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Medidas despenalizadoras.

Intervenção estatal compatível com a reprovabilidade das infrações penais de menor potencial ofensivo

Medidas despenalizadoras. Intervenção estatal compatível com a reprovabilidade das infrações penais de menor potencial ofensivo

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RESUMO: A coexistência do sistema penal tradicional com o novo modelo consensual penal revela-se possível e plausível no Estado Social e Democrático de Direito. A compatibilidade do modelo consensual penal no tratamento das infrações penais de menor potencial ofensivo revela-se, com a aplicação das medidas despenalizadoras, como intervenção estatal sob as medidas da proporcionalidade e eficácia.

PALAVRA-CHAVE: INFRAÇÃO PENAL DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO; MEDIDA DESPENALIZADORA; INTERVENÇÃO PENAL; MODELO CONSENSUAL PENAL; POLÍTICA CRIMINAL.

ABSTRACT: The coexistence of the traditional penal system and the new consensual penal model shows itself to be possible and plausible at the Social and Democratic Legal State. The compatibility of the consensual penal model in the treatment of potentially minor offensive criminal infractions reveals itself, with the application of depenalizing measures, as a State intervention under proportionality and effectiveness measures.

KEYWORDS: POTENTIALLY MINOR OFFENSIVE CRIMINAL INFRACTIONS; DEPENALIZING MEASURE; PENAL INTERVENTION; CONSENSUAL PENAL MODEL; CRIMINAL POLITICS.

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO – 1. INFRAÇÃO PENAL DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO: 1.1 Intervenção penal: seletividade legal e proporcionalidade; 1.2 A adequação constitucional do sistema penal - 2. MEDIDA DESPENALIZADORA: ASPECTOS E COMPATIBILIDADE SISTEMÁTICA – CONSIDERAÇÕES FINAIS – REFERÊNCIAS.


Introdução

Na determinação dos bens e interesses merecedores de tutela jurídica, o legislador avança sobre a realidade e extrai os valores que precisam ser protegidos pelo Direito, trazendo-os ao ordenamento jurídico. De igual modo procede o Direito Penal ao depurar quais os bens e interesses estão aptos a receber seu empenho.

O legislador constrói os modelos jurídicos, recortando porções da realidade, elevando ao plano abstrato ações que constituem um todo indecomponível, cujas partes se inter-relacionam e se polarizam em torno de um sentido, de um valor.

Graças a um abstracionismo prático, como quer Cesarini Sforza, o legislador examina os dados empíricos, que já possuem uma ordem e um sentido intrínseco, objetivando e racionalizando a tipicidade imanente, construindo-a abstratamente e ajuizando-a com base em um valor que se coloca como um fim a ser alcançado. (REALE JR., 2000, p. 36)

Na formação do tipo legal ocorre uma ordenação de fatos, segundo os valores da sociedade na qual incidirá a regra, qualificando comportamentos futuros e previsíveis e mediante a atribuição de conseqüências jurídicas para tais. Assim, não há uma elaboração aleatória do tipo. Os perfis paradigmáticos e comportamentos traçados na norma estão eivados de ordem e significados axiológicos, possibilitando, assim, a defesa de valores.

"Quando o legislador colhe na realidade um modelo de conduta, os elementos constitutivos têm a sua razão de ser em função do valor que se visa proteger." (REALE JR., 2000, p. 38)

Os valores eleitos são tidos por importantes àquela sociedade naquele momento, devendo ser preservados, visto serem características em torno das quais transcorre a dinâmica social daquela.

A determinação de um modelo de conduta, fundamentada no resguardo de bens e interesses socialmente relevantes, passa pelos momentos da positivação de valores: observação-seleção, valoração e transposição para a esfera deôntica (dever ser). A partir destas diretrizes estabelecedoras de modelos de comportamento, dar-se-á o convívio social escolhido, ou seja, há uma estruturação deôntica dos comportamentos sociais vislumbrados.

No primeiro momento (observação-seleção), volta-se o legislador aos fatos naturais do cotidiano social, apreende aqueles carecedores da ingerência institucional do Direito, escolhendo-os a partir de um diálogo com a sociedade onde os fatos se manifestam – momento pré-legislativo – e inserindo-os no ordenamento jurídico, através de instrumentos introdutórios de normas.

Em seguida (valoração), atribui-se aos fatos selecionados uma carga valorativa graduada e em conformidade com a aceitação ou o repúdio dos sujeitos sociais. A graduação mencionada atua diretamente no quantum de interferência do Direito. Subjugar-se-ão os fatos, determinando qual o ramo jurídico – divisão didática – conferirá tutela. Aos fatos repudiados pelos sujeitos sociais confere-se carga valorativa negativa. Os fatos não-reprováveis recebem carga valorativa positiva. O reflexo da valoração, positiva ou negativa, é observado no último momento do processo de positivação.

