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A eficácia negativa do princípio da proteção à confiança e sua aplicação como um fator limitativo ao exercício da autotutela administrativa.

Uma análise do art. 54 da Lei nº 9784/99

A eficácia negativa do princípio da proteção à confiança e sua aplicação como um fator limitativo ao exercício da autotutela administrativa. Uma análise do art. 54 da Lei nº 9784/99

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No aludido dispositivo, o legislador efetivou uma ponderação em abstrato, conciliando dois princípios constitucionais: princípio da legalidade administrativa e princípio da proteção à confiança.

RESUMO

Busca investigar o princípio da proteção à confiança dos particulares nos atos emanados do Poder Público, tendo por escopo o exercício da função administrativa. Delimita o conteúdo jurídico do princípio da proteção à confiança e seu âmbito de aplicação, aprofundando-o sob a perspectiva da possibilidade de manutenção no ordenamento jurídico de atos administrativos reconhecidamente inválidos. Correlaciona o princípio da proteção à confiança com o princípio constitucional da legalidade administrativa (autotutela administrativa), e também com a segurança jurídica e com a noção de Estado de Direito. O método de abordagem utilizado é o dedutivo, tendo por base a análise das regras e princípios constitucionais referentes ao tema, além dos diplomas legais pertinentes, em específico, o artigo 54 da lei 9784/99. Identifica os três precedentes jurisprudenciais do Supremo Tribunal Federal em que se prestigiou a aplicação do princípio da proteção à confiança em detrimento de outros princípios, dentre eles, o da legalidade. Analisa o artigo 54 da lei n º 9784/99 sob o enfoque da necessidade de estabilização das relações jurídicas criadas administrativamente, em limitação ao exercício da autotutela administrativa. Reconhece que, no referido dispositivo legal, o legislador efetivou uma ponderação em abstrato, conciliando dois princípios constitucionais (princípio da legalidade administrativa e princípio da proteção à confiança). Sistematiza os requisitos que qualificam uma expectativa como legítima e apta a ensejar a aplicação do princípio da proteção à confiança em favor do particular. Conclui pela possibilidade de, com base em tais requisitos, se preservar os efeitos de atos administrativos ampliativos de direitos, ainda que originariamente inválidos. Conclui, ainda, ser inviável, sob um rigor constitucional, a utilização da teoria do fato consumado como fundamento à manutenção dos efeitos do ato viciado.

Palavras-chave: Segurança jurídica. Proteção à confiança. Boa-fé. Autotutela administrativa.

SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO. 2 A SEGURANÇA JURÍDICA E A LEGALIDADE COMO VALORES ESSENCIAIS PARA O ESTADO DE DIREITO. 3 O CONTEÚDO JURÍDICO DO PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO À CONFIANÇA E SUA GÊNESE CONSTITUCIONAL. 3.1 A EFICÁCIA NEGATIVA (DEVER DE ABSTENÇÃO) E A EFICÁCIA POSITIVA (DEVER DE AÇÃO) DO PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO À CONFIANÇA.3.2 PROTEÇÃO À CONFIANÇA NAS RELAÇÕES ENTRE O PODER PÚBLICO E OS PARTICULARES. 3.3 A GÊNESE CONSTITUCIONAL DO PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO À CONFIANÇA. 3.3.1 A ascensão e o reconhecimento da normatividade dos princípios. 3.3.2 O princípio da proteção à confiança e sua gênese constitucional. 4 O PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO À CONFIANÇA E SUA APLICAÇÃO COMO FATOR LIMITATIVO À AUTOTUTELA ADMINISTRATIVA . 4.1 O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE APLICADO À ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. 4.2 O PRINCÍPIO DA AUTOTUTELA ADMINISTRATIVA E SEU ÂMBITO DE APLICAÇÃO: NECESSIDADE DE RELATIVIZAÇÃO. 4.3 A IDENTIFICAÇÃO E APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO À CONFIANÇA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. 4.4 A CONCRETIZAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO À CONFIANÇA PELO DIREITO POSITIVO BRASILEIRO. 5 O ARTIGO 54 DA LEI nº 9.784/99 E A CONCRETIZAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO À CONFIANÇA: SISTEMATIZAÇÃO DOS REQUISITOS NECESSÁRIOS À SUA APLICAÇÃO. 5.1 REQUISITO LEGAL LIMITATIVO AO EXERCÍCIO DA AUTOTUTELA ADMINISTRATIVA: O DECURSO DO LAPSO TEMPORAL DE CINCO ANOS. 5.2 REQUISITO LEGAL LIMITATIVO AO EXERCÍCIO DA AUTOTUTELA ADMINISTRATIVA: A CONFIGURAÇÃO DA BOA-FÉ DO DESTINATÁRIO DO ATO ADMINISTRATIVO REPUTADO VICIADO. 5.2.1 A presunção de legitimidade dos atos administrativos como fator favorável à configuração da boa-fé. 5.3 REQUISITO LEGAL LIMITATIVO AO EXERCÍCIO DA AUTOTUTELA ADMINISTRATIVA: ATOS ADMINISTRATIVOS AMPLIATIVOS DE DIREITOS. 6 CONCLUSÃO. 7 REFERÊNCIAS


1 INTRODUÇÃO

A idéia mais básica e essencial de Direito nos remete, inegavelmente, à noção de segurança jurídica, sendo inconteste, por conseguinte, a existência da segurança jurídica como um dos pilares do Estado de Direito. Realmente, é de se esperar que um Estado que se autodenomina Estado Democrático de Direito coíba ao máximo o arbítrio Estatal, restando, em regra, previsíveis as suas condutas, sendo perfeitamente identificáveis as conseqüências advindas de eventuais descumprimentos de preceitos normativos.

Tal circunstância advém primordialmente da regulação prévia (por meio dos diversos enunciados prescritivos que irão compor as normas jurídicas) das diversas condutas possíveis dos cidadãos e, principalmente, da regulação das relações jurídicas entre estes e o próprio Estado, que também atua no seio da sociedade por meio de seus agentes públicos.

Contudo, há de se considerar que não reside essencialmente nenhuma novidade nesta noção genérica de segurança jurídica, que se encontra ínsita à própria idéia de Direito e indispensável à caracterização do denominado Estado de Direito. A problemática surge quando se passa a questionar, sob a ótica do constitucionalismo moderno, os modos de efetivação do princípio da segurança jurídica, de tal sorte que se torna necessário aferir um patamar mínimo de segurança que atenda às aspirações dos cidadãos, propiciando, na medida do possível, estabilidade às relações jurídicas e, em última análise, à própria ordem jurídica.

É possível se verificar, no plano do direito positivo e, sobretudo, na própria Constituição Federal, diversos preceitos normativos que materializam institutos destinados à proteção, seja direta ou indireta, da segurança jurídica, dentre eles: a prescrição e a decadência (artigos 189 a 211, Código Civil/2002), a preservação do ato jurídico perfeito, do direito adquirido e a intangibilidade da coisa julgada (artigo 5º, inciso XXXVI, CF), o princípio da legalidade (artigo 5º, inciso II, CF), o princípio da legalidade tributária (artigo 150, inciso I, CF), o princípio da legalidade e anterioridade em matéria penal (artigo 5º, inciso XXXIX, CF), a irretroatividade da lei penal desfavorável (artigo 5º XL, CF), etc.

Ainda que não se possa negar a evidente conexão dos referidos dispositivos legais e constitucionais com a materialização da segurança jurídica, há de se considerar, contudo, que as referidas previsões normativas não esgotam o âmbito de aplicação e proteção do princípio da segurança jurídica. É a complexidade dos casos concretos, sobretudo aqueles que envolvem relações entre os particulares e o Poder Público, que, por muitas vezes, irá reclamar outras soluções que se põem além daquelas fórmulas já positivadas pelo Direito, anteriormente mencionadas.

Dentro deste contexto é que se insere a noção do princípio da proteção à confiança, sendo tal princípio identificado por Almiro do Couto e Silva, um dos pioneiros na doutrina pátria a enfrentar o tema, como uma feição subjetiva da segurança jurídica, relacionando-se à proteção à confiança das pessoas no pertinente aos atos, procedimentos e condutas do Estado, nos mais diferentes aspectos de sua atuação. (SILVA, 2005, p. 03-04).

Com efeito, é possível que existam várias hipóteses em que situações criadas administrativamente, sob o manto da ilegalidade, ou mesmo da inconstitucionalidade, perdurem por vários anos sob aparente normalidade e legalidade, gerando no administrado a justa expectativa de manutenção de seus efeitos benéficos, uma vez que já consolidados. Decerto que numa hipótese como esta, em observância à segurança jurídica e, mais especificamente, ao princípio da proteção à confiança, o Poder Público não poderia, deliberadamente, invocando apenas o princípio da legalidade, frustrar uma justa expectativa que tenha criado para o administrado.

Se de um lado vige inegavelmente o princípio da autotutela administrativa, em que se prestigia o princípio da legalidade, segundo o qual a administração pública tem o poder-dever de rever e anular seus atos administrativos eivados de ilegalidade, de outro, há de haver um temperamento a ser efetivado nos casos concretos, analisando-os sob a ótica da segurança jurídica e, por assim dizer, também da proteção à confiança legítima.

Apesar do consenso acerca da necessidade de observância da estrita legalidade pela Administração Pública, há de se considerar que nem sempre a aplicação fria e mecânica da lei atinge as finalidades reclamadas pelo ordenamento jurídico. É necessário, por conseguinte, se aferir a medida de aplicação do princípio da legalidade.

Dentro deste contexto, as duas principais questões que nortearão o presente estudo são as seguintes: (i) a manutenção no ordenamento jurídico de atos administrativos reconhecidamente inválidos representa afronta ao princípio constitucional da legalidade? Se não, sobre que fundamentos e em que condições tais atos poderiam continuar a produzir efeitos para aqueles que deles se beneficiaram? (ii) sob a ótica constitucional, é viável se invocar atualmente a teoria do ‘fato consumado’ para se justificar a manutenção de situações criadas sob o manto da ilegalidade?

Para tanto, parte-se da idéia inicial, admitida como uma verdade a priori, podendo ser confirmada ou infirmada ao longo do desenvolvimento da pesquisa: a autotutela administrativa, cuja base assenta-se, fundamentalmente, no princípio constitucional da legalidade, não tem aplicação irrestrita, merecendo, pois, em algumas hipóteses, ser relativizada, tendo como parâmetro limitador o princípio constitucional da proteção à confiança, sendo insuficiente e inviável se argumentar, como fundamento à manutenção dos efeitos do ato viciado, a teoria do `fato consumado`.

No percurso a ser seguido, é possível se identificar as principais variáveis envolvidas: (i) a segurança jurídica e a legalidade como valores constitucionais essenciais para o Estado de Direito; (ii) presunção de legitimidade dos atos administrativos como fator indutor de confiança legítima nos destinatários da função administrativa; (iii) o princípio da legalidade como norteador da atividade administrativa; (iv) reconhecimento pela doutrina e jurisprudência do princípio da proteção à confiança como um corolário do princípio constitucional da segurança jurídica; (v) a relativização dos princípios, quando de sua aplicação num caso concreto; e (vi) concretização do princípio da proteção à confiança pelo legislador ordinário.

Em primeiro plano, poder-se-ia imaginar, por uma análise mais geral, em abstrato, que a manutenção no ordenamento jurídico de atos administrativos reconhecidamente inválidos representa afronta ao princípio constitucional da legalidade. Contudo, a análise do caso concreto pode recomendar que a efetiva proteção à legalidade, entendida esta em sentido amplo, de observância às finalidades essenciais objetivadas pelo ordenamento jurídico, é, de fato, melhor atendida com a preservação de determinados efeitos jurídicos dos atos administrativos, apesar de viciados; assim, o interesse público seria atendido.

Acresça-se que devem estar presentes determinados requisitos para que se qualifique como legítima uma expectativa por parte do administrado, de modo a possibilitar a incidência do princípio da proteção à confiança.

De fato, não é qualquer situação que se insere no escopo de aplicação do referido princípio. Há de haver uma situação excepcional, atípica, onde é possível se aferir o atendimento de requisitos objetivos e subjetivos, cujos conteúdos aos poucos vão sendo construídos pela doutrina, jurisprudência e até mesmo positivados pelo legislador infraconstitucional. Neste caminho, relevante foi a edição da Lei nº 9874/99 que, em seu art. 54, concretizou e forneceu balizas, em nível federal, ao princípio da proteção à confiança.

Como se percebe, é possível se identificar desde logo, a título de delimitação temática, que apesar da vastidão e amplitude que sugere qualquer estudo acerca da segurança jurídica e do princípio da proteção à confiança, o presente estudo limita-se à análise do referido princípio sob a ótica da Administração Pública, no exercício da função administrativa. Não se desconhece, todavia, que todo o Poder Público, em sentido amplo, vale dizer, Legislativo, Executivo e Judiciário, dentro de suas respectivas funções são, inegavelmente, destinatários das limitações impostas pelo princípio da segurança jurídica da proteção à confiança.

Mais um dado delimitador temático: busca-se investigar acerca da eficácia negativa do princípio da proteção à confiança ou, em outras palavras, busca-se investigar a necessidade de que o Estado, no exercício da função administrativa, em algumas hipóteses, se abstenha de agir e fique limitado em sua atuação (não invalidando um ato administrativo ou não desconstituindo seus efeitos), resguardando, por conseguinte, situações geradoras de confiança legítima e estabilizando situações jurídicas criadas administrativamente.

Em linhas gerais, é possível se adiantar que o caminho a ser percorrido passará pela identificação, delimitação do âmbito de aplicação e contextualização do princípio da proteção à confiança legítima, correlacionando-o com o princípio da segurança jurídica; delimitação do âmbito de aplicação da autotutela administrativa, enfocando-o sob a ótica do princípio da legalidade a ser observado pela administração pública; identificação na jurisprudência, doutrina e legislação dos principais argumentos e preceitos normativos capazes de sustentar a possibilidade de manutenção no mundo jurídico de atos administrativos inválidos, prestigiando o princípio de proteção à confiança; por fim, buscará analisar o artigo 54 da lei n º 9784/99, sob o enfoque da necessidade de estabilização das relações jurídicas criadas administrativamente, sistematizando os requisitos (objetivos e subjetivos) que qualificam uma expectativa como legítima e apta a ensejar a aplicação do princípio da proteção à confiança em favor do particular.


2 A SEGURANÇA JURÍDICA E A LEGALIDADE COMO VALORES ESSENCIAIS PARA O ESTADO DE DIREITO.

Convém registrar, de início, que não é singela a tarefa de tentar definir e delimitar com algum grau de precisão o princípio da segurança jurídica e sua conexão com a noção de Estado de Direito. Por conseguinte, a sua compreensão, apesar de não representar propriamente um "mistério" dentre os estudiosos do Direito, muitas vezes se manifesta de forma obscura, incompleta e, por demais, singela, de tal forma que é possível se afirmar que tal compreensão não prescinde de uma incursão por todo ordenamento jurídico, buscando-se identificar como o legislador ordinário e, principalmente, o legislador constitucional procuraram materializar regras e princípios afetos direta ou indiretamente à segurança jurídica.

Em vista destas considerações, considerando que o objeto principal da presente pesquisa possui íntima relação com a compreensão e delimitação do princípio da segurança jurídica, sendo o próprio princípio da proteção à confiança concebido como uma feição subjetiva do princípio da segurança jurídica (SILVA, 2005, p. 03-04), torna-se imprescindível uma sistematização, ainda que breve, do princípio da segurança jurídica e de suas principais implicações.

A concepção de uma sociedade juridicamente organizada requer como premissa o reconhecimento da segurança jurídica como um valor supremo. Na realidade, não é exagero se afirmar que o anseio por segurança jurídica justifica a própria existência e desenvolvimento da ordem jurídica, sendo notório que o ser humano, diante da própria essência da condição humana, tende a buscar, invariavelmente, situações que lhe confiram um maior grau de estabilidade, seja no âmbito estritamente privado, seja no âmbito das relações travadas com o Poder Público.

Dentre as várias idéias que podem ser, de alguma forma, relacionadas à consecução da segurança jurídica, a legalidade (o princípio da legalidade) é, inegavelmente, a mais evidente e fundamental. Com efeito, a partir da regulação prévia das diversas condutas possíveis dos cidadãos (por meio dos diversos enunciados prescritivos que irão compor as normas jurídicas) torna-se possível se identificar as conseqüências advindas de eventuais descumprimentos de tais preceitos normativos. Por conseguinte, a submissão à lei e, mais amplamente a todo ordenamento jurídico, em observância ao princípio da legalidade deve, de fato, nortear toda atividade Estatal, seja ela de índole administrativa, jurisdicional ou legislativa.

É de se considerar, no entanto, que a amplitude do conceito de segurança jurídica, de índole inegavelmente principiológica, perfazendo elemento central e essencial da ordem jurídica e sendo da essência da própria concepção de Estado de Direito, nos remete à conclusão de que não é possível se extrair seu conteúdo de uma única norma jurídica. Assim, afigura-se inviável se reconhecer um conceito fechado e único acerca do princípio da segurança jurídica; ao revés, sua plurissignificação e caracterização advêm da observância do ordenamento jurídico na sua totalidade, compondo-se pela conjugação de diversas normas jurídicas. Neste sentido, é a afirmação de Rafael Maffini:

Percebe-se, pois, que o princípio da segurança jurídica, em verdade, decorre de uma confluência qualificada das noções de certeza, estabilidade, previsibilidade, confiança, o que necessariamente se dá em face da conjugação de várias normas jurídicas, dentre os quais [sic] se poderiam mencionar a própria legalidade administrativa, a irretroatividade, a proibição de arbitrariedade, a proteção da confiança, dentre outras tantas (regras, princípios e postulados) que dão conformação ao sobreprincípio da segurança jurídica, sendo, todavia, mais do que a simples conjugação de tais subprincípios para alcançar uma noção de instrumento de justiça social. (MAFFINI, 2006, p.48-49).

Dentro desta mesma ordem de idéias, afirmou Celso Antônio Bandeira de Mello acerca do princípio da segurança jurídica:

Este princípio [da segurança jurídica] não pode ser radicado em qualquer dispositivo constitucional específico. É, porém, da essência do próprio Direito, notadamente de um Estado Democrático de Direito, de tal sorte que faz parte do sistema constitucional como um todo. Enquadra-se, então, entre os princípios gerais de Direito [...] (MELLO, 2003, p.112).

De fato, como já afirmado na introdução deste trabalho, é possível se identificar no direito posto, sobretudo na Constituição Federal, diversas regras e princípios jurídicos que buscam materializar, direta ou indiretamente, o princípio da segurança jurídica, destacando-se dentre eles: a prescrição e a decadência (artigos 189 a 211, Código Civil/2002), a preservação do ato jurídico perfeito, do direito adquirido e a intangibilidade da coisa julgada (artigo 5º, inciso XXXVI, CF), o princípio da legalidade (artigo 5º, inciso II, CF), o princípio da legalidade administrativa (artigo 37, caput, CF) o princípio da legalidade tributária (artigo 150, inciso I, CF), o princípio da legalidade e anterioridade em matéria penal (artigo 5º, inciso XXXIX, CF), a irretroatividade da lei penal desfavorável (artigo 5º XL, CF), etc.

Dentro de tal contexto, importa registrar que a noção fundamental de segurança jurídica alia-se à idéia de previsibilidade, regularidade e estabilidade das relações jurídicas, sobretudo quando se está a considerar as relações jurídicas de natureza pública, onde há participação direta do Estado no exercício de sua potestade administrativa, sendo certo que, por muitas vezes, sob a justificativa de atuar em benefício do interesse público (genericamente considerado), pode tender à arbitrariedade e extrapolar os limites que lhe cabem dentro de um Estado de Direito.

Decerto que a observância do princípio da legalidade caracteriza e confere identidade própria ao Estado de Direito, o qual, por sua vez, contrapõe-se a qualquer forma de arbitrariedade e autoritarismo, sendo correto afirmar que ninguém (nem a maior das autoridades do Estado e nem mesmo o próprio Estado) está acima da lei; no entanto, tal princípio, por si só, não esgota a compreensão do princípio do Estado de Direito.

