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Estudo sobre oficinas referenciadas no mercado de seguro de automóvel no Brasil.

Estudo do Projeto de Lei nº 272/2008, do Estado de São Paulo

Estudo sobre oficinas referenciadas no mercado de seguro de automóvel no Brasil. Estudo do Projeto de Lei nº 272/2008, do Estado de São Paulo

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SUMÁRIO – 1. Introdução. 2. A operação de seguro e seus aspectos essenciais. 3. Venda Casada – o princípio da vulnerabilidade como princípio fundamental da proteção ao consumidor. 4. O projeto de Lei 272, de 2008 – contribuição para o aprimoramento 5. Conclusão.


1.Introdução.

O tema oficina credenciada e venda casada ocupou parte significativa do debate sobre contratos de seguro nos últimos anos, em especial por conta da atuação do Ministério Público em muitos estados da federação, que convocou representantes do setor de seguros para discutir o assunto e encontrar soluções conjuntas.

Também se destaca como agente propulsor desse debate o projeto de lei estadual paulista, de iniciativa do Deputado Fernando Capez, que pretende impor sanções às seguradoras que praticarem condutas lesivas aos segurados ou terceiros, proibindo logo no artigo primeiro que as seguradoras imponham a segurados ou terceiros uma relação de oficinas referenciadas como condição para conserto de veículos envolvidos em acidentes.

Parte da discussão jurídica pode ser feita à luz da legitimidade da Assembléia Legislativa do Estado para propor uma lei que trata de matéria que a Constituição Federal do país avocou para si com exclusividade, que é a matéria de seguros, conforme artigo 22, inciso VII.

Há, porém, uma parte da discussão que deve ser feita necessariamente à luz do Código de Defesa do Consumidor e do Código Civil, institutos que iluminam a construção de uma nova ordem contratual, que clama por um maior e mais acentuado equilíbrio entre as partes contratantes relativizando o conceito de autonomia das partes que inspirou o pensamento oitocentista e o Código Civil de 1916.

É nessa dimensão do enfoque a partir do Código de Defesa do Consumidor e do Código Civil que este trabalho pretende refletir sobre o credenciamento/referenciamento de oficinas reparadoras de veículos e a utilização dessa estratégia comercial por seguradoras nas relações com segurados consumidores/contratantes, e com terceiros.

Para efeito desse texto, consumidores são os destinatários finais protegidos pelo Código de Defesa do Consumidor, nos moldes do que determina o artigo segundo daquele diploma legal. E contratantes são aqueles que não sendo definidos como consumidores e sem poder gozar da proteção do CDC, encontram guarida na proteção dispensada pelo Código Civil aos contratos, seja nos artigos 421 e seguintes, seja nos artigos específicos da matéria de seguros alocados a partir do artigo 757 da Lei 10.406/02.

Protegidos por uma ou outra lei, os segurados que contratam seguro de automóvel não podem ficar expostos a práticas abusivas que desequilibrem a relação contratual, razão pela qual é tão importante discutir essa prática comercial de indicar oficinas de reparo tanto para segurados como para terceiros.

Compreender a prática e sua razão de existir é o primeiro passo para analisá-la juridicamente, tendo como pano de fundo o equilíbrio das relações contratuais e a importância do segmento de seguros no mundo contemporâneo como uma das formas de garantia da paz social.

Na sociedade contemporânea marcada pela super utilização de tecnologia, pelo adensamento populacional nos centros urbanos, pelo risco inerente a inúmeras atividades praticadas pelo ser humano, os contratos de seguro devem ser compreendidos para além de meros contratos comerciais destinados a garantir o lucro das sociedades seguradoras.

Na sociedade atual em que o risco está presente diariamente em muitas atividades fim, em que o campo da responsabilidade civil cresce, em que a complexidade é traço dominante em muitas relações sociais e comerciais, o seguro deve ser compreendido como um instituto de grande importância que necessita ser aprimorado permanentemente, para que possa cumprir seu papel de agente de estabilidade social.

Nesse sentido é que o contrato de seguro é único e precioso, porque calcado em uma comunidade de interesses que garante o seu caráter mutual, e porque seus reflexos podem ser sentidos por toda a sociedade mesmo entre aqueles que não tenham contribuído para a formação do fundo comum, mas que se beneficiam das indenizações quando os riscos se materializam, como ocorre com os terceiros nos seguros de responsabilidade civil.

Como instituto a ser permanentemente aprimorado e não como inimigo a ser combatido é que o contrato de seguro deve ser estudado e pensado no século XXI. A sociedade contemporânea será mas feliz e harmônica quanto mais perfeito for esse instituto jurídico.


2.A OPERAÇÃO DE SEGUROS E SEUS ASPECTOS PRIMORDIAIS.

A compreensão do contrato de seguro como veste jurídica de uma atividade econômica complexa, só é possível a partir do entendimento do que seja a operação de seguros. O contrato de seguro materializa a forma como essa operação foi sistematizada, organizada, construída e calculada de forma a cumprir seu objetivo primordial, que pode ser resumido como determina o artigo 757 do Código Civil, ou seja, contrato que garante mediante o pagamento de um prêmio o interesse legítimo de um segurado.

Para poder garantir o interesse legítimo e expressar contratualmente essa garantia a operação de seguro é organizada utilizando dados atuariais, estatísticas e probabilidades, dados técnicos sobre os riscos predeterminados que serão garantidos, dados econômicos que permitam calcular a viabilidade da cobertura securitária para um determinado risco e, ao final, o resultado dessa sofisticada arquitetura de dados é que vai gerar o contrato e suas cláusulas.

Função primeira da sociedade seguradora é organizar a operação de seguros de modo que ela possa ser viabilizada com a organização de um fundo comum, para o qual contribuam todos os segurados, fundo que será administrado pela sociedade seguradora e de onde serão extraídos os valores necessários para pagamento das indenizações decorrentes de riscos materializados ao longo do período de duração do contrato.

A segunda função é exatamente administrar tecnicamente o fundo comum, seja realizando aplicações financeiras que o protejam da inflação e permita rentabilidade, quer impedindo que sejam efetuados pagamentos indevidos de indenizações. Todo pagamento indevido de indenizações causa impacto no fundo comum, principalmente tornando-o vulnerável e fragilizado, o que coloca em risco todos os segurados que contribuíram para a formação desse fundo.

Organizar e administrar o fundo comum são as principais tarefas das sociedades seguradoras. Por elas a seguradora responde no âmbito civil, penal e administrativo. A essência de sua atividade está nessas duas funções que se praticadas de forma indevida, geram prejuízos a toda a coletividade de segurados.

O artigo 84 do Decreto-Lei 73/66 determina que as sociedades seguradoras constituam para garantia de todas as suas obrigações, reservas técnicas, fundos especiais e provisões de conformidade com os critérios fixados pelo Conselho Nacional de Seguros Privados, além das reservas e fundos determinados em leis especiais. E o artigo 110 do mesmo decreto define que constitui crime contra a economia popular, punível de acordo com a legislação respectiva, a ação ou omissão, pessoal ou coletiva, de que decorra a insuficiência das reservas e de sua cobertura, vinculadas à garantia das obrigações assumidas pelas sociedades seguradoras.

Em outras palavras, a falta de reservas em quantidade que efetivamente garanta o pagamento dos riscos materializados pode sujeitar a sociedade seguradora a sanções administrativas da Superintendência de Seguros Privados – SUSEP, órgão integrante do Sistema Nacional de Seguros Privados ao qual compete regular e fiscalizar a atividade securitária. Mas pode igualmente sujeitá-la a sanções de ordem penal, conforme determina o Decreto-Lei 73/66, de 1966.

