Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/10429
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Crimes contra o patrimônio: anotações crítico-metodológicas

Crimes contra o patrimônio: anotações crítico-metodológicas

Publicado em . Elaborado em .

O texto traz notas sobre alguns delitos contra o patrimônio, sob visão crítico-metodológica, bem mais abrangente em termos de realidade histórico-sociológica do que as modernas e sofisticadas – mas ilusórias – visões dogmáticas.

Sumário: 1. Introdução 2. Furto 2.1. Furto noturno 2.2. Destruição ou rompimento de obstáculo (furto qualificado) 3. Outras divergências jurisprudenciais 4. Lições dessas divergências 5. Roubo com arma de brinquedo 5.1. o sentido da norma. 5.2. Divergências interpretativas 5.3. Análise crítica 6. Vontade interpretativa 7. Verdade que liberta.


1. Introdução

Elaboro aqui algumas notas e observações esparsas em torno de alguns delitos contra o patrimônio. Elas se destinam a ilustrar, para efeito de ensino e pesquisa, a visão crítico-metodológica do direito penal, bem mais abrangente em termos de realidade histórico-sociológica do que as modernas e sofisticadas – mas ilusórias – visões dogmáticas acerca da matéria.

O assunto, aliás, por sua pertinência, já foi incorporado ao Curso crítico de direito penal (Florianópolis: Obra Jurídica, 1998). O texto é aqui reproduzido, com pequena e sucinta atualização.

Trata-se de uma abordagem realista, apegada aos fatos normativos e, não, a premissas teóricas de limitados alcances práticos (direito positivo) ou de duvidoso cunho ontológico (direito natural). Conforme assinalado em outro contexto, o direito existe objetivamente, como fato histórico, e o mínimo que se deve exigir de um professor, de direito ou de história, é que se atenha aos fatos reais, sem prejuízo do reconhecimento de variáveis interpretativas em torno de suas dimensões e relevância (Direito penal: visão crítico-metodológica. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n° 1. São Paulo, RT, 1993, p. 100). V. também: Seis temas sobre o ensino jurídico, org. por Getulino do Espírito Santo Maciel e João Bosco da Encarnação. São Paulo: Cabral Editora, 1995, p.45.

Apesar de alguma afinidade e de um certo apoio logístico, não cogito, a rigor, de uma visão crítico-ideológica, atualmente representada pelos defensores de um direito alternativo, engajados sem rodeios, em nome do ideal de justiça, na luta de emancipação das classes sociais desprotegidas. Mas alguma ideologia sempre subsiste nesse enfoque de ordem crítico-metodológica: a ideologia da verdade. Com uma conseqüência, ao menos como tentativa: a conscientização dos mais jovens, ainda não contaminados pelas aparências ("quanto mais difícil, mais profundo"), sobre o inevitável comprometimento ético de todo e qualquer operador jurídico, seja na atividade pública, seja na esfera privada.

Insisto na conexão entre o direito alternativo e as teses da teoria crítico-metodológica (teoria realista, ou histórico-sociológica). Como pondera, com acerto, Lédio Rosa de Andrade, "O Direito há de ser visto como realmente é: regras de conduta coercitivas oriundas do jogo de poder na sociedade, ou um fenômeno de exercício de poder de maneira normativa". (Introdução ao direito alternativo brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996, p. 319).

O desmascaramento no plano técnico ou epistemológico das contraditórias pretensões da moderna doutrina jurídico-penal legitima, em parte, segundo me parece, o avanço democrático de várias propostas alternativas; e estas, em sentido amplo, que sempre existiram historicamente, a favor ou contra o acusado, facilitam a compreensão de um direito penal pluralista e multifacetado em sua concretude e sedimentação. "Os Tribunais, às vezes nem sempre dentro dos limites estritos do princípio da reserva legal – afirma corretamente Ricardo Antunes Andreucci – agravam a situação dos réus, outras vezes os beneficiam conduzindo os processos a absolvições que a lei, na sua rigidez estática, não possibilitaria"(Direito penal e criação judicial, São Paulo: RT, 1989, p. 85).

Examinemos algumas hipóteses, para análise crítica, no âmbito dos crimes contra o patrimônio.


2. Furto.

2.1. Furto noturno

Constitui crime de furto ( Código Penal, art. 155, caput) "subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel: Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa". A pena aumenta-se de um terço (§ 1º ) se o crime é praticado durante o repouso noturno.

Quem possui uma visão crítica do direito sabe que uma das missões do intérprete é a de eliminar a vagueza e ambigüidade do sistema normativo (no caso, do Código Penal). Em verdade, porém, quando se trata de ambigüidade superficial, ou de vagueza de pequena monta, pode ocorrer que o intérprete, agindo ideologicamente, lhes forneça maior dose de "consistência" para, em seguida, optar pela tese que mais lhe agrada.

Na hipótese de furto noturno havia na doutrina um certo consenso de que essa agravante especial existiria se o crime fosse praticado durante o período de repouso da comunidade. Duas condições: noite e repouso (da comunidade). Partia-se do pressuposto de que a defesa do patrimônio da vítima fica diminuída em razão do recolhimento aos lares da grande maioria da população. À facilidade da execução do furto responde o legislador com a ameaça de uma pena mais severa.

Uma outra corrente se refere ao repouso da vítima: se ela se encontra desperta, na hora do fato, inexiste o acréscimo de pena. Por esse critério se deveria identificar o furto noturno no ato de subtração de algum bem, altas horas da noite, durante o repouso do proprietário.

Não bastou. Eis a reação de alguns tribunais: só vale furto noturno quando cometido em residência habitada, estando a coisa nas proximidades, sob a vigilância teórica da vítima (V., por exemplo, Código penal e sua interpretação jurisprudencial, de Alberto Silva Franco e outros. São Paulo: RT, 5ª ed., 1995, p. 1.908 a 1.912). Assim, não haveria que se reconhecer essa figura delituosa na hipótese de furto de automóvel em plena via pública, praticado à meia-noite, mesmo quando a vítima, seus familiares e a comunidade local se encontrassem dormindo; ou de objetos de valor subtraídos, de madrugada, de estabelecimento comercial ou de garagem coletiva de edifício. Nos dois exemplos, vê-se facilmente, a coisa subtraída não se encontrava no interior de residência habitada. Incabível, pois, a majorante do furto noturno.

