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O STF e a (im)possibilidade de mutação constitucional

O STF e a (im)possibilidade de mutação constitucional

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RESUMO

A presente monografia tem por escopo verificar a possibilidade do Supremo Tribunal Federal realizar uma mutação constitucional do art. 52, inciso X, da Constituição Federal, alterando a competência do Senado Federal. Se a este cabia suspender a execução da lei declarada inconstitucional pelo STF, agora competir-lhe-ia apenas dar publicidade às decisões, as quais já possuiriam efeitos erga omnes e vinculantes. Para tanto, faz-se uma introdução acerca dos aspectos gerais de controle de constitucionalidade e, após, traça-se o perfil do controle de constitucionalidade brasileiro. Firmadas essas premissas, analisa-se o voto do Ministro Gilmar Mendes, precursor de toda essa discussão, juntamente com os argumentos levantados pelo também Ministro Eros Grau. Adiante, questiona-se o conceito de mutação constitucional apresentado, adequando-o ao seu real significado, concluindo pela impossibilidade de sua utilização. Por conseguinte, analisa-se o papel do Supremo Tribunal Federal no ordenamento jurídico brasileiro, reconhecendo seu impedimento de alterar a Constituição Federal por meio de decisões jurídicas. Por sua vez, evidenciamos o instituto da Súmula Vinculante, reconhecendo-o como capaz de produzir os mesmos efeitos pretendidos com a Reclamação 4.335, sem que, para isso, se faça uma sorrateira alteração no corpo constitucional. Ainda, criticamos o argumento de transformar o STF em um verdadeiro Tribunal Constitucional, uma vez que lhe faltam características significantes para tanto. Reconhecemos que simplesmente atribuir efeitos erga omnes a todas as decisões do Tribunal não lhe confere o status pretendido. Por fim, reconhecemos que a pretensão dos Ministros do STF extrapola a área jurídica, adentrando num terreno da política, alheio, portanto, ás atribuições do Tribunal. Sendo assim, os meios para qualquer alteração passam pelo Poder Legislativo, sendo este o único legitimado a proceder à qualquer alteração no corpo da Constituição Federal.

Palavra-chave: mutação constitucional; controle de constitucionalidade, senado federal.


LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

art. Artigo

ADIN- Ação Declaratória de Inconstitucionalidade

ADC- Ação Declaratória de Constitucionalidade

ADPF- Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental

CF/88- Constituição Federal da República

MI Mandado de Injunção

STF- Supremo Tribunal Federal

SUMÁRIO:1 INTRODUÇÃO .2 A SUPREMACIA CONSTITUCIONAL.2.1 CONSTITUCIONALISTMO: BREVES CONSIDERAÇÕES. 2.2 FUNDAMENTOS DA SUPREMACIA CONSTITUCIONAL. 3 CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE. 3.1 ESPÉCIES DE INCONSTITUCIONALIDADE. 3.2 ESPÉCIES DE CONTROLE. 3.3 SISTEMAS DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE. 3.3.1 Sistema Norte-Americano.3.3.2 Sistema Austríaco.4 O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE BRASILEIRO. 4.1 CONTROLE CONCENTRADO. 4.2 CONTROLE DIFUSO. 5 A REINTERPRETAÇAO DO STF (GILMAR MENDES). 5.1 O PAPEL DO SENADO FEDERAL. 5.2 A SOLUÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. 6 A MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL . 6.1 ENTENDENDO A MUTACAO CONSTITUCIONAL . 6.2 A (IM)POSSIBILIDADE DE MUTAÇAO CONSTITUCIONAL. 7 CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS


1 INTRODUÇÃO

A idéia de controle de constitucionalidade das leis não é recente, sendo fruto de um amadurecimento através da História. O professor Dirley da Cunha, em sua obra CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE (2008), faz um apanhado histórico acerca dos antecedentes históricos do controle brasileiro, o qual iremos utilizar para nos embasar adiante.

No Brasil, podemos atribuir sua primeira implantação à Constituição de 1891. Neste corpo constitucional foi instituída a possibilidade de se interpor recurso contra a decisão dos Tribunais Estaduais, dirigido ao Supremo Tribunal Federal, quando se pretendesse questionar a validade ou aplicação de leis federais ou tratados.

Esse sistema assemelhava-se ao sistema norte-americano de controle difuso e incidental, no qual todos os órgãos do Poder Judiciário titularizavam a competência para exercer o controle de constitucionalidade. Contudo, apresentava a deficiência de possibilitar a convivência de decisões antagônicas, proferidas em distintos tribunais, sem que houvesse um meio apto a uniformizar essas interpretações.

A Constituição de 1934 deu um passo na evolução do nosso controle de constitucionalidade, introduzindo, dentre outras modificações, a competência para o Senado Federal suspender a execução da norma declarada inconstitucional pelo STF, de forma ampla e geral. Tal modificação objetivou sanar a deficiência do modelo anterior, prevendo um instituto capaz de unificar o entendimento do Tribunal para todo o país. Além disso, introduziu a representação interventiva, de iniciativa do Procurador-Geral da República, a ser julgada diretamente pelo STF, sendo essa a primeira característica do controle concentrado em nosso ordenamento.

Em 1965, por meio de uma Emenda à Constituição de 1946, foi oficialmente instituído no Brasil o controle concentrado de leis e atos normativos, materializado com a criação da representação genérica de inconstitucionalidade. De competência também do Procurador-Geral da República, essa representação objetiva provocar o Supremo Tribunal para que se manifestasse acerca da inconstitucionalidade de leis ou atos normativos, federais ou estatuais, em face da Constituição Federal. A Emenda ainda conferiu aos Tribunais Estaduais a competência para exercer o mesmo controle de constitucionalidade do STF, porém, no âmbito municipal confrontado com a Constituição Estadual.