Por último, apresenta-se à sociedade o comportamento catalogado dentre os permitidos, esperados ou reprováveis. Estes, quando realizados, por uma autorização já previamente concedida pelos sujeitos sociais e agora sujeitos de direito, passam a ser merecedores de sanção pela desatenção ao escopo do convívio social: o bem comum. Neste momento, os fatos que receberam valoração negativa passam a ser catalogados como proibidos. Os comportamentos esperados são considerados como obrigatórios para atingir as finalidades da aglutinação dos sujeitos em sociedade e existencial do Estado de Direito. Se não realizados, também autorizam a imposição de sanção. Já aos fatos permitidos não resta qualquer sanção em decorrência de sua realização ou não, encontrando-se eles na esfera de discricionariedade dos sujeitos de direito. Todavia, àqueles que inibirem a realização de fato legalmente permitido pode resultar sanção pelo atingimento de esfera de liberdade tutelada pelo Direito.

Assim, verifica-se, nas palavras de Miguel Reale Júnior, ser o tipo penal uma manifestação do processo de positivação, onde:

O tipo penal é fruto de uma elaboração abstrato-prática, que apreende na experiência as condutas típicas possíveis e submete-as, segundo as condições materiais, morais e culturais necessárias à vida e próprias daquele momento, a um ajuizamento valorativo, do qual decorre a imposição de uma solução, de um comando permissivo ou proibitivo.

Tais condutas são dotadas, como já dissemos, de tipicidade e de sentido. O legislador capta a estrutura típica da conduta concreta, apreende seu sentido e o submete a um enfoque valorativo, considerando-o positivo ou negativo, conforme exigências de conveniência humana. (2000, p. 39)

Neste sentido, inteligível a conduta do legislador infraconstitucional de dedicar, respaldado na proteção de bens jurídicos, uma intervenção jurídico-penal proporcional à lesividade provocada nos bens jurídicos relacionados.

Se a função maior do Direito Penal está em intervir, quando necessário for, nas ações humanas lesivas ou potencialmente lesivas a bens e interesses jurídicos, valer-se da taxatividade para indicar quais as infrações penais merecedoras de tratamento penal diferenciado transcende a linha da pena máxima abstrata cominada no tipo. Deve-se incorporar também na determinação destas infrações outros elementos relacionados com o objeto protegido, ou ainda, os efeitos penais produzidos no desencadear da ação do agente que encontrem proximidade finalística com as denominadas infrações de menor potencial ofensivo.

Numa definição substancial de delito, tem-se que mais do que lesar um valor moral ou religioso, deve a conduta afetar a sociedade, trazendo por conseqüências prejuízos a esta, ou demonstrar periculosidade tamanha a justificar intervenção – como no caso dos crimes de perigo. (FERRAJOLI, 2001, p. 373)

Observando-se os efeitos de catalogar uma conduta como infração penal, principalmente quanto à pena que irá ferir o agente (retributividade), o Direito Penal pátrio apenas admite como infração penal (crime ou delito e contravenção penal) aquelas condutas que foram objeto de normatização jurídico-penal e estiverem legalmente definidas. A esse pressuposto denomina-se princípio da estrita legalidade. (FERRAJOLI, 2001, p. 375).

A aplicação do princípio da legalidade no Direito Penal encontra justificativa na intervenção disciplinada deste visto que atinge, quando sanciona condutas, direitos fundamentais dos infratores.

Neste contexto, apenas a incidência em conduta regrada, legalmente prevista e substancialmente ofensiva aos bens e interesses jurídicos autoriza a utilização do Direito Penal, atendendo ao princípio da intervenção mínima, da subsidiariedade e principalmente da adequação social e ofensividade, todos estes compatíveis com a ideologia do constitucional Estado Social e Democrático de Direito.

Em tese, tem-se no ordenamento uma gradação valorativa dos bens-jurídicos penalmente protegidos na cominação abstrata das penas aos infratores. Este critério objetivo reflete a reprovabilidade social da conduta e importância dos bens-jurídicos.

O legislador, valendo-se desse critério objetivo, ao preencher a locução constitucional "infrações penais de menor potencial ofensivo", originalmente, ao editar a lei específica, trouxe como conteúdo as infrações penais cuja lei comina pena máxima não superior a um ano, nos termos da Lei n.° 9.099/95, conforme disposto no Art. 61:

Art. 61. Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a um ano, excetuados os casos em que a lei preveja procedimento especial.

Com o advento da Lei n.° 10.259/2001, houve uma ampliação do conteúdo conferido à expressão "infrações penais de menor potencial ofensivo" visto que as infrações penais cuja pena máxima cominada não excedesse a dois anos foram englobadas, nos termos do parágrafo único do Art. 2°:

Art. 2°. Compete ao Juizado Especial Federal Criminal processar e julgar os feitos de competência da Justiça Federal relativos às infrações de menor potencial ofensivo.

Parágrafo único. Consideram-se infrações de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos, ou multa.

O referido diploma legislativo, ao instituir os Juizados Especiais no âmbito da Justiça Federal, provocou, inicialmente, polêmicas acerca da citada ampliação no rol das infrações penais de menor potencial ofensivo no âmbito da Justiça dos Estados.