Em poucas palavras: há tribunais que, à revelia da lei, exigem mais do que o repouso da comunidade e, mesmo, da vítima. Fogem, pois, da zona de luminosidade do sistema normativo, que se limita a falar em aumento de pena (por sinal, obrigatório) em havendo subtração durante o repouso noturno. Mas a lógica jurídica nem sempre corresponde à lógica da lei, como premissa. E por quê? Qual a explicação cabível?

Num contexto favorável, de ampla liberdade de ação, o operador do direito interfere radicalmente no sistema, substituindo-o, se necessário, por aquele que considera mais adequado, nas circunstâncias.

Como sempre, o direito se constrói a cada momento histórico, em função e a partir dos valores e limitações dos intérpretes com poder decisório.

A lei, apesar das aparências em contrário, e à semelhança do barro nas mãos de um oleiro, lembra uma espécie de massa informe a ser manipulada (com habilidade e prudência) pelo magistrado, mesmo – e sobretudo – nos regimes de estrita separação de poderes. A forma definitiva da lei penal, que também passa pelo crivo e manejo de outros artesãos – por exemplo, autoridade policial, advogado, promotor de justiça – quem a confere é o juiz, na eventualidade de um processo-crime. O texto legal, ora irreconhecível, ora revelando em si mesmo facetas camaleônicas ou vontades contraditórias, só conserva sua potencialidade normativa se alguém se dispõe a carregá-lo nas costas, ainda que a contragosto.

Sabe-se, aliás, que a lei funciona razoavelmente, e com uma certa uniformidade interpretativa, menos na proporção de sua clareza do que de sua aceitação social. É esta que lhe confere legitimidade e, na seqüência, determina maior poder de controle e fiscalização por parte dos próprios destinatários.

Direito é ação, vontade e liberdade interligadas, o que significa dizer que o legislador também é fonte do direito. Mas não porque sua mensagem foi bem entendida, e sim, porque foi acatada por aqueles que, nas circunstâncias, não tinham ou não encontraram melhor opção.

2. 2. Destruição ou rompimento de obstáculo (furto qualificado)

Dentre outras circunstâncias, a pena é de reclusão de 2 (dois) a 8 (oito) anos de reclusão, e multa, se o furto é cometido com destruição ou rompimento de obstáculo à subtração da coisa (art. 155, § 4º, I).

Exemplos corriqueiros: subtração de objetos de uma casa de moradia, precedida de arrombamento de alguma porta ou janela; quebra de uma vitrine de um estabelecimento comercial e retirada, em seguida, das jóias e relógios em exposição; destruição parcial de um cofre-forte embutido numa parede para posterior subtração do dinheiro e outros objetos nele contidos.

De passagem, lembro que o dano em si (CP, art.163) é absorvido pelo crime-fim, o furto, que se torna qualificado.

Nota-se, através dos exemplos, que a coisa subtraída é sempre diversa do obstáculo que sofre o rompimento ou destruição. De um lado, a porta ou janela, de outro, os objetos encontrados dentro da casa; na frente do ladrão uma vitrine ou um cofre-forte, impedindo a execução do furto das jóias e dinheiro. Ao ladrão não interessam as portas ou janelas, ou a vitrine, ou o cofre-forte.

Ensina-se, então, que inexiste furto qualificado se o obstáculo à subtração reside na própria coisa subtraída, segundo suas condições ou natureza. Assim, uma árvore se encontra naturalmente presa ao solo. Se for cortada ou arrancada, com destruição de suas raízes, não será objeto material de um furto qualificado. Desta feita, o que conta para o larápio é a própria árvore, a coisa que ele vai atingir via rompimento ou destruição parcial. Por isso o furto é simples, pois no tipo qualificado a coisa-obstáculo tem que ser distinta da coisa subtraída. Em resumo, exige-se um obstáculo externo à coisa furtada.

Esta teoria, em princípio acatada pela doutrina e jurisprudência, não vem expressa, com todas as letras, no texto do Código Penal. Do silêncio do legislador, no entanto, se colhem maravilhas. Basta que se procure a ratio legis, em latim, ou a razão da lei, em português, para se encontrar no objeto da indagação aquilo que já estava nascendo, e se fortalecia, na mente do pesquisador-exegeta.

Heureca! Pelo método indutivo (exame da série de exemplos) se descobria, por generalização óbvia, o denominador comum do obstáculo extrínseco à coisa que se furtava! Ou seria o inverso, ou seja, pela dogmatização da teoria se arrolavam os exemplos compatíveis?

Não nos importa a resposta, mas a explicação do mecanismo, a indicação dos meandros e técnicas do raciocínio jurídico. No momento em que aderimos à tese em epígrafe estamos, em verdade, admitindo uma interpretação restritiva do texto legal. Não é qualquer obstáculo (interpretação declarativa), mas um obstáculo com determinada característica, implícita no sistema, que está presente na figura delituosa em exame.

Nessa linha de raciocínio, por exemplo – com ou sem acerto do legislador, o detalhe é secundário – não haveria furto qualificado se o agente quebrasse o vidro do automóvel para furtá-lo em seguida. O vidro faz parte da "anatomia" do bem subtraído e, conseqüentemente, sua destruição não poderia justificar o reconhecimento da forma qualificada. Diferentemente, se o sujeito ativo arrebenta a porta de uma garagem para furtar o veículo, aí sim, estariam preenchidas as condições legais.

Tudo muito bem até certo ponto, enquanto não são percebidos os paradoxos. Ora, se alguém destrói o quebra-vento de um automóvel para furtar, e efetivamente furta, um pacote situado no interior do veículo, esse alguém pratica furto qualificado. Não há subterfúgio capaz de exorcizar a evidência: o quebra-vento é extrínseco ao pacote encontrado sobre o banco e serve de obstáculo, juntamente com outras partes do carro, à retirada desse pacote ou de qualquer objeto em condições semelhantes.

Contraste: dano ao veículo e subtração do pacote igual a furto qualificado; dano ao veículo e subtração do próprio veículo (mesmo levando junto o pacote!) igual a furto simples.

Daí a reação jurisprudencial: "Arreda-se a qualificadora pelo rompimento de obstáculo (rompimento do quebra-vento) em caso de furto de objetos subtraídos do interior do veículo: seria paradoxal dispensar tratamento mais rigoroso a tal agente, do que o dispensado àquele que subtrai o próprio veículo, de maior valor e não recuperado"(TACRIM-SP - AC - Rel. Celso Limongi -JUTACRIM 86/374, in Código penal e sua interpretação jurisprudencial, de Alberto Silva Franco e outros, cit., p. 1931).