Esse foi o primeiro momento em que se definiu o sistema misto de constitucionalidade no Brasil, onde conviviam os modelos difuso, já amplamente utilizado, e o concentrado, recém instituído.

Contudo, com o advento da Constituição Federal de 1988 é que o sistema misto de controle de constitucionalidade foi aperfeiçoado e delimitado, com inovações, sobretudo, no controle concentrado.

Com a vigência da Carta de 1988, foi disciplinada a Ação Direta de Inconstitucionalidade, até então vigente como representação genérica, foi criada a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão, instituto pioneiro no âmbito de controle das inconstitucionalidades e a Ação Declaratória de Constitucionalidade, bem como a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, e foi ampliado o rol de legitimados a provocar o controle concentrado do Supremo Tribunal Federa, extinguindo o monopólio do Procurador-Geral da República.

Numa análise superficial, vemos que vigora no Brasil a coexistência entre o modelo de controle de constitucionalidade difuso, que confere a todos os juízes e Tribunais a competência de apreciar a inconstitucionalidade de leis e ator normativos suscitada no curso de uma demanda, e entre o modelo concentrado, o qual atribui ao Supremo Tribunal Federal, exclusivamente, a competência para julgar Ações Diretas ajuizadas com o único fim de reconhecer a validade de certa norma, sem adentrar na discussão dos casos concretos.

Como vimos, essa coexistência de modelos persiste no Brasil desde 1965. Ao longo dos anos, os modelos foram aprimorados, novas emendas foram introduzidas para adequar o sistema à realidade, sem, contudo, perderem a unidade e essência.

Tudo caminhava normal até o julgamento da Reclamação n°4.335 no Supremo Tribunal Federal, de relatoria do Ministro Gilmar Mendes. Esta Reclamação será um marco na história do STF, independente do resultado que obtenha (até a conclusão desse trabalho, ainda encontrava-se em votação), em virtude da natureza do voto proferido pelo Ministro Relator, referendado pelo Ministro Eros Grau.

Trata-se aqui de decisão inédita na jurisdição do STF, de pretensões sem precedentes, que, caso venha a vingar, provocará uma profunda reformulação na forma como é exercido o controle de constitucionalidade no Brasil.

Em ligeira explicação, pretendem os Ministros Gilmar Mendes e Eros Grau atribuir efeitos vinculantes e erga omnes a todas as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, independente do modelo de controle de constitucionalidade exercido, seja por via difusa, seja por via concentrada, sob o argumento de que houve uma mutação constitucional no papel do Senado Federal insculpido no art. 52, X, da Constituição Federal, a qual legitima a alteração pretendida.

O presente trabalho, portanto, se dispõe a analisar o quanto pretendido pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal, a fim de verificar sua consistência em face do ordenamento jurídico pátrio. Pretende-se verificar se existem embasamentos constitucionais, doutrinários e racionais para se concretizar tais pretensões, trazendo reflexões acerca da viabilidade jurídica da mencionada mutação, bem como da viabilidade política da mesma.

Antes de adentrar no tema, propriamente, fazemos um breve estudo sobre a evolução do Constitucionalismo, fornecendo as bases para se falar em supremacia constitucional.

Consequentemente, da idéia de supremacia constitucional decorre a noção de controle de constitucionalidade, exigindo um estudo sobre espécies de inconstitucionalidade, bem como das espécies de controle e dos modelos de controle, dando ênfase à inspiração dos sistemas austríaco e norte-americano no ordenamento jurídico brasileiro.

Posteriormente, apresentamos um breve panorama sobre o controle de constitucionalidade no Brasil, como ele é exercido, os órgãos legitimados, fazendo uma distinção entre objetivos e características dos modelos difuso e concentrado em nosso país.

Só depois de fixadas essas premissas, dando uma base ao presente estudo, é que passamos a analisar o papel do Senado Federal no controle de constitucionalidade, analisando, em seguida, as alterações de sua competência pretendidas no julgamento da Reclamação n° 4.335/ACRE.

Por fim, apresentamos a noção de mutação constitucional e passamos a analisar todos os argumentos levantados, tanto nos votos dos Ministros como na doutrina, acerca da viabilidade da modificação do texto constitucional, não só do ponto de vista da mudança de um dispositivo, mas também sob o olhar crítico que essa mudança representa para o país.


2 A SUPREMACIA CONSTITUCIONAL

A constituição brasileira de 1988, bem como as demais constituições contemporâneas, sofreu influência, além de, obviamente, cada particularidade interna de cada país, de um movimento externo chamado de Constitucionalismo.

2.2 CONSTITUCIONALISMO: BREVES CONSIDERAÇÕES

O Constitucionalismo pode ser entendido como um movimento político-constitucional que pregava a necessidade da elaboração de Constituições escritas que regulassem o fenômeno político e o exercício do poder, em benefício de um regime de liberdades públicas (CUNHA JUNIOR, 2008, p.23).

Surgiu em contrapartida ao Estado absolutista, o qual impunha obediência não a um sistema estruturado vigente, mas sim à pessoa do soberano, sujeitando-se ao seu arbítrio e conveniência. Em tal ambiente político, as funções estatais eram reunidas na figura duma só pessoa, conferindo-lhe poderes amplos e irrestritos. A fim de se opor a este absolutismo, verificou-se a necessidade de dissolver o poder, instituindo-se a separação das funções estatais e pregando a positivação dos direitos e garantias fundamentais.