Com efeito, apesar de ser imprescindível a idéia de um ordenamento jurídico pautado pela legalidade, o reconhecimento de um Estado de Direito vai além da mera legalidade e da submissão do Estado à lei, representando princípio mais amplo, nos remetendo à idéia de reconhecimento dos direitos fundamentais, perfazendo verdadeiro limitador e, principalmente, legitimador da atividade estatal. Neste sentido, é a lição de Ingo Wolfgang Sarlet:

Considerando-se [...] o Estado de Direito não no sentido meramente formal, isto é, como `governo das leis`, mas, sim, como `ordenação integral e livre da comunidade política`, expressão da concepção de um Estado material de Direito, no qual além da garantia de determinadas formas e procedimentos inerentes à organização do poder e das competências dos órgãos estatais, se encontram reconhecidos, simultaneamente, como metas, parâmetros e limites da atividade estatal, certos valores, direitos e liberdades fundamentais, chegando-se fatalmente à noção – umbilicalmente ligada à idéia de Estado de Direito – de legitimidade da ordem constitucional e do Estado. (SARLET, 2007, p.70).

O Estado de Direito corresponde, ademais, a norma expressamente prevista no texto constitucional (artigo 1º, CF), possuindo caráter imediatamente finalístico, associando-se a cinco idéias fundamentais, que foram assim resumidas por Rafael Maffini, após examinar diversas decisões do STF que fizeram alusão direta ao Estado de Direito como um sobreprincípio jurídico: (a) submissão do Estado à ordem jurídica; (b) submissão do Estado aos mecanismos de controle e de responsabilização; (c) separação as funções estatais; (d) submissão do Estado aos direitos e garantias fundamentais; e (e) segurança jurídica. (MAFFINI, 2006, p.44).

No que toca especificamente ao elemento central objeto da presente pesquisa, torna-se inafastável a lição de Almiro do Couto e Silva, reconhecidamente um dos pouquíssimos doutrinadores que, no direito pátrio, se dedicou especificamente ao estudo do princípio constitucional da segurança jurídica, na vertente da proteção à confiança.

À segurança jurídica se atribuiu uma feição objetiva, associada à noção genérica de previsibilidade concernente à ordem jurídica (irretroatividade das leis, direito adquirido, princípio da legalidade, etc), e outra subjetiva, que, por sua vez, associa-se à idéia de estabilidade e confiança das pessoas nos atos e procedimentos estatais, de modo a ensejar, em determinadas hipóteses, a estabilização das situações jurídicas decorrentes da atuação estatal, ainda que tais situações tenham se originado sob o manto da ilegalidade. Eis um trecho do que afirmou referido autor acerca do princípio da segurança jurídica e do princípio da proteção à confiança (daquele deduzido):

A segurança jurídica é entendida como sendo um conceito ou um princípio jurídico que se ramifica em duas partes, uma de natureza objetiva e outra de natureza subjetiva. A primeira, de natureza objetiva, é aquela que envolve a questão dos limites à retroatividade dos atos do Estado até mesmo quando estes se qualifiquem como atos legislativos. Diz respeito, portanto, à proteção ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada. [...] A outra, de natureza subjetiva, concerne à proteção à confiança das pessoas no pertinente aos atos, procedimentos e condutas do Estado, nos mais diferentes aspectos de sua atuação [...] Este último princípio (a) impõe ao Estado limitações na liberdade de alterar sua conduta e de modificar atos que produziram vantagens para os destinatários, mesmo quando ilegais, ou (b) atribui-lhe conseqüências patrimoniais por essas alterações, sempre em virtude da crença gerada nos beneficiários, nos administrados ou na sociedade em geral de que aqueles atos eram legítimos, tudo fazendo razoavelmente supor que seriam mantidos. (SILVA, 2005, p. 03-05).

Deve-se registrar, inclusive, que seus ensinamentos já foram citados expressamente em algumas das poucas decisões exaradas pelo Supremo Tribunal Federal [01], através do eminente Min. Gilmar Mendes, em que se reconheceu a possibilidade de manutenção de atos administrativos inválidos, para fins de se alcançar a estabilização das relações jurídicas criadas administrativamente, através da aplicação do princípio constitucional da proteção à confiança.

Diante do que fora afirmado até aqui, é possível se verificar que existem três princípios de matriz constitucional que se interligam diretamente: (a) o princípio do Estado de Direito, como princípio maior (ou sobreprincípio) inerente à própria organização, funcionamento e finalidade da ordem jurídica, representando, em linhas gerais, vinculação do Estado à legalidade e ao Direito como um todo; (b) o princípio da segurança jurídica que, por sua vez, encontra-se insitamente relacionado ao Estado de Direito, sendo inerente à própria idéia de Direito a busca por segurança jurídica; e (c) o princípio da proteção à confiança [02], que, conforme anteriormente mencionado, representa uma das significações (feição subjetiva) do princípio da segurança jurídica.

Cumpre consignar, por fim, a sistematização e delimitação do conteúdo jurídico do princípio da segurança jurídica proposta por Rafael Maffini, que após se aprofundar nas lições de Almiro do Couto e Silva, resumiu seus três principais aspectos:

[...] a) numa feição de previsibilidade ou de "cálculo prévio", que opera ex ante, para os fins de se evitar surpresas decorrentes da atividade estatal; b) numa feição de acessibilidade, fundamentando a publicidade e, em termos amplos, a transparência de ação estatal; c) como instrumento de estabilidade, ou de previsibilidade ex post, continuidade, permanência, regularidade das situações e relação jurídicas decorrentes da ação estatal. A proteção substancial da confiança, no Direito Administrativo, situa-se na última significação do princípio da segurança jurídica. (MAFFINI, 2006, p.222).


3 O CONTEÚDO JURÍDICO DO PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO À CONFIANÇA E SUA GÊNESE CONSTITUCIONAL.

Cumpre destacar, inicialmente, que não há no ordenamento jurídico brasileiro uma definição legal de confiança e, nem, por conseguinte, do princípio da proteção à confiança. Tal constatação, aliada à própria dificuldade semântica que permeia a noção genérica de confiança (e também de segurança jurídica), já é suficiente para remeter o assunto para o âmbito dos conceitos jurídicos, senão indeterminados, insuficiente determinados.

Não obstante a investigação jurídica acerca do princípio da proteção à confiança traga consigo a dificuldade de se delimitar com precisão seu conteúdo jurídico, sua concepção vem sendo construída aos poucos pela doutrina e, sobretudo, pela jurisprudência [03] que, diante da análise de casos concretos, por vezes complexos, termina por identificar a necessidade de sua tutela jurídica, quase sempre se valendo da fundamentação concernente à necessidade de segurança jurídica, que é elemento essencial e qualificador do próprio Estado de Direito.

Buscando-se o sentido dado à palavra "confiança" no dicionário (AURÉLIO, 1998, p.525) é possível encontrar, dentre outros significados, crédito, fé e esperança firme. E é justamente essa a idéia inicial que se deve ter acerca do que venha a ser confiança: esperar por algo, ter uma expectativa, acreditar. Todavia, no que concerne especificamente ao objeto da presente pesquisa, obviamente, faz-se necessário um maior detalhamento, a fim de se delimitar o conteúdo jurídico do princípio da proteção à confiança.

Com efeito, não é de qualquer confiança que se está a tratar. Interessa a identificação e compreensão daquela confiança que, em última análise, representa uma limitação à atividade Estatal e, mais especificamente, uma limitação à atividade do Estado no exercício da função administrativa [04]. Em outras palavras, há de se perquirir a confiança que, elevada à categoria de princípio, com respaldo no ordenamento jurídico e, sobretudo, no princípio constitucional da segurança jurídica, seja passível de tutela jurídica, de modo a justificar a estabilização de situações jurídicas criadas administrativamente, ainda que originadas sob o manto da ilegalidade (não invalidando ou preservando os efeitos de atos administrativos).

Decerto, todavia, que a confiança do cidadão nos atos emanados da Administração Pública, de um modo geral, não pode ensejar uma mitigação absoluta do princípio da legalidade administrativa: a regra é que os atos contrários ao ordenamento jurídico, seja por ilegalidade ou por inconstitucionalidade, devem ser anulados pela própria Administração Pública, no regular exercício da autotutela administrativa. Para que se possa invocar a tutela jurídica a partir do reconhecimento do princípio da proteção à confiança, há de haver, na hipótese, uma nota de atipicidade e de excepcionalidade.

Partindo-se dessa consideração, a referida nota de atipicidade, caracterizadora de uma situação excepcional, se revela quando, no exame do caso concreto, for possível se verificar o preenchimento de determinados requisitos, tanto objetivos, quanto subjetivos [05], relacionados, na maioria das vezes, com o comportamento daquele que se beneficiaria com a manutenção do ato (análise acerca da boa fé do beneficiário do ato administrativo), com o tempo de duração de seus efeitos e com a natureza do ato administrativo que se pretende ter preservado os efeitos.

Nestes termos, a confiança merecedora de tutela jurídica, que pode verdadeiramente ser considerada como um limite à atuação Estatal, podendo ser argüida pelo particular em face do Poder Público, objetivando ver mantida alguma situação jurídica que lhe é favorável e que foi criada por ato Estatal, é aquela denominada, doutrinariamente, como confiança legítima. Na lição de Luís Roberto Barroso:

Confiança legítima significa que o Poder Público não deve frustrar, deliberadamente, a justa expectativa que tenha criado no administrado ou no jurisdicionado. Ela envolve, portanto, coerência nas decisões, razoabilidade nas mudanças e a não imposição retroativa de ônus imprevistos. (BARROSO, Revista de Direito do Estado, 2006, p. 276).

Dentro deste contexto, procedendo-se a uma delimitação conceitual acerca do princípio da proteção à confiança, relevantes são as considerações de Almiro do Couto e Silva:

Na Alemanha, onde o princípio da proteção à confiança nasceu, por construção jurisprudencial, pode-se dizer que este princípio prende-se predominantemente à questão da preservação dos atos inválidos, mesmo nulos de pleno direito, por ilegais ou inconstitucionais, ou, pelo menos, dos efeitos desses atos, quando indiscutível a boa fé. (SILVA, 2005, p. 05).

Destaca-se, ainda, a lição do referido autor quando, a título de contextualização, aludiu ao Estado Social (ou Estado Providência) como sendo o ambiente adequado para surgimento e desenvolvimento do princípio da segurança jurídica e da proteção à confiança:

Nessa moldura, não será necessário sublinhar que os princípios da segurança jurídica e da proteção à confiança são elementos conservadores inseridos na ordem jurídica, destinados à manutenção do status quo e a evitar que as pessoas sejam surpreendidas por modificações do direito positivo ou na conduta do Estado, mesmo quando manifestada em atos ilegais, que possa ferir os interesses dos administrados, ou frustar-lhes as expectativas. Colocam-se, assim, em posição de tensão com as tendências que pressionam o Estado a adaptar-se a novas exigências da sociedade, de caráter econômico, social, cultural ou de qualquer outra ordem, ao influxo, por vezes, de avanços tecnológicos ou científicos, como os realizados, com impressionante velocidade, no decorrer do século XX. (SILVA, 2005, p. 06).

Verifica-se, a partir do que foi dito até agora, que o foco da presente pesquisa se limita à análise do princípio da proteção à confiança, tendo por escopo o exercício da função administrativa do Estado, sob a perspectiva da possibilidade de manutenção no ordenamento jurídico de atos administrativos reconhecidamente inválidos, sem que isso represente, necessariamente, afronta ao princípio constitucional da legalidade. Contudo, não pode deixar de ser registrado que, além dessa abordagem que compõe o objeto do presente trabalho, a proteção à confiança, tendo por escopo o exercício da função administrativa do Estado, pode ser vislumbrada também sob outras duas perspectivas (que também compõem seu conteúdo jurídico), que assim foram identificadas por Rafael Maffini:

[...] a) de um lado, tem-se a proteção procedimental da confiança ou das expectativas legítimas, consubstanciada na necessidade de uma atividade administrativa processualizada, em que se assegure a participação dos destinatários da função administrativa; b) de outro lado, tem-se a proteção compensatória da confiança, compreendida como o dever do Estado de ressarcir os prejuízos decorrentes da frustração de expectativas nele legitimamente depositadas pelos cidadãos; c) por fim, destaca-se a proteção substancial ou material da confiança, cujo significado pode ser sumarizado como sendo um conjunto de normas jurídicas que visa à manutenção e à estabilização das relações jurídicas emergentes da ação administrativa do Estado, em face de expectativas que, por razões especiais, apresentam-se legítimas e, assim, dignas de proteção. (MAFFINI, 2006, p.32).

Há de se aferir, nesse momento, quais nuances permeiam o princípio da proteção à confiança no plano da eficácia.

3.1 A EFICÁCIA NEGATIVA (DEVER DE ABSTENÇÃO) E A EFICÁCIA POSITIVA (DEVER DE AÇÃO) DO PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO À CONFIANÇA.

A pesquisa acerca do princípio da proteção à confiança comporta duas linhas de abordagem que, apesar de não necessariamente se excluírem, precisam ser devidamente identificadas, explicitadas e compreendidas, sob pena de prejuízo à própria delimitação temática. Trata-se da eficácia negativa e da eficácia positiva do princípio da proteção à confiança.

Percebe-se, assim, que, conquanto não restem dúvidas quanto à gênese constitucional do princípio da proteção à confiança, no plano da eficácia há de se distinguir quando, a partir do referido princípio, se impõe uma atitude positiva (dever de ação) ou uma atitude negativa do Estado (dever de abstenção).

Importa frisar, desde logo, que dentro da delimitação temática ora proposta, busca-se investigar apenas acerca da eficácia negativa do princípio da proteção à confiança, uma vez que o objeto de estudo junge-se, em essência, à aplicação do referido princípio como limitação à autotutela administrativa. Nada impede, todavia, que seja identificado e compreendido, ainda que de forma menos aprofundada, o princípio da proteção à confiança sob a ótica de sua eficácia positiva.

Fala-se em eficácia negativa do princípio da proteção à confiança quando se enfoca a necessidade de conservação e estabilização de situações jurídicas criadas administrativamente, ainda que surgidas em contrariedade ao ordenamento jurídico; noutras palavras, a eficácia negativa corresponde a uma obrigação de não-fazer, a um dever de abstenção do Estado que, no exercício da função administrativa, desde que estejam presentes alguns requisitos, estaria constitucionalmente limitado em seu agir, em razão da incidência do princípio constitucional da proteção à confiança.

Acerca desse "dever de abstenção", expõe Judith Martins-Costa:

[...] a ação da Administração Pública para realizar ou resguardar o valor `segurança jurídica` e proteger a confiança é quase uma não-ação, constituindo, a rigor, um dever se abstenção: não atingir o direito adquirido ou o ato jurídico perfeito; não bulir com situações abrangidas pelo manto protetor da prescrição, decadência ou preclusão; não modificar a prática há longo tempo seguida, se a mudança vier em prejuízo do administrado [...] não revogar ou anular, em certas situações, atos administrativos que tenham produzido efeitos na esfera jurídica de terceiros [...] (MARTINS-COSTA, 2005, p.114).

Neste mesmo sentido é o ensinamento de Rafael Maffini (2006, p.225), se referindo à operatividade do princípio da proteção à confiança, numa feição negativa, correspondendo a um conjunto de obrigações de não fazer direcionado à conservação de condutas administrativas.

Estas breves considerações são suficientes para identificar, em linhas gerais, a significação da eficácia negativa do princípio da proteção à confiança. Cumpre aferir, neste momento, em que consiste a sua feição positiva (eficácia positiva).

É de se registrar que dentre as poucas manifestações doutrinárias (e jurisprudenciais) acerca, especificamente, do princípio da proteção à confiança e de sua gênese constitucional, a maior parte delas se refere à eficácia negativa do referido princípio, ou em outras palavras, como verdadeira limitação à atividade Estatal, impondo-lhe uma obrigação de não fazer, uma atividade negativa, um dever de abstenção.

Dentro de tal contexto, se esta limitação imposta à atividade Estatal em razão do referido princípio, em sua vertente negativa (eficácia negativa), já não se apresenta claramente (e nem suficientemente) definida e debatida pela doutrina e pela jurisprudência, mais incipientes ainda são as pesquisas acerca do princípio da proteção à confiança abordando sua eficácia positiva, a ensejar um dever de ação por parte do Estado.

É de se considerar, nesse passo, que a análise do princípio da proteção à confiança sob a ótica de sua eficácia positiva ultrapassa a mera inação e passividade Estatal para referir-se a deveres de cooperação endereçados à Administração Pública (MAFFINI, 2006, p.225). Trata, por conseguinte, daquela confiança do cidadão em atitudes positivas do Estado necessárias à consecução dos direitos fundamentais e à realização de justiça social.

A idéia sob a qual se ancora tal dever de ação do Estado está em que ao cidadão não haveria de ser tutelada apenas aquelas expectativas direcionadas à manutenção e preservação de relações jurídicas (que lhe são benéficas) criadas administrativamente; haveria de haver uma compreensão mais ampla do princípio da proteção à confiança, para se permitir ao cidadão ter uma expectativa – tutelada juridicamente – direcionada a um fazer Estatal, sobretudo ao se considerar o atual estágio de desenvolvimento do Estado que deve, dentre outras coisas, também estar compreendido com a realização da justiça e com o desenvolvimento e garantia dos direitos fundamentais.

Sob tais idéias, Judith Martins-Costa procurou identificar esta noção mais ampla do princípio da segurança jurídica, examinando um caso concreto que havia sido submetido ao Supremo Tribunal Federal.

Após examinar uma decisão proferida pelo Ministro Gilmar Mendes [06], onde se evocou a aplicação do princípio da segurança jurídica na realização da própria justiça material, concedendo tutela cautelar para permitir à requerente se transferir de uma instituição de ensino público federal para outra, pleiteada em razão da assunção de cargo, para o qual foi aprovada em concurso público, Judith Martins-Costa resumiu este viés positivo do princípio da proteção à confiança, ampliando sua significação de modo a associá-lo à necessidade de atuação do Estado direcionada à proteção dos direitos fundamentais e realização de justiça material:

Sem desmerecer a significação da segurança jurídica como estabilidade ou fixidez jurídica, a decisão do Supremo Tribunal que motiva estas notas sinaliza, contudo, também uma outra significação para aquele antigo princípio. Faz o trânsito do peso mais significativo – no arco do princípio da segurança – da legalidade estrita para a proteção da confiança, permeando-o com um viés de dinamismo. Traça inter-relações entre a confiança e outros princípios, notadamente com os princípios e direitos fundamentais da personalidade humana. Indica que, por vezes, a confiança carece de ação (e não de abstenção), sob pena de ser afrontado o valor justiça. (MARTINS-COSTA, 2005, p.114).

A mesma autora argumentou, ainda, acerca da ampliação da significação do princípio da proteção à confiança concernente à tutela do livre desenvolvimento da personalidade dos indivíduos, ancorada em comportamentos ativos (positivos) de proteção por parte do Estado:

[...] nessa nova conjuntura, o princípio da segurança jurídica vem relacionado a outro tipo de confiança, a outra lógica de confiança: não apenas se confia na inação estatal, a fim de não perturbar o espaço da livre iniciativa econômica; confia-se também na racionalização do poder do Estado e na sua ação, tendo em vista o interesse [...] no livre desenvolvimento da personalidade dos indivíduos [...] a Administração deve não apenas resguardar as situações de confiança traduzidas na boa-fé (crença) dos cidadãos na legitimidade dos atos administrativos ou na regularidade de certa conduta; deve também agir segundo impõe a boa-fé, considerada como norma de conduta, produtora de comportamentos ativos e positivos de proteção. (MARTINS-COSTA, 2005, p.114).

3.2 PROTEÇÃO À CONFIANÇA NAS RELAÇÕES ENTRE O PODER PÚBLICO E OS PARTICULARES.

Conquanto o foco da presente pesquisa se restrinja à análise e compreensão do princípio da proteção à confiança tendo por escopo a atividade Estatal no que diz respeito ao exercício de sua função administrativa, é inegável que o Poder Público, em todas suas esferas de atuação, deve agir em observância aos valores consagrados pelo legislador constitucional, notadamente a segurança jurídica, que representa a essência do próprio Estado de Direito.

Com efeito, a doutrina parece não hesitar em considerar que o princípio da segurança jurídica (e também o princípio da proteção à confiança, que com aquele se relaciona intimamente) repercute diretamente na esfera de atuação tanto do Poder Legislativo, quanto do Poder Executivo e do Judiciário; noutras palavras, todos os três Poderes são destinatários do princípio da segurança jurídica e do princípio da proteção à confiança.