A ampliação teve repercussão prática, concebendo tratamento diferenciado para situações idênticas, apenas por que apuradas em Justiças diferentes (estadual e federal). Tutelado o mesmo bem jurídico em ambas as esferas, razão não haveria para tratamento desigual.

Desse modo, temos que os delitos apreciados por ambas as justiças tutelam o mesmo bem jurídico, divergindo a competência para o julgamento tão-somente em virtude de um aspecto específico da causa petendi. E em se tratando de normas penais que protegem exatamente o mesmo bem jurídico, dúvidas não há de que merecem tratamento jurídico idêntico. (PODVAL, 2002, p. 1830)

Avocado o princípio da isonomia e após críticas da doutrina e jurisprudência, a questão encontra-se pacificada. O entendimento prevalecente foi da derrogação do Art. 61 da Lei n.° 9.099/95 pelo parágrafo único do Art. 2° da Lei n.° 10.259/2001. Roberto Podval, ao interpretar a Lei n.°.099/95, afirma:

forçoso é concluir que a única solução possível para este impasse, compatível com as garantias fundamentais previstas no texto constitucional, é considerar que o parágrafo único do art. 2° da Lei 10.259/01 derrogou o art. 61 da Lei 9.6099/95 no que tange à definição das infrações de menor potencial ofensivo. Desse modo, passarão a tramitar no Juizado Especial Criminal todas as infrações a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos, sejam de competência do juízo federal, sejam de competência do juízo estadual. (2002, p. 1830)

O acontecimento legislativo supra referido aponta uma insuficiência da utilização apenas do critério objetivo do quantum máximo abstrato da pena para a configuração de infração penal de menor potencial ofensivo. Por desconsiderar o bem jurídico protegido ocorreu a flagrante ofensa à igualdade de tratamento tanto ao infrator, quanto ao próprio bem jurídico. Exemplo tem-se no crime de desacato (Art. 331 do Código Penal) que se praticado fosse contra funcionário público federal concederia ao infrator a benesse da medida despenalizadora, desde que preenchidos os requisitos objetivos e subjetivos, todavia, se fosse praticado perante funcionário público municipal ou estadual não poderia o infrator valer-se do benefício legal porque não consistiria em infração de menor potencial ofensivo. Assim, havia uma distinção material de situações iguais a conferir tratamento penal e processual penal diferenciado, sem qualquer fundamento legitimador para tal.

Apresenta o Art. 20, da Lei n.° 10.259/2001 a vedação de aplicação da Lei n.°10.259/2001 no âmbito da Justiça dos Estados:

Art. 20. Onde não houver Vara Federal, a causa poderá ser proposta no Juizado Especial Federal mais próximo do foro definido no art. 4o da Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995, vedada a aplicação desta Lei no juízo estadual.

Não obstante a vedação referida, conforme leciona Ada Pellegrini Grinover,

não poderia o legislador ordinário, em face do disposto no art. 98, I da CF, considerar a mesma infração como de menor potencial ofensivo para a Justiça Federal e não atribuir-lhe a mesma qualidade para a Justiça Estadual. Por isso, apesar da vedação, sustentamos a aplicação da Lei 10.259 à Justiça Estadual. (2005, p. 76)

De certo, como não há crime sem lesão a um bem jurídico, também não se pode conceber um tratamento diferenciado, seja ele penal ou processual penal, para duas ações ou omissões que lesem o mesmo bem jurídico, em igual intensidade, perpetradas por agentes distintos ou iguais, mas que tenham suas condutas materialmente incidindo sobre objetos materiais tutelados por Justiças diferentes. A tutela por Justiças distintas advém da divisão constitucional de atribuições, o que, por si, não autoriza diferente intervenção jurídico-penal. Hão de ser respeitados os princípios constitucionais da isonomia e da proporcionalidade. Somente estaria autorizado tratamento jurídico-penal diferenciado para duas ofensas a um mesmo bem jurídico se houvesse maior ou menor intensidade na ofensa ou, se provada maior ou menor culpabilidade do agente. (GRINOVER, 2005, p. 75)

Neste diapasão, evidenciada resta a necessidade de igual tratamento penal e processual penal para as situações similares à mencionada, afastando o aparente conflito e ressaltando a fragilidade da construção conceitual de infração penal de menor potencial ofensivo, trazida pelo critério objetivo (quantum da pena) da pena máxima abstrata cominada.

A interpretação sistemática possibilita considerar como infrações penais de menor potencial ofensivo, numa análise combinada do Art. 61, da Lei n.° 9.099/95 com o parágrafo único do Art. 2°, da Lei n.° 10.259/2001, todas as contravenções penais e os crimes cuja pena máxima cominada não seja superior a dois anos, compreendidas nas respectivas leis ou em outros diplomas legais do ordenamento jurídico-penal brasileiro, independentemente de previsão legal quanto a procedimento especial para apuração, processo e julgamento. Com isso, retoma-se a conceituação de infração de menor potencial ofensivo, embasada no critério objetivo da pena máxima in abstrato.

