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Crime de omissão de socorro no trânsito.

Idas e recuos da dogmática penal

Crime de omissão de socorro no trânsito. Idas e recuos da dogmática penal

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Seria esquisito que o motorista, logo após o acidente, ao constatar o óbito da vítima, respirasse aliviado: "Que bom! Posso agora seguir adiante, sem responsabilidade criminal!".

Sumário: 1. Observações preliminares 2. Questões polêmicas 3. O parágrafo único. 3.1. Contestações doutrinárias. 3.2. Morte da vítima: retorno à legalidade 4. Síntese conclusiva.


1. Observações preliminares

Não escrevo este artigo com o objetivo de justificar a presença no sistema penal brasileiro do crime de omissão de socorro no trânsito. Continuo entendendo que, ao lado de tantas outras, a matéria deveria circunscrever-se a outras áreas do direito. Mas não chego ao ponto de ignorá-la como realidade normativa e muito menos de engrossar o coro dos penalistas quanto à inconstitucionalidade do tipo delituoso na hipótese de morte imediata da vítima (CTB, art. 304, parágrafo único).

A controvérsia é antiga. O próprio Código Penal, desde sua vigência, em 1942, prevê aumento de pena nos crimes de homicídio e lesão corporal culposos se o agente deixa de prestar imediato socorro à vítima. E a doutrina e a jurisprudência ainda se dividem com relação à validade ou não da majorante no caso de morte instantânea.

Eis o texto legal do crime de omissão de socorro no trânsito:

"Art. 304. "Deixar o condutor do veículo, na ocasião do acidente, de prestar imediato socorro à vítima, ou, não podendo fazê-lo diretamente, por justa causa, deixar de solicitar auxílio da autoridade pública. Penas – detenção de seis meses a um ano, ou multa, se o fato não constituir elemento de crime mais grave. Parágrafo único. Incide nas penas previstas neste artigo o condutor do veículo, ainda que a sua omissão seja suprida por terceiros ou que se trate de vítima com morte instantânea ou com ferimentos leves".

Assim, na hipótese de omissão de socorro, o condutor do veículo comete crime próprio, específico, salvo a ocorrência de infração ainda mais grave (CTB, art. 302, III; art. 303, parágrafo único; CP, art. 121, § 3º). Fica totalmente descartada a figura do art. 135 do Código Penal, por força do princípio da especialidade.

Mas há divergências, muitas divergências. Delas tratarei em seguida. Para tanto, reproduzo com alterações e acréscimos, a par de sua atualização, o artigo publicado em Doutrina jurídica brasileira [CD-ROM], org. Sérgio Augustin. Caxias do Sul: Plenum, 2001. Essa atualização, alterações e acréscimos é que justificam o subtítulo que agora lhe foi conferido: idas e recuos da dogmática penal.


2. Questões polêmicas.

Aconteceu o inevitável: ninguém se entende sobre questões fundamentais. Enquanto para Damásio de Jesus o sujeito do crime é apenas o condutor de veículo automotor envolvido sem culpa no acidente com vítima (Crimes de trânsito, 1998, p. 133/134), Paulo José da Costa Jr. e Maria Elizabeth Queijo incluem na categoria os acompanhantes do motorista (Comentários aos crimes do novo código de trânsito, 1998, p.67). De seu turno, Fernando Y. Fukassawa estende o campo de incidência da norma a qualquer pessoa na direção de veículo automotor (Crimes de trânsito, 1998, p. 130). Fernando Célio de Brito Nogueira revela sua concordância e se mostra detalhista: "Sujeito ativo é o condutor do veículo causador do acidente, o condutor implicado no acidente, o condutor testemunha do acidente e o condutor que passe no local no momento do acidente, em condições de prestar socorro a alguém e não o faz" (Crimes do código de trânsito, 1999, p. 112).

Creio que o sujeito do crime só pode ser o condutor do veículo diretamente relacionado com o acidente (relação de causa e efeito, no plano meramente físico ou material). Apenas por analogia in malam partem se pode cogitar de qualquer outra pessoa, ainda que muito próxima ao local dos fatos e na direção de veículo automotor.

E já que falei em local dos fatos, nota-se que inexiste qualquer referência à via pública, diferentemente do que ocorre com outros dispositivos legais (por exemplo: embriaguez ao volante; participação em "racha"). Rigorosamente, nos termos da lei (interpretação lógico-sistemática), o detalhe não é obrigatório. Reconheço, porém, a razoabilidade de argumento em sentido diverso, considerando o disposto no capítulo inicial do Código de Trânsito (arts. 1º e 2º).