A questão relacionada à possibilidade de se exigir do Poder Público, em suas três esferas de atuação, a observância dos postulados inerentes ao princípio da segurança jurídica e ao princípio da proteção à confiança, foi assim exposta por José Joaquim Gomes Canotilho:

Estes dois princípios – segurança jurídica e protecção da confiança – andam estreitamente associados a ponto de alguns autores considerarem o princípio da protecção da confiança como um subprincípio ou como uma dimensão específica da segurança jurídica [...] A segurança e a protecção da confiança exigem, no fundo: (1) fiabilidade, clareza, racionalidade e transparência dos actos do poder; (2) de forma que em relação a eles o cidadão veja garantida a segurança nas suas disposições pessoais e nos efeitos jurídicos dos seus próprios actos. Deduz-se já que os postulados da segurança jurídica e da protecção a confiança são exigíveis perante qualquer acto de qualquer poder – legislativo, executivo e judicial [...] As refrações mais importantes do princípio da segurança jurídica são as seguintes: (1) relativamente a actos normativos – proibição de normas retroactivas restritivas de direitos ou interesses juridicamente protegidos; (2) relativamente a actos jurisdicionais – inalterabilidade do caso julgado; (3) em relação a actos da administração – tendencial estabilidade dos casos decididos através de actos administrativos constitutivos de direitos. (CANOTILHO, 1998, p.250).

Neste mesmo sentido é a lição de Rafael Maffini:

[...] Com efeito, tal princípio [da confiança] revela-se uma faceta do princípio da segurança jurídica, sendo este uma decorrência do Estado de Direito. Diante disso, mostra-se viável tratar do princípio da proteção da confiança em todos (sic) as funções incumbidas ao Estado. (MAFFINI, 2006, p. 31).

Importa registrar, contudo, que, por uma questão de coerência com a premissa teórica adotada, onde se conceituou o princípio da proteção à confiança como uma feição subjetiva do princípio da segurança jurídica [07], seria tecnicamente mais acertado se conceber que a proteção da confiança se dirige mais diretamente (primariamente) às atividades administrativas do Estado e ao Poder Judiciário, onde é possível se identificar, mais especificamente, a formação de situações subjetivas que possam induzir expectativas legítimas nos cidadãos, a partir da aplicação do direito aos casos concretos; apenas indiretamente (secundariamente) se dirige à atividade legislativa.

Nestes termos, considerando que ao Poder Legislativo não é dado aplicar o direito ao caso concreto, incumbindo-lhe inovar a ordem jurídica através da criação de normas gerais e abstratas, sua limitação de agir afina-se mais diretamente com aqueles valores relacionados à segurança jurídica em sua vertente objetiva, abrangendo, assim, a idéia de irretroatividade das leis, proteção da lei ao ato jurídico perfeito, direito adquirido e coisa julgada. Há de haver ainda, por parte do legislador, a preocupação com a criação de regras transitórias ao se pretender modificar o direito vigente por longo período [08].

Outro exemplo nos é dado por Rafael Maffini, acerca da necessidade de inserção de regras transitórias a fim de se evitar que se frustrem as expectativas legítimas criadas nos cidadãos:

[...] exemplo diz respeito à inserção, pela Emenda Constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004 (Reforma do Judiciário), de regras que passaram a exigir três anos de atividade jurídica como requisito de ingresso para as carreiras da magistratura e do Ministério Público (artigos 93, I e 129, parágrafo 3º, da CF). Uma análise cuidadosa da inovação em tela – de resto virtuosa – aponta para a omissão de regras transitórias necessárias à proteção das expectativas legítimas daqueles que já se encontravam em preparação para os concursos para tais carreiras. A inovação referida, por abrupta, dada a inexistência de regras transitórias, frustrou a planificação de inúmeras pessoas que, em face do modelo de seleção anteriormente adotado, não vinham se preocupando com a aquisição de experiência prática. (MAFFINI, 2006, p.27).

Pode-se mencionar, ainda, dentro do escopo da segurança jurídica, mais um óbice material à atividade legislativa Estatal, identificado por Luís Roberto Barroso como vedação ao retrocesso, ou eficácia vedativa do retrocesso, a partir do que se impõe ao legislador infraconstitucional, tendo por base o direito constitucional vigente, a progressiva ampliação dos direitos fundamentais, sendo inviável ao legislador revogar norma concessiva de direito, sem acompanhamento de uma política equivalente ou substitutiva. (BARROSO, 2004, p.379).

Logicamente que também se enquadra conjunto de limitações impostas à atividade legislativa a impossibilidade (genérica) de se legislar, seja em que ramo do direito for, em detrimento da segurança jurídica, o que de resto resultaria na invalidade do referido diploma legislativo (por exemplo, uma lei que suprimisse ou reduzisse consideravelmente os prazos decadenciais ou prescricionais relacionados a alguma matéria em específico; que induzisse ao arbítrio, outorgando poderes excessivos a determinado órgão público, em detrimento dos direitos e garantias fundamentais, etc.).

É óbvio que não há uma separação estanque entre o princípio da proteção à confiança e da segurança jurídica [09], havendo inclusive autores que os identificam de forma indistinta, apenas fazendo alusão à confiança como um desdobramento e instrumento para a afirmação da segurança jurídica [10].

Nesse passo, em linhas gerais, é possível se afirmar que, inegavelmente, tanto a segurança jurídica quanto a proteção à confiança representam valores constitucionais (afinados com a própria essência do Estado de Direito) que devem permear toda atividade Estatal, seja ela qual for.

Todavia, o que se pretendeu ressaltar quanto às limitações impostas especificamente ao Poder Legislativo, é que, pela própria natureza da atividade legislativa, por inovar a ordem jurídica a partir de prescrições gerais e abstratas, a observância da segurança jurídica e, em última análise, da previsibilidade e da "certeza do direito", se dá em nível amplo, objetivo, sem se ater, em regra, àquele indivíduo ou àquela situação em específico; por tais razões, a noção de proteção à confiança amparada na existência de expectativas legítima por parte do cidadão é melhor "visualizada" e identificada, consoante a noção de direito subjetivo, no exercício da função administrativa e da função jurisdicional, onde são produzidas normas individuais e concretas.

Em vista destas considerações é que se afirmou, em concordância com Luís Roberto Barroso, que a proteção à confiança se dirige primariamente à Administração Pública e ao Poder Judiciário e apenas secundariamente ao Poder Legislativo, apesar de se reconhecer que a segurança jurídica deve, necessariamente, orientar toda atividade Estatal de uma maneira geral. Neste sentido, afirmou Barroso:

A proteção da confiança ou das expectativas legítimas, assim como a boa-fé, são princípios que se dirigem, primariamente, à Administração Pública e ao Poder Judiciário. Compete a tais órgãos aplicarem o direito aos casos concretos e, nesse ofício, devem atuar com certa constância de previsibilidade, já que lhes cabe preservar a ordem jurídica existente e assegurar a isonomia perante a lei. Nem mesmo o legislador poderá ser totalmente indiferente a tais princípios constitucionais. [...] (BARROSO, Revista de Direito do Estado, 2006, p. 277-278).

Considerando que a presente pesquisa enfoca, por delimitação temática, a possibilidade de aplicação do princípio da proteção à confiança (segurança jurídica) em face do Estado, apenas no que se relaciona ao exercício da função administrativa, como uma limitação ao exercício da autotutela administrativa; considerando, ainda, que tal circunstância já vem sendo abordada ao longo do trabalho e que será aprofundada no próximo capítulo, não serão tecidas maiores considerações, neste momento, acerca das repercussões do referido princípio no âmbito do Poder Executivo. Resta, por conseguinte, a análise quanto à aplicação do princípio da proteção à confiança (e segurança jurídica) no âmbito do Poder Judiciário.

Quando se analisa a questão da segurança jurídica, tendo por escopo a atividade exercida pelo Poder Judiciário, o princípio que, por excelência, merece destaque, sendo sempre lembrado pela doutrina, é o da intangibilidade da coisa julgada. Neste sentido é a lição de Rafael Mafinni:

Do mesmo modo, há também repercussões do princípio da proteção da confiança próprias da atividade jurisdicional, das quais se pode considerar como exemplo primaz o próprio instituto da coisa julgada. Além disso, recentes mudanças constitucionais criadoras – ou reconhecedoras – de efeitos vinculantes das decisões do STF induzem, ultima ratio, à previsibilidade da atividade decisória própria da jurisdição. (MAFFINI, 2006, p. 31).

Luís Roberto Barroso, enfrentando a questão, defende que a segurança jurídica não deve apenas estar reconhecida em garantias veiculadas em enunciados prescritivos (em abstrato), mas deve nortear toda a atividade interpretativa e de aplicação do direito, notadamente a atividade jurisdicional, já que, aos juízes, incumbe aplicar, em definitivo, a lei ao caso concreto, influindo diretamente na esfera de interesse individual:

[...] as garantias inerentes ao princípio da segurança jurídica não se destinam a proteger os indivíduos apenas contra os enunciados normativos em abstrato, antes de um ato de interpretação e aplicação que defina as normas efetivamente impostas. Como já referido, embora caiba à lei inovar na ordem jurídica para criar direitos e obrigações, juízes e tribunais é que vão dizer, de modo definitivo, o sentido e o alcance da lei. Em outras palavras: é o Judiciário, em última análise, a instância que irá decidir quais direitos e obrigações foram criados pelos dispositivos legais. Dentro dessa linha de raciocínio, é natural que o princípio da segurança jurídica se dirija também à atividade jurisdicional. [...]. (BARROSO, Revista de Direito do Estado, 2006, p.275).

Mas apenas estas considerações não bastam. A atividade jurisdicional, inclusive e principalmente, do Supremo Tribunal Federal, deve primar pela segurança jurídica em seus mais variados aspectos, inclusive no momento em que forem proferidas suas decisões, indo além da mera observância da coisa julgada. Dentro de tal contexto, importa frisar a importante contribuição do legislador infraconstitucional ao reconhecer (e positivar) a possibilidade de flexibilização da eficácia temporal das decisões proferidas em Ação Direta de Inconstitucionalidade, nos termos do art.27 da lei 9868/99.

A partir do referido dispositivo, reconheceu-se que a eficácia de uma lei inconstitucional não deve ser sempre ex tunc, podendo alguns efeitos e situações ser preservados à luz dos parâmetros introduzidos pelo referido dispositivo (dentre eles, a segurança jurídica), sem que com isso se argumente ter havido violação à supremacia da Constituição.

Bem, afora eventuais críticas, acertos e desacertos, concernentes ao dispositivo legal citado, o fato é que, no âmbito das decisões proferidas em sede de controle abstrato de constitucionalidade, restou expressamente reconhecida a segurança jurídica e, por conseguinte, o princípio da proteção à confiança, como balizas para estabilização de determinadas situações jurídicas [11].

Por fim, há de se deixar consignadas algumas precisas considerações formuladas por Luís Roberto Barroso acerca do papel dos precedentes jurisprudenciais e da impossibilidade de alteração da jurisprudência consolidada pelo Supremo Tribunal Federal, sob pena de flagrante violação à segurança jurídica:

A ascensão doutrinária e normativa do precedente não o torna imutável. Mas impõe maior deferência e cautela na sua superação. Quando uma corte de justiça, notadamente o Supremo Tribunal Federal, toma a decisão grave de reverter uma jurisprudência consolidada, não pode nem deve fazê-lo com indiferença em relação à segurança jurídica, às expectativas de direito por ele próprio geradas, à boa-fé e à confiança dos jurisdicionados. Em situações como esta, é a própria credibilidade da mais alta corte que está em questão (BARROSO, Revista de Direito do Estado, 2006, p.271-272).

Após, concluiu Barroso:

É certo que o STF, assim como qualquer outro juízo ou tribunal, não está impedido de modificar sua posição acerca de determinada questão, seja para se adaptar a novos fatos, seja simplesmente para rever sua interpretação anterior. Ao fazê-lo, entretanto, o STF, a exemplo dos demais Poderes Públicos, está vinculado ao princípio constitucional da segurança jurídica, por força do qual a posição jurídica dos particulares que procederam de acordo com a orientação anteriormente adotada pela Corte na matéria deve ser preservada [...] Em um Estado de Direito, não seria sequer plausível admitir que uma nova decisão do STF, modificando a jurisprudência da Corte sobre a matéria, pudesse afetar situações que uma lei nova, veiculando o mesmo entendimento, não poderia atingir. (BARROSO, Revista de Direito do Estado, 2006, p.276).

3.3 A GÊNESE CONSTITUCIONAL DO PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO À CONFIANÇA.

3.3.1 A ascensão e o reconhecimento da normatividade dos princípios.

O presente estudo se insere, inegavelmente, num contexto de valorização dos princípios. Valorização, no sentido de reconhecimento de sua normatividade, de necessária observância e aplicabilidade (ainda que não explicitamente e diretamente positivado). Em específico, interessa-nos a compreensão acerca dos princípios da segurança jurídica e da confiança legítima que, apesar de não estarem expressamente previstos no texto constitucional, podem (e devem) ser identificados e delimitados a partir de diversas outras regras (e também princípios) que a eles prestigiam de forma direta e incontestável.

Conquanto não se afigure propriamente uma novidade o reconhecimento da existência dos princípios jurídicos, que durante muito tempo foram utilizados apenas de forma residual, como forma de preenchimento de eventuais lacunas que pudesse surgir no ordenamento jurídico, é, principalmente, a partir da segunda metade do século XX, com a transição do positivismo jurídico para o pós-positivismo, que se dá, verdadeiramente, a ascensão e o reconhecimento da normatividade dos princípios.

Decerto que, sob esta ótica, ao se reconhecer efetiva normatividade aos princípios, impõe-se ressaltar que violar um princípio representa vulnerar gravemente o ordenamento jurídico, de forma ainda mais intensa do que quando se descumpre uma regra, uma vez que os princípios representam verdadeiros pilares do Estado de Direito.

Com efeito, aquele legalismo exacerbado, na maioria das vezes, acrítico, onde se podia observar um ideário caracterizado pelo "endeusamento" e fetiche da lei, bem típico do positivismo jurídico, mostrou-se insuficiente para orientar e fundamentar o Direito, sobretudo dentro do Constitucionalismo moderno. Foi necessário, a partir das idéias conduzidas pelo pós-positivismo, se reconhecer e se estabelecer uma aproximação entre Direito e Ética, assentada nos valores e nas idéias de legitimidade e justiça. Neste passo, referindo-se aos papéis desempenhados pelos princípios, argumenta Barroso (2004, p.327) que, a partir das idéias lançadas pelo pós-positivismo jurídico, os princípios, ainda quando não positivados, são reconduzidos ao centro do sistema, condensando valores, dando unidade ao sistema e condicionando a atividade do intérprete. Sem desprezar as regras jurídicas e o legalismo, também essenciais para o ordenamento jurídico e para o Estado de Direito, reconhece o referido autor acerca do pós-positivismo:

... o pós-positivismo não surge com o ímpeto da desconstrução, mas como, mas como uma superação do conhecimento convencional. Ele inicia sua trajetória guardando deferência relativa ao ordenamento jurídico, mas nele reintroduzindo as idéias de justiça e legitimidade [...] Os princípios, como se percebe, vêm de longe e desempenham papéis variados. O que há de singular na dogmática da quadra histórica atual é o reconhecimento de sua normatividade. (BARROSO, Interpretação e aplicação da Constituição, 2004, p. 326-327, grifo nosso).

E conclui:

O pós-positivismo é uma superação do legalismo, não com recurso a idéias metafísicas ou abstratas, mas pelo reconhecimento de valores compartilhado por toda a comunidade. Esses valores integram o sistema jurídico, mesmo que não positivados em um texto normativo específico. Os princípios expressam os valores fundamentais do sistema, dando-lhe unidade e condicionando a atividade do intérprete. (BARROSO, Interpretação e aplicação da Constituição, 2004, p.338).

3.3.2 O princípio da proteção à confiança e sua gênese constitucional.

De tudo o quanto se expôs até o presente momento, não parece árdua a tarefa de se qualificar o princípio da proteção à confiança como um princípio constitucional. Conquanto não haja no texto constitucional menção expressa ao referido princípio, afigura-se nítida a sua vinculação direta ao princípio da segurança jurídica. Por conseguinte, afigura-se imperioso reconhecê-lo como princípio constitucional implícito.

Com efeito, firme na lição de Almiro do Couto e Silva, o princípio da proteção à confiança deve ser identificado, em linhas gerais, como uma feição subjetiva da segurança jurídica, relacionando-se à proteção à confiança das pessoas no pertinente aos atos, procedimentos e condutas do Estado, nos mais diferentes aspectos de sua atuação. (SILVA, 2005, p. 03-04).

No que toca à pesquisa ora desenvolvida, tal feição subjetiva associa-se, fundamentalmente, à possibilidade/necessidade de estabilização das relações jurídicas criadas administrativamente, tendo por escopo uma atuação estatal limitada (pelo princípio da confiança) no que diz com o exercício da autotutela administrativa.

E sendo a segurança jurídica princípio constitucional implícito (extraído, como vimos, a partir de diversos comandos normativos extraídos do próprio texto constitucional), perfazendo, inclusive, elemento constitutivo do próprio sobreprincípio do Estado de Direito (artigo 1º, CF), certa é, também, a índole constitucional do princípio da proteção à confiança. Pertinentes, nestes aspectos, as lições de Leandro Paulsen:

O princípio da segurança jurídica decorre implicitamente do sobreprincípio do Estado de Direito, tendo em conta o resguardo que este implica à esfera individual no sentido de garantir o reconhecimento de qual seja o direito válido, de proteger a liberdade, de imunizar contra a arbitrariedade e de assegurar o acesso ao Judiciário, dentre outros tantos direitos e garantias (PAULZEN, 2006, p.39).

De forma mais específica, reconhecendo a matriz constitucional do princípio da proteção à confiança, destacam-se os ensinamentos de Luís Afonso Heck:

Do Princípio do Estado de Direito mesmo deixam-se desenvolver preceitos jurídicos, como, v.g., a proibição de leis retroativas onerosas, o preceito da proporcionalidade, a solução da relação tensa entre certeza jurídica e Justiça no caso concreto e o preceito da mais completa proteção jurídica. [...] Tanto o preceito da certeza jurídica como o preceito da proteção à confiança são partes constitutivas essenciais e, portanto, elementos essenciais do Princípio do Estado de Direito. Ambos têm índole constitucional e, assim, servem de critério normativo. (HECK, apud, PAULZEN, 2006, p. 39-40).

Por fim, conclui a esse respeito, Rafael Maffini:

Com efeito, independentemente da inexistência de um preceito constitucional que expressamente o reconheça, o princípio da proteção à confiança há de ser reconhecido como um princípio constitucional. Tal conclusão se revela imperiosa até mesmo em face da dedução que vem sendo aqui defendida ("Estado de Direito/Segurança Jurídica/Proteção da Confiança"), razão pela qual não seria equivocado utilizar o próprio artigo 1º, da Constituição Federal para servir, em termos mediatos, de fundamento ao princípio em tela [...] (MAFFINI, 2006, p.77).


4 O PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO À CONFIANÇA E SUA APLICAÇÃO COMO FATOR LIMITATIVO À AUTOTUTELA ADMINISTRATIVA.

4.1 O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE APLICADO À ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA.

A atuação da Administração Pública vinculada aos estritos limites da lei (sob a égide do princípio da legalidade) é, sem dúvida, a lição mais básica e essencial do Direito Administrativo. Há de haver uma atividade administrativa norteada pelo princípio da legalidade. E, realmente, à luz de nosso ordenamento jurídico e principalmente da Constituição Federal (artigo 37, caput), não poderia ser de outra forma, haja vista que uma atuação estatal pautada na legalidade significa um agir com limites e previsibilidade, em consonância, inclusive, com a própria noção de segurança jurídica, ínsita ao Estado de Direito.

Com efeito, Celso Antônio Bandeira de Melo identifica o princípio da legalidade como o princípio essencial para a configuração do regime jurídico-administrativo, vinculado direta e especificamente ao Estado de Direito:

Este [o princípio da legalidade] é o princípio capital para a configuração do regime jurídico-administrativo [...] enquanto o princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado é da essência de qualquer Estado, de qualquer sociedade juridicamente organizada com fins políticos, o da legalidade é específico do Estado de Direito, é justamente aquele que o qualifica e que lhe dá identidade própria. Por isso mesmo é o princípio basilar do regime jurídico-administrativo, já que o Direito Administrativo (pelo menos aquilo que como tal se concebe) nasce com o Estado de Direito: é uma conseqüência dele. [...] (MELLO, 2005, p. 90-91).

No mesmo sentido argumenta José dos Santos Carvalho Filho:

O princípio da legalidade é certamente a diretriz básica da conduta dos agentes da Administração. Significa que toda e qualquer atividade administrativa deva ser autorizada por lei. Não o sendo, a atividade é ilícita. Tal postulado, consagrado após séculos de evolução política, tem por origem mais próxima a criação do Estado de Direito, ou seja, do Estado que deve respeitar as leis que edita. (CARVALHO FILHO, 2006, p.16).