Ou: "Forçar ventarola de veículo com o fim precípuo de, ao depois subtrair seus acessórios, não basta para qualificar o furto por arrombamento, vez que se a violação tivesse sido efetuada para furto do próprio veículo, estaria o agente cometendo um furto simples"(TJSC - AC - Rel. Márcio Batista - RTJE 79/235, ibidem, p. 1932).

E mais: "Não responde pela qualificadora o agente que arromba o vidro de automóvel para furtá-lo. Assim, ilógico e contraditório que se entendesse caracterizada quando o furtador, ao invés de subtrair o próprio carro, com todos os seus acessórios, se limita a levar o toca-fitas"(TACRIM -SP - AC - Rel. Oliveira Santos - RJD 6/90, ibidem, p. 1933).

Está nos acórdãos: "paradoxal"; "ilógico"; "contraditório".

Conseqüentemente, outro dogma é imediatamente acionado, o da racionalidade do legislador, a indicar o caminho da equiparação normativa, em benefício do réu.

É visível, no entanto, a mágica do intérprete. A lei, afinal, acabou eliminada do contexto, pois ela deixa de funcionar nas duas hipóteses: de interpretação declarativa (qualquer obstáculo, extrínseco ou intrínseco) ou restritiva (obstáculo extrínseco). O juiz estaria dizendo ao legislador mais ou menos o seguinte: "Ao fazeres distinções dogmáticas artificiais e injustas corres o risco de não seres atendido."

O curioso de tudo isso é que o legislador não pode reagir, ele fala pela boca do intérprete, como diria Montesquieu.

Nada obstante, há quem discorde, e aponte a lei na sua clareza textual: "A qualificadora prevista no art. 155, § 4º, do CP, consubstancia-se na conduta do agente que destrói ou rompe obstáculo à subtração da coisa, vale dizer, na sua atuação sobre qualquer empecilho material a essa subtração, pelo que não há razão lógica ou legal para se fazer distinção entre o obstáculo externo e o inerente à própria coisa, pois ambos têm a mesma finalidade"(TACRIM - SP - AC - Rel. Gomes de Amorim - RJD 5/102, ibidem, p. 1930).

Ou: "Para efeito de qualificação do furto, não cabe distinguir entre obstáculo "inerente" e obstáculo "não-inerente" à coisa. Considera-se obstáculo tudo quanto – estranho à natureza da coisa ou dela fenomenologicamente inseparável – deva ser destruído ou rompido para que se torne exeqüível a subtração". (TACRIM-SP - AC - Rel. Correa de Moraes - RJD 12/86, ibidem, p. 1930).

Por esta última linha de raciocínio haveria furto qualificado se o agente, ao quebrar o vidro, leva o próprio carro ou apenas o toca-fitas do veículo. Interpretação declarativa. Se a lei não distingue, não cabe ao intérprete distinguir. Além disso, ao disciplinar a matéria dessa forma o legislador estaria procedendo corretamente, com lógica. O que conta é o fato de o vidro do carro significar, em si mesmo, uma sólida barreira (obstáculo) para a subtração do automóvel ou de qualquer acessório, objeto, peça ou material situado em seu interior. A racionalidade do legislador residiria exatamente no fato de ele não distinguir entre obstáculos internos ou externos à coisa subtraída. Em ambas as hipóteses se vislumbra a maior impetuosidade e arrogância do ladrão, no gesto de romper ou destruir coisa alheia.

E agora, como ficamos? Que lei é essa, de tantas idas e recuos, que não diz aquilo que parece dizer ou que se amolda à capacidade visual do intérprete? Pelo que observamos acima, às vezes se admite amplamente a forma qualificada; outras vezes se a reconhece com restrições; de repente, nem uma coisa nem outra, a forma qualificada é abolida do sistema!

Ora, novamente nos deparamos com a inevitável interação sujeito/objeto. O sujeito é o delegado de polícia, o promotor de justiça, o juiz de direito, o professor em sala de aula, o jurisconsulto com seus compêndios e manuais. O objeto é a Lei, o Código Penal, a Constituição Federal. Presume-se que os operadores jurídicos disponham de suficiente cabedal téorico, de conhecimentos especializados que justifiquem sua titulação acadêmica e formação profissional. Só que eles não se entendem, ainda que diante do mesmo objeto; e o problema não é de ordem intelectual, via de regra, mas de excesso de receitas intrinsecamente contraditórias, assimiladas e digeridas de um modo único, personalizado, intransferível.

Assim como as leis são vagas e ambíguas, também são vagos e ambíguos os princípios norteadores da hermenêutica jurídico-penal. E mais: ainda existe a chance de o magistrado, pura e simplesmente, descartar a aplicação de um dispositivo legal claro em seu texto e luminoso em seu espírito.


3. Outras divergências jurisprudenciais

É o que ocorre com o ressarcimento do dano antes do recebimento da denúncia, em se tratando de estelionato sob a forma de emissão de cheque sem fundos (art.171, § 2º, VI). De acordo com a Súmula 554, do STF, o pagamento de cheque emitido sem provisão de fundos, após o recebimento da denúncia, não obsta ao prosseguimento da ação penal.

Mesmo que, através de acurada investigação policial, se afirme, em tese, a delituosidade da conduta, ficam abertas as portas da esperança no campo jurídico-punitivo.

Ora, a denúncia, ligada ao processo, não tem nada a ver com a estrutura jurídica de um crime. A eventual boa vontade para com acusados de fino trato contribuiu – juntamente com a necessidade de se desafogar os cartórios criminais – para que se buscassem premissas normativas ausentes do sistema legal. Boa vontade que se estendeu, aqui e ali, apesar das divergências, à figura básica do estelionato (art.171, caput) e ao crime de apropriação indébita (art. 168).

Texto expresso da nova Parte Geral determina somente redução de pena, de um a dois terços, "nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, desde que reparado o dano ou restituída a coisa, até o recebimento da denúncia" (art. 16). Pois bem, nem mesmo a introdução desse dispositivo abalou a convicção de considerável parcela da doutrina e da jurisprudência, inclusive do Pretório Excelso, em torno da validade e persistência da Súmula 554, mais radical, impeditiva de qualquer punição. Súmula essa, no entanto, que jamais abrangeu a hipótese de furto, que é praticado, em regra, por pessoas de poucas posses, rudes, incultas, semi-analfabetas.