Como uma das formas de garantir que as reservas não serão indevidamente atingidas, a seguradora avoca para si a responsabilidade pela regulação do sinistro, ou seja, pela tarefa de mensurar a causa e a extensão dos danos causados por um determinado evento. De plano, a sociedade seguradora deve investigar se o evento danoso é resultante de um risco predeterminado no contrato de seguro, e em seguida avaliar técnica e objetivamente como o interesse legítimo do segurado foi ferido e pode ser recomposto.

Ernesto Tzirulnik em sua obra Estudos de Direito do Seguro – Regulação de Sinistro – Ensaio Jurídico – Seguro e Fraude, afirma

(...) sinistro é somente aquele evento danoso para o interesse assegurado que corresponde à realização do risco tal como previsto na relação obrigacional securitária.

Se há sinistro será devida a prestação indenizatória, salvo circunstâncias prejudiciais (v.g. descumprimento de deveres pelo segurado, como o não pagamento do prêmio vencido).

(...)

Assim é que a atividade de regulação de sinistro compreende,antes de mais nada, o cotejo do fato ou evento noticiado com o risco assegurado e demais estipulações contratuais. Se o resultado da operação for positivo, isto é, houver identidade, ainda que parcial entre o fato e o risco garantido pelo segurador, então haverá sinistro.

(...)

Dependerá da imediata ação regulatória, sempre que possível, identificar se o aviso do evento feito à seguradora efetivamente, potencializa-se como sinistro pois, caso positivo, deve ser considerado para efeito de comprometimento de ativos vinculados para reserva de sinistro a liquidar e, na hipótese contrária, não haverá despicienda constrição de ativos. Ainda neste particular poderá a intervenção imediata da regulação calibrar o montante do prejuízo em expectativa. (1999, 66-67)

Assim, quando regula o sinistro avisado pelo segurado a sociedade seguradora está também protegendo o fundo comum que lhe compete administrar. Identificadas as causas da materialização do risco serão elas submetidas ao crivo de análise de se tratar de um risco predeterminado, expressamente previsto no contrato de seguro firmado entre as partes.

Confirmado ser a causa decorrente de um risco predeterminado é preciso aferir tecnicamente a extensão do dano e sua mensuração em pecúnia, para que possa ser feito o pagamento da indenização ao segurado ou àquele que tem o direito contratual de receber os valores devidos.

Pagamentos indevidamente feitos a título de indenização prejudicam o fundo comum, a mutualidade, os interesses transindividuais. Pagamentos que deveriam ser feitos e não são prejudicam os segurados individualmente considerados, mas também prejudicam a sociedade porque abalam a credibilidade no instituto de seguro, geram insegurança social e econômica.

Por isso é que a regulação de sinistro realizada às milhares todos os dias em todo o mundo, pode ser considerada como o momento culminante da operação de seguro, momento de rara importância em toda a complexa operação que o seguro personifica. Sua importância somente se equipara à importância do ato da análise do risco para verificação da viabilidade de sua inserção como cobertura contratada, que vai gerar o pagamento de prêmios e a conseqüente formação de um fundo comum.

Um risco mal avaliado também trará conseqüências individuais e sociais nefastas, tanto quanto o fará uma regulação de sinistro imperfeita.

Dado ao caráter técnico da avaliação do risco e da mensuração da extensão do dano por ele causado, as sociedades seguradoras utilizam profissionais de várias áreas do saber que com seu conhecimento científico contribuem desde a fase de contratação até o momento da regulação do risco materializado, ou do sinistro como comumente se denomina.

São profissionais de engenharia, medicina, direito, meio-ambiente, odontologia, economia, administração, contabilidade, matemática, transporte, química, física, biologia, meteriologia, entre outras inúmeras áreas do conhecimento. São esses profissionais que a partir de sua análise técnica vão elaborar os laudos e avaliações que darão suporte às decisões das sociedades seguradoras, ao mesmo tempo em que permitirão que os interesses legítimos dos segurados fiquem garantidos.

Importa ressaltar, ainda, que a contribuição das várias áreas do saber vai ocorrer também na reparação dos danos causados por um risco predeterminado, quando então competirá aos profissionais das várias áreas do conhecimento materializarem a redução ou extinção dos danos causados pelos riscos que se concretizaram.

Assim, nos riscos predeterminados do seguro saúde, por exemplo, será um profissional de área médica que vai atender o segurado, realizar o diagnóstico, avaliar o resultado dos exames clínicos e laboratoriais e propor um tratamento adequado e eficiente para o mal que atinge esse segurado.

Se o contrato de seguro saúde tem cobertura para o risco predeterminado de atendimento de cardiopatias e o médico decide pela implantação de uma válvula no coração do segurado, será esse profissional de área médica que decidirá o tratamento a ser realizado, a época em que esse tratamento deverá ser feito, as especificações técnicas da válvula a ser implantada, o tratamento a ser realizado após a implantação, o período de internação, os medicamentos que serão ministrados, entre outras inúmeras decisões que poderão ser tomadas.

A sociedade seguradora que tiver a obrigação de garantir o interesse legítimo do segurado contra esse risco predeterminado vai efetuar o pagamento de todos esses procedimentos, mas não terá condições de realizar nenhum deles porque não tem essa competência técnica.

Em outras palavras, é dever da sociedade seguradora em defesa de todos os segurados e não apenas daquele que teve o risco materializado, garantir que só saiam do fundo comum os recursos efetivamente necessários para indenizar a correta extensão dos danos. Para isso a sociedade seguradora deve utilizar todos os recursos lícitos, inclusive proteger o segurado contra profissionais que não tenham condições técnicas de realizar com eficiência e boa-fé os reparos necessários para eliminar ou diminuir os danos que o risco materializado tenha causado.

A conclusão da regulação do sinistro ocorre quando o interesse legítimo do segurado sobre a coisa ou a pessoa atingida pelo risco predeterminado está totalmente reparado. O risco materializado já não causa mais nenhum dano ao interesse legítimo, foi minimizado ou totalmente eliminado pela ação da sociedade seguradora.

Nesse momento a operação de seguro que os contratos materializam cumpre seu papel maior, porque ao contemplar o interesse individual de um segurado pessoa física ou jurídica, contempla igualmente o interesse de toda a sociedade que deseja ver seus membros protegidos dos mais diversos riscos aos quais estão expostos.


3.VENDA CASADA – O CONCEITO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR.

A Lei 8.078/90, o Código de Proteção e Defesa do Consumidor, em seu artigo 39, inciso I, prevê a expressa vedação da prática comercial de condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço, bem como, sem justa causa, a limites quantitativos.

O artigo contempla, em verdade, duas práticas diferentes. Uma consiste em atrelar produtos ou serviços para que sejam disponibilizados ao consumidor em conjunto, outra prática caracteriza-se pela limitação de fornecimento de produto ou serviço ao consumidor.

Ambas são vedadas expressamente e a primeira é comumente denominada de venda "casada", exatamente por se tratar de associação de dois produtos ou dois serviços que poderiam perfeitamente ser disponibilizados de forma separada e, só o são em conjunto com vistas a tender interesse econômico do fornecedor.