Nesse passo, convém, desde logo, esclarecer que na presente pesquisa não se pretende a formular crítica em desprestígio ao princípio da legalidade administrativa (em si mesmo considerado), e nem tampouco questionar sua normatividade e gênese constitucional ou, sequer, pô-lo sob algum tipo de "suspeição"; ao revés, é incontroversa a sua relevância para o denominado Estado de Direito.

De outra forma, a questão que se revela e que se apresenta essencial ao desenvolvimento das idéias aqui defendidas é a forma de aplicação que vem sendo dada ao princípio da legalidade na Administração Pública. Mais especificamente, diz respeito à incorreta noção, por vezes enraizada em nossa cultura jurídica, segundo a qual a legalidade administrativa (e por via de conseqüência a autotutela administrativa) teria aplicação irrestrita e até mesmo "imponderável". Vale dizer que, sob tal ótica, o princípio da legalidade aplicado à administração pública representaria um princípio quase absoluto, apesar de nem a doutrina e nem a jurisprudência ousarem assim qualifica-lo.

Cumpre trazer, acerca destes aspectos, a lição de Rafael Maffini, para quem o princípio da legalidade administrativa representa um falso óbice à incidência do princípio da proteção à confiança:

[...] após o reconhecimento da legalidade administrativa enquanto valor nuclear do Direito Administrativo, seguiram-se momentos de delimitação científica, de compreensão de sua operatividade, bem como de uma hipertrofiada utilização deste princípio como valor absoluto no Direito Administrativo. Ora, não é dado olvidar que "princípio absoluto", consoante os hodiernos estudos de hermenêutica jurídica, consiste numa contradição de termos, porque se algo é princípio jurídico não pode ser considerado absoluto e, sendo absoluto, não se lhe pode reconhecer a feição de princípio. Justamente por isso [...] é que não se afigura adequado afirmar que o princípio da proteção da confiança não teria aplicabilidade no Direito Administrativo em face do princípio da legalidade. (MAFFINI, 2006, p. 64-65).

Quanto à supervalorização do princípio da legalidade no direito brasileiro, expressamente positivado no caput do artigo 37 da Constituição Federal, em detrimento do desenvolvimento de outros princípios, como o princípio da proteção à confiança, acrescenta Almiro do Couto e Silva:

No direito brasileiro, muito provavelmente em razão de ser antiga em nossa tradição jurídica a cláusula constitucional da proteção ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada – pontos eminentes nos quais se revela a segurança jurídica, no seu aspecto objetivo – não houve grande preocupação na identificação da segurança jurídica, vista pelo ângulo subjetivo da proteção à confiança, como princípio constitucional, situado no mesmo plano de importância do princípio da legalidade. (SILVA, 2005, p. 09).

É de se registrar que, se por um lado, o princípio da legalidade, de uma maneira geral, afina-se com a idéia de segurança jurídica (confere previsibilidade e limites à atuação estatal, já que pautada em regras e princípios jurídicos previamente estabelecidos), por outro, sua aplicação, irrestrita, por vezes desmedida e exacerbada, resultará, por certo, em injustiça e afronta à segurança jurídica.

Consoante já fora registrado anteriormente, há de ser considerado que, apesar de ser imprescindível a idéia de um ordenamento jurídico pautado pela legalidade, na linha do que argumenta Ingo Wolfgang Sarlet (2007, p.70), o reconhecimento de um Estado de Direito vai além da mera legalidade e da submissão do Estado à lei, representando princípio mais amplo, nos remetendo à idéia de reconhecimento dos direitos fundamentais, perfazendo verdadeiro limitador e, principalmente, legitimador da atividade estatal.

Dentro de tal contexto, considerando, sobretudo o reconhecimento (já inquestionável) acerca normatividade dos princípios, e de seu papel dentro do ordenamento jurídico, afigura-se imprescindível que, da mesma forma que não incumbe à Administração Pública agir à revelia da lei, a ela também não é permitido ignorar os comandos veiculados pelos princípios, notadamente pelos princípios constitucionais.

4.2 O PRINCÍPIO DA AUTOTUTELA ADMINISTRATIVA E SEU ÂMBITO DE APLICAÇÃO: NECESSIDADE DE RELATIVIZAÇÃO.

Interessa-nos, em especial, dois princípios de gênese, inegavelmente, constitucional: o princípio da proteção à confiança (cuja base assenta-se no princípio constitucional da segurança jurídica); e o princípio da autotutela administrativa (cuja base assenta-se, fundamentalmente, no princípio constitucional da legalidade administrativa).

Quanto ao princípio da proteção à confiança já foram formuladas, linhas atrás, as considerações necessárias à identificação de seu conteúdo jurídico e de sua gênese constitucional (feição subjetiva do princípio constitucional da segurança jurídica). Cumpre aferir, neste momento, quando de sua efetiva aplicação como um fator de limitação à autotutela administrativa; antes, contudo, faz-se necessário tecer algumas considerações acerca do princípio da autotutela administrativa.

Em linhas gerais, é possível se identificar a princípio da autotutela administrativa como sendo aquele princípio a partir do qual a Administração Pública teria o poder-dever de rever (de ofício) e anular seus próprios atos administrativos, quando houverem sido praticados com alguma ilegalidade. Funda-se, por conseguinte, no princípio constitucional da legalidade administrativa: se a Administração Pública só pode agir dentro da legalidade, é de se considerar que os atos administrativos eivados de ilegalidade devem ser revistos e anulados, sob pena de afronta ao ordenamento jurídico.

É bem verdade que a doutrina e a jurisprudência [12] identificam o princípio da autotutela administrativa também com a possibilidade de reexame de atos praticados pela própria Administração Pública no exercício de sua competência discricionária; vale dizer, reexaminando-os a partir do próprio mérito administrativo, podendo revogá-los por razões de conveniência e oportunidade.

Neste sentido, é a lição de José dos Santos Carvalho Filho:

[...] a autotutela envolve dois aspectos quanto à atuação administrativa: 1) aspectos de legalidade, em relação aos quais a Administração, de ofício, procede à revisão de atos ilegais; e 2) aspectos de mérito, em que reexamina atos anteriores quanto à conveniência e oportunidade de sua manutenção ou desfazimento. (CARVALHO FILHO, 2006, p.25, grifo nosso).

Contudo, dentro da delimitação temática ora proposta, apenas será analisado o princípio da autotutela administrativa no que toca à possibilidade de anulação, pela própria Administração Pública, de seus atos administrativos eivados de ilegalidade [13].

Dentro de tal contexto, importa considerar que, mais que um poder, o exercício da autotutela administrativa afigura-se como um dever para a Administração Pública; reitere-se, dever de rever e anular seus atos administrativos, quando ilegais. Conquanto tal poder-dever seja de índole constitucional (cuja base assenta-se, fundamentalmente, no princípio constitucional da legalidade administrativa), seu exercício não pode se dar de forma absoluta e irrestrita, porquanto a invalidação de atos administrativos não garante, por si só, a restauração da ordem jurídica. Quanto aos limites enfrentados pela Administração Pública no que diz com o poder de invalidar seus atos administrativos, assim expõe Weida Zancaner:

O princípio da legalidade, fundamento do dever de invalidar, obriga a Administração Pública a fulminar seus atos viciados não passíveis de convalidação. Só que a invalidação não pode ser efetuada sempre e indistintamente [...] Os limites do dever de invalidar surgem no próprio sistema jurídico-positivo, pois, como todos sabemos, coexistem com o princípio da legalidade outros princípios que devem ser levados em conta quando do estuda da invalidação. [...] como, por exemplo, o princípio da segurança jurídica, ou por serem protetores do comum dos cidadãos, como, por exemplo, a boa-fé, princípio que também visa protegê-los quando de suas relações com o Estado. (ZANCANER, 2001, p.60).

Nesse passo, faz-se imprescindível, no caso concreto, uma análise completa do ordenamento jurídico, a fim de se verificar a eventual incidência de algum outro princípio (como, por exemplo, o princípio da proteção à confiança), também de índole constitucional, de modo a desencadear a utilização da técnica da ponderação de interesses.

Com efeito, o exercício da técnica judicial da ponderação de interesses, a ser utilizada na resolução de casos concretos envolvendo conflitos entre princípios constitucionais não pode presumir a existência de uma ordem hierárquica de valores e bens resguardados por princípios constitucionais [14]. Tais princípios em conflito devem ceder, reciprocamente, apenas na medida suficiente e necessária para a melhor resolução do caso concreto. Tais considerações restaram bem esclarecidas por Karl Larenz, que assim lecionou ao enfrentar a temática concernente à colisão de princípios e normas mediante a ponderação de interesses:

[...] Os direitos, cujos limites não estão fiados de uma vez por todas, mas que em certa medida são abertos, móveis, e, mais precisamente, esses princípios podem, justamente por esse motivo, entrar facilmente em colisão entre si, porque a sua amplitude não está de antemão fixada. Em caso de conflito, se se quiser que a paz jurídica se restabeleça, um ou outro direito (ou um dos bens jurídicos em causa) tem que ceder até um certo ponto perante o outro ou cada um entre si. A jurisprudência dos tribunais consegue isto mediante uma ponderação dos direitos ou bens jurídicos que estão em jogo conforme o peso que ela confere ao bem respectivo na respectiva situação. Mas ponderar e sopesar é apenas uma imagem; não se trata de grandezas quantitativamente mensuráveis, mas do resultado de valorações que – nisso reside a maior dificuldade – não só devem ser orientadas a uma pauta geral, mas à situação concreta em cada caso. Que se recorra pois a uma ponderação de bens no caso concreto é na verdade, como se fez notar, precisamente conseqüência de que não existe uma ordem hierárquica de todos os bens e valores jurídicos em que possa ler-se o resultado como uma tabela.[...]. (LARENZ, 1997, p.575-576, grifo nosso).

Neste aspecto, a doutrina vem reconhecendo que, uma vez identificada a colisão entre dois valores constitucionais, caracterizada por um conflito constitucional de princípios, a solução seria possível a partir de uma técnica específica, que se baseia na análise do caso concreto de onde emergiu o conflito: a ponderação de interesses. Esta é a lição de Daniel Sarmento, um dos principais autores que tratou acerca do tema:

[...] a ponderação de interesses consiste justamente no método utilizado para a resolução destes conflitos constitucionais. Tal método caracteriza-se pela sua preocupação com a análise do caso concreto em que eclodiu o conflito, pois as variáveis fáticas presentes no problema enfrentado afiguram-se determinantes para a atribuição do ‘peso’ específico a cada princípio em confronto, sendo, por conseqüência, essenciais à definição do resultado da ponderação. A relevância conferida às dimensões fáticas do problema concreto, porém, não pode jamais implicar na desconsideração do dado normativo, que também se revela absolutamente vital para a resolução das tensões entre princípios constitucionais. Afinal, a Constituição é, antes de tudo, norma jurídica, e desprezar sua força normativa é desproteger o cidadão da sua garantia jurídica mais fundamental. (SARMENTO, 2003, p. 97-98).

Ainda sobre a ponderação de interesses, são relevantes os ensinamentos de Luís Roberto Barroso que, após identificar a ponderação como uma técnica de decisão jurídica destinada a resolução de hard cases, descreve a ponderação de interesses como um processo de três etapas (identificação das normas pertinentes, seleção dos fatos relevantes e atribuição geral de pesos, com a produção de uma conclusão):

A ponderação consiste, portanto, em uma técnica de decisão jurídica aplicável a casos difíceis, em relação aos quais a subsunção se mostrou insuficiente, especialmente quando uma situação concreta dá ensejo à aplicação de normas de mesma hierarquia que indicam soluções diferenciadas.[...] Na primeira etapa, cabe ao intérprete detectar no sistema as normas relevantes para a solução do caso, identificando eventuais conflitos entre elas. [...] Na segunda etapa, cabe examinar os fatos, as circunstâncias concretas do caso e sua interação com os elementos normativos. [...] É na terceira etapa que a ponderação irá singularizar-se, em oposição à subsunção [...] nessa fase dedicada à decisão, os diferentes grupos de normas e a repercussão dos fatos do caso concreto estarão sendo examinados de forma conjunta, de modo a apurar os pesos que devem ser atribuídos aos diversos elementos em disputa e, portanto, o grupo de normas que deve preponderar no caso. (BARROSO, Interpretação e aplicação da Constituição, 2004, p. 358-360).

De fato, no que tange, em específico, à necessidade de se conferir temperamentos à autotutela administrativa, afirma Rafael Maffini:

[...] merece relativização a idéia – de resto, retrógrada – de uma absoluta autotutela administrativa, pela qual as condutas administrativas perpetradas à revelia da ordem jurídica deveriam "sempre" invalidadas e "todos" os seus efeitos "sempre" desconstituídos. Uma noção assim irrestrita de autotutela administrativa significaria uma apriorística prevalência do postulado da legalidade, ao mesmo tempo que importaria uma direta e absoluta preterição de quaisquer outros valores não menos importantes contidos na ordem jurídica. Tal como a própria legalidade há de ser ponderada, impõe-se, pois, temperamentos à autotutela administrativa, os quais, ns mais das vezes, embasam-se no que atualmente há de se considerar como o princípio da proteção à confiança. (MAFFINI, 2006, p.126-127).

Em síntese, há de se reconhecer que o princípio da autotutela administrativa não tem aplicação irrestrita, merecendo, pois, em algumas hipóteses, ser relativizado, tendo como parâmetro limitador o princípio constitucional da proteção à confiança; em outros termos, há de haver um temperamento a ser efetivado nos casos concretos, analisando-os também sob a ótica da segurança jurídica e, por assim dizer, também da proteção à confiança legítima. É dizer que, nestes casos, a autotutela administrativa estaria limitada pelo princípio da proteção à confiança.

Nesse passo, considerando a incontestável matriz constitucional que caracteriza tanto o princípio da legalidade administrativa (e da autotutela administrativa) quanto o princípio da proteção à confiança, bem como a impossibilidade de se conceber um princípio (ainda que constitucional) como de aplicação absoluta, impõe-se reconhecer ser possível ponderá-los num caso concreto.

O reconhecimento de tal possibilidade, contudo, afigura-se apenas como um ponto de partida. Avançando, impõe-se perquirir sobre que fundamentos e em que condições haveria possibilidade de, em um caso concreto, o princípio da autotutela administrativa ceder à aplicação do princípio da proteção à confiança, de modo a ensejar a manutenção, no ordenamento jurídico, de atos administrativos reconhecidamente inválidos, sem que, com isso, se repute ter havido afronta ao princípio constitucional da legalidade. Mais especificamente, cumpre identificar sobre que fundamentos e em que condições tais atos poderiam continuar a produzir efeitos para aqueles que deles se beneficiaram.

Decerto que, sob uma ótica geral, é possível até mesmo se conceber que a regra, dentro da Administração Pública, é a observância do princípio da autotutela administrativa, em atendimento ao princípio constitucional da legalidade. Em vista disso, a configuração de uma expectativa tida por legítima por parte de algum administrado, de modo a ensejar a aplicação do princípio da confiança em seu favor, afigura-se como uma situação excepcional; há de haver uma nota de atipicidade, de excepcionalidade, a fim de que se possa vislumbrar a possibilidade de aplicação do princípio da proteção à confiança.

Nestes termos, por óbvio que não é dado ao administrador público assumir uma postura pautada na constante violação ao princípio da legalidade, notadamente fundamental ao regime jurídico-administrativo, sob o argumento de que estaria por "ponderá-lo" nos diversos casos em que se defrontasse com atos administrativos eivados de ilegalidade. Por conseguinte, há de se ter em mente que a possibilidade de se reconhecer, em alguns casos, limitação à autotutela administrativa a partir do princípio da proteção à confiança, não implica em se conferir "carta branca" ao administrador público para que discricionariamente e, até mesmo, arbitrariamente, admita a permanência de atos ilegais produzindo efeitos no ordenamento jurídico.

A problemática que se revela quando se está a confrontar o princípio da legalidade com o princípio da proteção à confiança é que, enquanto o primeiro (princípio da legalidade administrativa) não apresenta maiores complexidades em seu conteúdo essencial, estando expressamente previsto no texto constitucional (artigo 37, caput, CF) e já exaustivamente identificado e reverenciado pela doutrina e pela jurisprudência, o segundo (princípio da proteção à confiança) apresenta-se um princípio constitucional implícito, interligando-se diretamente ao princípio da segurança jurídica e, indiretamente, à noção de Estado de Direito [15].

Com efeito, não é demais relembrar que a própria noção de confiança (e segurança) nos remete ao âmbito dos conceitos indeterminados ou, ao menos, insuficientemente determinados. A esse respeito leciona Manuel A. de Castro Portugal Carneiro da Frada:

[...] a confiança não é, em Direito, um tema fácil. As dificuldades que ele coloca transcendem em muito a necessidade de delimitação do seu âmbito, já de si problemática. Não existe nenhuma definição legal de confiança a que possa socorrer-se e escasseiam-se referências normativas explícitas a propósito. O seu conceito apresenta-se fortemente indeterminado pela pluralidade ou vaguidade de empregos comuns que alberga, tornando difícil traçar com ele as fronteiras de uma investigação jurídica. [...] (FRADA, apud, MAFFINI, 2006, p.30-31).

Na medida em que se acentuam as dificuldades de identificação e aplicação do princípio da proteção à confiança, passa-se a correr o risco de se configurarem duas situações extremas, ambas indesejadas: i) aplicação irrestrita do princípio da legalidade administrativa (e, por conseguinte, da autotutela administrativa), em detrimento do princípio da proteção à confiança, por ser mais fácil e cômodo se aplicar um princípio jurídico direta e expressamente identificado no texto constitucional, além de prestigiado e reverenciado pela doutrina e jurisprudência, sob o qual não pairam maiores controvérsias; ou ii) aplicação indevida, desordenada e difusa do princípio da proteção à confiança, sem observância de requisitos mínimos que justifiquem sua aplicação.

Na primeira hipótese (aplicação irrestrita da legalidade administrativa), a nefasta conseqüência seria uma aplicação invariável da autotutela administrativa; vale dizer que atos administrativos eivados de ilegalidade jamais (ou quase nunca) poderiam ser mantidos no ordenamento jurídico, sendo irrelevante qualquer alegação acerca de segurança jurídica.

Já no que tange à segunda hipótese (aplicação indevida, desordenada e difusa do princípio da proteção à confiança), a própria utilização indiscriminada e sem parâmetros adequados leva ao enfraquecimento de sua normatividade; vale dizer, o princípio que se aplica, indistintamente, a qualquer caso, sobre ser desprovido de utilidade, na realidade não é adequado a nenhum em específico, de modo que qualquer discurso que pretenda fundamentar sua aplicação soará tautológico, repetitivo e vazio, restando por violar a própria segurança jurídica.

Dentro de tal contexto, impõe-se sistematizar requisitos objetivos e subjetivos que qualificam uma expectativa como legítima, e apta, portanto, a ensejar a aplicação do princípio da proteção à confiança (legítima) em favor do particular. Noutras palavras, só se deve admitir, a partir do princípio da proteção à confiança, que a manutenção no ordenamento jurídico de atos administrativos eivados de ilegalidade se dê em hipóteses específicas, quando satisfeitos determinados requisitos, de índole objetiva e subjetiva.

Na consecução deste objetivo (sistematização de requisitos para se aplicar o princípio da proteção à confiança), há de se identificar na jurisprudência, legislação e doutrina os principais argumentos e preceitos normativos capazes de sustentar a possibilidade de manutenção no mundo jurídico de atos administrativos inválidos, prestigiando o princípio de proteção à confiança; por fim, buscará analisar o artigo 54 da lei n º 9784/99, sob o enfoque da necessidade de estabilização das relações jurídicas criadas administrativamente.

4.3 A IDENTIFICAÇÃO E APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO À CONFIANÇA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.

Neste momento, cumpre verificar como o princípio da proteção à confiança tem sido reconhecido e aplicado pelo Supremo Tribunal Federal. A relevância de tal abordagem revela-se na medida em que o desenvolvimento do princípio da proteção à confiança, tanto aqui no Brasil, quanto no direito alienígena, sobretudo na Alemanha e França, teve suas origens nas jurisprudências dos tribunais, a partir da análise de casos concretos [16]. Tal constatação não passou despercebida por Rafael Maffini:

[...] há de se como premissa teórica, confirmada pelas experiências estrangeiras [...], que o princípio em comento teve, invariavelmente sua gênese no labor jurisprudencial, num itinerário que, a partir dos tribunais, passou pela doutrina, culminando, no mais das vezes, na positivação seja do princípio propriamente dito, seja de regras que, direta ou indiretamente, estabelecem mandamentos imediatamente comportamentais que concretizam o estado de coisas que a proteção da confiança busca alcançar. Assim, imperiosa se afigura a constatação de que o princípio da proteção da confiança pode ser considerado, também no que pertine ao Direito Administrativo brasileiro, um produto da atividade jurisprudencial [...] (MAFFINI, 2006, p.96).