Tem-se mesmo a impressão de que o delito em pauta (o furto) se mostra, em tese, para alguns intérpretes, ontologicamente incompatível com as classes abonadas ou de respeitável nível intelectual. Retornemos ao nosso volume de jurisprudência, cit., p. 1903:

"A incerteza quanto ao elemento moral da conduta dos agentes, estudantes bem conceituados, justifica a sua absolvição quando acusados da prática de furto. A solução se impõe perante a possibilidade de se tratar de mera brincadeira levada a efeito após libações alcoólicas"(TACRIM - SP- AC- Rel. Valentim Silva - JUTACRIM 25/129).

Há elegância também neste decisório: "O furto não pode ser aquilatado de modo puramente objetivo, respondendo a criminalidade menos na materialidade do que no elemento subjetivo. Assim, compondo-se o delito de dois elementos, o objetivo e o moral, não há entender antijurídica a conduta de quem, animus jocandi, subtrai e sacrifica, com licença talvez atrevida, animal pertencente a pessoa amiga para a alegria de um churrasco"(TACRIM-SP - AC - Rel. Lauro Malheiros - JUTACRIM 44/213).

Nem todos concordam: "Justamente porque o universitário é um cidadão com instrução acima da média, não pode ignorar que o furto, mesmo disfarçado como brincadeira estudantil, é conduta reprovável, quer sob o ângulo penal, quer sob o prisma da simples moralidade"(TACRIM-SP - AC- Rel. Geraldo Pinheiro - JUTACRIM 34/198).

É em outro acórdão, no entanto, que nos deparamos com importante passagem (ob. cit., p. 1871). Ela nos remete precisamente ao cerne de toda questão ou disputa jurídico-penal, ou seja, à vontade interpretativa:

"A alegação de que procedia sem o animus rem sibi habendi, efetuando simples aposta, uma pilhéria ou farra de estudantes, não convence e apenas tem justificada sua aceitação na medida em que se queira absolvê-los (grifos meus) por serem estudantes universitários, gente de bons princípios, de futuro promissor, voltados ao livro e não ao crime; membros de famílias eleitas, que lhes conferiram educação esmerada e religiosidade profunda... Como se tais atributos, evidentemente duvidosos na caracterização de quem não se peja de, madrugada adentro, furtar coisas alheias, fossem causa justificativa, excludente da criminalidade ou da pena"(TACRIM-SP -AC - Rel. Canguçu de Almeida - JUTACRIM 86/269).

Acrescento uma outra Súmula do STF: "Há crime de latrocínio, quando o homicídio se consuma, ainda que não realize o agente a subtração de bens da vítima"(n° 610).

Desta feita, nenhuma boa vontade para com os acusados. A torpeza da motivação, o nível social da grande maioria dos agentes, o incentivo de outros tribunais, a pressão da mídia (bem antes da Lei nº 8.072/90, dos Crimes Hediondos) e o pavor da comunidade obscureceram a percepção e aplicação de conhecido dispositivo do Código Penal, in verbis: "Art. 14. Diz-se o crime: I – consumado, quanto nele se reúnem todos (os grifos são meus) os elementos de sua definição legal; II – tentado, quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente".

Penalistas do porte de Frederico Marques, Magalhães Noronha, Heleno Fragoso e Nélson Hungria, dentre tantos outros, ainda que divergindo entre si, jamais chegariam ou chegaram à conclusão de um latrocínio consumado. Eles sabiam que a subtração, exigida no artigo 157, não poderia ser eliminada do sistema. O sentimento de reprovação a toda e qualquer conduta latrocida não lhes impediu, na espécie, a fidelidade ao princípio constitucional do "nullum crimen, nulla poena sine praevia lege".

A tese da Súmula decorria de um defeito do Código Penal, pois a tentativa de latrocínio estava a indicar, na época, uma pena de reclusão inferior à pena do homicídio qualificado. E o recurso a esta figura – homicídio qualificado – iria complicar ainda mais a questão, pelo deslocamento da competência para o tribunal do júri.

A necessidade de aparência de legalidade a uma decisão de caráter pragmático (caso típico, em sentido amplo, de justiça alternativa) concorreu para que se elegesse, como premissa, um complemento ou acessório de um artigo (o § 3° do art. 157) em detrimento do próprio caput, que comanda o dispositivo. Abandonou-se a mais elementar das lições hermenêuticas, válida para outras áreas do conhecimento: a busca do sentido de um texto através de uma interpretação lógico-sistemática.

Um modesto parágrafo foi destacado do Código Penal e transformado em regra independente, de peso absoluto, como se retratasse a instrução normativa de uma única lei, composta de um único dispositivo. Só que o isolamento e a posterior dogmatização de um parágrafo representam um atentado à lógica de qualquer sistema normativo. Como entender, então, o endosso de eminentes mestres da doutrina jurídico-penal?

A bem da verdade, o apoio se deu sem entusiasmo, em face do reconhecimento de que não se trata de uma solução dogmaticamente perfeita, amparada na lei. Fala-se em decisão "tecnicamente imperfeita", ou "menos imperfeita". Numa visão crítica, no entanto, nota-se que através desse eufemismo se deixa de registrar pura e simplesmente que se abandonou, na Súmula, o princípio da reserva legal. O apego ideológico ao valor justiça (apenação correspondente à gravidade do resultado e motivo da conduta) superou, desta feita, os pruridos de legalidade e constitucionalidade de grande parte da doutrina e jurisprudência.


4. Lições dessas divergências

De tantas divergências, até agora apontadas, que frutos podem ser colhidos?

Relembrando: furto noturno; rompimento ou destruição de obstáculo (furto qualificado); Súmula 554, referente à emissão de cheque sem fundos; tratamento diferenciado (sem embargo de divergências) em matéria de furto, apropriação indébita e estelionato, em havendo reparação do dano antes da denúncia; manutenção da Súmula, que é discriminatória, mesmo após a vigência da Nova Parte Geral (1984); furto praticado por estudantes; Súmula 610 (latrocínio consumado).

Percebe-se que o direito (no nosso caso, o direito penal) passa a depender não mais da lei, e sim, da lei e do intérprete; a depender das circunstâncias históricas, do conteúdo ideológico da norma e do seu maior ou menor grau de convencimento perante os que se encarregam de cumpri-la ou fazê-la cumprir. A lei, portanto, deve continuar a ser vista como projeto de direito e, não, como o próprio direito. Este, é claro, também se concretiza com a lei: desde porém que essa lei, como objeto, mais do que simplesmente notada e compreendida pelo intérprete, lhe sirva de imperativo ético intransponível ou de roteiro mais ou menos coercitivo, por força das circunstâncias. Vontade e liberdade de ação continuam a sintetizar as raízes de um direito penal inarredavelmente confuso e contraditório, feito à imagem e semelhança do homem, seu artífice e construtor, no contexto das possibilidades compartilhadas.