Novas discussões surgem com o advento do Estatuto do Idoso (Lei n.° 10.741, de 01.10.2003). O Art. 94 do diploma prevê a aplicação do procedimento da Lei dos Juizados Especiais Criminais aos crimes definidos no novo texto legal, cuja pena privativa de liberdade não seja superior a quatro anos:

Art. 94. Aos crimes previstos nesta Lei, cuja pena máxima privativa de liberdade não ultrapasse 4 (quatro) anos, aplica-se o procedimento previsto na Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995, e, subsidiariamente, no que couber, as disposições do Código Penal e do Código de Processo Penal.

A discussão dá-se em torno de uma ampliação, em tese, do rol das infrações de menor potencial ofensivo, incluindo-se aquelas cuja pena máxima in abstrato não fosse superior a quatro anos. A lógica do raciocínio não pode ser afastada quando, na análise, tem-se por base o contexto das normatizações anteriores (conceituação a partir do critério objetivo). Contudo, a crítica advém da não observação da teleologia compositora do Estatuto do Idoso. Ao valer-se da aplicação do procedimento previsto na Lei n.° 9.099/95 almeja-se maior celeridade na solução da contenda, possibilitando maior e mais efetiva proteção ao idoso e não a ampliação do rol de infrações de menor potencial ofensivo, por meio de interpretação ampliativa. (GRINOVER, 2005, p. 77)

A magnitude e a importância do bem, ou interesse jurídico, que se objetiva tutelar pela norma penal hão de ser os elementos norteadores da classificação gradativa das infrações penais.

Reclama o Direito Penal constitucional uma distinção escalonada de ingerência penal proporcional ao valor dado ao bem ou interesse jurídico pela sociedade, bem como uma satisfatória adequação da resposta penal à lesão, ou perigo de lesão ao objeto tutelado, visto que não basta a relevância social para um bem ou interesse vir a ser penalmente tutelado, fazendo-se precisa a insuficiência de tutela adequada por outro meio de defesa menos lesivo. (PRADO, 2003, p. 111)

No dizer de Luiz Regis Prado:

(...) É de notar que nem todo bem jurídico requer proteção penal. Isto é, nem todo bem jurídico há de ser convertido em um bem jurídico-penal. (...)

(...) o Direito Penal deve oferecer a substância básica do que for por ele protegível. Explicando: o interesse social relevante para o indivíduo deve ser elevado à categoria de bem digno de tutela jurídico-penal.

Assim, para que um bem jurídico possa ser considerado, em sentido político-criminal, como bem jurídico-penal, insta acrescer ainda o juízo de suficiente importância social.

O valor social do bem merecedor de garantia penal deve estar em consonância com a gravidade das conseqüências próprias do Direito Penal.

A exigência de uma particular relevância social para os bens jurídico-penais significa postular sua autonomia axiológica – tais bens devem ser considerados fundamentais para o indivíduo e a vida social. (2003, p. 104)

Se eleitos são os bens jurídicos dignos da tutela penal, tem-se, também, a gradação da interferência penal deflagrada ligada intimamente a um grau de relevância criado internamente no Direito Penal, colimado com uma gradação valorativa de cada bem jurídico. De certo, não cabe a idéia de uma igualdade de magnitude entre todos os bens e interesses penalmente tutelados.

Esse escalonamento valorativo-material dos bens e interesses jurídico-penais autoriza a intervenção penal e processual penal proporcional, implementando-se, para cada classe de infração penal, uma atuação penal variante, desde a aplicação de uma medida despenalizadora até a aplicação da mais rigorosa sanção penal prevista, obedecidos todos os princípios constitucionais penais e processuais penais.

Com o advento da Lei n.° 11.313, de 28 de junho de 2006, a problemática em torno da diferenciação de tratamento, já expurgada pelos tribunais nos julgamentos cotidianos, encontra-se resolvida. Novamente o legislador afirma o critério objetivo como delimitador da expressão constitucional "infrações de menor potencial ofensivo", ao estabelecer que devem consistir em infrações cuja cominação máxima abstrata de pena não exceda a dois anos. Com a alteração do texto legal, o Art. 61 assumiu a seguinte redação:

Art. 61.  Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa.

A nova legislação, mesmo quase onze anos após o advento da Lei n.° 9.099/95, reflete, por um lado, a dinâmica a que se submete o Direito – e não menos o Direito Penal – em virtude da própria adequação à sociedade e, por outro, a incorporação regrada e gradual deste modelo de intervenção penal.

1.2 A Adequação Constitucional do Sistema Penal

A Lei n.° 9.099, de 26 de setembro de 1995, em cumprimento a determinação constitucional, disciplina a instalação e operacionalização dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, instituindo, dentre outros institutos, a transação penal.