Serão examinados os três principais precedentes do STF [17] que tratam especificamente do tema, onde a aplicação do princípio da proteção à confiança se prestou para a preservação de atos estatais. Tais acórdãos, considerados paradigmáticos, foram identificados na doutrina, inicialmente, por Almiro do Couto e Silva [18]:

No que diz com a jurisprudência, são ainda escassas as decisões dos tribunais que invocam o princípio da segurança jurídica para solver questões não abrangidas pela proteção ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada, tais como as concernentes à manutenção de atos inválidos quando configurada a boa fé dos destinatários na percepção das vantagens deles emanadas. Recentemente, porém, houve três decisões do Supremo Tribunal Federal [...] qualificando a segurança jurídica como princípio constitucional na posição de subprincípio do Estado de Direito, harmonizando-se, assim, por esses arestos pioneiros da nossa mais alta Corte de Justiça, linhas de entendimento já afloradas na doutrina, em geral sem grande rigor técnico, na legislação e em acórdãos de alguns tribunais, mas que passam a gozar, agora, de um valor e de uma autoridade que ainda não possuíam. (SILVA, 2005, p. 09-10).

Faz-se necessária uma advertência inicial: nem sempre o Supremo Tribunal Federal (e também os outros tribunais) refere-se expressamente ao princípio da proteção à confiança; por vezes pode vir associado às noções de segurança jurídica, Estado de Direito e boa-fé, o que por si só, não descaracteriza a aplicação do referido princípio (MAFFINI, 2006, 97).

O primeiro dos julgados diz respeito Questão de Ordem recebida como Medida Cautelar – petição nº 2.900, cujo relator foi o eminente Min. Gilmar Mendes [19].

Em síntese, essa era a questão fática envolvida: uma aluna da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pelotas foi aprovada em concurso público para assumir um emprego público na Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos; seria lotada em Porto Alegre/RS. Diante disso, considerando a incompatibilidade de assumir o emprego público referido e continuar seus estudos em Pelotas, requereu administrativamente fosse transferida de faculdade, para continuar seu curso na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Tal pedido foi indeferido; impetrou, mandado de segurança que lhe favoreceu, conseguindo garantir aquela transferência pleiteada; posteriormente o TRF da 4ª Região, em julgamento de apelação, reformou a decisão que havia concedido a segurança; em vista disso, aquela aluna interpôs recurso extraordinário, apresentando, ainda, petição requerendo fosse dado efeito suspensivo ao referido recurso.

Resultado do julgamento: foi concedido o efeito suspensivo ao recurso extraordinário interposto para fins de se preservar aquela situação anteriormente conseguida pela aluna (a decisão liminar foi confirmada por unanimidade pela 2ª Turma do STF). Fundamentou-se tal julgado com base na segurança jurídica e no princípio da proteção à confiança, considerando, ainda, que, quando do deslinde da questão jurídica, a aluna já estava em vias de se formar naquela nova faculdade (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).

É de se verificar, no julgado em comento, que a aplicação do princípio da proteção à confiança atendeu à finalidade de estabilizar aquela decisão judicial que conferia uma posição de vantagem à impetrante, na medida em que havia sido concedida a ordem para que ela pudesse continuar seu curso de Direito na UFRGS. Em outras palavras, reconheceu-se a necessidade de preservação de um ato estatal jurisdicional, fato este que, apesar de não se referir especificamente à limitação da autotutela administrativa, não desnatura a relevância da fundamentação do julgado, qual seja, necessidade de se tutelar a confiança legítima depositada pela aluna/impetrante nos atos estatais (na hipótese, ato jurisdicional). Merece nota, acerca deste julgado, o registro de Rafael Maffini:

O julgado em tela aplicou concretamente o princípio da proteção à confiança no sentido de preservação de um outro ato jurisdicional, que tinha, por seu turno, criado uma expectativa legítima em favor de sua beneficiária, a qual já se encontrava na iminência de gozar dos plenos efeitos da tutela jurisdicional pretendida. Embora se possa dizer que o fundamento intrínseco à decisão seja realmente de aplicação do princípio da proteção à confiança, a questão neste caso particular, diz respeito à estabilização à estabilização de decisões judiciais [...] É plenamente aproveitável, contudo, a tese que lhe é intrínseca [...] (MAFFINI, 2006, p.100).

Convém uma última observação quanto aos casos em que o princípio da proteção à confiança é aplicado na preservação de atos jurisdicionais. Nestas hipóteses a questão merece ser examinada com cautela, uma vez que, nem sempre um provimento liminar, dado seu caráter nitidamente precário, pode ser mantido com base no princípio da proteção à confiança [20].

Em outras palavras, é perfeitamente previsível que um provimento judicial que foi concedido mediante uma cognição sumária possa ser revogado; por óbvio também que ninguém tem direito adquirido e nem uma firme esperança (legítima) de que se eternize uma determinada situação conseguida através de um provimento liminar (ainda que satisfativa).

Em casos tais, ainda que não se possa afirmar que é impossível se aplicar o princípio da proteção à confiança, é de se considerar que, eventual necessidade de estabilização da situação jurídica criada pelo provimento liminar, deve ser sopesada com cautela, aferindo, no caso concreto, vários fatores que indiquem a necessidade de se tutelar a segurança jurídica, tais como a demora injustificada para julgamento de recurso que contra aquele provimento liminar se insurgiu, os prejuízos que seriam suportados no caso de reversibilidade da situação jurídica, considerando o decurso razoável de tempo, etc.

O segundo julgado refere-se ao Mandado de Segurança nº 24.268, rel. orig. Min. Ellen Gracie, rel. p/ o acórdão Min. Gilmar Mendes, tendo também como relator o Min. Gilmar Mendes.

Em síntese, essa era a questão fática envolvida: O Tribunal de Contas da União cancelou unilateralmente e sem contraditório o pagamento de pensão especial concedida, há dezoito anos, à beneficiária que fora adotada por seu bisavô em 1984. O Presidente do Tribunal de Contas da União sustentou a legalidade do ato impugnado, fundamentando o cancelamento do benefício na ausência de comprovação da adoção por instrumento jurídico adequado, violando os artigos 28 e 35 da Lei nº 6.679 de 1979.

Resultado do julgamento: a Relatora, Min. Ellen Gracie, afastou, inicialmente, os argumentos aduzidos pela impetrante, afirmando ser dispensável o contraditório na fase administrativa, uma vez que a questão versada nos autos seria apenas de direito. Afastou, da mesma forma, as alegações de direito adquirido e coisa julgada. Por fim, aduziu que as circunstâncias evidenciam que a adoção se deu sob simulação, ensejando percepção indevida de benefício previdenciário.

Divergindo dessa orientação, o Min. Gilmar Mendes apresentou fundamentação [21], que resultou vitoriosa, no sentido de que o ato deveria ser invalidado por ausência de contraditório e também de ampla defesa. Após ampla exposição acerca da garantia do devido processo legal, segurança jurídica e princípio da proteção à confiança, incursionando, inclusive, pelo Direito Alemão e após citar, ainda, as lições de Almiro do Couto e Silva, Miguel Reale e Karl Larenz, conclui:

Como se vê, em verdade, a segurança jurídica, como subprincípio do Estado de Direito, assume valor ímpar no sistema jurídico, cabendo-lhe papel diferenciado na realização da própria idéia de justiça material [...] É possível que, no caso em apreço, fosse até de se cogitar da aplicação do princípio da segurança jurídica, de forma integral, de modo a impedir o desfazimento do ato. Diante, porém, do pedido formulado e da causa petendi limito-me aqui a reconhecer a forte plausibilidade jurídica desse fundamento. Entendo, porém, que se há de deferir a segurança postulada para determinar a observância do princípio do contraditório e da ampla defesa na espécie (CF, art. 5º, LV). (MS 24.268-0 MG, Rel. p/Acórdão Min. Gilmar Mendes, j. 05.02.2004)

Talvez este seja o mais interessante dentre os julgados examinados, por trazer em seu bojo a discussão acerca da necessidade do contraditório para se exercer a autotutela administrativa. Com efeito, como restou reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal, a necessidade do contraditório (e da ampla defesa) também pode ser concebida como uma limitação ao exercício da autotutela administrativa, na medida em que representa uma restrição "na forma de se proceder" à invalidação de atos administrativos; antes de invalidá-los deveria viabilizar o contraditório, evitando surpresas para o beneficiário do ato e, principalmente, que a invalidação se dê de forma temerária, principalmente quando transcorrido lapso considerável de tempo.

Tamanha a relevância do julgado que se está a analisar que ele serviu de precedente para que o Supremo Tribunal Federal editasse a súmula vinculante nº 03, cujo enunciado é o seguinte:

Nos processos perante o Tribunal de Contas da União asseguram-se o contraditório e a ampla defesa quando da decisão puder resultar anulação ou revogação de ato administrativo que beneficie o interessado, excetuada a apreciação da legalidade do ato de concessão inicial de aposentadoria, reforma e pensão [22]. (súmula vinculante nº 03).

Conquanto a presente pesquisa tenha por objeto o enfrentamento do princípio da proteção à confiança em seu aspecto material (substancial), não há como negar que o referido princípio revela também uma faceta procedimental, que se materializa pela observância das garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa, quando do exercício da autotutela administrativa. Quanto a este aspecto, afirma Rafael Maffini:

[...] Evidente que o contraditório e a ampla defesa prestam-se à obtenção de um modo de proteção às expectativas depositadas em atos estatais, a qual, inclusive, aproxima-se do princípio da participação [...] Todavia, não se podem confundir ampla defesa e contraditório, que são garantias eminentemente procedimentais às expectativas legítimas, de relevante posição constitucional, com a proteção substancial da confiança, o qual, sendo também princípio constitucional, possui sentido próprio. (MAFFINI, 2006, p.101).

O Ministro Marco Aurélio, há muito, já havia reconhecido a necessidade de contraditório e ampla defesa para extinção de atos administrativos ampliativos de direitos:

[...] tratando-se da anulação de ato administrativo cuja formalização haja repercutido no campo de interesses individuais, a anulação não prescinde da observância do contraditório, ou seja, da instauração de processo administrativo que enseje a audição daqueles que terão modificada situação já alcançada. Presunção de legitimidade do ato administrativo, que não pode ser afastada unilateralmente, porque é comum à Administração e ao particular. (RE 158.543, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 30.08.1994).

A limitação à autotutela administrativa, pelo exercício do contraditório, cresce de importância quando se está diante de um elevado decurso de tempo entre o ato e sua pretendida. O precedente analisado evidencia tal situação: o benefício foi cancelado 18 anos após sua concessão! A violação à segurança jurídica, nesta hipótese, restou inquestionável, uma vez que, além das quase duas décadas da concessão do benefício, seu cancelamento ocorreu de forma unilateral, sem contraditório. Dentro de tal contexto, não é necessário grande esforço para se constatar, antes de tudo, a completa ineficiência da atividade administrativa, por ter demorado 18 anos para "perceber" o vício do ato expedido [23].

Por fim, o último julgado: Mandado de Segurança nº 22.357, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 27.05.2004.

Neste caso, alguns empregados públicos da INFRAERO teriam ingressado em seus postos de trabalho, no ano de 1991, contudo, sem prestarem concurso público; o TCU não havia se insurgido, inicialmente, quanto a tais nomeações; a matéria (necessidade de concurso público para se investir em emprego público), que inicialmente era controvertida, restou pacificada pelo STF. Diante disso, o TCU pretendeu invalidar aquelas nomeações e dispensar os referidos servidores.

Dentro de tal contexto, o Supremo Tribunal Federal, sob o fundamento da necessária observância do princípio da proteção à confiança e da segurança jurídica, reconheceu aos impetrantes a possibilidade de ver mantida suas nomeações; vale dizer, estabilizou aquela situação que já perdurava por mais de dez anos. Trata-se, como se vê, de mais uma hipótese clara de estabilização de situações jurídicas criadas administrativamente, a partir do princípio da proteção à confiança.

4.4 A CONCRETIZAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO À CONFIANÇA PELO DIREITO POSITIVO BRASILEIRO.

Cumpre deixar consignada, logo de início, uma premissa que, por si só, já fundamenta a necessidade de se buscar no ordenamento jurídico positivo instrumentos destinados a limitar, sob certos requisitos, o exercício da autotutela administrativa [24]: os atos administrativos, conquanto inválidos, produzem efeitos jurídicos na órbita dos particulares. Esta é uma realidade inquestionável, haja vista que, por vezes, a dinâmica que envolve mundo fático ignora a realidade jurídica, fenômeno essencialmente lingüístico.

E, considerando ser quase sempre inviável uma simples e "matemática" reversibilidade no tempo, não há como ignorar a alta probabilidade de que haja situações jurídicas, já sedimentadas, merecedoras de tutela jurídica, apesar de nascidas sob a égide de atos administrativos viciados. Firme neste sentido é o magistério de Weida Zancaner:

Com efeito, atos inválidos geram conseqüências jurídicas, pois se não gerassem não haveria qualquer razão para nos preocuparmos com eles. Com base em tais atos certas situações terão sido instauradas e na dinâmica da realidade podem converter-se em situações merecedoras de proteção, seja porque encontrarão em seu apoio alguma regra específica, seja porque estarão abrigadas por algum princípio de Direito. Estes fatos posteriores à constituição da relação inválida, aliados ao tempo, podem transformar o contexto em que esta se originou, de modo a que fique vedado à Administração Pública o exercício do dever de invalidar, pois fazê-lo causaria ainda maiores agravos ao Direito, por afrontar à segurança jurídica e à boa-fé. (ZANCANER, 2001, p.61-62).

Conquanto o princípio da proteção à confiança se encontre ainda em fase inicial de desenvolvimento, já é possível se identificar alguns dispositivos legais onde se prestigiou direta ou indiretamente o princípio da segurança jurídica e, mais especificamente, o princípio da proteção à confiança.

Inicialmente, cumpre destacar que a questão da segurança jurídica ganhou em amplitude com a edição das Leis nº 9868/99 e nº 9882/99, as quais, ao regulamentaram, respectivamente, o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade, da ação declaratória de constitucionalidade e da argüição de descumprimento de preceito fundamental, todas perante o Supremo Tribunal Federal, reconheceram o valor constitucional da segurança jurídica, possibilitando a sua utilização como parâmetro para que o STF decida acerca da flexibilização dos efeitos das decisões proferidas em sede de controle abstrato de constitucionalidade.

Com efeito, o artigo 27 da Lei nº 9.868/99 [25] (e também o artigo 11 da Lei nº 9.882/99, que traz redação semelhante, só que aplicada à Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental) reconheceu expressamente a possibilidade de o STF, ao julgar uma ADIN ou uma ADPF, mediante quorum qualificado, efetivar a ponderação do princípio do dogma da nulidade da lei declarada inconstitucional com algum princípio protegido pela norma constitucional violada, tendo por parâmetro razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social.

Sem embargo da premissa teórica tradicionalmente reconhecida no Brasil, segundo a qual a questão da inconstitucionalidade se situa no plano da validade, havendo de ser, por conseguinte, nula (e não simplesmente anulável) uma lei inconstitucional [26], o fato é que o referido dispositivo legal passou a permitir expressamente que o STF, a partir daqueles parâmetros (segurança jurídica e excepcional interesse social) restrinja os efeitos os efeitos temporais da declaração de inconstitucionalidade. Vale dizer, mesmo sendo a lei inconstitucional, sobreleva a necessidade, em algumas hipóteses, da manutenção de seus efeitos; em outras palavras, permitiu-se a flexibilização da idéia a partir da qual uma lei inconstitucional não produz nenhum efeito (o dogma da nulidade da lei inconstitucional).

É bem verdade que, mesmo sem retirar a importância da positivação levada a cabo pelos artigos 27 e 11 dos referidos diplomas legislativos, é de se considerar que o próprio Supremo Tribunal Federal já vinha atenuando (antes de 1999), em algumas hipóteses, os efeitos retroativos da lei declarada inconstitucional. Neste sentido observou Luís Roberto Barroso:

[...] a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal atenuou, em diversos precedentes, a posição radical da teoria da nulidade, admitindo hipóteses em que a decisão não deveria produzir efeitos retroativos. Assim se passou, por exemplo, no caso de magistrados que haviam recebido, de boa-fé, vantagem pecuniária declarada inconstitucional: a remuneração foi interrompida, mas não foram eles obrigados a devolvê-la. Ou no da penhora realizada por oficial de justiça cuja lei de investidura foi considerada inconstitucional, sem que o ato praticado na condição de funcionário de fato fosse invalidado [...].(BARROSO, O controle de constitucionalidade no direito brasileiro, 2004, p.160).

A possibilidade de se atenuar os efeitos retroativos que advêm, em regra, da declaração de inconstitucionalidade, e que fora inserida em nosso ordenamento jurídico a partir dos diplomas legislativos acima referidos, foi defendida também por Zeno Veloso, o qual menciona expressamente a necessidade da manutenção dos efeitos de relações jurídicas consumadas com base na boa-fé e na confiança:

Conferir, sem restrições e atenuações, eficácia ex tunc à declaração de inconstitucionalidade, retroagindo a sentença ab initio, determinando-se a nulidade da lei desde o seu nascimento e, portanto, considerando írritos e sem eficácia todos os atos praticados sob a égide da norma invalidada, podem causar, em muitas situações, verdadeiro caos, uma comoção nacional. Imagine-se o que representa desconstituir "como se não tivessem existido", inúmeras relações jurídicas, de toda ordem, criadas, desenvolvidas e consumadas com base na boa-fé, na confiança, amparadas em uma lei, devidamente promulgada, publicada e em pleno vigor, que gozava de presunção de legitimidade, porque depois (geralmente, muito tempo depois) o Judiciário veio a declarar aquilo que não era uma lei [...]. (VELOZO, 2003, p.191-192).

De tudo quanto o exposto, é de se concluir que, se mesmo diante de uma inconstitucionalidade (nível mais grave de invalidade) afigura-se possível que sejam preservados os efeitos de algumas relações jurídicas nascidas sob a égide da lei posteriormente reconhecida inconstitucional, com maior razão impõe-se reconhecer que um ato administrativo, ainda que eivado de ilegalidade, possa, em determinadas hipóteses, ter preservados seus efeitos, em atendimento à necessidade da estabilização das relações jurídicas criadas administrativamente. Em ambos os casos, o fundamento imediato deve ser a observância da segurança jurídica e a proteção à confiança.

Outro dispositivo diretamente relacionado à confiança do particular nos atos emanados da Administração Pública, é o artigo 59, parágrafo único da Lei 8.666/93 (Lei Geral de Licitações), que assim dispõe:

Art. 59. A declaração de nulidade do contrato administrativo opera retroativamente impedindo os efeitos jurídicos que ele, ordinariamente, deveria produzir, além de desconstituir os já produzidos.

Parágrafo único: a nulidade [do contrato administrativo] não exonera a Administração do dever de indenizar o contratado pelo que este houver executado até a data em que ela for declarada e por outros prejuízos regularmente comprovados, contanto que não lhe seja imputável, promovendo-se a responsabilidade de quem lhe deu causa.

Num primeiro momento, é possível se identificar, desde logo, o elemento subjetivo que, invariavelmente, apresenta-se como requisito necessário à aplicação do princípio da proteção à confiança: a boa-fé do particular; vale dizer que, o particular não deveria conhecer o vício e nem ter concorrido para o seu nascimento.

Com efeito, tal dispositivo, ao que se vislumbra, alude a uma conseqüência patrimonial que não deve ser suportada por aquele que contrata com a Administração Pública, incumbindo ao Poder Público o dever de indenizar, justamente em razão das expectativas legitimas (de boa-fé) nutridas pelo particular, no sentido de que estava a agir dentro da legalidade, realizando, como era de se esperar, os dispêndios necessários para a execução do contrato administrativo.

Conquanto não esteja expresso, trata-se da proteção à confiança em seu aspecto compensatório que também compõe o conteúdo jurídico do princípio da proteção à confiança. Pertinente, neste aspecto, relembrar os ensinamentos de Rafael Maffini (já explorados no capítulo 3 desta pesquisa), para quem o princípio da proteção à confiança pode ser compreendido sob três perspectivas:

[...] a) de um lado, tem-se a proteção procedimental da confiança ou das expectativas legítimas, consubstanciada na necessidade de uma atividade administrativa processualizada, em que se assegure a participação dos destinatários da função administrativa; b) de outro lado, tem-se a proteção compensatória da confiança, compreendida como o dever do Estado de ressarcir os prejuízos decorrentes da frustração de expectativas nele legitimamente depositadas pelos cidadãos; c) por fim, destaca-se a proteção substancial ou material da confiança, cujo significado pode ser sumarizado como sendo um conjunto de normas jurídicas que visa à manutenção e à estabilização das relações jurídicas emergentes da ação administrativa do Estado, em face de expectativas que, por razões especiais, apresentam-se legítimas e, assim, dignas de proteção. (MAFFINI, 2006, p.32, grifo nosso).