São inúmeras, quase infinitas, as opções hermenêutico-dogmáticas dos operadores do direito. Seus instrumentos de trabalho extrapolam, em muito, as teorizações de gabinete, as sofisticações dos eruditos, a clarividência dos iluminados, as novidades e tendências das bolsas de valores normativos.

Definitivamente, mostram-se inúteis as tentativas de harmonização ideológica através da enunciação de princípios racionais prevalentes, escalonados e hierarquizados, seja na forma, seja no conteúdo. Os que pregam esses princípios e os que, em tese, concordam, acabam discordando no dia seguinte, na hora seguinte, no minuto seguinte. Mais esquisito ainda: a técnica preferida do penalista, daquele que se notabiliza por seus arrazoados, por sua doutrina, por sua sabedoria, é a técnica do esquecimento, mesmo que, às vezes, nem ele se dê conta de tal realidade. Nenhum penalista, por mais gabaritado, conseguiu até hoje libertar-se (se é que algum dia tentou) do jogo dialético das contradições retóricas e argumentativas. Curiosamente, todos se deixam facilmente enredar e seduzir pelo combate às suas próprias idéias enunciadas havia pouco no mesmo contexto, na página do lado ou na frase recém-esboçada.

Trata-se de uma constatação empírica e realista. Não se cogita, aqui, de julgamento de valor. Observações quanto a mérito ou demérito perdem praticamente o sentido quando se percebe que o fenômeno caracteriza e contagia uma atividade em si mesma contraditória, de cunho e natureza histórico-sociais. Não está em jogo apenas o indivíduo, a pessoa do intérprete, no seu isolamento espiritual; está em jogo todo um contexto ideológico e circunstancial, de conteúdo variado e polivalente, que a todos envolve e contamina.

Evidentemente, não se nega a emergência de uma personalidade que acaba explicando, em grande parte, a decisão a ser tomada. O que se nega é a possibilidade de encobrimento ou superação das contradições jurídicas através da alegação de pureza ontológica de velhas e novas teorias dogmáticas acerca do crime e da pena, apartadas da concretude histórica da dinâmica social.

Enquanto houver intérprete haverá, em conseqüência, contradição formal. Voltando ao exemplo de sempre, a título de comparação: no direito, como nos esportes, não bastam as normas gerais preestabelecidas. Um árbitro de futebol, mal posicionado em campo, pode anular o que é válido ou convalidar a jogada incorreta. A contradição, antes formal, se revela agora mais séria, porque de natureza material. Em princípio, o que se consolida? É a decisão do árbitro, carregada, já, de conteúdo. Semelhantemente, a decisão do magistrado, mesmo em conflito com outras decisões, tende igualmente a consolidar-se como direito posto. Mas a moderna dogmática penal continua desatenta a essa realidade, às contradições objetivas do direito, que teimam, em contrapartida, a se perpetuar.

Veja-se, por exemplo, e agora com mais clareza, a hipótese de roubo praticado com o uso de arma de brinquedo.


5. Roubo com arma de brinquedo

5.1. O sentido da norma

A pena do roubo próprio (art. 157, caput) ou impróprio ( § 1º ) sofre aumento "de um terço até metade", nos termos do § 2º, se a violência ou ameaça é exercida "com emprego de arma"(inciso I).

Entende-se que arma, para os efeitos legais, é todo instrumento especialmente elaborado (arma em sentido estrito) ou eventualmente utilizável (sentido amplo) para o ataque ou defesa das pessoas. Ninguém duvida que revólveres e metralhadoras constituam armas autênticas. Ancinhos e foices já poderiam ser contestados, pois sua destinação é agrícola. Incluem-se, no entanto, no conceito de arma, haja vista seu indiscutível potencial de agressão ou intimidação.

Ainda que muitos penalistas não gostem da chamada "interpretação extensiva", em prejuízo do réu, o fato é que sobre o assunto parece não haver muita disputa doutrinária. Até mesmo pedras e pedaços de pau são encarados como armas quando usados ostensiva e ameaçadoramente. "De modo geral – preleciona Magalhães Noronha – todo objeto de poder ofensivo e usado intencionalmente constitui arma (Direito penal, v. 2, 21ª ed. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 154). Mas os punhos de um lutador de boxe ou caratê somente por analogia in malam partem é que poderiam ser equiparados a elas, pois a majorante legal exige, com clareza, o emprego de algum objeto (arma) distinto do sujeito. Nenhuma parte do corpo humano (mãos, pernas, dentes etc.) se encaixa no conceito de arma, no âmbito do direito penal.

5. 2. Divergências interpretativas

As divergências interpretativas começam a ocorrer quando se indaga – como simples hipótese doutrinária, ou na prática forense – se o emprego, por exemplo, de um revólver descarregado, ou quebrado, ou de brinquedo, justifica o acréscimo de pena preconizado em lei.

Nélson Hungria liderou o movimento de sua possibilidade: "A ameaça com uma arma ineficiente (ex.: revólver descarregado) ou fingida (ex.: um isqueiro com feitio de revólver), mas ignorando o agente tais circunstâncias, não deixa de constituir a majorante, pois a ratio desta é a intimidação da vítima, de modo a anular-lhe a capacidade de resistir"(Comentários ao código penal, v. 7. Rio de Janeiro: Forense, 1955, p. 55).

Observe-se que, no texto de Hungria, se o agente sabe que utiliza arma fingida ou ineficiente, a majorante não é expressamente admitida. Ora, na flagrante maioria dos roubos com tais armas o agente conhece a particularidade, de modo que, aparentemente, o grande penalista estava pensando na vítima e, não, no agente. O sujeito passivo da ameaça não percebe a fragilidade ou inocuidade do instrumento e, por isso mesmo, sente anulada sua "capacidade de resistir".

Como quer que seja, este último detalhe é que tem justificado na prática, para uma expressiva corrente jurisprudencial (inclusive STF), o reconhecimento da forma qualificada. Entende-se que prevalece o "espírito" da lei, que estaria preocupada com o maior grau de intimidação da vítima, decorrente da percepção, não importa se errônea, de uma arma pronta para ser usada. Esse pavor da vítima (aspecto subjetivo) é que conta para o endurecimento da resposta punitiva.

Vejamos alguns acórdãos, in Código penal e sua interpretação jurisprudencial, 5ª ed., cit., de Alberto Silva Franco e outros:

"O uso de arma de brinquedo, se intimida a vítima, credencia o aumento de pena em virtude da qualificadora do art. 157, § 2º, I, do CP" (STF - RE - Rel. Francisco Rezek - RT 588/439) – p. 2020.