Qual a espécie de veículo? Veículo automotor, responde a grande maioria dos comentaristas. Vale o espírito do legislador, que estaria pensando no condutor do veículo dos artigos anteriores (homicídio e lesão corporal culposos). O Código de Trânsito, aliás, na expressão de Guilherme de Souza Nucci, "somente se preocupa, no contexto dos delitos, com esse tipo específico de veículo e não com outros, como bicicletas, patins etc." (Crimes de trânsito, 1999, p. 39). O art. 291, relativo às disposições gerais sobre crimes de trânsito, se refere claramente aos "crimes cometidos na direção de veículos automotores".

Para Jaime Pimentel e Walter Francisco Sampaio Filho deu-se exatamente o contrário. Ou seja, o legislador "foi mais abrangente com a palavra veículo, esta englobando todos aqueles previstos no artigo 96 do Código, o que não ocorreu nos artigos 302 e 303 supra referidos" (Crimes de trânsito comentados, 1998, p. 46). No mesmo diapasão: Waldyr de Abreu (Código de trânsito brasileiro, 1998, p. 148) e Ismar Estulano Garcia (Crimes de trânsito, 1997, p. 80).

Concordo com esta última corrente. Nos arts.s 306, 307, 308, 309 e 310 é que o legislador retorna ao veículo automotor, voltando a dispensá-lo no art. 311 (velocidade incompatível).

Outra indagação: e se condutor do veículo age com culpa em sentido estrito? É claro que, em havendo lesão corporal ou morte, prevalece exclusivamente o tipo de dano, em sua forma qualificada (art. 302, III; ou art. 303, parágrafo único). O princípio da subsidiariedade encontra-se expressamente consignado no art. 304: "se o fato não

constituir elemento de crime mais grave". Mesmo que a omissão de socorro constitua causa especial de aumento de pena, o fato é que "não se pretendeu – o que seria absurdo e inaplicável – a incidência dúplice do mesmo motivo", como esclarece Jorge Henrique Schaefer Martins ("Aspectos criminais do código brasileiro de trânsito", Revista dos Tribunais, n. 752, 1998, p. 441).

Daí a ilação de que a omissão de socorro no trânsito estaria vinculada ao condutor que proceda sem culpa. Neste caso é que se aplica o art. 304, conforme considerável parcela da doutrina.

Acontece que a vítima, com ou sem culpa do motorista, pode ficar exposta a perigo, tão somente a perigo, livrando-se de maiores conseqüências por intercessão de terceiros. Sendo assim, altera-se o raciocínio: vale o art. 304 para o condutor com culpa em cartório, não vale para o motorista inocente. Este responderia pela omissão de socorro do Código Penal, na opinião de Walter Lucio de Lima: "O motorista inocente não é mais culpado que o transeunte, também, omisso. O condutor inocente viola o dever de solidariedade: projeta-se como mau cidadão, não como mau motorista" ("Omissão de socorro no trânsito", Boletim IBCCrim n. 70, 1998, p. 2).

Parece-me que o condutor do veículo responde pelo delito se procede com ou sem culpa em sentido estrito. Na primeira hipótese, todavia, o resultado inicial da conduta se limita ao perigo à vida, saúde ou integridade física da vítima. Se esta fica ferida, ou vem a morrer, em razão do acidente, aplicam-se as formas qualificadas do homicídio e lesão corporal culposos do Código de Trânsito. Na segunda hipótese, vindo o acidentado a sofrer lesão corporal, não há como enquadrar o condutor no art. 303, por falta de prévia culpa no momento do acidente. Curiosamente, porém, também não se pode cogitar da figura correspondente no Código Penal (art. 129, § 6º, c/c art. 13, § 2°, a e c), de punição mais suave. Subsiste, portanto, o crime do art. 304. Em havendo morte, e considerando o dever jurídico de ação (CP, art. 13, § 2º, a e c), prevalece com exclusividade a figura do homicídio culposo (CP, art. 121, § 3º).

O que acabou de ser dito é fruto de opção interpretativa. O Código de Trânsito está longe de garantir a certeza de roteiros uniformes. Mesmo com relação à superveniência de morte, haja vista a inocência do condutor no acidente, alguns doutrinadores descartam a mudança de enquadramento jurídico-penal. Persistiria o art. 304, sem prejuízo de punição mais severa, nos limites legais (Fernando Y. Fukassawa, ob. cit., p. 137).

