Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/10716
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

A recusa ao pagamento de indenização por invalidez total em contrato de seguro e o abuso de direito

A recusa ao pagamento de indenização por invalidez total em contrato de seguro e o abuso de direito

Publicado em . Elaborado em .

Sumário: 1. Introdução: 1.1. Identificação do objeto de estudo e sua seqüência - 2. Abuso de direito: 2.1 Conceito de abuso de direito; 2.2 Bons costumes; 2.3 Boa-fé; 2.4 Fim econômico ou social do direito; 2.5 Conseqüências sancionatórias que derivam do abuso de direito – 3. Conclusão

Resumo: Trata-se de uma contribuição ao estudo do abuso de direito (art. 187 do Código Civil) e sobre a sua aplicação em caso de indevida recusa ao pagamento de indenização por invalidez total em contrato de seguro.

Palavras-chave: abuso de direito – boa-fé - bons costumes - fim social ou econômico do direito - indenização – invalidez – contrato - seguro


1. Introdução

O presente trabalho pretende ser uma contribuição ao estudo do conceito de abuso de direito, previsto no art. 187 do Código Civil, e sobre a sua aplicação em caso de indevida recusa ao pagamento de indenização por invalidez total em contrato de seguro.

Definido o objeto da presente investigação, cumpre dizer que a metodologia adotada levou em consideração, primordialmente, o fato de que a Ciência do Direito é uma ciência prática cujo objetivo é a solução de casos concretos. Daí por que o método deve ser visto, antes de tudo, como o caminho percorrido pelo jurista para chegar à solução do caso concreto [01].

Em vista disso, procuramos delimitar o âmbito deste trabalho aos seguintes pontos: a) estabelecer o conceito de abuso de direito; b) concretizar os conteúdos que fornecem o critério de determinação de legitimidade ou ilegitimidade do exercício do direito, quais sejam, a boa-fé, os bons costumes e o fim social ou econômico do direito, especificamente no que concerne à indevida recusa de pagamento de indenização por invalidez total em contrato de seguro; c) estabelecer as conseqüências sancionatórias que derivam do abuso de direito na hipótese examinada ; d) expor as nossas conclusões sobre o tema.


2. Abuso de direito

Além dos casos de violação do direito subjetivo ou das disposições legais que protegem interesses de outrem, o novo Código Civil, em seu art. 187, copiando literalmente o art. 334 do Código Civil Português, estabelece que "Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes".

Trata-se de cláusula geral, de aplicação muito mais vasta do que apenas à responsabilidade civil, "através do qual se procura estabelecer limites ao exercício das posições jurídicas que, embora formalmente permitido, se apresenta como disfuncional ao sistema jurídico, quando contraria manifestamente vectores fundamentais do seu funcionamento" [02].

Na verdade, o princípio do abuso do direito "constitui um dos expedientes técnicos ditados pela consciência jurídica para obtemperar, em algumas dessas situações particularmente clamorosas, aos efeitos da rígida estrutura das normas legais. Ocorrerá tal figura de abuso quando um determinado direito – em si mesmo válido – seja exercido de modo que ofenda o sentimento de justiça dominante na comunidade" [03].

Verifica-se, portanto, que não é o caso da violação de um direito de outrem ou da ofensa a uma norma tuteladora de um interesse alheio, mas do exercício anormal do direito próprio.

Cumpre salientar, porém, que no ato abusivo há violação da finalidade do direito, de seu espírito, violação essa aferível objetivamente, sem se aferir a ocorrência de dolo ou culpa. Basta que objetivamente se excedam tais limites, independentemente da consciência, por parte do agente, de se excederem tais limites [04]. De modo que não há que se perquirir acerca do interesse de prejudicar alguém, já que a "responsabilidade civil decorrente do abuso do direito independe de culpa, e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico" [05].

Revela-se, assim, como categoria autônoma, de concepção objetiva e finalística, não apenas dentro do âmbito estreito do ato emulativo (ato ilícito). Isto porque, diferentemente do ato ilícito, que exige a prova do dano para ser caracterizado, o abuso de direito é aferível objetivamente e pode não existir dano e existir ato abusivo [06].

Exige-se, todavia, um abuso nítido: "o titular do direito deve ter excedido manifestamente esses limites impostos ao seu exercício" [07].

Cabe-nos, agora, concretizar os conteúdos que fornecem o critério de determinação de legitimidade ou ilegitimidade do exercício do direito, quais sejam, a boa-fé, os bons costumes e o fim social ou econômico do direito, a fim de estabelecer eventuais conseqüências sancionatórias que dele derivam em caso de indevida recusa ao pagamento de indenização por invalidez total em contrato de seguro.

2.2 Bons costumes

3. Por bons costumes "há-de entender-se um conjunto de regras de convivência que, num dado ambiente e em certo momento, as pessoas honestas e correctas aceitam comummente. Logo, o exercício de um direito apresenta-se contrário aos bons costumes quando tiver conotações de imoralidade ou de violação das normas elementares impostas pelo decoro social" [08].