Ivete Senise Ferreira destaca e quantifica a ocorrência de uma modificação na sistemática penal do lidar com as infrações penais:

A lei n. 9.099, de 26.9.95, veio dar cumprimento à determinação constitucional, disciplinando os Juizados Especiais, cíveis e criminais, as áreas de consenso, a reparação do dano e a transação penal, a imposição de medidas alternativas à prisão e a suspensão condicional do processo. Inaugurou ela um sistema de tipo consensual, diverso do sistema clássico, até então em vigor, com diferente filosofia e com princípios próprios, que determinam profunda modificação da sistemática reinante, culminando com a permissão de conciliação entre o Estado e o autor do fato incriminado, desde que seja ele apenas levemente ofensivo aos direitos, bens ou interesses que ao direito penal incumbe proteger. (apud PITOMBO, 1997, p. 13)

Introduz-se o sistema consensual na aspiração de agilidade maior na resolução dos conflitos de menor potencial ofensivo, ou seja, da pequena e média criminalidade, ou ainda, nos termos da Constituição Federal de 1988, "infrações de menor potencial ofensivo", que por inúmeras vezes integravam o volume de processos nos gabinetes, mas que não eram solucionados no prazo legal.

A Constituição Federal disciplina o assunto no Art. 98, inciso I, conferindo competência plena ao Juizado Especial Criminal para atuar na contenção litigiosa:

Art. 98. A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão:

I - juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumariíssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau;

II - justiça de paz, remunerada, composta de cidadãos eleitos pelo voto direto, universal e secreto, com mandato de quatro anos e competência para, na forma da lei, celebrar casamentos, verificar, de ofício ou em face de impugnação apresentada, o processo de habilitação e exercer atribuições conciliatórias, sem caráter jurisdicional, além de outras previstas na legislação.

§ 1º Lei federal disporá sobre a criação de juizados especiais no âmbito da Justiça Federal.

§ 2º As custas e emolumentos serão destinados exclusivamente ao custeio dos serviços afetos às atividades específicas da Justiça.

A citada lei, instrumento de positivação infraconstitucional, regulamenta o dispositivo constitucional:

Art. 60. O Juizado Especial Criminal, provido por Juízes togados ou togados e leigos, tem competência para a conciliação, o julgamento e a execução das infrações penais de menor potencial ofensivo.

Todo o corpo da Lei n.° 9.099/95, conhecida dentre os operadores como "Lei dos Juizados", reproduz a nova forma do atuar estatal sobre a criminalidade selecionada, refletindo-se, principalmente, na intenção de não aplicação da pena privativa de liberdade, avocando, para tal, princípios não contemplados no processo penal tradicional (Art. 62), numa diferenciação no tratamento das infrações penais de pequeno, médio e grande potencial ofensivo, dispensando a cada modalidade medidas em conformidade com os graus de reprovabilidade social e normativa.

Art. 62. O processo perante o Juizado Especial orientar-se-á pelos critérios da oralidade, informalidade, economia processual e celeridade, objetivando, sempre que possível, a reparação dos danos sofridos pela vítima e a aplicação de pena não privativa de liberdade.

Resta a aplicação de pena privativa de liberdade, no tangente às infrações penais selecionados pelo diploma legal, apenas se exauridas as possibilidades de aplicação de outras medidas.

Para as infrações de menor e médio potencial ofensivo traçam-se benefícios antes não aplicados e, para os demais delitos, mantêm-se os critérios tradicionais, como destaca Ivete Senise Ferreira:

As infrações penais de menor potencial ofensivo serão processadas perante os Juizados Especiais Criminais e submetidas às regras do modelo conciliatório estabelecido pela Lei n. 9.099/95; as de médio potencial ofensivo, embora não abrangidas por essa lei no que se refere à competência jurisdicional, poderão incidir em alguns benefícios nela instituídos, como o da suspensão condicional do processo, nos termos do art. 89 do mesmo diploma legal; aquelas consideradas de grande potencial ofensivo serão submetidas aos critérios tradicionais do processo penal clássico, em que imperam o antagonismo entre as partes, a contrariedade nos atos processuais e o respeito estrito aos direitos e garantias fundamentais relativos à ampla defesa, à verdade material, à presunção de inocência e outros mais. (apud PITOMBO, 1997, p. 13)

Decerto, a Lei n.° 9.099/95 introduz mecanismos penais e processuais penais para aplicação exclusiva quando da ocorrência de infrações de menor potencial ofensivo, exemplo, o instituto da transação penal, mas não há supressão de critérios e princípios orientadores do processo penal, diferente do que sustenta Ivete Senise Ferreira no fragmento retro citado.

Inconcebível a idéia de um processo penal, mesmo que atrelado à solução de conflitos de baixa reprovação social, que suprimisse garantias constitucionais como a presunção de inocência, a ampla defesa e a busca da verdade material.

Aceitável torna-se, na análise de Luiz Flávio Gomes, a limitação de direitos e garantias fundamentais, constitucionalmente previstos e sustentáculos de um Estado Social e Democrático de Direito, neste novo modelo de Justiça consensual, no qual o respeito à autonomia da vontade insere-se como forma de ressocialização.