Para João Batista de Almeida

As práticas abusivas expressamente enumeradas pelo CDC são as seguintes:

I- "Venda casada": é vedado condicionar o fornecimento de produto ou serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço, bem como, sem justa causa, a limites quantitativos. Objetiva-se preservar o direito básico da livre escolha do consumidor, pois, se tem ele interesse na aquisição de determinado produto ou serviço, não pode ser obrigado para lograr tal intento, a adquirir o que não lhe interessa, mas lhe é condicionalmente impingido. (2000, p. 120)

Antonio Herman de Vasconcellos e Benjamin, afirma

Prática abusiva (lato sensu) é a desconformidade com os padrões mercadológicos de boa conduta em relação ao consumidor. São – no dizer irretocável de Gabriel A. Stligtz – "condições irregulares de negociação nas relações de consumo", condições estas que ferem os alicerces da ordem jurídica, seja pelo prisma da boa-fé, seja pela ótica da ordem pública e dos bons costumes.

Não se confunde com a prática da concorrência desleal, apesar de que estas, embora funcionando no plano horizontal do mercado (de fornecedor a fornecedor), não deixam de ter um reflexo indireto na proteção do consumidor. Mas prática abusiva no Código é apenas aquela que, de modo direto e no sentido vertical da relação de consumo (do fornecedor ao consumidor), afeta o bem-estar do consumidor.

As práticas abusivas nem sempre se mostram como atividades enganosas. Muitas vezes, apesar de não ferirem o requisito da veracidade, carreiam alta dose de imoralidade econômica e de opressão. Em outros casos, simplesmente dão causa a danos substanciais contra o consumidor. Manifestam-se através de uma série de atividades, pré e pós-contratuais, assim como propriamente contratuais, contra as quais o consumidor não tem defesas, ou, se as tem, não se sente habilitado ou incentivado a exercê-las. (2004, p. 362)

Referindo-se ao tema, Luiz Antonio Rizzattto Nunes, esclarece

A norma do inciso I proíbe a conhecida "operação casada" ou "venda casada", por meio da qual o fornecedor pretende obrigar o consumidor a adquirir um produto ou serviço apenas pelo fato de estar ele interessado em adquirir outro produto ou serviço.

A regra do inciso I veda dois tipos de operações casadas:

a) o condicionamento da aquisição de um produto ou serviço a outro produto ou serviço; e,

b) a venda de quantidade diversa daquela que o consumidor queira.

(...)

É preciso, no entanto, entender que a operação casada pressupõe a existência de produtos e serviços que são usualmente vendidos separados. O lojista não é obrigado a vender apenas a calça do terno. Da mesma maneira, o chamado "pacote" de viagem oferecido por operadoras e agências de viagem não está proibido. Nem fazer ofertas do tipo "compre este e ganhe aquele". O que não pode o fornecedor é impor a aquisição conjunta, ainda que o preço global seja mais barato que a aquisição individual, o que é comum nos "pacotes" de viagem. Assim, se o consumidor quiser adquirir apenas um dos itens, poderá fazê-lo pelo preço normal. (2005, p. 516)

Bruno Miragem, em trabalho recentemente publicado, analisa o disposto no artigo 39, inciso I do Código de Defesa do Consumidor da seguinte forma

O artigo 39, I, do CDC, estabelece de modo claro, que é prática abusiva "condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço, bem como, sem justa causa, a limites quantitativos". Ou seja, existindo a decisão do consumidor pela aquisição de determinado produto ou serviço, esta não pode ser subordinada, por ato do fornecedor, à aquisição de outro produto ou serviço que, a princípio, não são de interesse do consumidor. Trata-se de evidente exercício abusivo do fornecedor, que além de violar as normas de direito do consumidor, também caracteriza ilícito na legislação do direito de concorrência (art. 21, XXIII, da Lei 8.884/94), uma vez que pode servir para mascarar a eventual ineficiência desse segundo produto ou serviço que se procura impingir ao consumo.

A proibição da venda casada é uma das hipóteses mais claras de abuso nas práticas comerciais do fornecedor, uma vez que este pretende obter, mediante condicionamento da vontade do consumidor que busca adquirir produto ou serviço efetivamente desejado, uma declaração de vontade irreal, de aquisição de um segundo produto ou serviço absolutamente dispensável. E é em relação a esta prática abusiva que vem se estabelecendo largo desenvolvimento no direito brasileiro, notadamente nas práticas relativas a serviços bancários e de crédito, assim como, mais recentemente, a polêmica relativa aos serviços de telefonia, em relação aos quais a cobrança de valores relativos a assinatura mensal básica, independentemente de sua utilização efetiva pelo consumidor, vem sendo discutida judicialmente sob lógica de que se trata de venda casada. (2008, p. 186-187)

Cláudia Lima Marques, em comento ao artigo 39, em seu inciso I, ressalta

A lista do art. 39 é suficientemente clara sobre seus propósitos e pode ser dividida em quatro grupos.

No primeiro grupo proíbe o CDC que o fornecedor se prevaleça de sua superioridade econômica ou técnica para determinar condições negociais desfavoráveis ao consumidor. Assim, proíbe o art. 39, em seu inciso I, a prática da chamada venda "casada" e os limites quantitativos; em seu inciso V, a exigência de vantagem manifestamente excessiva do consumidor, e, por fim, no inciso XII, que o fornecedor deixe de estipular prazo para o cumprimento de sua obrigação ou deixe a fixação do termo inicial a seu exclusivo critério. A jurisprudência tem controlado práticas de venda casada, por serem mais comuns em matéria de contratos bancários, de crédito, financeiros e securitários, de provedor de internet, e cláusulas abusivas a elas conectadas, mesmo quanto à devolução, se condicionado este dever à aquisição de outro produto do mesmo fornecedor. (2005, p. 815-816)

A pesquisa no trabalho desses autores permite concluir que a venda "casada" é vedada por contrariar vários princípios de proteção ao consumidor, muitos dos quais expressamente contemplados no texto de lei.

No artigo 4º, que define a Política Nacional de Relações de Consumo, o inciso I especifica que essa política se destina a atender as necessidades dos consumidores em razão do reconhecimento expresso da vulnerabilidade destes no mercado de consumo.

No artigo sexto, por exemplo, a prática da venda "casada" fere os incisos II, IV e V, por exemplo.

No inciso II o legislador garantiu ao consumidor a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações; no inciso IV, protegeu o consumidor de métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como de cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços; e no inciso V, determinou que é direito do consumidor modificar as cláusulas que estabeleçam prestações desproporcionais, ou a revisão em razão de fatos supervenientes à contratação, e que tornem o cláusula excessivamente onerosa.

Esses direitos básicos estipulados no artigo 4º e mais especificamente no artigo 6º do CDC, atuam como um vetor principiológico fundamental que ilumina a interpretação de todos os demais artigos do código, permitindo a compreensão fácil e rápida e uma correta hermenêutica.

Essa proteção não pode ser diferente, não pode ser mitigada, porque é ela que garante a supressão da vulnerabilidade e da hipossuficiência do consumidor.

Miragem ensina que

A noção de vulnerabilidade no direito, associa-se à identificação de fraqueza ou debilidade de um dos sujeitos da relação jurídica em razão de determinadas condições ou qualidades que lhe são inerentes ou, ainda, de uma posição de força que pode ser identificada no outro sujeito da relação jurídica.

(...)

A opção do legislador brasileiro, como já referimos, foi pelo estabelecimento de uma presunção de vulnerabilidade do consumidor, de modo que todos os consumidores sejam considerados vulneráveis, uma vez que a princípio não possuem o poder de direção da relação de consumo, estando expostos às práticas comerciais dos fornecedores no mercado. (2008, p. 62)

O conceito de hipossuficiência, por sua vez, está atrelado à possibilidade de defender processualmente os interesses do consumidor e, nesse sentido, completa a proteção a ele destinada.