Age em absoluta contrariedade ao conceito de bons costumes, a seguradora que se nega a efetuar o pagamento da indenização sob alegação de ausência de comprovação da invalidez total do segurado, se qualquer pessoa pode constatar a fragilidade do estado de saúde do segurado. Com efeito, em casos de extrema gravidade, em que é perfeitamente cabível a qualquer pessoa constatar que o segurado não tem a mínima possibilidade de exercer atividade laborativa, independentemente da realização de perícia, a negativa geral e desprovida de maior fundamentação viola não apenas uma norma básica de decoro social, mas, também, agride violentamente o princípio supraconstitucional da dignidade da pessoa humana [09].

2.3. Boa-fé

Por boa-fé deve-se entender não apenas o cumprimento das prestações principais do contrato (dar, fazer, não fazer), mas, também, os deveres de conduta necessários para preservar o verdadeiro objetivo do negócio celebrado, permitindo que cada parte alcance, com eficiência, aquilo que a levou a contratar. Trata-se de "verdadeiro componente ético que ingressa no Direito e o vivifica", pois "implica um certo dever de cooperação, de solidariedade na busca da perfeita realização do fim do contrato" [10].

No sistema revogado do Código Civil de 1916, a boa-fé era tratada como princípio geral de direito. Sob a égide do novo Código Civil, tornou-se cláusula geral, expressamente incluída pelo art. 422 [11], ao mesmo tempo em que se consubstanciou em "fonte de direito e de obrigações, isto é, fonte jurígena assim como a lei e outras fontes" [12].

A boa-fé impõe ao contratante um padrão de conduta proba, honesta e leal. Daí por que se mostra necessário averiguar se o contratante agiu com retidão, nos padrões que se espera do "homem comum", atendidas as peculiaridades dos usos e costumes do lugar.

Age com má-fé a seguradora que se recusa a pagar a indenização sem ao menos realizar exame médico para averiguar o estado de saúde do segurado. Ora, é (ou deveria ser) prática comum a todas as seguradoras a realização de exame por uma junta médica de sua confiança, para embasar sua negativa de pagamento do valor do seguro. A simples negativa de efetuar o pagamento, sem nenhum documento apto a comprovar a tese de que a sua recusa é justificada, importa em dizer que deixou de agir com a retidão que se espera de uma empresa seguradora. Afinal de contas, as pessoas fazem seguro de vida justamente para tais situações e têm a legítima expectativa de que ao sofrerem algum acidente serão assistidas pela seguradora. Em razão disso, a recusa injustificada ao pagamento de seguro por invalidez, sem qualquer embasamento em exame médico, desatende ao princípio da boa-fé que deve nortear todas as relações contratuais.

2.4. Fim econômico ou social do direito

No que se refere ao limite imposto pelo fim econômico ou social do direito a ser exercido pelo contratante, há que se considerar que o contrato tem de ser entendido "não apenas como as pretensões individuais dos contraentes, mas como verdadeiro instrumento de convívio social e de preservação dos interesses da coletividade" [13].

Em casos de invalidez total passível de constatação por qualquer leigo ou de recusa genérica ao dever de indenizar, desacompanhada de realização de exame médico, é manifesta a atitude individualista, não pautada pelo valor da solidariedade (CF, 3º, I) e do respeito à dignidade da pessoa humana (CF, 1º, III). Trata-se, no caso, de tentativa maliciosa de se livrar do cumprimento de obrigação contratual, motivada, muitas vezes, pelo risco calculado de que poucos segurados irão perseguir seus direitos na Justiça, aliado, ainda, às deficiências do Poder Judiciário em julgar celeremente os processos. Nos moldes atuais e, diga-se de passagem, sem esperanças de alteração a curto prazo, o Poder Judiciário ainda é grande alternativa para quem pretende postergar o cumprimento de deveres contratuais.

2.5 Conseqüências sancionatórias que derivam do abuso de direito

Verificado e declarado um ato como havendo sido cometido com abuso de direito, esse fato gera os efeitos de todo ato ilícito, a saber: a) obrigação de reparar os danos por ele causados, sejam eles morais ou patrimoniais (art. 186 do Código Civil); e, b) nulidade do ato ou negócio jurídico (art. 166, inc. VI, do Código Civil).

Cumpre salientar que a reparação por danos morais em caso de abuso de direito não se confunde com a indenização por danos morais decorrente do descumprimento de um contrato, bastante controvertida na jurisprudência. Decorre, na verdade, da desobediência ao dever legal de observância das cláusulas gerais de boa-fé, bons costumes e exercício do direito de acordo com seus fins econômicos e sociais. Neste caso, contudo, não há que se falar em aplicação de cláusulas gerais, mas, sim, da figura do conceito legal indeterminado, pois "uma vez reconhecido o abuso de direito, o sistema legal já tem a solução predeterminada para o caso, qual seja, a ilicitude objetiva do ato, independentemente de dolo ou culpa" [14].