Segundo o mestre CANOTILHO, citado pelo professor Dirley da Cunha Junior (2008, p.24), o constitucionalismo apresenta-se como uma teoria formada por um conjunto de idéias, que exalta o princípio do governo limitado como indispensável à garantia dos direitos em dimensão estruturante da organização político-social de uma comunidade. Ou seja, a legitimidade do poder se constrói ante a sua limitação, a possibilidade de controlá-lo, ante a observância, pelo mesmo, dos direitos e garantias fundamentais.

Ainda, com o intuito de dar efetividade e afirmação a esta nova forma de Poder, emergiu-se a necessidade de concretizar tais aspirações num documento escrito e, consequentemente, perene, vinculativo, garantidor e rígido.

Frutos desse movimento surgem os novos modelos de Constituição, esta agora entendida como a lei fundamental e suprema de um Estado, que contém normas referentes à estruturação do mesmo, à formação dos poderes públicos, forma de governo e aquisição do poder de governar, distribuição de competências, direitos, garantias e deveres do cidadão (MORAES, 2003, p.36).

Trata-se, agora, de um novo modelo de Estado. Espelhado nas teorizações de MONTESQUIEU, no que se refere à separação dos Poderes, eliminou a figura do monarca, soberano, instituindo uma tripartição de funções e a criação de um sistema de freios e contrapesos.

Acrescente-se que a idéia de limitação do poder estatal, fruto do movimento aqui em comento, não se restringe à positivação de direitos e garantias individuais, abrangendo a organização estrutural do Estado, a forma de governo, a garantia das liberdades públicas e o modo de aquisição e exercício do poder, todos entendidos como garantias do cidadão em face do arbítrio.

A Constituição, portanto, passa a figurar como elemento estruturante e fundamental de todo o aparato estatal, seja na sua criação e organização, seja na sua interação com a sociedade. Constitui-se pólo central, originário, e de observância obrigatória em todo sistema jurídico que institui.

2.2 FUNDAMENTOS DA SUPREMACIA CONSTITUCIONAL

Tanto as normas constitucionais como as normas infraconstitucionais são normas jurídicas, e como tal devem ser respeitadas. Delas emanam mandamentos que a todos vinculam, seja para fazer, seja para deixar de fazer determinado ato, possuindo a característica de imperatividade.

Acrescente-se que as normas constitucionais possuem uma característica extra, que lhes é peculiar: além de jurídicas, são elas supremas. Sendo a Constituição a pedra fundamental do ordenamento, incontroverso que suas normas orientam, regulam, limitam as demais. E se existe uma norma precedente e vinculativa, será ela superior, suprema.

Tal supremacia decorre, logicamente, da natureza da Constituição. Sendo fonte da ordem jurídica, sua superioridade decorre dela própria, exigindo uma hierarquização das normas, alcançando o ápice do escalonamento. Uma norma infraconstitucional não tem como se sobrepor àquela que lhe autoriza, que lhe confere juridicidade e eficácia, pois estaria, assim, se sobrepondo ao seu próprio fundamento de validade.

Da Carta Maior se extrai o fundamento de validade de todas as demais normas do ordenamento jurídico. Isto porque, estando a Constituição no topo do ordenamento, demanda que todos os atos inferiores respeitem suas prescrições.

Como bem leciona o Doutor Dirley da Cunha Junior (2008, pg.28), a noção de supremacia é inerente à noção de Constituição, desde que essa superioridade normativa implique a idéia de uma norma fundamental, de uma Fundamental Law, cujo incontrastável valor jurídico atua como pressuposto de validade de toda ordem positiva estabelecida no Estado. A constituição é a base da ordem jurídica e o fundamento de sua validade. Como norma jurídica fundamental, ela goza do prestígio da supremacia em face de todas as normas do ordenamento jurídico.

Imprescindível ressalvar que estamos falando de Constituições rígidas, segundo classificação doutrinária. É que, se assim não for, não há que se falar em supremacia, na medida em que não há hierarquia. Caso se identifique uma constituição que admita ser transformada por força de qualquer manifestação legal, infraconstitucional, restaria inócua a noção de submissão da lei à constituição. Se a sua observância não é cogente, não existe, portanto, superação de valores.

Conforme reconhece Raul Machado Horta (2003, pg.126), a Constituição ganha rigidez. A aderência da rigidez ao conceito de Constituição formal acentua e robustece a distinção entre lei ordinária e lei constitucional, mediante disposição hierárquica, sob a égide suprema da Lei Magna.

Acrescenta o renomado autor que ao conteúdo político das Constituições escritas, a rigidez acrescenta conteúdo jurídico. Assim concebido, o texto constitucional passa a ser fonte e referencia obrigatórias do ordenamento jurídico, impondo a hierarquização das normas em duplo grau: no topo, a constituição, abaixo, as normas infraconstitucionais.

Assim, depreende-se que a própria Constituição se encarrega de prever e assegurar sua perenidade, com o escopo de garantir a ordem do próprio sistema por ela inaugurado.

Frise-se que tal supremacia não decorre de opção, mas sim de imposição lógica. Da noção de Constituição apresentada por Uadi Lammêgo Bulos (2008, pg.28), absorvemos traduzir-se um conjunto de normas jurídicas que estatuem direitos, prerrogativas, garantias, competências, deveres e encargos, delimitando a organização estrutural do Estado, da forma de governo, da garantia das liberdades públicas e do modo de aquisição e exercício do poder.

A natureza originária, primordial, disciplinadora e estruturante de uma constituição reclama sua superioridade, a partir do momento em que reúne em seu corpo as disposições necessárias ao próprio funcionamento do Estado.


3 CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

Da idéia de supremacia constitucional decorre a idéia de (in)constitucionalidade das normas infraconstitucionais. Estas devem obediência àquela, tanto no aspecto formal, quanto no aspecto material.