Hipossuficiência é, no entanto, noção carente de avaliação do juiz no caso concreto, no momento do exercício da atividade processual. Caberá ao magistrado fixar a compreensão pela decretação da hipossuficiência do consumidor naquele momento e, em conseqüência, facilitar a sua proteção impondo maior atividade da parte contrária.

A legislação consumerista no Brasil com caráter protecionista, tem por objetivo diminuir o mais possível a relação de desigualdade que se estabelece no mercado de consumo entre aquele que fornece e decide o modo, a forma, a quantidade e a qualidade do fornecimento, e a aquele que consome e nem sempre pode escolher amplamente porque limitado por inúmeras razões alheias à sua vontade, tais como preço, disponibilidade no mercado, acesso a pontos de compra, entre outros.

Essa desigualdade entre consumidor e fornecedor é característica do mercado de consumo e não pode ser creditada apenas ao interesse de lucro, já que este como se sabe é um interesse legítimo daqueles que exercem atividade privada.

A desigualdade entre fornecedores e consumidores tem no mundo contemporâneo e pós-moderno matizes mais sofisticadas inspiradas pela globalização, pela formação de grandes blocos econômicos e políticos, pela hegemonia neoliberal e, ainda, pela reorganização da sociedade a partir da construção da identidade pela dimensão do consumo.

Na atualidade somos o que possuímos e não mais aquilo em que inspiramos nossas atitudes e crenças. Somos reconhecidos pelos lugares em que residimos ou em que compramos, tanto quanto somos reconhecidos pelos produtos e serviços que consumimos, sejam os essenciais de saúde e educação sejam aqueles notoriamente supérfluos e que, no entanto, são verdadeiros ícones da sociedade contemporânea, como telefones celulares, carros, aparelhos eletro-eletrônicos (I-Pods, notebook, home-theater, entre outros).

Consumir, na atualidade, não é apenas forma de aquisição de produtos ou serviços necessários para o bem-estar de uma pessoa é, muito, além disso, uma forma de construção da identidade do sujeito e de sua cidadania.

O homem político do século XVIII para o qual a cidadania se assentava principalmente no exercício do direito de voto está amplificado no século XXI pela necessidade de exercer outras opções que lhe parecem fundamentais para se sentir integrado na sociedade, para se sentir cidadão.

As opções de consumo adotadas por pessoas, por famílias, por grupos sociais no século XXI, traduzem uma escolha que é a um só tempo para a satisfação de necessidades, mas também para construir ou reafirmar a identidade de sujeito social. Crianças, jovens e adultos consomem produtos e serviços que os identificam com seus grupos etários e sociais, que reafirmam sua integração social e, muitas vezes, produzem sensações de bem-estar individual que lhes assegura uma vida harmônica.

Nestor Garcia Canclini (2.005, p.35) expressa esse sentido quando afirma"...partimos da hipótese de que, quando selecionamos os bens e nos apropriamos deles, definimos o que consideramos publicamente valioso, bem como os modos de nos integrarmos e nos distinguirmos na sociedade, de combinarmos o pragmático e o aprazível."

Assim, a proteção ao consumidor adquire contornos mais importantes do que a proteção econômica. Mais do que isso, a defesa do consumidor é hoje uma forma de garantia da dignidade da pessoa humana, e de cumprimento do princípio constitucional de construção de uma sociedade mais solidária e mais justa.

Esse componente de construção de identidade por meio do consumo, característico do momento histórico que estamos vivendo, avulta a hipossuficiência e a vulnerabilidade do consumidor e a conseqüente necessidade de que ele seja sistematicamente protegido contra práticas que possam prejudicá-lo.

No âmbito dos contratos de seguro de automóvel, a primeira crítica construída contra a prática de referenciamento/credenciamento de oficinas reparadoras de veículos atribuiu a essa prática o matiz de venda casada, vedado expressamente pelo Código de Defesa do Consumidor.

De fato, o ministério público em muitos estados da federação atribuiu à prática de oferecimento de oficinas reparadoras referenciadas a tipificação de venda casada, oferecendo contra essa prática ação civil pública com pedido de condenação em obrigação de não fazer, de modo a impedir as sociedades seguradoras de limitarem o atendimento a utilização de uma das oficinas reparadoras referenciadas.

Nessas mesmas ações o ministério público pleiteava a condenação das sociedades seguradoras na obrigação de atender o segurado ou o terceiro na oficina reparadora de sua escolha.

Essa primeira crítica sofrida pela prática de referenciamento ou credenciamento de oficinas reparadoras motivou a ampla discussão do instituto, e a reflexão sobre a perfeita caracterização do mesmo como venda casada.

De plano, é possível argumentar que não se trata de venda casada porque as sociedades seguradoras não auferem benefício algum com a utilização da rede referenciada, apenas evitam com essa prática que o segurado fique exposto a prestação de serviços de qualidade duvidosa, a preços que possam comprometer a higidez do fundo comum que lhes compete administrar.

Em outras palavras, as sociedades seguradoras além de não auferirem lucro com a indicação de oficinas referenciadas, podem demonstrar que utilizam essa prática comercial exclusivamente em beneficio do próprio segurado, porque quanto menor o valor pago e maior a qualidade no serviço de reparo executado, melhor para todo o conjunto de segurados.

Além disso, as sociedades seguradoras não cobram pela indicação de oficinas referenciadas, o que exclui a caracterização de venda casada.

De outro lado, a liberdade de escolha do consumidor fica restringida e, nessa medida, importa discutir a amplitude e intencionalidade dessa restrição, conforme será tratado no próximo item.


4. O PROJETO DE LEI 272, DE 2008 – CONTRIBUIÇÃO PARA O APRIMORAMENTO DA PROPOSTA LEGISLATIVA.

Em 14 de abril de 2008, o Deputado Estadual Fernando Capez apresentou projeto de lei à Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo, vedando totalmente a imposição de oficinas referenciadas por parte das sociedades seguradoras para seus segurados ou terceiros.

Na justificativa do projeto o deputado estadual enfatiza que a proposição tem por objetivo "proteger os direitos dos segurados e terceiros em relação às seguradoras que têm imposto uma série de condições para cumprir com a sua parte nos contratos de seguro."

Afirma ainda a justificativa que "(...) as seguradoras não têm respeitado o direito básico da liberdade de escolha dos segurados em relação à oficina reparadora responsável pelo conserto dos veículos sinistrados, obrigando-os a somente reparar seus veículos em oficinas credenciada/referenciada."

Sendo essas as premissas sobre as quais se assenta o projeto de lei, a reflexão que ora se constrói propõe a análise de três aspectos: a) a razão do credenciamento/referenciamento de oficinas por parte das sociedades seguradoras; b) a liberdade do segurado na escolha e mitigação da vulnerabilidade; c) as alternativas possíveis para o aparente impasse existente.

Focando o primeiro aspecto, vale lembrar que referenciar ou credenciar oficinas e outros prestadores de serviço nas diferentes áreas do conhecimento é papel fundamental das sociedades seguradoras na regulação de sinistro, conforme salientado no item 02 deste trabalho.

Durante a fase de regulação de um risco materializado, ou de um sinistro para utilizar a linguagem técnica de seguros, compete às sociedades seguradoras avaliar a natureza do dano, ou seja, se ele é efetivamente decorrente de um risco predeterminado previsto no contrato; e, a extensão desse dano, normalmente consubstanciado no valor necessário para a reparação do bem sinistrado.