Marçal Justen Filho empreendeu estudo aprofundado acerca do referido dispositivo legal, evidenciando a necessidade de boa-fé do particular contratado a fim de que seja indenizado pelo Estado, no caso de nulidade do contrato administrativo:

Outro ângulo da questão relaciona-se com a situação subjetiva do particular que participou da contratação inválida com a Administração. Afigura-se irrebatível que a indenização em favo do particular, cujo patrimônio seja afetado por atuação indevida da Administração Pública, depende de sua boa-fé. A relevância jurídica da situação subjetiva do particular relaciona-se com dois fundamentos jurídicos pelos quais se impõe o dever de a Administração indenizar o particular. A invalidade do contrato conduz ao dever de indenizar o particular, tendo em vista dois fundamentos. Um deles é o ato ilícito e o outro é o enriquecimento sem causa. Sob ambos os prismas, dá-se relevância à situação subjetiva do particular, na medida em que sua participação na consumação do resultado danoso pode afetar a extensão de sues direitos. [...] a boa-fé do terceiro caracteriza-se quando não concorreu, por sua conduta, para a concretização do vício ou quando não teve conhecimento (nem tinha como conhecer) sua existência. [...]. (JUSTEN FILHO, 2005, p.519-520).

Quanto ao referido dispositivo, que veicula inegável proteção à expectativa do contratado face à Administração Pública contratante, relevantes são as considerações de Rafael Maffini:

Esse dispositivo, ao contrariar a antiga parêmia de que o que é nulo não tem aptidão para a produção de efeitos – de resto, já de há muito mitigada -, produz um estado de coisas pelo qual o contratado terá protegida a sua expectativa, mesmo que parcialmente, em face da aparência de validade do vínculo contratual, bem como o fato de que não contribuiu para a patologia de um contrato administrativo cujo vício restou reconhecido ulteriormente à sua celebração e ao início de sua execução. Trata-se, por certo, de um primado decorrente da própria vedação ao enriquecimento sem causa [...] Entretanto, além de sê-lo, subjaz, inegavelmente a índole normativa de proteção ao que se expectou legitimamente da Administração Pública (MAFINNI, 2006, p. 120).

Continuando a examinar o ordenamento jurídico posto, é possível se extrair, ainda, um outro dispositivo legal, por vezes esquecido e pouco explorado doutrinariamente, mas que, indubitavelmente, evidencia forma de se concretizar a proteção à confiança do particular nos atos emanados do Poder Público. Trata-se do artigo 100, incisos I a IV e, especialmente, o parágrafo único da Lei nº 5.172/66 (Código Tributário Nacional):

Art. 100. São normas complementares das leis, dos tratados e das convenções internacionais e dos decretos:

I – os atos normativos expedidos pelas autoridades administrativas;

II – as decisões dos órgãos singulares ou coletivos de jurisdição administrativa, a que a lei atribua força normativa;

III – as práticas reiteradas observadas pelas autoridades administrativas;

IV - os convênios que entre si celebrem a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.

Parágrafo único. A observância das normas referidas neste artigo exclui a imposição de penalidades, a cobrança de juros de mora e a atualização do valor monetário da base de cálculo do tributo.

É de se verificar, a partir da própria literalidade do referido dispositivo, que o legislador infraconstitucional, prestigiou, já naquela época (1966), a boa-fé do contribuinte, presumindo-a para efeito excluir a imposição de penalidades, juros de mora e correção monetária, nos casos em que tiver pautado sua conduta segundo as próprias diretrizes emanadas das autoridades administrativas; vale dizer, há de ter em conta a boa-fé do contribuinte quando este agir em observância às denominadas "normas complementares", dispostas nos quatro incisos (acima transcritos) do artigo 100 do Código Tributário Nacional.

Ainda na seara tributária, Luis Roberto Barroso destaca a norma prevista no artigo 178 do Código Tributário Nacional [27], que aduz à impossibilidade de produção de efeitos de norma revogadora de isenção, quando esta tiver sido concedida por prazo certo e em função de determinadas condições; vale dizer, no caso de isenções condicionadas e temporárias, não pode o legislador, injustificadamente, em prestígio à boa-fé do particular, frustrar-lhe a expectativa se já tiver dado início à implementação, por certo dispendiosa, daquelas condições estipuladas para fazer jus ao favor legal [28]. Com efeito:

[...] a jurisprudência consolidou o entendimento de que os benefícios fiscais, se concedidos como incentivo à execução de determinado projeto, não podem ser interrompidos na pendência do desenvolvimento do projeto, em homenagem à boa-fé do particular. (BARROSO, Revista de Direito do Estado, 2006, p.280-281).

A este respeito, esclarecedoras são as palavras de Luciano Amaro:

Certas isenções são reconhecidas pela lei com o objetivo de estimular a execução de empreendimentos ou atividades de interesse público, e geralmente essas isenções costumam ter determinado prazo de duração. São, pois, isenções temporárias (o que não impede sua eventual prorrogação). Por exemplo, confere-se isenção do imposto "X", durante dez anos, às empresas que se instalarem em certa região para fabricar determinado produto. É evidente que, instalando-se nessa região uma empresa que atenda às condições para enquadrar-se na norma de isenção, não pode o legislador frustrar o direito da empresa à isenção, cassando-a antes do prazo assinalado. (AMARO, 2006, p.287-288).

Por fim, cumpre examinar o dispositivo legal que, apesar de não ser o único e nem o último a prestigiar a segurança jurídica, ao que tudo indica, representa a principal manifestação do legislador infraconstitucional no sentido de concretizar o princípio da proteção à confiança dos particulares nos atos estatais; afigura-se, em essência, a manifestação legislativa mais evidente de limitação à autotutela administrativa. Trata-se do artigo 54 da Lei nº 9.784/99, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal. Tal dispositivo, por sua relevância e peculiaridades, merece análise em um capítulo em separado.


5 O ARTIGO 54 DA LEI nº 9.784/99 E A CONCRETIZAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO À CONFIANÇA: SISTEMATIZAÇÃO DOS REQUISITOS NECESSÁRIOS À SUA APLICAÇÃO.

A Lei nº 9.784/99, logo de início, estatui no caput de seu artigo 2º que a Administração Pública atenderá, dentre outros, ao princípio da segurança jurídica; impõe, ainda, que os processos administrativos no âmbito federal deverão observar critérios de "[...] IV - atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé". (artigo 2º, inciso IV).

Após tais cláusulas gerais concernentes à segurança jurídica, previu expressamente o princípio da autotutela administrativa em seu artigo 53 para, logo depois, limitá-lo, em seu artigo 54. Interessa-nos, em especial, o caput do referido dispositivo, que assim dispõe:

Art. 54. O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em 5 (cinco) anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé.

§ 1º (omissis);

§ 2º (omissis).

Numa primeira aproximação, é possível se perceber, a partir do referido dispositivo legal, que à Administração Pública não se faculta mais ignorar os efeitos do tempo quando se queira rever e anular seus os atos administrativos; em outros termos, não há um dever atemporal de se invalidar atos administrativos [29]; ao revés, há (para a Administração Pública) um poder-dever limitado temporalmente para anular seus atos administrativos eivados de ilegalidade.

Com efeito, ao se estipular um prazo máximo decadencial [30] de cinco anos para que a Administração Pública exerça a prerrogativa da autotutela administrativa, cuidou o legislador de flexibilizar a tradicional lição administrativista, entre nós corriqueiramente reverenciada, segundo a qual um ato ilegal não pode produzir nenhum efeito, devendo sempre ser anulado com efeitos retroativos (ex tunc); o entendimento há muito dominante é no sentido de que, sendo a legalidade um princípio fundamental ao regime jurídico-administrativo e norteador da atividade administrativa, seria, por conseguinte, um princípio absoluto.

Ocorre que, tal noção absoluta acerca do princípio da legalidade (e de resto com relação aos demais princípios constitucionais) revela-se, no mínimo inadequada. Com efeito, sobre não haver princípios absolutos em nosso ordenamento jurídico, o princípio da legalidade, em específico, há de ser interpretado em consonância com todo o ordenamento jurídico, não representando tal princípio um fim em si mesmo, revelando-se insuficiente para a consecução da segurança jurídica uma legalidade meramente formal.

Dentro de tal contexto, impõe-se reconhecer que o puro e simples atendimento à legalidade em qualquer hipótese, de forma até mesmo "mecanizada", não garante, por si só, a não vulneração ao ordenamento jurídico. Dentro desta ordem de idéias, adverte Rafael Maffini:

[...] a legalidade não pode mais ser considerada como um fim em si mesmo, porquanto se apresenta dotada de uma índole eminentemente instrumental, justamente orientada à consecução da segurança jurídica e, em termos mediatos, do próprio Estado de Direito. [...] a legalidade não existe para a própria legalidade, mas para a obtenção de um estado de coisas que enseje segurança jurídica e, assim, conforme o Estado de Direito. (MAFFINI, 2006, p.132)

Estas advertências iniciais revelam-se necessárias para espancar qualquer dúvida acerca da legitimidade (ou mesmo constitucionalidade) do lapso máximo de tempo que passou a ser admitido para o exercício da autotutela administrativa. Longe de desprestigiar ou violar o princípio da legalidade administrativa, o dispositivo legal cuidou de concretizar, em nível infraconstitucional, o princípio da proteção à confiança, fornecendo balizas, objetiva e subjetiva, facilitadoras para sua aplicação.

É de se perceber que o legislador infraconstitucional efetivou uma ponderação em abstrato entre o princípio da proteção à confiança e o princípio da legalidade administrativa, elegendo três requisitos a partir dos quais, se cumulativamente considerados, restaria fulminada a prerrogativa da Administração Pública no que concerne ao seu direito potestativo à invalidação de seus próprios atos administrativos, quando eivados de ilegalidade. São eles: (i) o decurso do lapso temporal de cinco anos; (ii) a configuração da boa-fé do destinatário do ato administrativo reputado viciado; e (iii) o ato administrativo que se pretende invalidar tem que ter produzido efeitos benéficos aos seus destinatários.

Vale dizer que, uma vez ocorridas estas três situações, acima mencionadas, reputar-se-ão configurados os requisitos (de natureza objetiva e subjetiva) suficientes e necessários para que a Administração Pública não mais possa exercer sua prerrogativa anulatória; prevalecerá, por conseguinte, o princípio da proteção à confiança, restando efetivamente limitada a autotutela administrativa. Analisemos cada um destes requisitos.

5.1 REQUISITO LEGAL LIMITATIVO AO EXERCÍCIO DA AUTOTUTELA ADMINISTRATIVA: O DECURSO DO LAPSO TEMPORAL DE CINCO ANOS.

Já se afirmou que não é de qualquer expectativa que se está a tratar quando se pretende analisar a possibilidade de preservação de atos administrativos inválidos. Há de haver uma expectativa legítima que, por conseguinte, qualifique também de legítima a confiança do particular nos atos estatais, a fim de se alcançar uma estabilização das relações jurídicas criadas administrativamente.

Deve-se compreender tal expectativa legítima, contrapondo-a àquela geralmente pejorativamente intitulada de "mera expectativa". Acresça-se a isso o conceito formal de direito adquirido, notoriamente reconhecido como aquele direito definitivamente incorporado ao patrimônio de seu titular. Dentro desta ordem de idéias, frequentemente tem prevalecido o seguinte: ou se reconhece estar configurado o direito adquirido por parte de um particular, merecedor de tutela jurídica, ou haveria apenas "mera expectativa" de direito, nada havendo de ser devido ao seu titular.

Nesse passo, a expectativa tida por legítima merecedora de proteção jurídica afigura-se como um meio-termo entre aquilo que seria reconhecido apenas como uma "mera expectativa", donde não se extraem direitos, e o direito adquirido, formalmente considerado. Vale dizer, conquanto não se esteja diante de uma hipótese de direito adquirido, também não se trata apenas de "mera expectativa".

Trata-se de uma expectativa que, por se qualificar legítima e ser merecedora de tutela jurídica, deve preencher determinados requisitos, de modo a viabilizar a produção dos efeitos jurídicos aqui pretendidos, a partir da limitação à autotutela administrativa. Neste percurso de construção de sentido, é inevitável, dentre outras coisas, que esteja configurado um decurso razoável de tempo, relacionado, inclusive, por Luís Roberto Barroso dentre os três parâmetros que considera de maior relevância para se conferir maior densidade jurídica à noção de expectativa legítima merecedora de proteção jurídica:

[...] Em primeiro lugar, será juridicamente legítima, e merecerá proteção, a expectativa que decorra de um comportamento objetivo do poder Público, isto é, que não seja apenas uma esperança inconseqüente sem vínculo com os elementos reais e objetivos da atuação estatal. Um discurso do Chefe do Executivo não gera, por si só, uma expectativa legítima, mas um decreto poderá justificá-la. Em segundo lugar, a expectativa será digna de proteção se a conduta estatal que a gerou perdurou razoavelmente no tempo, de modo a ser descrita como consistente e transmitir a idéia de certa estabilidade, levando o particular a praticar atos fiado na conduta estatal. Por fim, em terceiro lugar, será relevante saber, para a avaliação da legitimidade da expectativa, se o particular podia ou não razoavelmente prever o risco de futura modificação do ato do Poder Público. [...]. (BARROSO, Revista de Direito do Estado, 2006, p.278-279, grifo nosso).

Impõe-se concluir, portanto, que a configuração da expectativa legítima, necessária à aplicação do princípio da confiança (legítima) em limitação à autotutela administrativa, não prescinde de uma duração razoável de tempo. Com efeito, um lapso temporal razoável entre o início de produção de efeitos do ato administrativo e sua revisão e invalidação (através do exercício da autotutela administrativa) é fator essencial para que possa ser incutido um sentimento justificável de estabilidade no destinatário da função administrativa.

Em vista disso, por um raciocínio inverso, é óbvio que ninguém poderia alegar que nutria uma expectativa legítima de inalterabilidade de uma situação estatal que lhe era benéfica se o ato tido por ilegal for rapidamente revisto e anulado pela Administração Pública.

Nestes termos, o prazo decadencial qüinqüenal fixado pelo artigo 54 da Lei nº 9.784/99 afigura-se como um primeiro critério objetivo razoável para limitar a possibilidade de exercício da autotutela administrativa punindo a inércia demasiada da Administração Pública e evitando que se eternize sua prerrogativa anulatória de atos administrativos, o que, por certo, violaria o princípio da segurança jurídica. Rafael Maffini resume a importância da fixação de um lapso temporal máximo como um requisito para a implementação do prazo decadencial:

O prazo de cinco anos serve, portanto, como uma espécie de marco divisor da concessão de efeitos jurídicos à inércia da Administração Pública quanto ao dever de invalidação dos seus atos administrativos viciados. Por certo, o que se pretende é que a Administração Pública invalide seus próprios atos administrativos quando constatar a invalidade que os qualificada [sic]. Isso consiste num primado, inclusive, de aprimoramento da atividade administrativa, bem assim da legalidade objetiva, já referida. O que não se pode admitir é que tal prerrogativa anulatória se perpetue, porque, deixando-se de fixar prazo para o exercício de tal prerrogativa invalidatória, propícias seriam situações de flagrante insegurança jurídica, ocasionadas em nome de uma proteção – cega e desmedida – à legalidade, esquecendo-se, assim, que a própria legalidade é um instrumento de consecução de segurança jurídica (MAFFINI, 2006, p.155).

Dentre tal contexto, é digna de nota a interessante a consideração de Weida Zancaner, quanto à importância da fixação de um prazo decadencial no âmbito do Direito Público:

Se, em razão do exposto, podemos concluir que no Direito Privado a prescrição basta para garantir a segurança jurídica, o mesmo não se dá no Direito Público, pois o princípio da segurança jurídica só fica resguardado através do instituto da decadência, em se tratando de atos inconvalidáveis, devido ao fato de a Administração Pública não precisar valer-se de ação, ao contrário do que se passa com os particulares, para exercitar o seu poder de invalidar. [...] Tanto é exata tal assertiva que não se concebe a possibilidade de interrupção ou suspensão do prazo para a Administração invalidar, característica essa da decadência, em oposição à prescrição. (ZANCANER, 2001, p.77).

Almiro do Couto e Silva (2005, p.40) argumenta, outrossim, ser razoável a estipulação de um prazo decadencial de cinco anos, na medida em que o referido prazo afina-se com outros vários prazos decadenciais e prescricionais previstos em nosso ordenamento jurídico, tais como o prazo de cinco anos para a propositura da ação popular, previsto no artigo 21 da Lei nº 4.717/65 (Lei da Ação Popular), o prazo de cinco anos para a propositura da ação de improbidade administrativa, previsto no artigo 23 da Lei nº 8.429/92, e também os prazos prescricionais e decadenciais de cinco anos previstos nos artigos 168, 173 e 174 do Código Tributário Nacional.

5.2 REQUISITO LEGAL LIMITATIVO AO EXERCÍCIO DA AUTOTUTELA ADMINISTRATIVA: A CONFIGURAÇÃO DA BOA-FÉ DO DESTINATÁRIO DO ATO ADMINISTRATIVO REPUTADO VICIADO.

Apenas o transcurso do prazo decadencial de cinco anos não basta, por si só, para que a Administração Pública fique alijada de seu poder-dever de exercer a autotutela administrativa, revendo e anulando seus próprios atos eivados de vício. Há de estar configurada também a boa-fé do destinatário (ou dos destinatários) do ato administrativo que se pretende invalidar, perfazendo, portanto, requisito subjetivo para que se possa aplicar o princípio da proteção à confiança em limitação à autotutela administrativa.

A análise acerca da boa-fé, por se tratar de temática sobremaneira evoluída na seara do direito privado, poderia nos remeter a um aprofundamento demasiado e até mesmo desnecessário para os fins limitados a que se destina a presente pesquisa. Importa aqui se perquirir, da forma mais objetiva e direta possível, qual o alcance que deve ser dado à boa-fé de modo que possibilite a aplicação do princípio da proteção à confiança, no particular sentido de preservação de atos administrativos, ainda que considerados inválidos pela Administração Pública.

Um primeiro delineamento que se revela a partir do dispositivo legal em apreço nos permite concluir que a boa-fé que se está a analisar é aquela do particular, destinatário do ato administrativo, sendo irrelevante, por conseguinte, a boa-fé (ou má-fé) do administrador público. Isto se deve ao fato de ser ele (o particular destinatário do ato) o beneficiário da aplicação do princípio da proteção à confiança, sendo de todo incoerente se imaginar que a eventual má-fé da Administração Pública possa influir desfavoravelmente na esfera jurídica do particular, impedindo a aplicação do princípio da proteção à confiança em seu favor. Em suma, interessa a boa-fé (ou má-fé) do particular destinatário do ato, sendo irrelevante, para fins de limitação à autotutela administrativa, se perquirir quanto a ocorrência deste aspecto subjetivo no âmbito da Administração Pública.

Quanto à boa-fé [31], impõe-se, desde logo, deixar consignada a cristalina definição de Celso Antônio Bandeira de Mello:

O que é, pois, agir de boa fé? É agir sem malícia, sem intenção de fraudar a outrem. É atuar na suposição de que a conduta tomada é correta, é permitida ou devida nas circunstâncias em que ocorre. É, então, o oposto da atuação de má fé, a qual se caracteriza como o comportamento consciente e deliberado produzido com o intento de captar uma vantagem indevida (que pode ser ou não ilícita) ou de causar a alguém um detrimento, um gravame, um prejuízo, injustos. (MELLO, Revista de Direito Administrativa, 1997, p.34).

Concordamos, contudo, com o posicionamento de Marçal Justen Filho que, mesmo sem aludir especificamente ao dispositivo legal ora em comento, restringe um pouco mais a noção de boa-fé, excluindo de seu conceito aquelas hipóteses em que o particular tinha conhecimento (ou tinha condições de tê-lo no caso concreto):

[...] a boa-fé do terceiro caracteriza-se quando não concorreu, por sua conduta, para a concretização do vício ou quando não teve conhecimento (nem tinha condições de conhecer) sua existência. O particular tem o dever de manifestar-se acerca da prática de irregularidade. Verificado o defeito, ainda que para ele não tenha concorrido, o particular deve manifestar-se. Se não o fizer, atuará culposamente. Não poderá invocar boa-fé [...] a exigência de boa-fé traduz-se na reprovação à conduta de fraude consciente à exigência legal, de modo a configurar a busca preordenada do resultado sabidamente ilegal [...] (JUSTEN FILHO, 2005, p.520-521).