A Constituição positivou em seu corpo aquilo que considera fundamental, traçando as diretrizes a serem seguidas pelos Poderes instituídos. Contudo, foi além. Não se limitou a prescrever a materialidade, o conteúdo dos atos normativos, mas também a forma como tais atos deveriam ingressar no ordenamento jurídico. Dessa adequação com a Constituição origina-se a noção de constitucionalidade/inconstitucionalidade das normas, nos casos de conformidade ou desconformidade, respectivamente, com a Carta Magna.

Não é demais ressaltar que a supremacia constitucional objetiva resguardar o próprio Estado Democrático de Direito. Rememoremos que este modelo constitucional surgiu justamente com o escopo de limitar o Estado Absolutista, instituindo garantias e mecanismos que lograssem democratizar o poder e impor freios à atividade estatal.

Por sua vez, é imprescindível que este modelo alcançado se mantenha rígido e duradouro, justificando, assim, a supremacia que a Constituição adquiriu em face de toda a ordem jurídica, sendo imprescindível protegê-la de ingerências futuras que objetivem desconstituí-la.

Tal modelo estaria comprometido se não existissem meios que pudessem assegurar a força cogente da Constituição. Para viabilizar a permanência do sistema jurídico, origina-se o Controle de Constitucionalidade, que significa verificar a adequação (compatibilidade) de uma lei ou de um ato normativo com a Constituição, verificando seus requisitos formais e materiais (MORAES, 2003, p.579).

Isso porque, apesar de sua supremacia nata, a constituição não está imune a violações e transgressões, demandando instrumentos que possibilitem a manutenção da sua regularidade.

3.1 ESPÉCIES DE INCONSTITUCIONALIDADE

Ao se falar em inconstitucionalidade, deve-se ter em mente que ela pode ocorrer de formas variadas, ensejando, portanto, uma atenção por parte do intérprete em relação a requisitos variados a serem analisados.

A doutrina costuma apontar diferentes classificações quanto à sua ocorrência, entretanto, vamos nos ater àquelas mais diretas e relevantes.

Num primeiro plano, analisam-se os requisitos ditos formais da lei ou ato a ser analisado face à Constituição. É que a Carta Magna apresenta requisitos a serem cumpridos para a produção de atos normativos, requisitos estes indispensáveis à validade e eficácia do ato.

Assim, do ponto de vista subjetivo, deve-se analisar a iniciativa do projeto de lei ou competência para realização do ato. Nos casos em que a Constituição expressamente os determina, torna-se imprescindível sua observância. Tal rigor evidencia-se, num claro exemplo, na hipótese de lei de iniciativa exclusiva do Chefe do Executivo, quando não por este apresentada, torna-se formalmente inconstitucional, impossibilitada de convalidar-se, inclusive, com a sanção do próprio legitimado.

Do ponto de vista objetivo, ainda versando sobre inconstitucionalidade formal, merecem ser respeitados os demais requisitos relacionados ao regular desenvolvimento do processo legislativo ou de produção do ato. Assim, nos casos em que a Constituição prevê quorum específico para aprovação de determinada matéria, exemplo das leis complementares, será ele requisito indispensável à legitimidade da lei ou ato.

Num outro plano, afastando-se dos requisitos formais, teremos os requisitos ditos materiais, que merecem observância por parte do legislador e do produtor do ato analisados. Neste caso, a norma deverá compatibilizar-se, do ponto de vista do seu conteúdo, com o quanto preceituado na Constituição. A matéria regulada infraconstitucionalmente deve harmonizar-se com os preceitos da Constituição, traduzindo seus valores, objetivos, anseios e programas.

Neste momento, cumpre acrescentar que o caráter programático da nossa Constituição ganha relevo, a partir do momento em que, sendo certo que todas as normas constitucionais possuem uma eficácia mínima, aquelas ditas programáticas, quando não úteis para assegurar imediatamente direitos, serão utilizadas, no mínimo, como paradigma para se verificar a adequação de determinada norma ao espírito da Constituição.

Há ainda que se falar em inconstitucionalidade por ação e inconstitucionalidade por omissão.

A inconstitucionalidade por ação reflete o modelo clássico de infração, representando uma ação, um comportamento comissivo, contrário à Constituição.

Já a inconstitucionalidade por omissão, como o próprio nome esclarece, consiste num não-fazer, numa falta, numa abstenção. Entretanto, não é qualquer comportamento faltoso que ensejaria uma inconstitucionalidade por omissão. Há de ser aquele comportamento do qual a Constituição exige uma ação, uma conduta, obriga o legislador a atuar com precisão para aquela matéria.

É mais fácil a compreensão do tema quando se tem em mente uma Constituição dirigente, a qual não só determina a organização e a estrutura do Estado, a forma de exercício dos Poderes, os direitos e garantias fundamentais, mas também traça planos, objetivos, prioridades e ações que devam ser prioridade para os futuros governantes. Assim, o próprio corpo constitucional já vincula o futuro legislador às escolhas por aquele tomadas, determinando a regulamentação dessas matérias.

Face esta realidade, portanto, surge a inconstitucionalidade por omissão, nos casos em que a Constituição determina uma atividade específica do legislador e este queda inerte.

3.2 ESPÉCIES DE CONTROLE

Cada ordenamento jurídico apresenta uma forma de exercer o controle de constitucionalidade. De uma forma geral, podemos dividir as diferentes espécies com base em quatro parâmetros: quanto à natureza do órgão julgador, quanto ao momento da fiscalização, quanto à quantidade de órgãos legitimados e quanto à forma de argüição da inconstitucionalidade.

No que concerne à natureza do órgão julgador, temos que o controle pode ser: político, jurisdicional ou misto.