Nos seguros de automóvel ocorrido o sinistro e comunicado o mesmo à sociedade seguradora, ela deverá imediatamente certificar-se de que o risco materializado está no elenco de riscos predeterminados previstos no contrato de seguro. Superada essa checagem compete à sociedade seguradora mensurar a extensão dos danos e os valores necessários para reparar esses danos.

Assim, se houve uma colisão contra uma árvore, por exemplo, e o condutor não tiver agido de forma dolosa mas apenas e tão somente culposa o risco estará entre aqueles predeterminados no contrato. Cabe então mensurar quais os estragos decorrentes da colisão e quantificar os valores necessários para que se possa reparar o veículo e permitir que retorne ao estado em que se encontrava antes da colisão.

O terceiro passo do processo de regulação de sinistro consiste em viabilizar que os reparos ocorram com qualidade e em um tempo razoável, de sorte a não trazer mais prejuízos ao contratante ou consumidor.

Não basta, portanto, que se chegue ao valor necessário para a indenização, é preciso também garantir que os reparos sejam realizados com qualidade e que o segurado tenha seu interesse legítimo devidamente protegido.

Ao mensurar a extensão do dano nos sinistros amparados por contrato de seguro de automóvel durante a fase de regulação de sinistro, as sociedades seguradoras determinam que partes do bem prejudicado deverão ser reparadas, quais as peças que deverão ser substituídas e quais poderão ser reparadas e recolocadas no veículo, por exemplo.

Essa mensuração da extensão dos danos é papel das sociedades seguradoras derivado do seu dever fundamental de administrar o fundo comum, impedindo que ele sofra perdas indevidas que repercutirão para todos os demais participantes do grupo, inclusive majorando sensivelmente os valores de prêmio de seguro a serem pagos em período subseqüente de contratação.

Quem mensura extensão de danos e por vezes limita substituição de peças e componentes do veículo assume, subsidiariamente, a responsabilidade pelos serviços realizados.

Essa conclusão é resultado da interpretação sistemática e axiológica que o parágrafo único do artigo 6º do Código de Defesa do Consumidor permite. Determina o mencionado parágrafo que: "Tendo mais de um autor a ofensa, todos responderão solidariamente pela reparação dos danos previstos nas normas de consumo."

Analisado o parágrafo único do artigo 6º de forma integrada com os artigos 18 e 19, caput, artigo 25 parágrafos primeiro e segundo e artigo 34, todos do Código de Defesa do Consumidor, é possível concluir que as sociedades segurados no momento que fixam a extensão dos danos e autorizam a efetivação de serviços de reparo que serão por ela remunerados, assumem a responsabilidade solidária prevista na lei consumerista pela prestação do serviço.

Nesse sentido, os Tribunais de Justiça do Estado de S.Paulo e do Rio de Janeiro já haviam determinado que:

PODER JUDICIÁRIOSÃO PAULOTRIBUNAL DE JUSTIÇASEÇÃO DE DIREITO PRIVADO36" CÂMARAAPELAÇÃO SEM REVISÃO N.° 900.586-0/0APELANTE: Marítima Seguros S/AAPELADO: Ademar Teixeira de CarvalhoCOMARCA: São Paulo - 11" V. Cível (Proc. n.° 64907/04)VOTO N.° 2113EMENTA:ACIDENTE DE VEÍCULO - SEGURO - OBRIGAÇÃODE FAZER - RELAÇÃO DE CONSUMOCONFIGURADA - RESPONSABILIDADE SOLÍDARIACOM OFICINAS CREDENCIADAS, CONVENIADASOU TERCEIRIZADAS PELOS DANOS CAUSADOS AOCONSUMIDOR - OCORRÊNCIA - DANO MORAL PRODUÇÃO DE PROVAS - DESNECESSIDADE INDENIZAÇÃO MANTIDA.Apelação Improvida.2007.001.52827 - APELACAO CIVEL - 1ª Ementa

DES. CONCEICAO MOUSNIER - Julgamento: 08/10/2007 - VIGESIMA CAMARA CIVEL.

Ação indenizatória por danos materiais e morais. Contrato de seguro de automóvel. Roubo do veículo segurado. Má prestação do serviço. Sentença julgando procedente o pedido. Inconformismo da seguradora 1ª Ré. Entendimento desta Relatora quanto à parcial reforma da sentença a quo somente para fixar o termo a quo da correção monetária incidente sobre a condenação a título de danos morais a contar da publicação da sentença. S. 97 do TJRJ. Agravo retido não conhecido, tendo em vista o descumprimento do disposto no art. 523, § 1°, do CPC. Inexistência de cerceamento de defesa. Incidência do CoDeCon. Responsabilidade solidária das Rés (seguradora e oficina). O atraso de 6 meses na entrega do veículo ultrapassa os meros aborrecimentos do dia-a-dia. Configuração de dano extra patrimonial, adequadamente fixado em R$ 7.600,00. Danos materiais devidos, pois comprovados por meio de recibos. DADO PARCIAL PROVIMENTO AO APELO na forma do art. 557, § 1°-A, do CPC.

Nos Tribunais de Justiça do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais o tema foi tratado da mesma maneira, ou seja, com a condenação solidária de sociedades seguradoras e oficinas.

TIPO DE PROCESSO: Recurso Cível

NÚMERO:  71000981381   Inteiro Teor   Decisão: Acórdão

RELATOR: Ricardo Torres Hermann

EMENTA: AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS MATERIAIS E MORAIS. CONTRATO DE SEGURO FACULTATIVO DE VEÍCULO. RESPONSABILIDADE PELO FATO DO SERVIÇO. OFICINA MECÂNICA INDICADA PELA SEGURADORA. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA. SUBTRAÇÃO DE PEÇAS DO VEÍCULO E DO DOCUMENTO DE REGISTRO. CONSERTO DEFICIENTEMENTE PRESTADO. NECESSIDADE DE ALUGUEL DE RODAS E PNEUS. GASTOS COM TÁXI. ALUGUEL DE VÍCULO PARA VIAGEM. DANOS MORAIS EVIDENCIADOS. 1. Não se trata de mero vício de qualidad...

DATA DE JULGAMENTO: 09/11/2006

Número do processo: 1.0024.04.493505-4/001(1)

Relator: UNIAS SILVA

Relator do Acórdão: UNIAS SILVA

Data do Julgamento: 11/03/2008

Data da Publicação:

05/04/2008

Inteiro Teor:

EMENTA: AÇÃO DE INDENIZAÇÃO - SINISTRO - CONTRATO DE SEGURO DE VEÍCULO - ROUBO - RECUPERAÇÃO - CONSERTO - OFICINA - PRAZO CONTRATUAL PARA REGULAÇÃO TOTAL DO SINITRO - 30 DIAS - PERDA TOTAL - NÃO OCORRÊNCIA - DEMORA INJUSTIFICADA - DANOS MORAIS EXISTENTES.A seguradora e a oficina mecânica onde se encontra para conserto o veículo sinistrado não podem ultrapassar injustificadamente o prazo previsto no contrato para devolução do bem devidamente consertado, sob pena de serem condenadas ao pagamento de uma indenização por danos morais ao cliente.

Diante desse entendimento, as sociedades seguradoras passaram a credenciar/referenciar oficinas mecânicas para serem utilizadas pelos segurados para os reparos de seus veículos, ou ainda dos veículos de terceiros nos casos de seguros de responsabilidade civil facultativa de veículos. Essas oficinas que devem atender a critérios de qualidade e eficiência propostos pelas sociedades seguradoras, são visitadas por técnicos em reparos automotivos que avaliam as condições de trabalho apresentadas e se comprometem a manter padrões de qualidade, eficiência e segurança sob pena de não serem referenciadas por seguradoras.