Sobre a hipótese, Damásio de Jesus, que antes nos falava de homicídio culposo do Código Penal (Crimes de trânsito, 1998, p.138), já não mais considera possível essa tipificação. Ainda que o motorista reconheça na vítima seu inimigo e deixe de socorrê-la propositadamente, com dolo de homicídio, só pode responder, no máximo, por omissão de socorro no trânsito: "Fundamento: não tinha o dever jurídico de impedir a morte da vítima e sim a obrigação genérica de assistência" (Imputação objetiva, 2000, p. 128). Entretanto, voltou recentemente a mencionar o homicídio culposo comum (CP, art. 121, § 3º), esclarecendo que o próprio art. 304 do CTB, ao determinar a obrigação de assistência, serviria de fundamento legal da responsabilidade penal no crime omissivo impróprio, ou seja, no crime de homicídio culposo do CP (Crimes de trânsito, 6ª ed., 2006, p. 43).

Há outras divergências. Prefiro reportar-me, desde logo, ao parágrafo único do art. 304.


3. O parágrafo único.

A responsabilidade criminal do condutor não desaparece "ainda que a sua omissão seja suprida por terceiros ou que se trate de vítima com morte instantânea ou com ferimentos leves" (parágrafo único do art. 304).

Primeiro item: omissão suprida por outrem. É preciso entender a intenção do legislador, que não é a de punir a qualquer custo e sem nenhuma razão plausível. Se terceiros se antecipam ao condutor e socorrem a vítima não há nenhuma tipicidade. A advertência da norma se destina à hipótese de efetiva omissão, quase sempre caracterizada pela fuga imediata do local do acidente. Ao invés de imediato socorro, exigido pelo Código, pratica-se imediata omissão. Aí, sim, haveria crime, pouco importando se outros, na seqüência, dão ajuda e amparo à pessoa em perigo.

O tipo consiste, com exatidão, na omissão de uma conduta obrigatória: socorrer imediatamente a vítima ferida, ou em grave perigo, ou até mesmo a vítima que morra no ato.

A doutrina, de um modo geral, estranha o exagero da referência à "lesão leve", que deve, no entanto, ser interpretada com tranqüilidade: a norma só tem validade na hipótese de o réu se omitir pura e simplesmente, quase sempre sem se preocupar com o desenrolar dos acontecimentos e, pois, com as reais necessidades da vítima. Se ele se dispõe a socorrer e nota que o acidentado está fora de perigo, ostentando, por exemplo, modesta escoriação no braço, não comete, em princípio, o delito do art.304. Mas se ele percebe a vítima entre as ferragens, e nada providencia em seu favor, comete o crime em epígrafe. Nada muda se terceiros, em seguida, garantem a segurança do acidentado, que não chega a sofrer lesão corporal de relevo.

Mais. Essa mesma doutrina, quase em uníssono, contesta a determinação legal de incidência de pena se ocorre morte instantânea. Alega-se que não se pode prestar socorro a um cadáver. Assim, Maurício Antonio Ribeiro Lopes considera curiosa e estúpida a norma legal. "Cria-se o estranho delito de omissão de socorro a cadáver, qual precisasse aquele de socorro para alguma coisa" (Crimes de trânsito, 1998, p.210).

"A hipótese é de crime impossível", sintetizam Ariosvaldo de Campos Pires e Sheila Jorge Selim de Sales (Crimes de trânsito, 1998, p.207).

Dentre tantos outros, no mesmo sentido: José Marcos Marrone (Delitos de trânsito, 1998, p. 56); Fernando Capez e Victor Eduardo Rios Gonçalves (Aspectos criminais do código de trânsito brasileiro, 1998, p. 38); Paulo José da Costa Jr. e Maria Elizabeth Queijo (Comentários aos crimes do novo código de trânsito, 1998, p. 67); Cássio Mattos Honorato(Trânsito: infrações e crimes, 2000, p. 430).

Luiz Flávio Gomes, reputando a hipótese (morte instantânea) "incompreensível e absurda", não vê justificativa para a existência do crime ("Código de trânsito brasileiro [Lei 9.503/97] – Parte criminal: primeiras notas interpretativas", Estudos de direito penal e processo penal, 1999, p. 44). E continua: "Nem tudo que o legislador escreve em um texto legal é lei válida. A lei, quando acaba de ser elaborada, não passa de um mero conjunto de enunciados lingüísticos, que ora têm coerência e aplicabilidade, ora são absurdos" (idem, ibidem).