O controle de constitucionalidade político é aquele realizado por um órgão estranho ao Poder Judiciário. Sendo assim, pode-se concluir não se tratar de um controle técnico, objetivo, mas sim de um controle de conveniência e oportunidade. Fundamenta sua razão de ser no principio da separação dos poderes, posto que conferir a juízes o poder de desconstituir manifestações que, em tese, representam a soberania popular resultaria numa supervalorização do Judiciário em relação aos outros Poderes.

Já o controle de constitucionalidade jurisdicional é, em regra, desempenhado por órgãos que integram a estrutura do Poder Judiciário, porém pode ser conferido também a órgãos a ele exteriores. O que lhes assemelha é a natureza judicial das suas deliberações, em oposição à natureza política do controle anterior. Nessa forma de controle, prevalecerá a legitimidade da lei face a Constituição, analisada sob um ponto de vista, também em tese, técnico e imparcial.

O controle misto reúne as características do controle político e jurisdicional. Objetiva conjugar os pontos positivos de ambos, eliminando suas imperfeições. Há quem defenda ser esta a melhor forma de se exercer o controle de constitucionalidade (BULOS, 2008, pg.112),

Levando-se em consideração, agora, o momento de exercício do controle de constitucionalidade, podemos classificá-lo em preventivo ou repressivo.

Preventivo é o controle realizado anteriormente ao ingresso da norma no ordenamento jurídico. Objetiva evitar que uma norma tida por inconstitucional complete o ciclo para adquirir eficácia e comece a produzir efeitos.

Repressivo será aquele destinado a expurgar a norma maculada pela inconstitucionalidade do ordenamento jurídico vigente. A norma já existe, já produz seus regulares efeitos, contudo, afronta a Constituição. Os órgãos competentes, portanto, serão provocados para se manifestar e, uma vez reconhecido o vício da norma, perderá ela sua validade para o sistema que a declarou incompatível com a Constituição.

Impende ressaltar que as espécies de controle se interligam, se misturam, não se excluem. Essas são classificações que se complementam, combinando-se para alcançar um melhor desempenho de fiscalização. Assim, podemos falar, por exemplo, em controle jurisdicional preventivo ou repressivo, controle político repressivo ou preventivo, dentre outros.

No tocante à quantidade de órgãos legitimados a exercer o controle, classificam-se em controle difuso e controle concentrado.

O controle será concentrado quando a competência para apreciar a constitucionalidade de uma norma for conferida a um único órgão, exclusivamente. Independente de quais ou quantos são os legitimados a propor a manifestação do órgão, será este o único com poder de declarar a (in)constitucionalidade de uma norma. Fazendo-se uma correlação com as outras classificações, vemos que este órgão pode ter natureza política ou jurisdicional. Esta natureza não interfere na classificação como concentrado.

Por outro lado, o controle será difuso quando a legitimidade para apreciar a constitucionalidade de uma norma for conferida a diversos órgãos, concomitantemente. Este modelo é visto claramente nos sistemas que adotam o controle judicial de constitucionalidade, no qual todos os órgãos deste Poder podem declarar uma norma (in)constitucional.

Alertamos que existem países, como no caso do Brasil, que introduziram os controles difuso e concentrado conjuntamente no seu sistema, sem que um exclua o outro.

Por fim, quanto à forma de argüir a inconstitucionalidade, classificamo-la em incidental, principal, abstrata ou concreta.

A argüição por via incidental é aquela realizada incidentalmente no curso de uma demanda, como argumento para que o pedido seja acolhido. É também chamada de exceção ou defesa, justamente por ser utilizada como matéria prejudicial para análise do pleito. Neste caso, a declaração de inconstitucionalidade não é o escopo do processo, mas apenas um incidente a ser resolvido para, só após, chegar-se à conclusão do mesmo.

Em contrapartida, na argüição por via principal, o objeto do processo é a própria declaração de (in)constitucionalidade de uma norma, provocada por meio de ação direta. Assim, o processo se desenrola com o único escopo de alcançar a declaração de (in)constitucionalidade da norma, conforme for o caso.

O controle abstrato, por sua vez, possui estreita relação com o controle principal, porém, com este não se confunde. A característica marcante do controle abstrato é de que não há caso concreto a ser dirimido, não há conflito de interesses nem partes interessadas. O que há é a provocação do órgão competente para que este delibere sobre a compatibilidade da norma com a Constituição, unicamente. Em face desta ausência de contraditório de partes, é também chamado de controle objetivo de constitucionalidade.

Em regra, o controle principal será também abstrato, o que nos leva a confundir uma espécie de controle com a outra. Entretanto, adverte o Doutor Dirley da Cunha (2008, pg.99):

Cumpre ressaltar, no entanto, que não há uma correspondência necessária entre o controle incidental (por via de exceção ou de defesa) e o controle difuso, ou entre o controle principal (por via de ação) e o controle concentrado. A correlação existe no Brasil, onde o controle difuso é desencadeado sempre incidentalmente, à vista de um caso concreto (por via de exceção ou de defesa) e o controle concentrado é provocado por via de ação direta (principal). Mas a correspondência não existe em outros sistemas jurídicos. Na Áustria, na Alemanha, na Itália e na Espanha, a questão da constitucionalidade suscitada incidentalmente (por via de exceção ou de defesa) conduz a um controle concentrado. Nesses países, uma vez levantada a questão da constitucionalidade, caberá ao juiz ou tribunal a quo não mais do que suspender o feito, suscitar o incidente e aguardar a decisão da Corte Constitucional a propósito da matéria.

O controle concreto, a seu turno, será sempre incidental. Tal situação ocorre, pois, nestes casos, o controle cinge-se à uma situação que envolverá um litígio entre as partes, envolvendo um bem jurídico a ser protegido pelo Direito. A inconstitucionalidade da lei será argüida sempre para amparar a pretensão da parte, resumindo-se seus efeitos àquele caso concreto.