Cumpre, no entanto, deixar claro que não é qualquer omissão do particular que caracteriza uma má-fé; não há de se exigir que o particular, incondicionalmente, tenha conhecimento de todas as atividades e possíveis erros e nulidades que possam ser cometidos pela Administração Pública; de outra forma, a omissão caracterizadora da má-fé é aquela preordenada à obtenção de um resultado; uma ciência inequívoca seguida de uma omissão dolosa. É necessário que se afira no caso concreto a real possibilidade do particular ter tido conhecimento do vício que lhe beneficiava, silenciando dolosamente quando não deveria, por contar com a eventual negligência que, por vezes, pode pairar sobre a Administração Pública.

Apenas a título de exemplificação, é evidente a impossibilidade de se defender a boa-fé de um candidato que, ao prestar concurso público para ingressar nos quadros da Administração Pública, ignora cláusula expressamente prevista no edital do certame, que lhe impedia de tomar posse no cargo pretendido em razão de não atender a algum dos requisitos para investidura.

Com efeito, caso a invalidação posterior de seu ato de investidura paute-se na ausência do cumprimento de requisito previsto no edital [32], não há que se falar em boa-fé, haja vista que, diante de tal caso concreto, é possível presumir que o candidato tinha conhecimento do edital ou, ao menos, tinha plena condição de conhecê-lo, tratando-se de dever daquele que pretende prestar concurso inteirar-se do edital que, como se sabe, é a "lei interna do certame". Enfim, se o particular é nomeado, toma posse e entra em exercício, mesmo não preenchendo os requisitos para tanto, é se de concluir que não estava de boa-fé, apesar de não ter havido efetivamente um ato comissivo fraudulento.

Em sentido contrário, Almiro do Couto e Silva, ancorado na experiência alienígena do direito francês, argumenta haver dificuldade de ordem pragmática em se identificar quem teve ciência ou não do vício; por tal razão, dada a complexidade que tal aferição comportaria, não seria conveniente atribuir relevância ao conhecimento ou desconhecimento da ilegalidade por parte do particular, para fins de se configurar a existência de uma boa-fé. Assim, referido autor leciona:

Questão complexa é a que diz com o conhecimento da ilegalidade do ato administrativo pelo destinatário, ou seu desconhecimento [...] é muito comum que os atos administrativos contemplem um grande número de beneficiários, como frequentemente ocorre, por exemplo, nas relações com servidores públicos. Os destinatários, nesses casos, têm, de regra, níveis diferenciados de conhecimento e de informação. Assim, conquanto alguns pudessem ter dúvidas quanto à legalidade das medidas que os favoreciam, outros estariam convencidos de que as medidas seriam legítimas, tornando-se muito difícil, se não impossível, determinar quem teria conhecimento da ilegalidade e quem não teria; [...] Como se percebe, análises dessa espécie dariam margem a juízos altamente subjetivos e a tratamentos desiguais, baseados nesses mesmos juízos, o que facilmente poderia escorregar para a arbitrariedade [...] tais perquirições sobre o conhecimento da ilegalidade são também desconhecidas no direito francês, onde a investigação da boa-fé do destinatário, para efeito de aplicação ou não do prazo decadencial de sessenta dias, se esgota na apuração da existência de manobras fraudulentas do interessado na obtenção do ato administrativo que o beneficiou. (SILVA, 2005, p. 38-39).

Em síntese, é possível se dizer que, de uma forma geral, age de boa-fé [33] aquele que não contribui para que o ato se torne viciado, seja com fraude, seja até mesmo com uma omissão preordenada a iludir o Poder Público. Por fim, ainda quanto à boa-fé, resta tecer algumas considerações acerca da presunção de legitimidade dos atos administrativos.

5.2.1 A presunção de legitimidade dos atos administrativos como fator favorável à configuração da boa-fé.

A presunção de legitimidade, ao lado da imperatividade e da auto-executoriedade, formam os três atributos dos atos administrativos, amplamente reconhecidos pela doutrina. Interessa-nos, em específico, a presunção de legitimidade, que, de assim é conceituada por Celso Antônio Bandeira de Mello:

Presunção de legitimidade – é a qualidade, que reveste tais atos, de se presumirem verdadeiros e conformes ao Direito, até prova em contrário. Isto é: milita em favor deles uma presunção juris tantum de legitimidade; salvo expressa disposição legal, dita presunção só existe até serem questionados em juízo [...] (MELLO, 2004, p.387)

Os fundamentos do referido atributo são assim resumidos por José dos Santos Carvalho Filho:

Vários são os fundamentos dados a essa característica [presunção de legitimidade]. O fundamento precípuo, no entanto, reside na circunstância de que se cuida de atos emanados de agentes detentores de parcela do Poder Público, imbuídos, como é natural, do objetivo de alcançar o interesse público que lhes compete proteger. Desse modo, inconcebível seria admitir que não tivessem a aura de legitimidade, permitindo-se que a todo momento sofressem algum entrave oposto por pessoas de interesses contrários. Por esse motivo é que se há de supor que presumivelmente estão em conformidade com a lei. É certo que não se trata de presunção absoluta e intocável. [...]. (CARVALHO FILHO, 2006, p.106).

Dentro deste contexto, é correto afirmar que a presunção de legitimidade dos atos administrativos atende, antes de tudo, a uma função de ordem pragmática: a vasta função administrativa não seria de forma alguma bem exercida se a cada ato administrativo exarado houvesse a possibilidade de insurgência indevida e temerária por parte do particular destinatário do ato, obstando-o. Ademais, afigura-se perfeitamente conciliável tal presunção com o Estado de Direito, dentro do qual parece razoável se presumir que a atuação Estatal se dê em consonância com o ordenamento jurídico, ou seja, que os agentes públicos atuem dentro da legalidade.

Em vista de tais considerações, impõe-se reconhecer que a presunção de legitimidade dos atos administrativos é elemento adicional a incutir no particular a convicção de legitimidade (legalidade) do ato que lhe atinge. Representa verdadeira "base de confiança" a ensejar confiança na regularidade dos atos administrativos (MAFFINI, 2006, p.142-144).

A importância da boa-fé para o Direito Administrativo e sua correlação com a presunção de legitimidade não passou despercebida por Weida Zancaner:

Por sua vez, o princípio da boa-fé assume importância capital no Direito Administrativo, em razão da presunção da legitimidade dos atos administrativos, presunção esta que só cessa quando esses atos são contestados, o que coloca a Administração Pública em posição sobranceira com relação aos administrados. Ademais, a multiplicidade das áreas de intervenção do Estado moderno na vida dos cidadãos e a tecnicização da linguagem jurídica tornaram extremamente complexos o caráter regulador do Direito e a verificação da conformidade dos atos concretos e abstratos expedidos pela Administração Pública com o direito posto. Portanto, a boa-fé dos administrados passou a ter importância imperativa no Estado Intervencionista, constituindo, juntamente com a segurança jurídica, expediente indispensável à distribuição da justiça material. É preciso tomá-lo em conta perante situações geradas por atos ilícitos. (ZANCANER, 2001, p.61).

5.3 REQUISITO LEGAL LIMITATIVO AO EXERCÍCIO DA AUTOTUTELA ADMINISTRATIVA: ATOS ADMINISTRATIVOS AMPLIATIVOS DE DIREITOS.

O terceiro e último requisito legal limitativo ao exercício da autotutela administrativa é, segundo a própria literalidade do caput do artigo 54 da lei nº 9.784/99, a necessidade de que o ato administrativo viciado seja benéfico para os seus destinatários. Vale dizer, preenchidos os demais requisitos legais (requisito objetivo: decurso do prazo decadencial de cinco anos; e o requisito subjetivo: boa-fé do destinatário), a prerrogativa anulatória estatal em exame apenas deve ser limitada em casos de: "[...] atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários [...]".

A noção de atos ampliativos de direito não apresenta maiores dificuldades: como a própria denominação está a sugerir, são aqueles atos que não restringem e nem limitam direitos (atos ablativos), mas ao revés, concedem algum tipo de vantagem ao administrado (exemplo típico é o ato concessivo de aposentadoria ou pensão). Cumpre transcrever, neste momento, breve trecho da didática lição de Almiro do Couto e Silva, no que diz com a classificação dos atos administrativos em razão dos efeitos (positivos ou negativos) que produzem para os seus destinatários:

[...] Quando o ato administrativo gera ou reconhece direitos, poderes, faculdades ou vantagem juridicamente relevante ou ainda elimina deveres, obrigações, encargos ou limitações a direitos dos destinatários, dilatando seu patrimônio ou sua esfera jurídica, é ele qualificado como ato administrativo favorável, benéfico ou ampliativo, em oposição aos atos administrativos desfavoráveis, onerosos ou restritivos, que criem deveres, obrigações, encargos, limitações ou restrições para as pessoas a que se endereçam [atos ablativos]. (SILVA, 2005, p. 36).

A definição de atos ampliativos também é bem construída por José Manuel Sérvulo Correia, para quem os referidos atos são aqueles que:

[...] constituam direitos na esfera jurídica do destinatário, eliminem restrições ao exercício de direitos pré-existentes, eliminem ou restrinjam obrigações, ou, ainda, que constituam na esfera jurídica do particular situações jurídicas activas diferentes dos direitos subjectivos, designadamente simples poderes ou faculdades (CORREIA, apud MAFFINI, 2006, p.145)

Ultrapassado este aspecto conceitual, é interessante notar que Weida Zancaner, ao analisar de forma aprofundada a possibilidade de invalidação de atos administrativos, mesmo sem aludir expressamente ao dispositivo legal ora em comento, reconhece a necessidade de serem impostas "barreiras" ao dever de invalidar da Administração Pública, dentre elas, estar o ato a ser invalidado inserido no conceito de ato ampliativo, vale dizer, benéfico a seu destinatário:

[...] a conjugação do princípio da segurança jurídica com o da boa-fé pode gerar outra barreira ao dever de invalidar. É o que sucederá, uma vez decorrido prazo razoável, perante atos ampliativos de direito dos administrados, nos casos em que haja regra hábil para proteger a situação e que lhe teria servido de amparo se tivesse sido produzida sem vício. (ZANCANER, 2001, p.62)

Parece evidente a necessidade de que a limitação à autotutela administrativa refira-se especificamente a atos administrativos benéficos aos destinatários. Extrai-se tal conclusão, antes de tudo, a partir de uma premissa lógica: seria um completo desvirtuamento se conceber o princípio da proteção à confiança para desfavorecer o destinatário do ato administrativo.

Com efeito, é óbvio que apenas aquele que se beneficiar de determinado ato administrativo tem interesse em vê-lo mantido para ser estabilizada sua situação jurídica (criada administrativamente). Em termos mais específicos, a proteção à confiança que se pretende tutelar é justamente aquela que, necessariamente, objetiva limitar a autotutela administrativa a fim de preservar uma situação jurídica favorável ao destinatário do ato.

Partindo-se de tal imperativo lógico, poder-se-ia até imaginar que tal previsão em lei restaria inútil, ou ao menos desnecessária. Contudo, não é o que se passa. Há uma sutileza que não pode passar despercebida: os atos administrativos nem sempre produzem apenas efeitos benéficos (ou apenas efeitos prejudiciais) a um mesmo destinatário; vale dizer, há os atos administrativos mistos (ou de eficácia mista), que produzem ambos os efeitos (positivos – atos ampliativos; e negativos – atos ablativos) [34].

Nestas hipóteses, há quem entenda não ser possível limitar o exercício da autotutela administrativa. Haveria de haver, por conseguinte, efeitos exclusivamente benéficos para o destinatário. Esta é a lição de Rafael Maffini, que compreende a vedação ao exercício da autotutela como uma exceção, de modo a exigir uma interpretação restritiva. Assim, conclui:

[...] quanto ao fato de que pode haver atos administrativos dos quais decorram, a um só tempo e em relação a um mesmo destinatário, efeitos benéficos e efeitos prejudiciais, a solução deveria consistir em não ser aplicado o prazo decadencial previsto no artigo 54 da Lei nº 9.784/99. [...] A implementação do prazo decadencial proibindo a invalidação é verdadeiramente uma exceção à regra. Assim, deve-se interpretar tal exceção restritivamente, ou seja, a decadência somente ocorrerá naquelas hipóteses em que do ato administrativo inválido decorrerem exclusivamente efeitos benéficos ao destinatário, com o que, se coexistentes efeitos ampliativos e ablativos em relação a um mesmo destinatário, a invalidação poderá ocorrer independentemente de qualquer limitação prazal. (MAFFINI, 2006, p.147).

Contudo, permitimo-nos divergir de tal entendimento. Decerto que a aplicação do princípio da proteção à confiança afigura-se excepcional. A regra é, indubitavelmente, a restauração da ordem jurídica pela aplicação do princípio da legalidade administrativa. Tal entendimento já fora, inclusive, consignado em capítulos atrás: há de haver uma nota de atipicidade, de excepcionalidade a fim de que o princípio da legalidade administrativa (e, por conseguinte, o princípio da autotutela administrativa) possa ceder e deixar de ser aplicado em algum caso concreto.

Ocorre, contudo, que tal premissa não conduz à conclusão de inaplicabilidade do artigo 54 da Lei nº 9.784/99 em casos de atos administrativos mistos (ao mesmo tempo ampliativos e ablativos); nem a redação do dispositivo permite inferir que, para sua aplicação, seriam necessários atos exclusivamente benéficos ao destinatário; Ora, se diante de atos mistos (ou de eficácia mista) há dois efeitos perfeitamente identificados, um favorável e outro desfavorável, é perfeitamente plausível que o aplicador da norma possa considerar apenas a parte positiva do ato, preservando-o, sem que isso configure ampliação na interpretação do dispositivo legal em comento.

Decerto, ainda, que se o dispositivo legal não menciona nenhum tipo de exclusividade de efeitos benéficos, inseri-la, interpretativamente, quando da aplicação da norma, representaria assumir uma concepção restritiva de um princípio de gênese constitucional (proteção à confiança).

Ademais, atentando-se para uma conseqüência de ordem pragmática, ao se aceitar a idéia segundo a qual tal dispositivo legal exige que os atos sejam exclusivamente benéficos ao destinatário, estariam desde já excluídas do âmbito da aplicação do princípio da confiança aquelas situações de deferimento parcial de requerimentos formulados no âmbito da Administração Pública, tão comuns no âmbito da atividade administrativa [35].

Em suma, sempre quando possível, não deve ser exigido que do ato administrativo decorram efeitos exclusivamente benéficos para o destinatário. A autoridade aplicadora do ato deve considerar sua parte positiva, para fins de se aplicar o artigo 54 da Lei nº 9.784/99 e limitar a autotutela administrativa (SILVA, 2005, p.36-37) [36].

Da mesma forma, quando o ato for favorável a alguns destinatários e prejudicial a outros, importará o ato na medida em que for ampliativo; vale dizer, na lição de Almiro do Couto e Silva:

Se o ato administrou gerou direito administrativo para alguém ou qualquer outra vantagem juridicamente relevante, não mais poderá ser revogado ainda que seja desfavorável a outrem. Do mesmo modo, bastará que o ato administrativo seja favorável para o destinatário imediato para sujeitar sua anulação, quando ilegal, ao prazo decadencial do art.54 da Lei nº 9.784/99. (SILVA, 2005, p.37).

Decerto que tema tão rico e relevante, atinente ao princípio constitucional da proteção à confiança e sua aplicação como fator limitativo à autotutela administrativa, não se encontra exaurido pelas considerações até aqui formuladas. Importa observar, com efeito, que, diante desta inevitável colisão de princípios constitucionais, urgia se delimitar critérios objetivos (parâmetros) a fim de que eventual ponderação (entre legalidade e proteção à confiança) se efetive com segurança jurídica.

Se, por um lado, passou-se a reconhecer [37] limitações à legalidade administrativa, ampliando sua compreensão para além daquela noção absoluta e imponderável, por outro, houve avanços na sistematização de requisitos que, em determinadas hipóteses, balizam a incidência do princípio da proteção à confiança para fins de se possibilitar a preservação de atos administrativos, apesar de inválidos.

Conquanto a jurisprudência mais recente já venha, em algumas hipóteses, reconhecendo a possibilidade de se limitar a autotutela administrativa, o necessário regramento jurídico, que efetivamente sistematizou parâmetros claros limitativos à prerrogativa anulatória da Administração Pública, foi introduzido pelo artigo 54 da Lei 9.784/99.

Em verdade, o legislador realizou uma ponderação em abstrato: de um lado, o princípio constitucional da proteção à confiança, tendo a seu favor, basicamente, a segurança jurídica a ser atendida presumidamente pelo preenchimento dos três requisitos acima explorados (prazo decadencial de cinco anos, boa-fé do destinatário e atos ampliativos); de outro, o princípio constitucional da legalidade administrativa e o conseqüente poder-dever de autotutela administrativa.

Dentro de tal contexto, considerando a magnitude do que se está a ponderar, afigura-se completamente inviável, sob a ótica constitucional, se invocar atualmente a teoria do ‘fato consumado’ para se justificar a manutenção de situações criadas sob o manto da ilegalidade. Tal argumentação há muito freqüente em nossa jurisprudência, parece agora, efetivamente, ter restado abandonada [38].

Primeiro, porque já se é possível reconhecer e delimitar o conteúdo jurídico do princípio da proteção à confiança, elevando-o à categoria de princípio constitucional; segundo, porque a noção de ‘fato consumado’ parte de uma argumentação difusa, inconsistente, sem critérios precisos, violando, por certo, qualquer noção que se possa ter segurança jurídica; afinal, o que seria o tal fato consumado? Quando estaria efetivamente consumado o fato? A noção elástica e sem rigor técnico do que venha a ser ‘fato consumado’ não contribui para o desenvolvimento da resolução de conflitos envolvendo princípios constitucionais; e terceiro, porque um ato ilegal não passa a ser legal única e exclusivamente pelo decurso do tempo; são necessários outros requisitos (conforme foram detalhados neste capítulo).

Enfim, por tudo isso, impõe-se reconhecer que a tutela jurídica de valores constitucionais requer sistematização de requisitos e parâmetros precisos, aptos a balizar o exercício de uma eventual de ponderação.


6 CONCLUSÃO

Identificam-se, inicialmente, quatro princípios, cujas matrizes constitucionais os aproximam quanto aos conteúdos e finalidades: (a) o princípio do Estado de Direito, como princípio maior (ou sobreprincípio), representando, em linhas gerais, a vinculação do Estado, não apenas à legalidade em sentido estrito, mas também ao Direito como um todo; (b) o princípio da legalidade administrativa, condicionando toda a atividade estatal aos imperativos do ordenamento jurídico; (c) o princípio da segurança jurídica que, por sua vez, associa-se à necessidade de previsibilidade e estabilidade das relações jurídicas; e (d) o princípio da proteção à confiança, que representa uma das significações (feição subjetiva) do princípio da segurança jurídica.

Há, essencialmente, dois pontos de dificuldade para delimitação do conteúdo jurídico e âmbito de aplicabilidade do princípio da proteção à confiança: (i) a dificuldade semântica que permeia a noção genérica de confiança, além de não haver no ordenamento jurídico brasileiro uma definição legal de confiança; (ii) a própria idéia de segurança jurídica (donde a doutrina extrai a definição do princípio da proteção à confiança) também se apresenta de forma difusa no sistema, não podendo ser identificada em uma única norma jurídica, mas sim a partir de diversas regras e princípios espalhados pelo ordenamento jurídico.

Em vista destas considerações, verifica-se que a construção de sentido do princípio da proteção à confiança, conquanto ainda incipiente no Brasil, vem sendo aos poucos construída pela jurisprudência, doutrina e também pelo legislador positivo, representando claro exemplo disso as recentes decisões exaradas pelo Supremo Tribunal Federal e a regra inserida pelo artigo 54 da Lei nº 9.784/99.

Dentro de tal contexto, não é de qualquer confiança que se está a tratar. Há de haver uma confiança merecedora de tutela jurídica, respaldada no ordenamento jurídico, sobretudo no princípio constitucional da segurança jurídica. Com efeito, busca-se identificar aquela confiança que possa levar a uma estabilização de situações jurídicas criadas administrativamente, ainda que originadas sob o manto da ilegalidade (não invalidando ou preservando os efeitos de atos administrativos).