Acho compreensível a reação dos penalistas. Pessoalmente, aliás, afora homicídio e lesões corporais, continuo preferindo que o rigor da legislação de trânsito se concentre no âmbito civil ou administrativo ("Prevenção de acidentes de trânsito", RBCCrim n. 16, 1996, p. 231; "Crimes de trânsito: interpretação e crítica", RBCCrim n. 25, 1999, p. 185).

Só que o espírito da lei, na hipótese em análise, é de uma clareza impressionante, sobretudo porque combina com a zona de luminosidade do texto. Não é somente a vida ou a saúde da vítima que se tutela com ameaça de pena. Há outro bem jurídico a ser preservado: o respeito aos mortos.

Fiquemos com a via pública e a direção de veículo automotor. Se alguém, em tais circunstâncias, se envolve diretamente em acidente com vítima, recebe da lei o encargo (dever jurídico) de dar-lhe assistência; e se a vítima já estiver morta, de evitar que o cadáver seja tratado como res nullius ou como coisa destituída de qualquer valor ou significado ético-jurídico. Em outras palavras, mesmo que literalmente se fale, no caput, em "imediato socorro à vítima", o fato é que o parágrafo único, como norma de extensão ou de interpretação da própria lei, voltou ao tema com a clara preocupação de explicar-lhe o sentido e campo de incidência.

Entre a frieza do réu, de pouco se importar com o destino e decomposição do corpo da vítima, e a ideologia social de proteção e respeito ao cadáver, optou o legislador por esta última. Parece, aliás, que continuam em vigor os arts. 209 a 212 do Código Penal (Dos crimes contra o respeito aos mortos) e, dentre outros, os arts.s 14 e 19 da Lei de Transplantes (Lei n. 9.434, de 4 de fevereiro de 1997). Percebendo-se o denominador comum, fica mais fácil atingir e compreender o espírito da norma.

Por fim, a tese do crime impossível não impressiona a quem sabe da autonomia do legislador, que está autorizado, nos limites da Constituição, a instituir novas regras no âmbito punitivo, tal como ocorre com os crimes de trânsito, art. 291, in verbis: "Aos crimes cometidos na direção de veículos automotores, previstos neste Código, aplicam-se as normas gerais do Código Penal e do Código de Processo Penal, se este Capítulo não dispuser de modo diverso..." (grifos meus). E seria bom lembrar, em adição, o caráter contingente e histórico do "crime impossível". Antes da reforma da Parte Geral do Código Penal, em 1984, penalistas de renome aceitavam com naturalidade a imposição de medida de segurança em caso de "crime impossível".

3.2. Morte da vítima: retorno à legalidade

Como vimos na introdução, o tema já foi e continua sendo ventilado, no Brasil, ao se abordar o crime de homicídio culposo agravado pela ausência de imediata prestação de socorro à vítima (Código Penal/Código de Trânsito Brasileiro). Salvo engano, predomina na jurisprudência a tese da incompatibilidade entre omissão de socorro e morte instantânea da vítima.

Contudo, nem sempre os Tribunais reconhecem essa incompatibilidade. Vale a pena comprovar o que foi dito com a série de ementas a seguir apresentadas:

TJAP – HOMICÍDIO CULPOSO – Omissão de socorro – Crime qualificado – Caracterização – Trânsito – Incorre na qualificadora de omissão de socorro o motorista que, causando acidente, deixa o local sem prestar socorro, sendo irrelevante, para a caracterização da majorante, a morte instantânea da vítima. Ap. Crim. n. 1125. Acórdão n. 3815. Relator: Carmo Antônio – Câmara Única – J. 31/10/2000 – v. unânime – p. 08/02/2001 – DOE n. 2479.

TJDF – HOMICÍDIO CULPOSO – Atropelamento – Inobservância do dever de cuidado objetivo – Imprudência – Compensação de culpas – Inadmissibilidade – Omissão de socorro – Morte da vítima – Irrelevância – A alegação de que a ajuda seria ineficaz, em razão da morte instantânea da vítima, não exclui a obrigação legal do agente em socorrê-la – No mais, não cabe ao réu, um leigo, atestar o óbito, mas sim a um profissional competente – Relator: Sérgio Bittencourt, 1ª Turma Criminal, julgado em 27/10/2005 –DJ 18/01/2006, p. 88.