3.3 SISTEMAS DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

Existem dois grandes sistemas de controle de constitucionalidade que serviram de base para se implantar nos demais ordenamentos jurídicos a possibilidade de fiscalização das leis. São eles o sistema norte-americano e o sistema austríaco.

3.3.1 Sistema Norte-Americano

O sistema norte-americano possui o privilégio de ser considerado o primeiro a tratar expressamente sobre a supremacia constitucional, lançando as bases do Controle de Constitucionalidade.

Atribui-se sua sistematização ao julgamento do célebre caso MARBURY X MADISON, de 1803, no qual o chief justice MARSHALL baseou sua decisão na supremacia da Constituição norte-americana, deixando de aplicar uma lei por ela ferir o texto constitucional.

O mérito dessa decisão reside no fato de a Constituição dos EUA não previr expressamente a possibilidade de se realizar o controle de constitucionalidade, muito menos de se atribuir tal tarefa a um órgão específico.

Assim, o brilhantismo de MARSHALL se fez perceber no pioneirismo da sua interpretação, introduzindo um raciocínio até então inédito na Suprema Corte americana.

No sistema norte-americano, o controle de constitucionalidade evoluiu ao longo do tempo, por intermédio da Suprema Corte, pois, como já se disse, não existe expressa previsão constitucional.

Traçando suas características, inicialmente pode-se dizer que é um controle difuso. Todos os juízes possuem o poder-dever de apreciar a constitucionalidade de uma lei quando esta questão for imprescindível para o deslinde do feito. Não importa a matéria nem o grau do juízo.

Importante ressaltar que não existe o controle principal ou por via direta. Assim, todas as indagações acerca a constitucionalidade de uma lei serão apreciadas no curso de um caso concreto, de um processo já instaurado, como matéria de defesa e prejudicial para o julgamento da causa.

Desta característica extraímos que a Suprema Corte possui a natureza de um órgão ordinário, recursal. Uma vez que não existe controle principal, apenas pela via recursal será possível obter o pronunciamento do órgão máximo do Poder Judiciário norte-americano.

Se analisarmos bem, veremos que tal configuração ensejaria um inconveniente para o país que o adotasse nesses moldes. É que, como o controle será sempre concreto, os efeitos da decisão restringir-se-ão apenas às partes envolvidas. Terceiros estranhos ao processo não seriam abarcados pela coisa julgada, o que possibilitaria uma enxurrada de demandas versando sobre a mesma questão, todas precisando de um pronunciamento judicial específico para ver reconhecido seu direito.

Tal questão foi resolvida no sistema norte-americano por meio do princípio da stare decisis, também chamado de força vinculante das decisões.

Por tal princípio entende-se que as decisões proferidas pela Suprema Corte, no curso de um caso concreto, vincularão os demais juízes, gerando um efeito erga omnes dos seus julgados. São os chamados precedentes. O entendimento do órgão máximo deverá ser seguido por todos, justamente para evitar uma pluralidade de decisões contraditórias que gerariam um clima de insegurança indesejável.

Assim, em suma, temos que o sistema norte-americano de controle de constitucionalidade é difuso, exercido por todos os juízes, sempre concentrado e incidental, pois argüido e apreciado no curso de uma demanda, como matéria de defesa, com efeitos inter partes. Pelo efeito vinculante dos precedentes, as decisões da Suprema Corte possuem a força de vincular os demais juízes ao seu entendimento, fulminando a possibilidade de diversas demandas com questionamentos semelhantes, já julgados pelo órgão máximo.

Este foi o primeiro sistema existente, sendo adotado por diversos países ao longo da história.

3.3.2 Sistema Austríaco

O sistema austríaco só adquiriu forma em 1920, com o advento da Constituição da Áustria, obra do famoso Hans Kelsen.

Por razões históricas, a Áustria, bem como diversos países da Europa, se viram impossibilitados de adotar o sistema norte-americano de controle de constitucionalidade. O governo austríaco encomendou do mestre KELSEN a elaboração de uma Constituição e, consequentemente, um novo modelo de controle foi introduzido.

Diferentemente do sistema norte-americano, no sistema idealizado por KELSEN o controle de constitucionalidade deveria ser atribuído a um único órgão, um Tribunal Constitucional, com competência exclusiva para esta função. Os demais órgãos do Poder Judiciário estariam, portanto, impedidos de resolver sobre qualquer questão constitucional.

Diz-se, por conseguinte, que o controle no sistema austríaco é concentrado e principal, pois atribuído a um órgão de cúpula, provocado exclusivamente para tal desiderato.

Nesse modelo inicial, o controle de constitucionalidade era exercido por meio de uma ação direta, direcionada ao único órgão competente, e só poderia ser proposta por poucos órgãos políticos, excluindo-se o Poder Judiciário do controle.

Com o advento da revisão constitucional ocorrida em 1929, tal quadro foi alterado. Com a reforma, o rol de legitimados a provocar o Tribunal Constitucional foi ampliado, incluindo-se dois outros órgãos, estes integrantes da cúpula do Poder Judiciário.

Uma ressalva. A competência conferida aos órgãos do judiciário será restrita a um caso concreto. Explica-se. Enquanto os órgãos políticos legitimados podem provocar o Tribunal Constitucional sempre que lhes convir, os legitimados do Poder Judiciário só poderão provocar o Tribunal quando estiverem apreciando um caso concreto e a questão surgir como prejudicial para o deslinde do feito.