2 Medida despenalizadora: aspectos e compatibilidade sistemática

A Lei n.° 9.099/95 surge em um período de contradição jurídico-penal: ao mesmo tempo em que cresce a criminalização de condutas, por vezes desrespeitando princípios constitucionais, surge, em contraposição, um Direito Penal minimizado, atuante em esfera de ultima ratio.

Enquanto o Direito Penal hipertrofiado exige mais rigor nas penas, o Direito Penal minimalista – trazido ao ordenamento pela Constituição Federal de 1988, que na filtragem constitucional e no fenômeno da recepção das leis não admite atentados à dignidade da pessoa humana e, dentre outros instrumentos, pela Lei dos Juizados Especiais Criminais – objetiva reduzir a atuação degradante sobre o homem, advinda da intervenção penal.

A referida lei introduz meios para o Estado atuar na repressão da infração de menor potencial ofensivo, sem fazer uso da pena restritiva de liberdade, deixando-a como medida de reserva quando e apenas para os casos nos quais houver necessidade. Coaduna a referida legislação com o principio da proporcionalidade, constituidor de um Estado Constitucional e Democrático de Direito. Os meios trazidos pela Lei n.° 9.099/95 são:

a)composição civil (viabiliza a extinção da punibilidade) – Arts. 72 e 74, parágrafo único;

b)transação penal – Arts. 76 e 84;

c)suspensão condicional do processo – Art. 89.

Tais mecanismos integram a sistemática consensual de solução de litígios, uma vez que há disponibilidade de um direito em razão da celebração de um acordo entre as partes do processo (Ministério Público e autor, na ação penal pública incondicionada, diretamente; e Ministério Público e autor, após e somente se inexitosa conciliação entre vítima e autor na ação penal pública condicionada ou na ação penal privada).

A consensualidade pode ser demonstrada com a participação da vítima na dinâmica penal e processual. Nas ações penais privadas, a vítima exerce o direito de ação e contribui para realização de atos essenciais, sob pena de perempção. Nas ações públicas condicionadas, o exercício do direito de representação exemplifica também a ingerência da vítima. Maior interferência dela tem-se na composição civil. Há doutrinadores que entendem a participação dela como uma redescoberta da vítima pelo sistema, seja pela reparação do dano que foi causado, seja pela possibilidade da extinção da punibilidade a partir da conciliação, na qual participa diretamente como sujeito desta relação:

a vítima, finalmente começa a ser redescoberta, porque o novo sistema se preocupou precipuamente com a reparação do dano. Em se tratando de infrações penais de competência dos Juizados Criminais, de ação privada ou pública condicionada, a composição civil chega ao extremo de extinguir a punibilidade (art. 74, parágrafo único). (GRINOVER, 2005, p. 50)

A utilização de meios adequados e úteis para repressão e prevenção da criminalidade, que encontra menor reprovabilidade social, positiva o princípio da proporcionalidade em âmbito penal. A reintegração social do agente e a reparação do dano encontram maior confluência com as infrações penais de menor potencial ofensivo do que a mera retributividade da pena. Os mecanismos supramencionados são instrumentos para atingir tal corolário.

Frustrada, por qualquer motivo, a aplicação de medida alternativa, retoma-se, no que for possível e legal, os procedimentos da sistemática processual tradicional. Após a regular tramitação poderá haver a absolvição ou restar uma condenação consistente em sanção penal restritiva de direitos ou até mesmo privativa de liberdade, que até então estava sendo evitada.

O sistema penal consensual não elimina a atuação do sistema penal tradicional, valendo-se, inclusive, deste em caráter de complementariedade, ou seja, não sendo possível a solução do conflito apresentado o próprio sistema penal consensual se integra, no que possível for, com a dinâmica daquele.

A transação penal, um dos institutos despenalizadores, somente pode ser oferecida caso não haja justa causa para arquivamento do termo circunstanciado que foi levado à análise ministerial. Se o fato narrado no termo circunstanciado de infração penal não constitui fato ilícito, penalmente punível, o agente ministerial manifesta-se pelo arquivamento do feito. O magistrado, acolhendo as razões da promoção ministerial, determina o arquivamento. Caso entenda não ser caso para tal, deve remeter ao procurador-geral de justiça para que este analise e tome as medidas que entender conveniente, nos termos do Art. 28 do Código de Processo Penal.

O termo transação significa, em termos comuns, negócio. A acepção jurídica consagra-o como ato jurídico que extingue obrigações através de concessões recíprocas das partes interessadas.

Em consonância com a origem do termo, a transação penal caracteriza-se por concessões mútuas condicionadas à realização de obrigações estabelecidas entre as partes que produzam, uma vez cumpridas, para ambos os lados, o encerramento ou a extinção de obrigações. O adjetivo "penal" determina espacialmente os efeitos, ou seja, as obrigações e os efeitos do cumprimento ou descumprimento delas atuam na seara penal.