TJRS – HOMICÍDIO CULPOSO – Incide a causa de aumento da omissão de socorro quando o condutor, consciente do atropelamento, à noite, em um trevo, prossegue deixando a vítima no asfalto. Desimporta que a morte tenha sido instantânea: dever de prestar assistência, não correndo sua vida em risco. Apelação-Crime n. 70003718723. Terceira Câmara Criminal. Relatora: Elba Aparecida Nicolli Bastos. Julgamento: 05/09/2002.

TJSP – DELITO DE TRÂNSITO – Homicídio culposo qualificado – Omissão de socorro – Morte imediata da vítima no acidente, auxílio prestado por terceiro ou posterior avaliação objetiva da ineficiência do socorro omitido – Irrelevância. Apelação Criminal n. 925.903.3/7-0000-000 – Santos – 13ª Câmara Criminal – Relator: René Ricupero – Voto n. 10.973 – 16.11.2006.

STJ – CRIMINAL. Recurso especial. Homicídio culposo agravado pela omissão de socorro. Desconsideração da causa de aumento. Suposições acerca das condições físicas da vítima. Competência do especialista legalmente habilitado e, não, do agressor. Impossibilidade. Recurso desprovido. REesp 277403/MG 2000/0093123-3. Relator: Gilson Dipp. DJ 02.09.2002, p. 221.

STF – OMISSÃO DE SOCORRO –– Homicídio Culposo – Aplicação da causa de aumento de pena – Pedido de desconsideração, diante da morte imediata da vítima – Inadmissibilidade – Hipótese em que não cabe ao agente proceder à avaliação quanto à eventual ausência de utilidade de socorro – Relator: Gilmar Mendes. RT 838/488. Ano: 2005.

Também na doutrina há quem aceite sem qualquer censura a ressalva do legislador.

Marcelo Cunha de Araújo, por exemplo, afirma não haver no parágrafo único do art. 304 do CTB "nenhum vício de inconstitucionalidade, sendo necessária e correta, portanto, sua aplicação" (Crimes de trânsito, 2004, p. 78).

Ricardo Antonio Andreucci faz questão de sublinhar o texto legal, alertando que o parágrafo único do artigo é expresso em dispor que o condutor será responsabilizado pela omissão de socorro "ainda que a sua omissão seja suprida por terceiros ou que se trate de vítima com morte instantânea ou com ferimentos leves" ("Comentários aos crimes do código de trânsito brasileiro", Legislação penal especial, 2007, p. 195).

Arnaldo Rizzardo registra e acata, igualmente, a advertência do legislador (Comentários ao código de trânsito brasileiro, 2007, p. 614). De modo semelhante: Doorgal Gustavo B. de Andrada (Crimes e penas no novo código de trânsito, 1998, p. 80); Waldir de Abreu (ob. cit., 1998, p. 148); Valdir Snick (Novo código de trânsito, 1998, p. 102).

Todos esses autores e tribunais não se deixaram levar, na matéria em debate, pela impressionante avalanche de contestações ao legislador penal brasileiro. Preferiram permanecer na companhia de juristas do porte de José Frederico Marques, que assim opinava com relação ao homicídio culposo do Código Penal em vigor: "E para que ocorra a circunstância agravante, basta o non facere nos termos em que a lei penal o descreve, sendo indiferente que se trate de pessoa morta, ou de pessoa simplesmente ferida, ou ainda o grau e natureza das lesões" (Tratado de direito penal, v. 4, 1961, p.237).

Convém repetir: "sendo indiferente que se trate de pessoa morta".


4.Síntese conclusiva

Fiz um exame perfunctório de alguns temas concernentes ao crime de omissão de socorro no trânsito. Melhor entendimento do assunto pressupõe sua ligação e confronto com o delito do art. 305 (fuga do local do acidente) e com o crime básico de omissão de socorro do Código Penal em vigor (art. 135). Portanto, com as noções elementares da estrutura jurídica dos crimes de perigo — comum ou individual. Mais ainda: com o art. 281 do Código Penal Militar (fuga após acidente de trânsito), que prepondera sobre qualquer outro da legislação penal em vigor.