Tal panorama gera um inconveniente, presente desde a promulgação da Constituição em 1920 e não corrigido na revisão de 1929: os juízes de primeiro grau não podem apreciar a inconstitucionalidade de uma lei e nem podem provocar o Tribunal Constitucional para tanto. Cria-se, assim, a absurda situação em que são obrigados a aplicar uma lei, mesmo que entendam ser ela incompatível com o ordenamento jurídico vigente.

Tal incongruência só foi aperfeiçoada nas Constituições da Itália e da Alemanha, conforme adverte o professor DIRLEY (2008, pg.80). Nestes casos, apesar do controle de constitucionalidade ser exercido apenas por um Tribunal Constitucional, todos os juízes ou tribunais podem suscitar sua manifestação quando vislumbrarem a inconstitucionalidade de alguma norma.

Assim, o sistema de controle austríaco é aquele exercido por um Tribunal criado para este fim, sendo concentrado, portanto, e, em regra, principal, excetuando-se as hipóteses em que os juízes submetem a questão para apreciação da Corte Constitucional, quando o controle será incidental. Em ambos os casos, a decisão do Tribunal produzirá efeitos erga omnes, vinculantes a todos.


4 O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE BRASILEIRO

O modelo de controle de constitucionalidade no Brasil é bastante peculiar. Conseguimos importar e conjugar as características dos diversos modelos e sistemas espalhados pelo mundo, resultando num complexo e amplo sistema de aferição de constitucionalidade.

Tantas são as classificações, tantas serão as formas como se manifesta o controle de constitucionalidade pátrio.

Primeiramente, no sistema pátrio o controle pode ser exercido tanto preventivamente quanto repressivamente. Em ambos os casos este controle é misto, ou seja, exercido por órgãos políticos e jurisdicionais.

Antes de a lei entrar em vigor, existe o controle por parte do Congresso Nacional, por intermédio de suas Comissões de Constituição e Justiça, às quais incumbe verificar a compatibilidade do projeto de lei com o ordenamento jurídico. Assim, já existe um controle prévio acerca da constitucionalidade da norma.

Ainda preventivamente, temos o controle exercido pelo Chefe do Poder Executivo, ao exercer seu poder de veto em relação às leis que entender incompatíveis com a Constituição.

Pode-se falar, também, num controle preventivo exercido pelo Poder Judiciário, nos casos em que aprecia mandado de segurança impetrado por parlamentar objetivando resguardar a lisura do processo legislativo.

Quanto ao controle repressivo, será ele, em regra, exercido pelo Poder Judiciário. Excepcionalmente, poderá ser exercido pelo Congresso Nacional, quando este decide sustar os atos do Poder Executivo que exorbitem seu poder regulamentar ou exorbitem a matéria delegada, ou quando aprecia a constitucionalidade das medidas provisórias.

Agora seguindo a regra, o controle repressivo, no sistema brasileiro, será exercido pelo Poder Judiciário. E nosso modelo de controle é fruto duma conjunção dos sistemas norte-americano e austríaco, pois coexistem tanto o controle difuso-incidental quanto o controle concentrado-principal.

No Brasil, todos os juízes e tribunais podem apreciar a constitucionalidade das leis ou atos normativos suscitada num caso concreto, incluindo o Supremo Tribunal Federal. Acrescente-se que, além dessa competência para julgar os casos concretos, o órgão máximo do Judiciário brasileiro também possui a competência originária para julgar ações diretas que envolvam a constitucionalidade das leis ou atos normativos, ações abstratas, desvinculadas de qualquer caso concreto.

4.1 O CONTROLE CONCENTRADO

Conforme já visto, falar em controle concentrado de constitucionalidade é falar de um processo abstrato, objetivo, no qual não existe conflito de interesse entre partes, desvinculado de um caso concreto, exercido por órgão exclusivamente competente para tanto e exercido por meio de ações diretas.

No Brasil, o controle de constitucionalidade concentrado, nos moldes estabelecidos pela Constituição Federal de 1988, é exercido exclusivamente pelo Supremo Tribunal Federal e, em face das Constituições Estaduais, pelo Tribunal de Justiça respectivo. Contudo, nos ateremos apenas ao controle exercido pelo Supremo Tribunal.

O art. 102, inciso I, alínea "a" da Constituição Federal prevê que compete ao Supremo Tribunal Federal julgar, originariamente, a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal.

O órgão de cúpula do Poder Judiciário brasileiro funciona, nos moldes estabelecidos no artigo supracitado, como verdadeiro Tribunal Constitucional.

Consoante acontece nos demais países que adotam este tipo de controle, os legitimados a provocar a manifestação da Corte Constitucional, no caso o Supremo Tribunal, são taxativamente enumerados pelo próprio texto constitucional. Assim, podem propor as ações diretas perante o STF o Presidente da República, a Mesa do Senado Federal, a Mesa da Câmara dos Deputados, Governador de Estado, a Mesa da Assembléia Legislativa, o Conselho Federal da OAB, Partido Político com representação no Congresso Nacional, o Procurador-Geral da República e a confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.

São esses os únicos competentes para iniciar a jurisdição concentrada, relembrando que o rol foi consideravelmente ampliado com o advento da CF/88.

Por conseguinte, tais legitimados necessitam de meios que lhes permitam exercer seu papel, e esses meios são as ações diretas. São as ações específicas para se questionar abstratamente a constitucionalidade de uma lei ou ato normativo do Poder Público, possuindo características próprias e regramento especial. No ordenamento jurídico pátrio existem cinco tipos de ações aptas a instaurar o controle concentrado: a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC), a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN), a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADIN por omissão), a Ação Direta de Inconstitucionalidade Interventiva (ADIN Interventiva) e a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF).

Num simplório resumo, especificaremos as particularidades de cada ação.