Os critérios para escolha são eminentemente técnicos, mas sem dúvida existem também componentes de ordem mercadológica que precisam ser considerados.

Ao ser referenciada por uma sociedade seguradora a oficina adquire a expectativa de receber uma significativa quantidade de serviços, com regularidade e de forma sistemática. Também adquire a expectativa de construir uma relação comercial que permita práticas que não seriam possíveis para clientes com atendimento esporádico, como por exemplo, uma melhor precificação do valor da hora-trabalhada ou, ainda, a prioridade no atendimento dos casos encaminhados pela sociedade seguradora com redução do tempo do veículo na oficina, ou também o atendimento de requisitos de qualidade e eficiência mais minuciosos, exigidos pelo parceiro regular.

Essa relação comercial e técnica mais fortalecida que se estabelece entre aquele que seleciona e credencia e aquele que é selecionado e credenciado é fruto das relações de mercado, relações que como se sabe tem natureza econômica mas não se limitam a essa dimensão, alcançando também aspectos de direito, de política e de ética.

Nesse sentido, Perlingieri afirma

Mercado e iniciativa econômica privada, colocados no sistema sócio-normativo historicamente determinado, são noções não apenas de forte valor jurídico, mas também ideologicamente emblemáticas.

As perspectivas são multiformes e antagonistas: mercado como garantia ou negação da liberdade, lugar dos méritos pessoais ou ocasiões de sorte e de risco, fator de subjetividade ou de homologação, rede de cooperação ou arena conflitual. É inegável, além disso, que o desenvolvimento histórico do mercado, na grande variedade de suas formas, colocou em evidência a progressiva necessidade de direção ética e jurídica da vida econômica. (O Direito Civil na Legalidade Constitucional, 2008, p. 500)

O mercado é, portanto, o espaço privilegiado da atividade econômica na sociedade contemporânea, mas que não se limita ao econômico incluindo aspectos éticos e jurídicos que se impõe pela própria natureza da atividade econômica e de sua repercussão na vida dos seres sociais, na proteção ou no ultraje da dignidade das pessoas humanas destinatárias dessa atividade econômica.

A construção de uma parceria entre os agentes que realizam negócios de forma reiterada e sistemática pode alcançar parte dessa dimensão ética e jurídica, apresentando traços de moralidade fortalecidos pela confiança e parceria que relações contínuas e cotidianas costumam propiciar.

Em princípio, portanto, não há nada condenável seja no âmbito empresarial ou no aspecto de defesa do consumidor que agentes econômicos fortaleçam laços de parceria e trabalho conjunto, sempre que respeitados os aspectos éticos e jurídicos dessas parcerias e, em conseqüência, respeitados os direitos do consumidor.

No aspecto jurídico as parcerias entre sociedades seguradoras e oficinas referenciadas está garantido pela proteção do Código de Defesa do Consumidor e do Código Civil brasileiro, ambas leis nascidas sobre a égide de uma nova ordem jurídica instaurada a partir da Constituição Federal de 1988, com marcante dimensão protecionista da dignidade da pessoa humana em todos os seus múltiplos aspectos.

Ao indicar uma oficina referenciada a sociedade seguradora assume, imediatamente, a responsabilidade solidária sobre a qualidade e eficiência dos serviços prestados. Mas isso não é tudo. Ao indicar ao consumidor que utilize os serviços de uma oficina mecânica referenciada, a sociedade seguradora contribui para mitigar a vulnerabilidade do consumidor.

A utilização de veículos de passeio nos grandes centros urbanos é cada vez mais imperiosa, seja pelo exacerbado crescimento das cidades, seja pela fragilidade do transporte coletivo que não atende satisfatoriamente todos aqueles que dele necessitam. Utilizar um veículo de passeio para se deslocar de casa para o trabalho e deste para outras atividades regulares, como escola, universidade, centros de compra, academias de ginástica, práticas de lazer, entre outras, tornou-se um hábito de grande parte dos moradores.

Para minimizar essa responsabilidade assumida automaticamente a partir da indicação de uma oficina referenciada, as sociedades seguradoras são rigorosas na escolha de seus credenciados ou referenciados, realizando visitas prévias para análise de equipamentos e de pessoal técnico utilizado, tempo de serviço médio, precificação praticada, fornecedores de peças e equipamentos, entre outros itens avaliados previamente à escolha.

Os parâmetros de avaliação que as sociedades seguradoras utilizam não são aleatórios. Ao contrário, são fruto de pesquisas realizadas pelo CESVI BRASIL, Centro de Experimentação e Segurança Viária) que é o único centro de pesquisa do país dedicado ao estudo da reparação automotiva, tendo sido ainda o primeiro da América Latina. O CESVI é membro do RCAR (Research Council for Automobile Repair), um conselho internacional que reúne 26 centros de pesquisa em reparação e segurança viária em todo o mundo.

Os objetivos do Centro de Experimentação e Segurança Viária – CESVI BRASIL são estudar, avaliar e oferecer soluções para os trabalhos de reparação automotiva e contribuir para a prevenção de acidentes automotivos. Para isso ele realiza pesquisas, treinamento e publicações técnicas.

O CESVI mantém convênio com a Confederação Nacional das Empresas de Seguros e Capitalização, a CNSeg, e esse convênio proporciona às seguradoras que integram a confederação que tenham o CESVI como um verdadeiro Núcleo de Pesquisa Automotiva, para o qual são encaminhadas consultas e do qual recebem informações técnicas referentes a reparação dos diversos veículos disponíveis no mercado de automóveis.

As exigências que as sociedades seguradoras fazem para avaliar uma oficina reparadora e concluir se ela pode ou não ser credenciada ou referenciada são oriundas das informações técnicas desse Núcleo de Pesquisa Automotiva. É a partir do resultado dos estudos e pesquisas do Núcleo que as sociedades seguradoras estabelecem parâmetros que deverão obrigatoriamente ser atendidos pelas oficinas reparadoras, não apenas no tocante à formação técnica de seus empregados, como também no que se refere a equipamentos e técnicas que devam utilizar.

Infelizmente, nem sempre as reparadoras conseguem atender a esses parâmetros de qualidade técnica, ficando desse modo impedidas de serem relacionadas como referenciadas de sociedades seguradoras.

De outro lado, é essencial que as sociedades seguradoras sejam rigorosamente técnicas em sua avaliação para ingresso de oficinas em sua rede referenciada, porque com isso garantem maior respeito e segurança aos consumidores que forem utilizar os serviços dessas oficinas.

Resta discutir, ainda, se a o credenciamento ou referenciamento de oficinas reparadoras pode significar uma ameaça à livre iniciativa, princípio constitucional fundamental da ordem econômica brasileira.

No sistema constitucional brasileiro os princípios da livre-iniciativa e da livre-concorrência caminham juntos, um garantindo que o outro possa ser respeitado integralmente. Não há liberdade de iniciativa privada possível de ser concretizada se não houver livre concorrência. Em um cenário de monopólio, por exemplo, a liberdade de iniciativa empresarial estará fadada ao insucesso. Empresas que concentram produção e domínio de mercado impedem a concorrência e, com isso, igualmente impedem a liberdade de iniciativa.