A construção de sentido do princípio da proteção à confiança passa, necessariamente, por duas considerações: (i) a confiança do cidadão nos atos emanados da Administração Pública, de um modo geral, não pode ensejar uma mitigação absoluta do princípio da legalidade administrativa (e, por conseguinte, da autotutela administrativa); há de estar configurada a excepcionalidade da situação, na medida em que a regra continua sendo a invalidação dos atos ilegais; (ii) a confiança tem que ser qualificada como legítima; na lição de Luís Roberto Barroso, é necessária a configuração de uma expectativa legítima (mais que uma "mera expectativa" e menos que o direito adquirido).

A pesquisa acerca do princípio da proteção à confiança comporta duas linhas de abordagem que não necessariamente se excluem. A primeira delas, diz respeito à sua eficácia positiva, impondo ao Estado um dever de ação; a segunda, relaciona-se à sua eficácia negativa, impondo ao Estado um dever de abstenção, sendo esta última a abordagem aqui explorada, uma vez que o objeto de estudo se limita à aplicação do referido princípio como limitação à autotutela administrativa.

Conquanto a pesquisa esteja limitada a investigar o princípio da proteção à confiança no âmbito dos atos emanado pelo Poder Público no exercício da função administrativa, é de se constatar que todos os três Poderes (em quaisquer de suas funções típicas ou atípicas) são destinatários do princípio da segurança jurídica e do princípio da proteção à confiança.

Sem desprestigiar o princípio da legalidade administrativa (que é a base constitucional do princípio da autotutela administrativa) importa reconhecer que, em determinadas hipóteses, precisa ser relativizado; em outras palavras, mesmo representando princípio essencial para o regime jurídico-administrativo, tal reconhecimento não pode conduzir à conclusão de que deve ser aplicado irrestritamente, de forma absoluta. Com efeito, a restauração da ordem jurídica não é alcançada apenas a partir da invalidação dos atos viciados.

Da mesma forma que não incumbe à Administração Pública agir à revelia da lei, a ela também não é permitido ignorar os comandos veiculados pelos princípios, notadamente pelos princípios constitucionais, como é o caso do princípio da proteção à confiança. Desta forma, tal princípio representa um limite a ser enfrentado pela Administração Pública no que diz com o poder de invalidar seus atos administrativos.

Num caso concreto, onde esteja identificada colisão entre o princípio constitucional da legalidade administrativa (autotutela administrativa) e o princípio constitucional da proteção à confiança, deve-se lançar mão da técnica da ponderação jurídica, não podendo, para tanto, presumir a existência de uma ordem hierárquica entre os bens e valores resguardados por princípios constitucionais.

Há de se reconhecer que o princípio da autotutela administrativa não tem aplicação irrestrita, merecendo, pois, em algumas hipóteses, ser relativizado, tendo como parâmetro limitador o princípio constitucional da proteção à confiança; em outros termos, há de haver um temperamento a ser efetivado nos casos concretos, analisando-os também sob a ótica da segurança jurídica e, por assim dizer, também da proteção à confiança legítima. É dizer que, nestes casos, a autotutela administrativa estaria limitada pelo princípio da proteção à confiança.

Por vezes, a ponderação é realizada judicialmente, na análise dos casos concretos; em outras hipóteses, o regramento advém do próprio legislador, através de regras positivadas que representam uma verdadeira ponderação em abstrato, fornecendo requisitos que balizam a incidência do princípio da proteção à confiança, em detrimento da prerrogativa anulatória da Administração Pública (limitação à autotutela administrativa). É o caso do artigo 54 da Lei nº 9.74/84.

Pelos três precedentes jurisprudenciais analisados, é possível se perceber que o Supremo Tribunal Federal já vem reconhecendo normatividade ao princípio da proteção à confiança, ora identificando-o como segurança jurídica, ora como boa-fé, ora como as duas coisas, e também aludindo expressamente à proteção à confiança. Reconheceu também a necessidade de se viabilizar o contraditório antes da Administração Pública exercer a autotutela administrativa para extinguir um ato administrativo eivado de vício. A observância do contraditório e da ampla defesa representa, nestas hipóteses, uma faceta eminentemente procedimental do princípio da proteção à confiança.

Perquirindo o ordenamento jurídico, é possível se identificar alguns dispositivos infraconstitucionais que, de uma forma ou de outra, destinam-se a prestigiar a confiança do particular nos atos estatais. Dentre estes, o de maior relevância é o artigo 54 da Lei nº 9.784/99.

É possível se perceber, a partir do referido dispositivo legal, que à Administração Pública não se faculta mais ignorar os efeitos do tempo quando se queira rever e anular seus os atos administrativos; em outros termos, não há um dever atemporal de se invalidar atos administrativos.

Com efeito, o legislador infraconstitucional efetivou uma ponderação em abstrato entre o princípio da proteção à confiança e o princípio da legalidade administrativa, elegendo três requisitos a partir dos quais, se cumulativamente considerados, restaria fulminada a prerrogativa da Administração Pública no que concerne ao seu direito potestativo à invalidação de seus próprios atos administrativos, quando eivados de ilegalidade.

Tais requisitos são os seguintes: (i) o decurso do lapso temporal de cinco anos (prazo decadencial); (ii) a configuração da boa-fé do destinatário do ato administrativo reputado viciado (boa-fé reforçada a partir da "base de confiança" induzida pela presunção de legitimidade dos atos administrativos); e (iii) o ato administrativo que se pretende invalidar tem que ter produzido efeitos benéficos aos seus destinatários (atos ampliativos de direitos).

Dentro de tal contexto, decerto que é perfeitamente possível se preservar efeitos de atos administrativos reconhecidamente inválidos, sem que isso possa representar afronta ao princípio constitucional da legalidade; basta, para tanto, que a decisão se paute em critérios racionais, objetivos, nos moldes em que restou positivado pela regra do artigo 54 da Lei nº 9.784/99.

Considerando a magnitude constitucional do que se está a ponderar (princípio da legalidade e princípio da proteção à confiança), afigura-se completamente inviável, sob a ótica constitucional, se invocar atualmente a teoria do ‘fato consumado’ para se justificar a manutenção de situações criadas sob o manto da ilegalidade. Tal argumentação há muito freqüente em nossa jurisprudência, parece agora, efetivamente, ter restado abandonada.

Primeiro, porque já se é possível reconhecer e delimitar o conteúdo jurídico do princípio da proteção à confiança, elevando-o à categoria de princípio constitucional; segundo, porque a noção de ‘fato consumado’ parte de uma argumentação difusa, inconsistente, sem critérios precisos, violando, por certo, qualquer noção que se possa ter segurança jurídica; e terceiro, porque um ato ilegal não passa a ser legal única e exclusivamente pelo decurso do tempo; são necessários outros requisitos. Uma má-fé do destinatário, por exemplo, inibe qualquer efeito que se possa atribuir a um decurso de tempo.

Nestes termos, andou bem o legislador ao proceder a referida sistematização por meio do artigo 54 da Lei nº 9.784/99, na medida em que a tutela jurídica de valores constitucionais requer parâmetros precisos.


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NOTAS

01 Pet 2.900 MC, Rel. Min Gilmar Mendes; MS 24.268, Rel. p/Acórdão Min. Gilmar Mendes, j. 05.02.2004; e MS 22.357, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 27.05.2004. São estes os três precedentes do STF, apontados por Almiro do Couto e Silva, que tratam especificamente do tema, onde o princípio da proteção à confiança se prestou para a preservação de atos estatais. Tais acórdãos são considerados, por isso, paradigmáticos.

02 Quanto ao princípio da proteção à confiança e sua tutela jurídica, em específico, o necessário aprofundamento se dará nos próximos capítulos.

03 O próximo capítulo cuidará, dentre outros assuntos, da análise da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, onde foi possível se identificar a aplicação do princípio da proteção à confiança.

04 Conquanto não se desconheça que todo o Poder Público, consideradas todas as esferas de atuação (Legislativo, Executivo e Judiciário), seja destinatário do princípio da proteção à confiança, interessa-nos, dentro da delimitação temática ora proposta, a compreensão do referido princípio tendo por escopo a atuação Estatal no exercício de sua função administrativa.

05 A sistematização dos requisitos objetivos e subjetivos que qualificam uma expectativa como legítima para fins de aplicação da proteção à confiança será tratada em tópico específico no capítulo seguinte.

06 STF, Segunda Turma, QO Pet (MC) nº 2.900/RS MC, Rel. Min Gilmar Mendes, julgado em 27/05/2003, DJ 01/08/2003. p. 142. Na referida demanda a argumentação da requerente pautava-se, em essência, na necessidade de dar prosseguimento ao seu curso de Direito mediante transferência para a UFRGS, uma vez que, em razão de aprovação de em concurso público para assumir emprego público, seria lotada naquela cidade.

07 Esta premissa teórica parte da conceituação (já mencionada anteriormente) de segurança jurídica dada por Almiro do Couto e Silva: "A segurança jurídica é entendida como sendo um conceito ou um princípio jurídico que se ramifica em duas partes, uma de natureza objetiva e outra de natureza subjetiva. A primeira, de natureza objetiva, é aquela que envolve a questão dos limites à retroatividade dos atos do Estado até mesmo quando estes se qualifiquem como atos legislativos. Diz respeito, portanto, à proteção ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada. [...] A outra, de natureza subjetiva, concerne à proteção à confiança das pessoas no pertinente aos atos, procedimentos e condutas do Estado, nos mais diferentes aspectos de sua atuação [...]" (SILVA, 2005, p. 03-05).

08 Exemplo disso pode ser observado nas alterações das regras para concessão de aposentadoria, introduzidas pela Emenda Constitucional nº 20, de 15 de dezembro de 1998, que alterou o artigo 40 da Constituição Federal, prevendo, contudo, regra transitória em seu artigo 8º.

09 Como de resto também não há separação estanque entre as atividades Estatais (todos os três Poderes detêm funções típicas e atípicas, de modo que suas atividades se interligam formando um todo, havendo apenas prevalência de determinada função afeta a determinado Poder).

10 Neste sentido, é a lição de Leandro Paulsen: "A referência conjunta à segurança e à proteção da confiança não se dá sem razão, na medida em que esta efetivamente configura um instrumento para afirmação da segurança jurídica. Ainda que se procure dar autonomia à questão da confiança, enunciando-a juridicamente como `princípio da confiança`, certo é que constitui desdobramento do princípio da segurança jurídica [...]". (PAULSEN, 2006, p.60).

11 O artigo 27 da Lei nº 9.868/99 (e também o artigo 11 da Lei nº 9.882/99, que traz redação semelhante, só que aplicada à Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental) reconheceu expressamente a possibilidade de o STF, ao julgar uma ADIN ou uma ADPF, ponderar o princípio do dogma da nulidade da lei declarada inconstitucional com algum princípio protegido pela norma constitucional violada.

12 O princípio da autotutela administrativa encontra-se previsto expressamente na Súmula 346 do STF: "A administração pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos"; e também na Súmula 473 do STF: "A administração pode anular seus próprios atos quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revoga-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial".

13 É de se observar que o poder-dever de autotutela administrativa, além de ser corolário do princípio da legalidade administrativa e encontrar-se sumulado no STF e STJ, foi expressamente positivado no artigo 53 da Lei nº 9.784/99, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal: "Art.53. A Administração deve anular seus próprios atos, quando eivados de vícios de legalidade, e pode revogá-los por motivo de conveniência e oportunidade, respeitados os direitos adquiridos".

14 Conquanto se esteja abordando a técnica da ponderação como uma "técnica judicial", há de se registrar que nem mesmo o legislador infraconstitucional poderá supervalorizar um princípio constitucional em detrimento de outro, aniquilando-lo. Há de haver alguma ponderação, ainda que abstrato, em nível legislativo, de modo a conciliar a possibilidade de aplicação dos princípios constitucionais. Esta parece ter sido a diretriz seguida pelo legislador quando da edição da Lei nº 9.784/99, mais precisamente em seu artigo 54, haja vista que, ao prever requisitos (objetivo e subjetivo) limitativos a autotutela administrativa, conciliou, em abstrato, a possibilidade de se dar efetividade ao princípio da proteção à confiança, sem, contudo, esvaziar o princípio da autotutela administrativa, ambos de índole constitucional.

15 Conquanto implícito, nem por isso, o princípio da proteção à confiança deve ter diminuída a sua normatividade. Neste sentido, leciona Carlos Ari Sundfeld: "Os princípios implícitos são tão importantes quanto os explícitos; constituem como estes, verdadeiras normas jurídicas. Por isso, desconhece-los é tão grave quanto desconsiderar quaisquer outros princípios." (SUNDFELD, 1992, p. 144).

16 Consoante o magistério de Almiro do Couto e Silva: "O princípio da proteção à confiança começou a firmar-se a partir de decisão do Superior Tribunal Administrativo de Berlim, de 14 de novembro de 1956, logo seguida por acórdão do Tribunal Administrativo Federal (BverwGE), de 15 de outubro de 1957, gerando uma corrente contínua de manifestações jurisprudenciais no mesmo sentido." (SILVA, 2005, p. 7).

17 STF, Segunda Turma, QO Pet (MC) nº 2.900/RS MC, Rel. Min Gilmar Mendes, julgado em 27/05/2003, DJ 01/08/2003. p. 142; MS 24.268, Rel. p/Acórdão Min. Gilmar Mendes, j. 05.02.2004; e MS 22.357, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 27.05.2004.

18 Após, Rafael Maffini também aprofundou o estudo dos referidos acórdãos, consoante pode ser visto em sua obra (MAFINNI, 2006, p.98-106).

19 Este julgado já foi examinado também no capítulo 3 (subitem 3.1), quando foi feita a análise da eficácia positiva do princípio da proteção à confiança.

20 Decerto que não é o caso do julgado examinado, uma vez que a segurança que favoreceu à impetrante foi concedida por sentença (21 de dezembro de 2000).

21 Em sua argumentação, o Min. Gilmar Mendes deixou de aplicar o artigo 54 da Lei nº 9.7484/99, afirmando: "Não estou seguro de que se possa invocar o dispositivo no art. 54 da Lei nº 9.784, de 1999 [...] embora tenha sido um dos incentivadores do projeto que resultou na aludida lei, uma vez que, talvez de forma ortodoxa, esse prazo não deva ser computado com efeitos retroativos".

22 Explica-se a ressalva: o processo de aposentadoria revela ato complexo, de modo que apenas se justifica viabilizar o contraditório em caso de cassação de aposentadoria após a homologação; antes da homologação não se apresenta o problema do contraditório, já que não há litigantes em processo complexo de outorga e homologação da aposentadoria. Este é o exato sentido que se extrai de outro precedente que serviu de base para edição da súmula vinculante nº 03 (MS nº 24.754, rel. Min. Marco Aurélio, DJ 18.02.2005).

23 Quanto a este imenso lapso temporal, afirmou o Min. Gilmar Mendes: "Impressiona-me, ademais, o fato de a concessão da pensão ter ocorrido passados 18 anos de sua concessão – e agora já são 20 anos. [...] Mas, afigura-se-me inegável que há um "quid" relacionado com a segurança jurídica que recomenda, no mínimo, maior cautela em casos como o dos autos. Se estivéssemos a falar de direito real, certamente já seria invocável a usucapião."

24 E, justamente uma das maneiras de se limitar a autotutela administrativa e se preservar alguns efeitos de atos administrativos inválidos, é o reconhecimento e desenvolvimento do princípio da proteção à confiança.

25 "Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado".

26 Esta é a Lição de Luís Roberto Barroso, para quem: "[...] a questão da constitucionalidade das leis situa-se no plano da validade dos atos jurídicos: lei inconstitucional é nula [...] a decisão que reconhece a inconstitucionalidade [...] é declaratória [...] os efeitos da decisão [...] são ex tunc." (BARROSO, O controle de constitucionalidade no direito brasileiro, 2004, p.160).

27 "Art. 178: A isenção, salvo se concedida por prazo certo e em função de determinadas condições, pode ser revogada ou modificada por lei, a qualquer tempo, observado o disposto no inciso III do art.104."

28 A este respeito merece destaque a Súmula 544 do STF: "Isenções tributárias concedidas sob condição onerosa não podem ser livremente suprimidas".

29 É de se perceber que a referida atemporalidade, que por óbvio restou revogada, era, inclusive, positivada em nosso ordenamento jurídico, consoante se verifica pelo artigo 114 da lei nº 8.112/90 (Regime Jurídico dos Servidores Públicos Civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais): "A administração deverá rever seus atos, a qualquer tempo, quando eivados de ilegalidade".

30 Cuida-se de prazo decadencial na medida em que se refere à extinção do prazo para exercício de um direito potestativo, concernente a uma prerrogativa estatal. Quanto este aspecto, para um maior aprofundamento, destacam-se os ensinamentos de Almiro do Couto e Silva (2005, p.22-25).

31 Apenas como registro, considerando que quase tudo em direito potencializa uma discussão jurídica, no mínimo doutrinária, vale mencionar que, conquanto o artigo 54 não mencione expressamente o termo "boa-fé", a sua exigência é inferida diretamente da literalidade do dispositivo legal em comento ("[...]salvo comprovada má-fé"), não sendo este ponto objeto de controvérsia pela doutrina.

32 Decerto que não exsurge a má-fé do candidato se o ato da posse for posteriormente invalidado em razão de alguma questão atribuível apenas à Administração Pública, como, por exemplo, um erro (sem posterior questionamento ou retificação) na publicação de algum ato concernente ao concurso, ou algum erro formal praticado "interna corporis" por algum servidor menos atento. Evidente que tais hipóteses encontram-se fora da esfera de conhecimento do candidato. Reitere-se que, para configuração da boa-fé, não há de se exigir "excesso" de diligência por parte do beneficiário do ato em perscrutar todos os meandros da Administração Pública para tome ciência de todas "potenciais" ilegalidades; mas apenas que, dentro do que ordinariamente acontece, seja possível, de plano, presumir que não teve conhecimento do vício.

33 Apenas a título de esclarecimento, é de se registrar que a boa-fé, para fins de possibilitar a aplicação do princípio da confiança, há de ser analisada, tanto quanto possível, de forma individual; isto é, reclama tratamento jurídico diferenciado. Um exemplo explorado por Rafael Maffini (2006, p.151) é aquele em que, em um concurso público, apenas um candidato frauda o certame (sem reflexo nas condutas dos demais candidatos); nesta hipótese o tratamento jurídico a ser dado deveria ser cindido, considerando a má-fé apenas daquele candidato "fraudador".

34 Exemplos de atos mistos: autorização para explorar determinada atividade concedida mediante pagamento de taxa, pedido parcialmente atendido pela Administração Pública, como a licença para construir que só atende parcialmente o pedido do interessado (construir só em parte de um terreno). (SILVA, 2005, p.36-37); ato negocial que possibilite o desempenho de certa atividade comercial, ao mesmo tempo em que imponha restrição de horários de funcionamento (MAFFINI, 2006, p.146).

35 Basta imaginar um pedido de licença para construir parcialmente deferido: o requerente pretende construir um edifício de 10 andares, mas só consegue autorização para construir um de, no máximo, 6 andares, ou ainda uma casa. Por certo que tal ato não lhe é exclusivamente benéfico; se assim mesmo tal administrado constrói a casa ou um pequeno prédio, seria um despautério se imaginar que, após 5 anos, mesmo de boa fá, não pudesse ter sua situação jurídica estabilizada, ficando alijado da aplicação do princípio da proteção à confiança em seu favor pelo simples fato de que o ato, lá na origem, não lhe foi 100% favorável. Evidente não ser esta a finalidade da lei.

36 Este parece ser o entendimento de Almiro do Couto e Silva, apesar de não ter se aprofundado muito quanto a este ponto em específico, apenas consignando que: "Para fins, porém, de revogação ou de anulação de ato administrativo a autoridade competente levará em conta apenas o aspecto positivo do ato administrativo, mesmo que ele não puder ser separado do aspecto negativo". (SILVA, 2005, p.36-37).

37 Não só a jurisprudência, mas também a doutrina e o legislador positivo.

38 Apenas para exemplificar, colhe-se na jurisprudência exemplo de argumentação com base no fato consumado: "Ato administrativo. Seu tardio desfazimento, já criada situação de fato e de direito que o tempo consolidou. Circunstância excepcional a aconselhar a inalterabilidade da situação decorente do deferimento da liminar, daí a participação no concurso público, com aprovação, posse e exercício". (RE 85.179, Rel. Min. Bilac Pinto, j. 04.11.1977).


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LESSA, Flávio Romero de Oliveira Castro. A eficácia negativa do princípio da proteção à confiança e sua aplicação como um fator limitativo ao exercício da autotutela administrativa. Uma análise do art. 54 da Lei nº 9784/99. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1739, 5 abr. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11135. Acesso em: 24 abr. 2024.