a prisão sem o direito de responder o processo em liberdade, de toda e qualquer pessoa flagrada portando arma não-legalizada.

Em recente decisão, o Supremo Tribunal Federal considerou inconstitucional o parágrafo único citado acima, "delegando" ao magistrado do caso concreto o poder de decidir quem poderá pagar fiança e responder o processo em liberdade quando for preso portando arma de fogo não registrada. Portar arma de fogo ilegalmente já não condiz com as regras de convivência pacífica, muito menos portar arma não registrada, pois assegura a intenção do indivíduo em não responder perante a sociedade pelos crimes praticados com aquela arma. Nessa hipótese, estão 100% dos assaltantes, homicidas habituais, latrocidas etc.

Além de contribuir para a aplicação da conhecida justiça de classe – uma vez que os juízes singulares dos rincões irão receber pressões políticas para arbitrarem fiança em favor dos mais abastados –, o STF desconsiderou a representação social do perigo constituído pelo porte ilegal de arma, mormente das armas ilegais, porque toda ação humana é real e simbólica, ao mesmo tempo, aumentando a sensação de impunidade. Uma pessoa no carnaval com uma escopeta de plástico representa um folião brincando de mela-mela; uma mulher rodando uma bolsa em uma esquina escura simboliza o comércio sexual; um desfile de elefantes, leões, macacos e palhaços é sinal de que um circo chegou à cidade; e um indivíduo portando um revólver calibre 38  pelas ruas (com exceção dos agentes das instituições coercitivas estatais e da segurança privada), independentemente do que ele quer fazer com a arma, é um homicida em potencial, pois arma de fogo não é brinquedo.

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Sobre o autor
Gustavo Leal de Albuquerque

Advogado em Cuiabá (MT). Especialista em História das Américas. Mestre em Sociologia pela UFPE. Autor dos livros "A reforma Agrária em Pernambuco" e "Aspectos do Narcotráfico na Colômbia".

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALBUQUERQUE, Gustavo Leal. Arma de fogo não é brinquedo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1435, 6 jun. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9989. Acesso em: 18 dez. 2024.

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