José Afonso da Silva adverte

Os dois dispositivos se complementam no mesmo objetivo. Visam tutelar o sistema de mercado e, especialmente, proteger a livre concorrência, contra a tendência açambarcadora da concentração capitalista. A Constituição reconhece a existência do poder econômico. Este não é, pois, condenado pelo regime constitucional. Não raro esse poder econômico é exercido de maneira anti-social. Cabe, então, ao Estado intervir para coibir o abuso. (1999, p.769)

Analisando os princípios constitucionais da ordem econômica, Luiz Antonio Rizzatto Nunes enfatiza

Ao estipular como princípios a livre concorrência e a defesa do consumidor, o legislador constituinte está dizendo que nenhuma exploração poderá atingir os consumidores nos direitos a eles outorgados (que estão regrados na Constituição e também nas normas infraconstitucionais). Está também designando que o empreendedor tem de oferecer o melhor de sua exploração, independentemente de atingir ou não os direitos do consumidor. Ou, em outras palavras, mesmo respeitando os direitos do consumidor, o explorador tem de oferecer mais. A regra constitucional exige mais. Essa ilação decorre do sentido da livre concorrência.

Quando se fala em regime capitalista fundado na dignidade da pessoa humana, nos valores sociais e da cidadania, como é o nosso caso, o que se está pressupondo é que esse regime capitalista é fundado num mercado, numa possibilidade de exploração econômica que vai gerar responsabilidade social, porque é da sociedade que se trata.

(...)

A livre concorrência é essencialmente uma garantia do consumidor e do mercado. Ela significa que o explorador tem de oferecer ao consumidor produtos e serviços melhores do que os de seu concorrente. Essa obrigação é posta ad infinitum, de forma que sempre haja melhora. Evidente que esse processo de concorrência se faz não só pela qualidade, mas também por seu parceiro necessário: o preço. Todo elemento concorrencial na luta pela consumidor é o binômio: "qualidade/preço". (2005, p. 56-57)

A lição do professor Dr. Rizzatto Nunes aborda dois aspectos fundamentais para o tema ora tratado: a necessidade de permanente melhora nos produtos e serviços prestados ao consumidor; e, a necessidade de oferta de boa qualidade acompanhada com boa precificação.

Ao credenciar/referenciar oficinas reparadoras de automóveis, as sociedades seguradoras tentam atender a essas duas exigências emanadas da própria Constituição Federal: oferecer qualidade e bom preço.

De fato, a lógica matemática é a de que quanto menos a seguradora utilizar do fundo comum para pagamento de indenizações, mais sólido e hígido será esse fundo comum permitindo que na renovação dos contratos de seguro após o período de um ano que normalmente vigem, não seja necessário acrescer muito ao valor do prêmio que deverá ser pago pelo segurado.

O aumento de gastos com reparação de veículos repercute na experiência anual do fundo comum, repercute nas reservas que a sociedade seguradora precisa manter por força de lei. Dessa forma, quanto mais o fundo comum for utilizado maior será a necessidade de compensá-lo com o aumento de entrada de capital que virá exclusivamente do pagamento de prêmios de seguro feito pelos próprios segurados.

Hoje se sabe, por meio de estudos sistemáticos de sinistralidade e localização geográfica que algumas regiões do país são mais propensas a furto e roubo de veículos que outras. Nessas localidades de maior incidência de furto e roubo o valor dos prêmios anuais de seguro também é maior, porque o fundo comum é mais utilizado e precisa ser recomposto.

No caso dos reparos de veículos a lógica é a mesma. Quanto mais caros forem os reparos maior será a necessidade de utilizar o fundo comum e, consequentemente, de recompô-lo. Quanto mais ele for utilizado com ciência e eficiência, mais benefício terá o consumidor que contará com serviços de qualidade a preços justos.

Assim, o credenciamento ou referenciamento de oficinas reparadoras não apenas contribui para a melhoria do mercado de reparação de veículos, porque incentiva a constante melhoria de pessoal e de equipamentos utilizados, como também é benéfica para o consumidor que tem sua vulnerabilidade mitigada e, ao mesmo tempo, ganha a parceria das sociedades seguradoras no momento de escolher quem fará os reparos de seu veículo.

Se esses aspectos positivos do referenciamento não podem ser ignorados, resta propor alternativas que possam contribuir para a melhoria do projeto de lei apresentado pelo Deputado Estadual Fernando Capez da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo.

Em princípio, o projeto poderia ser acrescido de dois aspectos fundamentais, para torná-lo totalmente em consonância com a legislação consumerista em vigor:

a) a possibilidade de indicação de oficina referenciada mediante concordância expressa do segurado ou do terceiro;

b) a necessidade de cláusula específica no contrato de seguro a respeito da possibilidade de ser indicada oficina referenciada.

No tocante ao primeiro item, é importante que a lei especifique que as seguradoras poderão indicar oficinas referenciadas, e que os segurados ou terceiros utilizarão essas oficinas se concordarem com o oferecimento. Caso concordem deverão fazê-lo expressamente, por escrito, encaminhando por intermédio da própria oficina, ou por meio eletrônico diretamente para a sociedade seguradora.

Assim, os consumidores que desejarem utilizar os serviços da rede referenciada poderão fazê-lo, bastando que forneçam um comprovante de que foram previamente consultados e concordaram.

Havendo oferta prévia de utilização de oficina reparadora referenciada e concordância do segurado ou do terceiro quanto à utilização do serviço dessa natureza, a sociedade seguradora poderá diferenciar prazos e serviços a serem fornecidos, estabelecendo um diferencial que lhe permita cumprir de forma mais adequada a regra de livre-concorrência e respeito ao consumidor previstas na Constituição Federal.

De fato, se a sociedade seguradora oferece uma rede referenciada previamente analisada e avaliada e para a qual se tem a expectativa de que os serviços serão de melhor qualidade e de melhor preço, é justo que a sociedade seguradora que está assumindo a responsabilidade pela indicação ofereça um tratamento diferenciado ao segurado ou terceiro optante do serviço credenciado.

Essa diferenciação vedada no projeto atende ao disposto no princípio constitucional da livre-concorrência e não ofende a legislação consumerista que, pugna pela oferta de melhores produtos e serviços por melhores preços de modo a oferecer maiores possibilidades para o consumidor de todas as faixas de poder aquisitivo.

Essa diferenciação, a propósito, é prática costumeira de mercado. Os portadores de certos cartões de crédito têm mais benefícios que outros; os correntistas de determinadas instituições bancárias têm maior quantidade de agências e caixas eletrônicos que correntistas de outros bancos; consumidores que escolhem determinados supermercados têm tratamento diferenciado de outros; ser portador de cartão de fidelidade de farmácias, bares, restaurantes ou livrarias permite acesso a descontos que outros consumidores não possuem; as companhias aéreas fornecem programas de milhagem diferenciados para seus consumidores, conforme utilizem maior quantidade de vezes a mesma companhia e adquiram passagens para destinos mais distantes.

O Código de Defesa do Consumidor não veda e nem poderia fazê-lo, a livre concorrência e suas múltiplas formas de manifestação. Ao contrário, como assevera Rizzatto Nunes

Por que a Constituição Federal brasileira assimilou da história essa idéia de livre concorrência? Na verdade, ela assimilou porque a livre concorrência implica proteção ao consumidor.