A transação penal parte de um componente essencial que é a voluntariedade. De um lado, a manifestação da vontade é legal, concedida a legitimidade para o Ministério Público exprimi-la, sendo a vontade de solver o conflito. De outro, é daquele ao qual foi atribuída a autoria de um fato que lese bem ou interesse jurídico. Este manifesta pessoalmente sua vontade quanto à aceitação da proposta, constituindo esta uma manifestação essencial ao ato.

A aceitação implica a assunção de responsabilidade em relação ao compromisso firmado e não em relação ao fato imputado. A assunção é livre, consciente e respeita formalidades, dentre elas a restrição a determinados tipos penais. Contudo, em momento algum há a admissão da culpabilidade penal, continuando o autor (e agora sujeito desta relação de direito) a ser considerado como inocente. (GRINOVER, 1999, p. 298)

A aplicação do instituto dá-se apenas após a realização do juízo de tipicidade da conduta, ou seja, após aferição normativo-penal do fato (típico, antijurídico, culpável, praticado por imputável).

Neste desiderato, a transação penal consiste num instituto do sistema penal consensual (em contraposição ao sistema penal tradicional), inserido no ordenamento jurídico nacional, formado por um acordo entre Ministério Público e autor, que cria obrigação de cumprimento das condições estabelecidas no acordo, objetivando a reparação do dano (quando possível) e a ressocialização por meio da não aplicação de pena restritiva de liberdade, tendo por conseqüência a extinção da punibilidade do autor. Vale-se de medidas alternativas, cumpridas sob custódia judicial, para solucionar a contenda levada à apreciação jurisdicional, promovendo, por fim, a pacificação social.

O conceito de delito não está adstrito apenas como infração à norma. A conduta típica ultrapassa o limite normativo de crime, deixando de ser mero pressuposto fático da norma e antecedente lógico da sanção.

A consciência de que o crime não se resume apenas a ser fato típico, antijurídico e culpável leva à busca de reações condizentes e plausíveis, ao enigmático problema social que é o delito. O reconhecimento de uma limitação no lidar com este fenômeno é o marco inicial da solução conflitiva penal.

Desta limitação extrai-se a necessária ponderação na utilização de meios para pretenso controle do fenômeno. Ponderação há de ser feita entre o custo social e a eficácia dos meios eleitos para se atingir a finalidade almejada.

A orientação da moderna Criminologia apresenta o crime, para além do simbólico enfrentamento entre lei e infrator, como um conflito interpessoal histórico, concreto, cotidiano, ou seja, um problema social, comunitário e também jurídico.

A sistemática consensual despenalizadora capta o conhecimento fornecido pela moderna Criminologia e o toma para si. Enquanto a Criminologia clássica contempla o crime como enfrentamento simbólico e formal entre o Estado e o infrator, tendo a pretensão punitiva do Estado como polarização e resposta esgotante ao fato delitivo, a moderna Criminologia, partindo de uma imagem complexa do acontecimento delitivo, atribuindo relevância aos diversos fatores e protagonistas do fenômeno, sugere uma atuação mais completa e dinâmica sobre estes elementos que seja, ao mesmo tempo, satisfatória e adequada para lidar com a conduta infracional e atender às exigências do Estado Social e Democrático de Direito – balizado na Constituição Federal de 1988.

O modelo de Estado referido, no tangente à intervenção penal, exige, já que esta se fez necessária, a dispensa de tratamento otimizador do pacífico convívio social. Assim, a ressocialização do infrator, a reparação do dano e a prevenção do crime são objetivos condizentes com a ideologia estatal.

A noção de que o instrumento dissuasório e contramotivador expressa fielmente a essência da prevenção (ameaça de castigo – prevenção geral) está presente no tratamento penal tradicional, materializando-se na pena. Não se nega a prevenção especial neste tratamento.

Nos mecanismos do sistema consensual há uma maior exaltação dos meios de prevenção especial. Este sistema vale-se dos mecanismos da prevenção secundária (tratamento penal legislado) para atingir objetivos que se inserem no plano da prevenção primária e terciária, ou seja, concebe-se como medida a ser aplicada ao autor de uma infração penal, a reparação do dano à vítima – quando possível – e a prestação de serviço à comunidade – ou qualquer restrição legal de direitos – enquanto meio para ressocialização, e, por conseqüência destes, a reinserção social do agente (prevenção terciária) que pode dar-se combinada com políticas públicas de prevenção da criminalidade – prevenção primária – como, por exemplo, as palestras, seminários sobre drogas, violência doméstica e no trânsito, ou ainda, oficinas culturais e outros.

No sistema consensual coloca-se a dissuasão pela pena como efeito inibitório em segundo momento ("soldado de reserva") e realçam-se os demais aspectos da prevenção. Consciente do custo social da intervenção penal, ele encontra nos mecanismos despenalizadores a afirmação do modelo teórico neoclássico de prevenção do delito.