"Se houve intimidação da vítima, por não saber que se tratava de arma de brinquedo, justifica-se o aumento da pena a que alude o art. 157, § 2º, I, do CP" (STF - RE - Rel. Néri da Silveira - RT 592/434; RTJ 119/275) – p.2020.

"Não descaracteriza o crime de roubo qualificado ter-se o assaltante utilizado de revólver de brinquedo para impor-se à vítima, pois a intimidação pela violência, de qualquer sorte, ocorreu, eis que ignorava a vítima ser a arma de brinquedo" (STF - RE - Rel. Aldir Passarinho - RT 609/448; RTJ 114/341) – p. 2019.

Na doutrina, porém, sobretudo em se tratando de arma de brinquedo, predomina largamente o entendimento da ocorrência de roubo simples. Para o reconhecimento da forma qualificada aceita-se no máximo o emprego de arma imprópria, não de arma inexistente. O texto revela o "espírito": a lei fala em arma e, não, em simulacro de arma. O dolo do agente é típico, aliás, de subtração mediante fraude. A "gravidade" da ameaça só se mostra compatível com o roubo (simples) porque o gesto é mal interpretado pela vítima: a hipótese corresponde à expressão verbal ameaçadora, que integra o delito (art. 157, caput, ou § 1º) mesmo que não haja intenção de realizar a promessa. Se uma simples frase, independentemente do verdadeiro propósito do agente, pode constituir elemento do roubo, então faz sentido considerar-se o emprego de arma fictícia como instrumento de intimidação, para os efeitos jurídico-penais.

Mas inexiste, em substância, maior gravidade real, concreta, no ato de apontar contra alguém uma inofensiva arma de brinquedo em confronto com o gesto de ameaça de socos e pontapés. E se a vítima, bem mais forte, resolve reagir e enfrentar o "temível" assaltante? Ora, quando o revólver é verdadeiro, ela pode ser morta ou ferida. Se o revólver é de fantasia, não pode haver dúvida quanto à reversão dos fatores de risco.

O "espírito" da lei se revela nitidamente pelo perigo vivenciado pela vítima; e perigo de ordem objetiva (risco de morte ou de lesão corporal), inconfundível com o "temor" da pessoa que está sendo roubada. A subjetividade do ofendido não dispensa a realidade objetiva de um perigo concreto, a demandar um acréscimo de pena proporcional à maior gravidade da conduta.

Sintetiza Damásio de Jesus: "O CP somente qualifica o delito de roubo quando o sujeito emprega arma. Ora, revólver de brinquedo não é arma. Logo, o fato é atípico diante da qualificadora"(Direito penal, v. 2, 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 301).

5. 3. Análise crítica

Todos os que admitem a forma qualificada se deixam envolver por uma espécie de empatia para com a vítima, em sua dramática subjetividade. Ora, essa empatia, por mais respeitável e compreensível, não justifica o descumprimento do preceito constitucional do "nullum crimen, nulla poena sine lege". Nenhuma pena, em sua natureza ou quantidade, pode ser irrogada, no Brasil, sem prévia cominação legal (CF, art. 5º, XXXIX; CP, art. 1º ). E o legislador só autoriza o aumento de pena, por sinal elevado, de um terço à metade, se ocorre "emprego de arma"(art. 157, § 2º, I).

Afirmar o contrário é endossar, na prática, o que se proíbe na teoria em nome do Estado de Direito. Afinal de contas, "arma, no rigor da lei, tem sentido técnico, não podendo ser ampliada para abranger brinquedos que a imitem, assim fazendo-se verdadeira interpretação analógica in malam partem, tradicionalmente vedada"(TACRIM-SP- Rev. - Rel. Ercílio Sampaio - JUTACRIM 72/23, in Repertório cit., p. 2022).

A reviravolta interpretativa chegou ao Pretório Excelso:

"À corrente jurisprudencial que entende configurar o "emprego de arma" – causa especial de aumento de pena no roubo, na utilização da arma de brinquedo, a melhor doutrina tem oposto crítica demolidora; ainda, porém, que se aceite a discutível orientação, nem ela permite divisar a referida causa de exacerbação da pena, que é puramente objetiva, na circunstância de o agente simular estar armado, mediante gesto que aparente portar o revólver sob a camisa" (STF - HC - Rel. Sepúlveda Pertence - RT 696/434; in Repertório cit., p. 2024/2025).

"Roubo - Causa de aumento - Emprego de arma imprópria ao disparo - Insubsistência - Constatado, mediante exame pericial da arma utilizada no roubo, a impossibilidade de produzir disparos, descabe a observância da causa de aumento do inciso I do § 2o do artigo 157 do Código Penal. O quadro é semelhante àquele revelado pelo emprego de arma de brinquedo, valendo notar que não se pode colocar na vala comum situações concretas em que a potencialidade do risco tem gradação diversa. A hipótese está compreendida pelo caput do citado artigo no que cogita da grave ameaça isto considerada a óptica da vítima, decorrente das aparências"(STF - HC - 70.523.5 - Rel. Marco Aurélio - DJU de 1º /10/93, p. 20215 - e RT 702/438; in Repertório cit., p. 2026)

Roubo - Utilização de arma imprópria ao uso - Efeitos - A utilização de arma imprópria ao disparo ou de brinquedo não descaracteriza o tipo do artigo 157, caput, do Código Penal. Conforme precedente desta Corte – habeas corpus n. 70.534-1 por mim relatado, cujo acórdão foi publicado no Diário da Justiça de 1º de outubro de 1993 – apenas afasta a causa de aumento inserta no inciso I, § 2o, do artigo 157 daquele Diploma. Existência, no caso, da grave ameaça, muito embora sob a óptica da aparência, à evidência, de violência à pessoa"(STF - HC 71.051-4 - Rel. Marco Aurélio - DJU de 9.9.94, p. 23.442, in Repertório cit., p. 2022)

Observação curiosa, mas inevitável: o Código Penal (roubo com emprego de arma) não mudou até então uma única vírgula. Mudaram, sim, os intérpretes e, com eles, começa a consolidar-se um novo direito penal. E para melhor, diga-se de passagem.

É impossível, à luz do sistema do Código, incidir na majorante se o instrumento utilizado no roubo não passa de um inocente "revólver" de criança. Os que pensam de outra forma não levam o legislador a sério. Pode-se matar o "cadáver" de alguém? Comete homicídio aquele que, por engano, metralha e destrói um manequim de loja impecavelmente vestido e caracterizado como um homem? Não, evidentemente, pois o legislador não está brincando quando se refere ao ser humano vivo, de carne e osso, como vítima do crime do artigo 121 (matar alguém).