Limito-me ao que ficou exposto. Se me refiro, tantas vezes, às questões polêmicas, é porque há muito me convenci de que o direito penal, enquanto ciência, se não pode prescindir de alguma teoria, muito menos pode afastar-se de suas fontes históricas: lei, ideologia e intérprete (Curso crítico de direito penal, 1998, p.57- 61).

Ora, instituiu o legislador a figura delituosa da imediata omissão de socorro em acidente de trânsito com vítima. Para tanto, se aparentemente abriu exceção à regra geral do "crime impossível", assim procedeu por ser essa a sua vontade, vinculada à certeza de que a morte da vítima, um mal irreparável, não retira o caráter antiético da indiferença do condutor. Seria no mínimo esquisito que o motorista, logo após o acidente, ao constatar o óbito da vítima, respirasse aliviado: "Que bom! Posso agora seguir adiante, sem qualquer responsabilidade criminal!" Há que se enfocar o tema, como se viu, sob a ótica de outro bem jurídico: o respeito aos mortos. Conclusão: crime possível, perfeitamente possível.

Questão diversa se prende à convicção do desacerto político da lei numa época de luta ideológica por mais justiça social e menos direito penal. Num acidente em que o motorista, em regra, não tem culpa em cartório, constitui um risco à liberdade individual condená-lo por uma omissão que se relacione, em verdade, com seu nervosismo, com seu previsível descontrole emocional.

A esse ponto não chegou o legislador. Não se trata de crime que se puna a título de imprudência, negligência ou imperícia (CP, art. 18, parágrafo único, c/c art. 291 do CTB). Como escrevi alhures, a lei pune a quem, no mínimo com dolo eventual, deixa o corpo da vítima, com ou sem vida, entregue à própria sorte. Ora, o condutor, em pânico, pode sentir-se desnorteado, perdendo momentaneamente o domínio de sua conduta. Fica difícil nesse estágio caracterizar o delito ("Crime de omissão de socorro: divergências interpretativas e observações críticas", Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 34, 2001, p. 49).

Como quer que seja, impõe-se agora uma síntese conclusiva, mais ou menos eqüidistante das habituais pregações de caráter dogmático.

Vimos que um único dispositivo de lei (CTB, art. 304) suscitou e suscita, ainda hoje, inúmeras controvérsias: sujeito ativo, ausência ou não de culpa, tipo de veículo, natureza da via, concurso aparente de normas, morte da vítima etc. Controvérsias que se estendem à licitude ou não do aumento de pena pela omissão de socorro à vítima que sofra, no trânsito, morte imediata (homicídio culposo agravado).

Nessas horas a dogmática jurídica, por suas limitações, por sua fragilidade, tal como ocorre em milhares de outras hipóteses, acaba cedendo espaço à formação e sedimentação de um direito penal essencialmente contraditório.

Em qualquer país, ainda que altamente civilizado, à vontade da norma pode opor-se – poder fático-normativo – a vontade do intérprete, que se coloca, destarte, acima da Lei e da própria Constituição, transformando-se em fonte direta ou indireta de um direito penal que repute eventualmente mais justo ou mais adequado às circunstâncias.

Trata-se de constatação empírica. Questão diversa diz respeito ao correspondente juízo de valor acerca desse poder fático-normativo.

Por sinal, no magistério de Orlando Ferreira de Melo, o direito "não nasceu das leis e nestas não se encontra. A lei é apenas um registro escrito versando sobre comportamentos humanos desejáveis, obrigatórios e permitidos, e das eventuais sanções pelo descumprimento dos obrigatórios. Só por metáfora podemos fundir lei e direito" (Hermenêutica jurídica: uma reflexão sobre novos posicionamentos. Itajaí, Editora da Univali, 2001, p. 179).

O fato é que, em existindo lei, há de existir interpretação. Em regra, não se faz direito sem labor exegético. Mas a exegese, em suas contradições, deixa entrever, aos poucos, as raízes de um objeto em eterno processo de reconstrução histórica.

Sob o prisma de uma hermenêutica realista, de cunho crítico-metodológico, essas raízes retratam as categorias básicas do direito: força, poder, vontade, liberdade. De qualquer direito, aliás. Seu nome é o que menos importa: direito legal, direito racional, direito alternativo, direito justo. Em todos eles o dedo criativo do legislador se funde, por metáfora, ao dedo soberano do intérprete.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BASTOS, João José Caldeira. Crime de omissão de socorro no trânsito. Idas e recuos da dogmática penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1619, 7 dez. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10728. Acesso em: 25 abr. 2024.