3- Afeto, afetividade e o mundo do direito - simbologia, faticidade e ... "o-eu-construtor-de-significados"
Agora sim, podemos prosseguir, tendo em mente que foi tempo suficiente para lerem o referido artigo e, agora aumentando o título deste item 3, para ficar pomposo. Afinal se todo mundo pode construir significados, posso também construir títulos.
Devo dizer que agora abandono todo o rigor. Vai parecer conversa informal. Primeiro porque não tenho resposta alguma.
Como não tem resposta alguma?
Não, não tenho. Que me perdoem aqueles que por curiosidade estão a ler desde o início, esperando encontrar uma resposta pronta. Não tenho.
É isso que venho tentando dizer desde o início. Desconfiem de respostas prontas. Desconfiem daqueles que resolvem questões profundas em cinco linhas. Desconfiem quando colocarem um texto pronto para embasar uma assertiva. O que tenho indicado é uma caminhada. É assim que se constrói o direito e, nenhuma área é tão sensível como o direito de família. Em nenhuma área do direito a faticidade impõe tanta tensão à validade.
Agora prometo que vou falar de afeto, no mundo do direito. Princípio da afetividade. Com isso querem resolver o direito de família. Detesto soluções milagrosas. Abandono afetivo. Abandonar o quê mesmo?
Não muito tempo atrás, o dever dos pais para com os filhos era dever de manter alimentado e vivo. Não muito tempo atrás pais davam surras nos filhos. Não muito tempo atrás os pais colocavam os filhos para trabalhar desde a tenra idade, e muito mais. A sociedade mudou, o direito mudou.
Alguém acha que a duzentos ou trezentos anos atrás vingaria uma ação de abandono afetivo?
Agora temos algo mais, não basta apenas prover o materialmente necessário, existe um plus. Parece que estamos a construir um standard (aqui cito livremente Dworkin) e, através de decisões judiciais, pretendemos condicionar a faticidade.
A pergunta é: qual o conteúdo deste plus, que é nada menos do que se pretente rechear o conceito de afetividade?
Qual é o conteúdo do dever que, se violado enseja uma reparação pelo abandono?
Ora, obviamente não pode ser algo da esfera subjetiva. Lembram das aulas onde se dizia do objeto lícito, possível... é isso. Não é possível tutelar o impossível.
Vimos no item um as origens e o conceito da palavra afeto (affetio), desta, como conceito, nada resta. É dizer que estamos a falar de coisas distintas. Indubitavelmente existem decisões judiciais, mas estas não se referem à affectio original, de cunho subjetivo. Neste sentido, o que talvez mais se aproxime do uso que se quer dar no direito é o conceito psicológico. Como já viram no link do artigo do IBDFAM, do ilustre Dr. Flávio Tartuce:
"De início, para os devidos fins de delimitação conceitual, deve ficar claro que o afeto não se confunde necessariamente com o amor. Afeto quer dizer interação ou ligação entre pessoas, podendo ter carga positiva ou negativa".
Bem próximo do conceito psicológico. Mas emenda:
"O afeto positivo, por excelência, é o amor; o negativo é o ódio. Obviamente, ambas as cargas estão presentes nas relações familiares."
E conclui logo em seguida:
"Pois bem, apesar de algumas críticas contundentes e de polêmicas levantadas por alguns juristas, não resta a menor dúvida de que a afetividade constitui um princípio jurídico aplicado ao âmbito familiar. Conforme bem aponta Ricardo Lucas Calderon, em sua dissertação de mestrado defendida na UFPR, “parece possível sustentar que o Direito deve laborar com a afetividade e que sua atual consistência indica que se constitui em princípio no sistema jurídico brasileiro. A solidificação da afetividade nas relações sociais é forte indicativo de que a análise jurídica não pode restar alheia a este relevante aspecto dos relacionamentos. A afetividade é um dos princípios do direito de família brasileiro, implícito na Constituição, explícito e implícito no Código Civil e nas diversas outras regras do ordenamento”".
Ou seja, pegou na prateleira o conceito psicológico, agregou algo do termo antigo e... pronto, chegamos à conclusão. Existe e deve ser aplicado e protegido o princípio da afetividade. Simples assim. Ah, você sabe quem escreveu o artigo X ou o artigo Y? Ah, tá, tinha esquecido da carteirada. Tem gente que engole sem nem precisar de um gole d'água, que dirá refletir sobre o tema.
Vencidos pela carteirada. Agora sei como Galileu deve ter se sentido. Levou uma carteirada. Pensar faz mal. Quase morreu queimado.
A família mudou através do tempo; parece óbvio o que estou a dizer, mas então por quê não levamos isso em conta?
Hoje existem infinitamente mais casais que se separam do que algumas décadas atrás. Por quê digo isso?
Quais as chances de um filho vir a processar os pais por abandono afetivo SE os pais não são separados e, qual a chance de sucesso numa ação assim?
Pai e mãe trabalham, o filho fica com a babá, com a avó, sei lá com quem. Há abandono afetivo? Os que hoje defendem o tal princípio da afetividade serão os primeiros a dizer que não. Que trabalhar faz parte do cuidado para com a criança, para dar um futuro melhor etc. etc. etc. Estou pouco me lixando para as justificativas. O fato é que a criança fica com outros que não os pais. Os mesmos chegam às vezes com a criança dormindo. Cadê o afeto? Ah, mas está lá no sentimento dos pais etc. etc. Tá bom. Ótimo. Agora virou sentimento. Quer dizer que temos um direito para pais que não se separam e outro para pais separados?
Ora, se por exemplo o pai não detém a guarda legal ou de fato, óbvio que a quase totalidade do dever de cuidado recai para a outra parte. Leis da física. Tenho certeza que todos já ouviram falar delas. Uma delas diz que dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço ao mesmo tempo. Acabei de criar um corolário: uma criança não pode estar simultâneamente com o pai e com a mãe se os mesmos se encontram separados e são inimigos de morte.
Ah, mas tem o dia de visita. Bingo! o pai pega a criança no dia de visita e leva para sua casa, coloca a criança na frente da televisão para jogar video game. Pronto. Está afastado o abandono afetivo. SE o pai não visita a criança está configurado abandono afetivo. Simples assim? de afeto (affectio) não vi nada. Nem do afeto num conceito psicológico. Se for isso que se trata o princípio da afetividade então bem poderia ser chamado de princípio "do pai visitar o filho". Pelo menos fica mais honesto.
(continua na próxima postagem, prometo não demorar)