Diferente do modelo clássico de prevenção do delito que polariza a suposta eficácia preventiva do crime em torno da pena e do seu rigor ou severidade, o modelo neoclássico, base para o sistema consensual despenalizador, confia mais no funcionamento do sistema legal, tal como ele é percebido pelo infrator potencial do que na severidade abstrata da pena. Neste, há um deslocamento do centro de atenção da lei para o sistema legal como um todo, ou seja, transfere-se o foco das penas classicamente contempladas à efetividade do ordenamento. (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, GOMES, p. 403).

Se maior efetividade encontrar o ordenamento por aplicação de medidas outras, diferentes da pena, razão não há para um atuar conservador, inibidor de atingimento do escopo pacificador.

A aplicação de uma pena exige, além da previsão legal da conduta como ilícito penal, uma substancialidade lesiva a bem ou interesse jurídico relevante; a não existência de excludente de ilicitude, ou também de tipicidade, condições prévias de punibilidade; processo constitucional e jurisdicional a atribuir a culpa ao suposto agente; e, ao final, a comprovação irrefutável de sua responsabilização penal. Uma medida despenalizadora, por não consistir em uma pena, exige menos, podendo ser aplicada sem ofensa ao princípio da presunção de inocência, como ocorre na transação penal, onde é utilizada como instrumento de política criminal.

Conforme a estrutura lógica garantista, somente há uma conduta normatizada e suficiente para aplicação de pena se existirem certas condições como a inexistência de causa de justificação da conduta, condições de punibilidade e procedibilidade e comprovação judicial do um delito. Assim, a pena só encontra justificativa preventiva geral de delitos e retributividade quando tenta suavizar as conseqüências e reduzir o cometimento de infrações, sem que almeje interferir no caráter pessoal do indivíduo, a não ser exercendo intimidação.

Desta forma, a aplicação de medida que, voluntariamente, possa incitar a prática, ao menos por aquele que infringiu norma penal, de ato que produza benefício para a sociedade ou determinado setor desta, encontra maior louvor na doutrina do que a aplicação de uma pena (FERRAJOLI, 2001, p. 368).


Considerações finais

A Constituição Federal de 1988, trabalhando a idéia da instituição de um Estado Social e Democrático de Direito introduziu novas formas de positivar a dignidade da pessoa humana na sociedade brasileira.

O reconhecimento da importância do Direito como instrumento a serviço da sociedade, disponibilizado para o fim de consecução do bem comum, exigiu adaptações substanciais deste instrumento, num processo de depuração das próprias normas compositoras do ordenamento jurídico pré-constitucional e na delimitação material da finalidade utilitarista do Direito, reclamando consonância de todas as normas jurídicas pós-constituição, com os valores, direta ou indiretamente, ressaltados no Diploma Maior.

Exigiu-se a conformidade dos ramos do Direito com os princípios constitucionais. O Direito Penal e o Direito Processual Penal, como os demais ramos, tiveram suas normas, editadas antes de 1988, depuradas pelo processo conhecido como "fenômeno da recepção". A conformidade normativa não cessou apenas neste fenômeno. O processo de filtragem constitucional cercou-se de meios para que toda norma editada posteriormente à Carta Constitucional de 1988 estivesse materialmente em conformidade com esta. Neste contexto, deu-se a edição da Lei n.° 9.099/95 que introduziu novos institutos (suspensão condicional do processo, transação penal e composição civil de danos), ressaltou a importância de medidas despenalizadoras e a conveniência de sua aplicação.

Após críticas positivas e negativas, essas medidas foram, ao longo do tempo, encontrando consolidação em sua aplicação.

Questionada a constitucionalidade de sua existência apresentaram, por defesa, fundamentos formal e material. A previsão de sua implementação constante no dispositivo que trata da implantação dos juizados especiais serviu de fundamentação formal. Mas a grande questão estava na sua fundamentação material, visto que muito do que está formalmente previsto na Constituição Federal de 1988 carece de fundamentação material. A justificativa material adveio da compreensão acerca da natureza, contextualização e interligação principiológica das medidas despenalizadoras.

As medidas despenalizadoras revelaram-se materialmente constitucionais ao apresentarem-se em consonância ímpar com o princípio da proporcionalidade, princípio este basilar do Estado Social e Democrático de Direito.

Sob direcionamento do princípio da proporcionalidade, o legislador concebeu a gradatividade da intervenção penal. Apropriou-se, o ordenamento jurídico pátrio, de concepções até então repudiadas na seara penal, sem que se produzissem prejuízos à intervenção penal. O que na verdade revelou-se nesta intervenção diferenciada e gradual foi um ganho não estimado estatisticamente, mas, qualitativa e institucionalmente positivador da eqüidade, através da dispensa de tratamento penal em proporcionalidade com a lesividade da conduta perpetrada.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JESUS, Valdeir Ribeiro de. Medidas despenalizadoras. Intervenção estatal compatível com a reprovabilidade das infrações penais de menor potencial ofensivo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1599, 17 nov. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10672. Acesso em: 24 abr. 2024.