Em todos os demais dispositivos do Código permanece a seriedade do legislador. Assim, mulher de mentira (transexual operado) não é vítima de estupro (art. 213); não se presume esse delito se a jovem, de 15 anos de idade, aparenta bem menos, uns 12 a 13 anos; não comete o crime do art. 250 aquele que simula provocar incêndio; não comete peculato (art. 312) quem finge ser funcionário público para se apropriar de valores, assim como não é réu de desobediência (art. 330) a pessoa que acredita estar dolosamente descumprindo uma ordem expressa de quem se faz passar como agente da administração estatal.

Injuriar, para os efeitos da lei (art. 140), é injuriar de verdade; a forma qualificada do art. 163, parágrafo único, inciso II, pressupõe o emprego de substância efetivamente inflamável ou explosiva e, não, de substância de características opostas, mesmo que pareça inflamável ou explosiva; também é impossível cogitar-se da lesão corporal gravíssima do art. 129, § 2º, V, se a vítima, assustada, se imaginava grávida e acha que perdeu o feto, de fato inexistente. Nada muda se também o sujeito ativo acreditava na existência de gravidez e morte do feto.

Em síntese, todas as expressões da lei, sem exceção alguma, se reputam verdadeiras no sentido de exigirem concreta e historicamente, sem dissimulação, fatos correspondentes ao limites de seu significado. Quando se fala em "arma", no art. 157, § 2º, I, não se está pensando em nenhuma encenação teatral ou cinematográfica, ou numa brincadeira (simulação) entre amigos, ou na esperteza do ladrão. Aceitar, como válida, para efeito de majoração da pena do roubo, uma arma fictícia, falsa, fingida, imaginária, irreal, é subverter inadvertidamente toda a estrutura de legalidade dos crimes e das penas, em detrimento da Constituição Federal. É ignorar, sem a menor cerimônia, uma das mais preciosas conquistas do cidadão perante o arbítrio do Poder organizado, ou seja, o princípio da legalidade dos crimes e das penas.

Como explicar tamanho disparate? No fundo, a pretexto de busca do "espírito" da lei, o intérprete acaba projetando sua própria vontade, seu desejo pessoal de maior rigor na punição, que ele considera razoável ou idealmente justo. Não fica difícil, na seqüência, mesmo que inconscientemente para alguns, encontrar na "ratio legis" o apoio que o texto legal se nega a fornecer. À malícia do assaltante responde-se com a "bondade" da perícia hermenêutica no desvelamento da questão, curiosamente identificado às expectativas da vítima, de parcela do grupo social e, é claro, da ideologia pessoal do operador jurídico.

Sobre o assunto, aliás, muito ainda se haveria de falar. Em tese, constituía delito, com a vigência da Lei nº 9.437, de 20 de fevereiro de 1997, "utilizar arma de brinquedo, simulacro de arma capaz de atemorizar outrem, para o fim de cometer crimes" (art. 10, § 1º, II). Qual a repercussão do novo dispositivo sobre o tema específico em análise? Persistência da forma qualificada? Concurso formal de crimes? Roubo simples, por força do princípio da progressão criminosa, ou da consunção, ou da subsidiariedade implícita?

Felizmente, o problema se amenizou, ou simplesmente deixou de existir, após a entrada em vigor da nova lei de armas de fogo (Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003).

Nada obstante, havia voltado à baila no ano de 1997 a polêmica sobre o emprego de arma de brinquedo na prática do crime de roubo. Cinqüenta e cinco anos de vigência do Código Penal não teriam sido suficientes para uma pacificação doutrinária e jurisprudencial.

Veja-se o teor da Súmula 174 do STJ: "No crime de roubo, a intimidação feita com arma de brinquedo autoriza o aumento da pena". Vale o "sentido finalístico da norma", explica Luiz Vicente Cernicchiaro (Arma de brinquedo, Boletim do IBCCrim n.º 50, jan. 97, p. 12). Discorda Dyrceu Aguiar Dias Cintra Júnior: arma não é brinquedo, "é o próprio princípio da legalidade que está sendo desprezado. Cai por terra a função garantidora do tipo"(Brinquedo não é arma, Boletim cit., p. 1).

Reviravolta jurisprudencial: a Súmula foi cancelada em outubro de 2001. Nada obstante, persistem as divergências. Como resolver ou, pelo menos, explicar o problema?

Ora, se persistem as divergências – e elas se multiplicam, se renovam, se eternizam no campo do direito – convém abandonar de uma vez por todas as ilusões da "moderna" dogmática. A vontade do intérprete é fonte do direito penal.


6. Vontade interpretativa

Chegamos à palavra-chave, à categoria jurídica da vontade interpretativa, se bem que pouco lembrada nos manuais de direito penal. Pouco lembrada porque nossos melhores penalistas preferem o elegante debate às claras, o jogo retórico do estéril dogmatismo hermenêutico, na vã esperança de perseguir e guardar para si, ou para sua escola, corrente ou doutrina, a "autêntica" verdade jurídica. Trabalham, honestamente, com sua inteligência, com argumentos que pretendem derivados da lei ou da "natureza das coisas", acessíveis ao que se poderia chamar de uma suposta racionalidade compartilhada.

Fala-se de tudo, desde os pressupostos hermenêuticos de ordem lógico-formal (coerência e harmonia do sistema, por exemplo) às regras gerais de conflito "aparente" de normas (especialidade, subsidiariedade, consunção, fato posterior impunível etc.) e às variáveis argumentativas de sentido pragmático (política criminal, bom senso, lógica do razoável, dentre outras) ou, ainda, de conteúdo ético (por exemplo: justiça, direito natural, analogia, eqüidade).

Operando com esse largo espectro de opções acaba o penalista se esquecendo, apesar disso, de suas inevitáveis contradições intrínsecas, que lhe permitem confundir suas preferências ocasionais com a impossível objetividade das normas que imagina – ou finge – descobrir.

Daí a importância, no plano didático, da indicação de categorias jurídicas de cunho realista, a serem analisadas, como sempre, de forma dialética, ou seja, em suas conexões com outras categorias ou premissas igualmente interligadas: força, poder, vontade, liberdade. Todas elas, é bom que se frise, em sua concretude histórica, o que significa dizer que o direito penal conserva para sempre uma zona de incerteza a ser preenchida aleatória e circunstancialmente.