Pensar, então, essa questão constitucional é entender o que ela quer dizer com livre concorrência e isso só pode significar melhores produtos e serviços a iguais ou menores preços. "Melhor" produto ou serviço quer dizer mais segurança, mais eficiência, mais economia de uso, maior durabilidade, menor índice de quebra (vício) e menor possibilidade de acidente (defeito), etc. (2005, p. 59)

Se as sociedades seguradoras têm elementos técnicos para selecionar no mercado de oficinas reparadoras aquelas que atendem melhor às necessidades de qualidade, eficiência e preço, e se gastam valores pecuniários para aferir e relacionar essas oficinas, é justo que possam oferecer aos segurados e terceiros que quiserem utilizá-las melhores condições gerais de consumo, seja no tocante a prazos de entrega, a tempo de uso de carros reserva, entre outros benefícios.

Esse diferencial é constitucional, integra o princípio da livre-concorrência, não traz prejuízos àqueles que não optarem porque eles certamente levarão em conta outras facilidades, como a localização da oficina reparadora, a proximidade com os funcionários e proprietários, entre outros de livre escolha do consumidor.

De todo modo, o princípio constitucional da livre-concorrência é completado na área do consumo pelo princípio do dever de informar. Por isso ganha vulto e importância o segundo item, ou seja, a redação de clausulado específico nos contratos de seguro para esse fim.

No tocante ao segundo item, do clausulado, é fundamental que os contratos de seguro contenham cláusula específica estabelecendo que as sociedades seguradoras podem oferecer rede referenciada para a reparação dos veículos danificados em acidente, e explicitando que a rede referenciada foi elaborada após análise dos serviços prestados pelas reparadoras, que foram avaliadas a partir de conceitos técnicos sugeridos por entidade de pesquisa, no caso o CESVI BRASIL.

A lista de reparadoras referenciadas deverá estar acessível na página da sociedade seguradora na rede mundial de computadores, como já se pratica atualmente. A retirada ou substituição de uma oficina reparadora da lista deverá ser informada imediatamente na página eletrônica da sociedade seguradora, em campo próprio.


5. CONCLUSÃO

Os seguros de automóvel são hoje uma necessidade de tantos quantos possuem veículos e deles se utilizam cotidianamente, para as mais variadas atividades profissionais e pessoais.

Nos grandes centros urbanos brasileiros, todos com notórias dificuldades de acesso ao transporte coletivo, possuir um veículo é, muitas vezes, a diferença necessária para poder estudar e trabalhar, ou ainda para poder conciliar atividades em locais distantes. Para muitos o veículo é diferencial fundamental para garantir o rendimento mensal.

Os acidentes de trânsito são uma epidemia social no país e resultam dos mais variados fatores. Entre os principais se destaca a inadequada preparação dos motoristas, a negligência na condução dos veículos, as vias precárias nas cidades e nas estradas, a má sinalização e, o estado de conservação de parte da frota nacional que é bastante precário.

Contratar um seguro de automóvel é medida de proteção ao próprio consumidor e para terceiros, porque habitualmente com a contratação do seguro de automóvel também se contrata o seguro de responsabilidade civil facultativa de veículos, que protege os terceiros nos acidentes causados por segurados.

Há evidente função social nos contratos de seguro em geral e, essa importância social se avulta quando se trata de seguros de automóvel, até por isso um dos ramos mais praticados no país.

Regulamentar, disciplinar, regrar as relações de consumo e de seguro é medida própria de sociedades evoluídas, que buscam pela via do legislativo alternativa para potencializar a paz e o equilíbrio sociais. Mas é preciso que a cautela e o profundo conhecimento dos intrincados mecanismos da operação de seguros seja levado sempre em conta.

Quando se trata do oferecimento de um serviço individual, como um contrato de agenciamento de viagem de turismo, por exemplo, é possível identificar facilmente os erros e acertos do prestador de serviços e, quando não, é possível identificar as práticas nefastas que prejudicam o consumidor e aumentam de forma indevida o lucro do prestador de serviços.

Por ser um contrato individual em que os valores pagos pelo consumidor repercutirão diretamente nos serviços que lhe serão prestados, não é difícil identificar as boas práticas e separá-las daquelas que são ruins.

Nos contratos de seguro nem sempre há facilidade para perceber as boas e as más práticas, porque os valores pagos pelos segurados não são utilizados apenas em seu proveito específico, mas sim em proveito de vários segurados ao mesmo tempo, todos contribuindo para a formação de um fundo comum que em benefício de todos será utilizado.

Ao longo dos tempos, as sociedades seguradoras foram criando mecanismos científicos e técnicos para tornar a operação de seguro cada vez mais confiável, cada vez mais segura para todos aqueles que para ela contribuem e para a sociedade como um todo.

Assim criaram os bônus como desconto para os que não provocam ou não se envolvem em sinistros ano após ano. Os bônus são descontos que se aplicam aos valores dos prêmios de seguro, premiando aqueles que são mais cuidadosos, mais diligentes na condução e na guarda de veículos. Quando o acidente é causado por um terceiro e envolve o veículo segurado, este se torna legitimado para pleitear em juízo a devolução dos valores do bônus que perdeu, junto ao causador do acidente por não ter sido resultante de sua culpa.

Outro diferencial criado foi o seguro cuja precificação é calculada a partir da análise das respostas de um questionário, no qual as sociedades seguradoras aferem as principais características de utilização do veículo por parte do segurado e dos condutores por ele autorizados. A guarda do veículo em garagem no período diurno e noturno, a idade dos condutores, o uso comercial ou privado do veículo, a quantidade de quilômetros rodados no mês, entre outras características perguntadas, são dados utilizados para aferir se o segurado cria maior ou menor quantidade de risco para o veículo e, consequentemente, para viabilizar uma precificação mais adequada com a realidade do segurado.

Esses mecanismos da livre iniciativa visam permitir que a relação de consumo seja mais equilibrada, permitindo a prestação de bons serviços a preços justos e com viés de lucro para aquele que presta a atividade, tudo em consonância com a Constituição Federal em vigor em especial no capítulo da ordem econômica.

A análise do trabalho das oficinas reparadoras e a conseqüente elaboração de uma rede de oficinas é mais uma estratégia do mercado de seguros brasileiro, visando agora a garantia da excelência de serviços por preços justos que não impactem a precificação de prêmios de seguro.

Essa intrincada equação tem elementos de matemática, estatísticas e probabilidades, mas tem também fundamentos éticos importantes que não podem ser desconsiderados.

Assim, a proposta desta reflexão é que as sociedades seguradoras possam operar com redes referenciadas de empresas reparadoras de veículos, que isso seja amplamente informado ao segurado inclusive no clausulado do contrato de seguro, e que o segurado tenha dados suficientes que lhe permita escolher aquilo que entende mais adequado para suas necessidades.

Prestar serviços diferenciados é positivo para todos os segmentos econômicos de mercado. A competição e a diversidade que ela gera são fundamentais para que os consumidores tenham escolhas para fazer e, possam adequar suas necessidades e possibilidades àquelas escolhas que lhes parecem melhores.

Coibir o exercício dessas escolhas é condenar o consumidor brasileiro a uma situação de penúria e imaturidade, incompatível com as necessidades que se colocam para todos neste século XXI.

Este trabalho pretendeu, portanto, contribuir para o debate em torno da regulamentação da utilização das oficinas reparadoras referenciadas por parte das seguradoras, tendo como pano de fundo a proteção do consumidor, mas uma proteção que neste caso deve levar em consideração as peculiaridades e a lógica da operação de seguros.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARLINI, Angelica Luciá. Estudo sobre oficinas referenciadas no mercado de seguro de automóvel no Brasil. Estudo do Projeto de Lei nº 272/2008, do Estado de São Paulo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2081, 13 mar. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12459. Acesso em: 20 abr. 2024.