3. Conclusão

Comete abuso de direito, nos termos previstos no art. 187 do Código Civil, a seguradora que se recusa a efetuar pagamento de indenização por invalidez total prevista em contrato de seguro em casos de invalidez passível de constatação por qualquer leigo ou de recusa genérica ao dever de indenizar, desacompanhada de realização de exame médico. Neste caso, deve o Juiz, de ofício, por se tratar de norma de ordem pública, aplicar a solução legal predeterminada: obrigar a reparar os danos causados (CC, 186) e declarar a nulidade do ato ou negócio jurídico (CC, 160, VI).


Bibliografia

CALCINI, Fábio Pallaretti. "Abuso do direito e o novo código civil". Revista dos Tribunais, v. 830, dez/04, p. 27-45.

CARPENA, Heloísa. "Abuso do direito no código de 2002. Relativação de direitos na ótica civil-constitucional". In: TEPEDINO, Gustavo (coord.). A parte geral do novo código civil – estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 367-415.

COSTA, Mário Júlio de Almeida. Direito das Obrigações. 8ª ed., Coimbra: Almedina, 2000.

GARCIA, Enéas Costa. Responsabilidade Pré e Pós-Contratual à Luz da Boa-Fé. São Paulo: Ed. Juarez de Oliveira, 2003.

KANT, Emanuel.Fundamentação Metafísica dos Costumes. Lisboa: Ed. 70, 1992.

LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes. Direito das Obrigações. vol. I., Coimbra: Almedina, 2000.

NERY JR, Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado e legislação extravagante. 3ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.

VARELA, João de Matos Antunes. Das Obrigações em Geral. vol. I,10ª ed., Coimbra: Almedina, 2000.


Notas

01 ASCENSÃO, José de Oliveira. O direito: introdução e teoria geral. 11.ed. Coimbra: Almedina, 2001, p. 375.

02 LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes. Direito das Obrigações. vol. I., Coimbra: Almedina, 2000, p. 265.

03 COSTA, Mário Júlio de Almeida. Direito das Obrigações. 8ª ed., Coimbra: Almedina, 2000, p. 71.

04 VARELA, João de Matos Antunes. Das Obrigações em Geral. vol. I,10ª ed., Coimbra: Almedina, 2000, p. 545.

05 Cf. Enunciado 37 da Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estudos do Conselho da Justiça Federal.

06 NERY JR. Nelson. Código Civil Comentado e legislação extravagante. 3ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 282. Adota-se, assim, a teoria do abuso do direito como contrariedade entre a conduta daquele que exerce um direito subjetivo e o fundamento axiológico-normativo existente. Daí por que não se deve "... analisar a existência de intenção, ou culpa, na conduta do titular do direito subjetivo. Pois o abuso de direito restará configurado pelo simples descompasso entre o exercício de um direito subjetivo, aparentemente regular, mas que, em verdade, descumpre o fundamento axiológico inscrito na norma jurídica" (CALCINI, Fábio Pallaretti. "Abuso do direito e o novo código civil". Revista dos Tribunais, v. 830, dez/04, p. 37).

07 COSTA, Mário Júlio de Almeida. Direito das Obrigações... , p. 75. Há quem critique a utilização do advérbio "manifestamente", por considerar que gera dúvida sobre seu alcance, isto é, se diz respeito ao grau ou à quantidade: "... somente será abusivo o ato que excede exageradamente os limites ou basta que tal excesso seja ostensivo, facilmente notado? A negativa se impõe em ambas as hipóteses, eis que tal circunstância não é elemento do ato abusivo e portanto, basta a inobservância dos limites axiológicos para caracterizá-lo, sem contemplação de sua extensão ou evidência" (CARPENA, Heloísa. "Abuso do Direito no Código de 2002. Relativação de direitos na ótica civil-constitucional". In: TEPEDINO, Gustavo (coord.). A parte geral do Novo Código Civil – Estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 382).

08 COSTA, Mário Júlio de Almeida. Direito das Obrigações... , p. 76.

09 Mesmo entendendo que a conceituação de dignidade da pessoa humana não se mostra imprescindível, é impossível desconsiderar a conhecida formulação de KANT, ao distinguir aquilo que tem um preço, seja pecuniário ou estimativo, do que é dotado de dignidade, isto é, do que é inestimável, do que é indisponível, do que não pode ser objeto de troca: "No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade" (Fundamentação Metafísica dos Costumes. Lisboa: Ed. 70, 1992, p. 77).

10 GARCIA, Enéas Costa. Responsabilidade Pré e Pós-Contratual à Luz da Boa-Fé. São Paulo: Ed. Juarez de Oliveira, 2003, p. 83.

11 Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.

12 NERY JR. Nelson. Código Civil Comentado... , p. 381.

13 NERY JR. Nelson. Código Civil Comentado... , p. 379.

14 NERY JR. Nelson. Código Civil Comentado... , p. 282.


Autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RODRIGUES JUNIOR, Álvaro. A recusa ao pagamento de indenização por invalidez total em contrato de seguro e o abuso de direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1613, 1 dez. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10716. Acesso em: 27 abr. 2024.