Os exemplos anotados no capítulo anterior (furto noturno, furto qualificado pelo rompimento ou destruição de obstáculo, súmulas do STF etc.), somados a tantos outros, ilustram a validade de uma visão crítico-metodológica do direito penal. Quer dizer, de um direito penal visto ou encarado sob a ótica de sua própria realidade histórica, sem a máscara das ilusórias encenações dogmáticas, que se alternam entre a pretensa clareza e objetividade das leis positivas e a frágil "cientificidade" de estruturas ontológicas da ação, da culpa, do crime e da pena.

Devem estar vivas em nossa memória, pois foram expressamente citadas, as divergências interpretativas de eminentes ministros do Supremo Tribunal Federal em torno do roubo com emprego de arma de brinquedo. Como explicá-las? Se eles examinam o mesmo processo, ou processo equivalente; se estão diante do mesmo Código Penal; se conhecem a fundo as técnicas hermenêuticas – por que não se entendem na hora do veredicto?

A resposta é clara, fácil, compreensível, mas não faz parte da tradição jurídico-doutrinária, no Brasil. Com as exceções de sempre, penalista que se preza, em solo pátrio, preocupa-se em detectar ou assimilar a "evolução" ou "progresso" da ciência do direito penal, ainda que confusa, fragmentada, esotérica e, não raro, ilusionista. E tudo isso não necessariamente porque ciência penal derivada de outras plagas, mas porque confeccionada sob o pálio de simples tentativas de mudança terminológica, todas elas de fachada, de superfície, à semelhança da moda na indumentária, na música, no corte de cabelo. As intermináveis "revisões" no campo da tipicidade, da ilicitude, da culpabilidade, de que são exemplo os "modernos" princípios da ação finalista, da adequação social, da insignificância, da redução teleológica, do erro de tipo e de proibição, do normativismo ético, e tantos outros, não resolveram e não resolvem a questão, a menos que nossos ministros sejam tidos e havidos como imperitos ou, pelo menos, como profissionais desatualizados, pois divergem sempre, em todas as matérias, penais ou extra-penais.

Qual, então, a resposta? Muito simples: o direito penal, na prática (que, no fundo, revela a teoria), não se resolve com a lei, com o finalismo ontológico da conduta humana, com a doutrina da separação dos poderes, com a objetividade das regras hermenêuticas, com a inteligência dos intérpretes. Não, o direito penal (todo o direito, aliás) pressupõe a conjugação, também, de outras premissas – com a inclusão, é claro, dos itens apontados, de outras teorias dogmáticas, das falácias argumentativas, da subjetividade e preferências do operador jurídico, das condições históricas, da ideologia social predominante – mas premissas de cunho dinâmico, circunstancial, contraditório e, pois, relativo, aglutinadas concretamente sob o denominador comum das categorias básicas da vontade, da liberdade, da força e e do poder.


7.Verdade que liberta

São essas categorias que, em verdade, revelam o direito em sua concretude, mesmo que visivelmente associadas, conforme o caso, à sugestão da lei, como projeto; à personalidade e inteligência do intérprete; e ao suporte ideológico e material da sociedade. Ora, tantas diferenças de estilo, de peso, de expectativas, de influências, de valores – em suma, tantas variáveis juriferantes – só poderiam desembocar na elaboração e construção de direitos penais no plural, claramente personalizados. Direitos confusos, díspares, contraditórios e necessariamente injustos, se examinados sob o prisma da igualdade.

Não há sabedoria de compêndio capaz de esconder, por tanto tempo, essa realidade inerente ao direito enquanto objeto (direito-norma ou fático-normativo) e como teoria ou discurso explicativo desse objeto (ciência do direito penal). É possível que mais cedo ou mais tarde as novas gerações de juristas despertem para a percepção do caráter histórico-sociológico do direito. Sem outros vínculos ou preocupações que os da busca da verdade, terão melhor acesso às condições de mudança, no plano ético-valorativo.

Uma coisa é certa: as condições de mudança não são essas que andam por aí, travestidas de suntuosa modernidade, mas desconhecidas, ao que parece, de todos os nossos tribunais, inclusive do Supremo Tribunal Federal.

"A história, submetendo a tudo, inclusive ao Direito, é terrivelmente efetiva", sintetiza Gladston Mamede (Semiologia e direito: tópicos para um debate referenciado pela animalidade e pela cultura. Belo Horizonte: Editorial 786, 1995, p.147).

Palavra-chave: história. Quem a desconhece ou dela prescinde na dogmática jurídica pode parecer sábio, e talvez o seja; pode parecer forte, e talvez o seja; pode parecer justo, e talvez o seja; pode parecer bem intencionado, e talvez o seja; dificilmente, porém, há de parecer, e certamente não o será, na simbologia do Novo Testamento, o "sal da terra", o fermento e arauto da verdade que liberta.


Referências bibliográficas:

ANDRADE, Lédio Rosa de. Introdução ao direito alternativo brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996.

ANDREUCCI, Ricardo Antunes. Direito penal e criação judicial. São Paulo: RT, 1989.

BASTOS, João José Caldeira. Curso crítico de direito penal. Florianópolis: Obra Jurídica, 1998.

------------------------------------Direito penal: visão crítico-metodológica, Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 1, n° 1. São Paulo: RT, 1993.

CERNICCHIARO, Luiz Vicente. Arma de brinquedo, Boletim do IBCCrim n.º 50, jan. 97, São Paulo.

CINTRA JÚNIOR, Dyrceu Aguiar Dias. Brinquedo não é arma. Boletim do IBCCrim n.º 50, jan. 97, São Paulo.

FRANCO, Alberto Silva et alli. Código penal e sua interpretação jurisprudencial. São Paulo: RT, 5ª ed., 1995.

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. 7. Rio de Janeiro: Forense, 1955.

JESUS, Damásio E. Direito Penal, v. 2, 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 1991.

MACIEL, Getulino do Espírito Santo; ENCARNAÇÃO, João Bosco da (org.). Seis temas sobre o ensino jurídico. São Paulo: Cabral Editora, 1995.

MAMEDE, Gladston. Semiologia e direito: tópicos para um debate referenciado pela animalidade e pela cultura. Belo Horizonte: Editorial 786, 1995.

NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal, v. 2, 21ª ed. São Paulo: Saraiva, 1986.


Autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BASTOS, João José Caldeira. Crimes contra o patrimônio: anotações crítico-metodológicas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1546, 25 set. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10429. Acesso em: 18 abr. 2024.