A Ação Declaratória de Constitucionalidade é utilizada quando se pretende obter um pronunciamento do STF no sentido de declarar ser a norma impugnada compatível com a Carta Magna, portanto, constitucional. Sendo incontroverso que as leis e atos normativos são revestidos de uma presunção de legalidade, exige-se, para a instauração da Ação, que exista divergência jurisprudencial significativa em relação à matéria impugnada, divergência esta apta a causar uma insegurança jurídica.

De outro modo não poderia ser. A princípio, cogitar uma Ação direta destinada a confirmar a constitucionalidade de uma norma resultaria numa ação inócua, posto que a própria presunção de legalidade que as abraça seria suficiente para obstar o prosseguimento de qualquer questionamento neste sentido. Entretanto, uma vez que convive no Brasil, ao lado do controle concentrado, o controle difuso, permitindo a qualquer juiz ou tribunal apreciar a compatibilidade das leis com a Constituição, é inevitável que surjam divergências, pois a atividade de interpretação é, por natureza, subjetiva.

Assim, a fim de se evitar que coexistam no país decisões contrárias em relação a casos semelhantes, causando extrema insegurança e desconforto para os jurisdicionados, permite-se o ajuizamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade, com o escopo de extirpar as discrepâncias e uniformizar a jurisprudência num só sentido. Ressalte-se, por fim, que apenas as leis e atos normativos federais podem ser questionados pela ADC.

No sentido inverso, temos a Ação Direta de Inconstitucionalidade.

Mais antiga e mais utilizada Ação direta, a ADIN é utilizada quando se objetiva obter uma declaração do STF no sentido de que a norma impugnada é inconstitucional. Sempre que um dos legitimados entender que uma lei ou ato normativo contrariar os dispositivos constitucionais, provocará a manifestação do Tribunal para que resolva o aparente conflito.

Como se percebe, distingue-se da Ação Declaratória de Constitucionalidade pelo fato de possuir "sinal trocado", como defende a doutrina. Enquanto naquela almeja-se a declaração de constitucionalidade, aqui se almeja a declaração de inconstitucionalidade da norma. E o "sinal trocado" decorre da seguinte lógica: caso o Tribunal não acolha a alegação de constitucionalidade, estará, consequentemente, declarando a inconstitucionalidade da norma. De outro modo, caso desacolha a alegação de inconstitucionalidade da norma, estará declarando a constitucionalidade da norma. Resultará, sempre que adentrar no mérito, numa ou noutra solução.

Não existe necessidade de se demonstrar divergência jurisprudencial quando do ajuizamento da ADIN, contrariamente ao que ocorre na ADC. Os próprios argumentos contidos na peça servirão de fundamento para justificar a manifestação do STF, independente de como estão decidindo sobre a matéria os juízes e tribunais do país.

Convém ressaltar, entretanto, a maior amplitude conferida à ADIN. Por meio dela, pode-se impugnar as leis e os atos normativos federais e, também, os estaduais. Na ADC, apenas os atos normativos federais são passíveis de questionamento. Assim, vislumbra-se que a Ação Direta da Inconstitucionalidade possui um objeto mais abrangente.

Impende salientar, apenas para registro, que essa distinção não possui razão de ser. O bom senso indica que a tendência é igualarem-se seus objetos, culminando numa completa natureza dúplice entre ambas as ações.

A Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão é um dos instrumentos à disposição para que se busque a efetividade da Constituição Federal.

Como já foi dito, a inércia do Poder Público em regulamentar as matérias que a Constituição expressamente determina é mácula que a ofende de igual maneira. É preciso, então, dispor de meios que possibilitem o saneamento deste vício, garantindo a plena eficácia constitucional. Com este objetivo é que foi criada a Adin por Omissão.

Ajuíza-se a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão para obter do Supremo Tribunal Federal uma decisão que reconheça a inércia do Poder Público em regulamentar a Constituição. Mas essa regulamentação restringe-se às normas de eficácia limitada, na famosa classificação de José Afonso da Silva. São aquelas normas que, por si só, são insuficientes para implementar um direito ou obrigação. Necessita-se, assim, de uma lei infraconstitucional para efetivar o comando constitucional que, até então, existia sem efetividade.

Interessante ressaltar que o art. 103, §2º da Constituição Federal se refere à omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional. Neste sentido, reconhece-se uma amplitude no referido conceito, englobando não só as leis em sentido estrito, mas qualquer preceito de caráter normativo que poderia ser editado pelo Poder Público. Acrescente-se, ainda, que não será o Poder Legislativo o único responsabilizado pela inércia normativa, mas também qualquer dos outros Poderes (Judiciário ou Executivo), bem como qualquer órgão administrativo que reúna competência para tanto.

Reconhecendo o STF que houve a omissão inconstitucional, constituirá em mora o Poder competente, dando-lhe ciência do descumprimento de sua obrigação constitucional e reconhecendo formalmente sua inércia. No caso de órgão administrativo, dará prazo de até 30 dias para que elabore a lei, sob pena de responsabilidade.

Embora não seja o objetivo do presente trabalho adentrar nas particularidades de cada Ação Direta, chamamos atenção para o recente entendimento do STF acerca do seu papel no controle das omissões legislativas, em especial o MI 712, no qual o Ministro Marco Aurélio salientou:

Cabe ao Judiciário, por força do disposto no art.5º, LXXI e seu §1º, da CF, não apenas emitir certidão de omissão do Poder incumbido de regulamentar o direito a liberdades constitucionais, a prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania, mas viabilizar, no caso concreto, o exercício desse direito, afastando as conseqüências da inércia do legislador.

Ressaltamos que, não obstante a decisão em comento ter sido proferida em sede de Mandado de Injunção, o regramento deste remédio constitucional é plenamente aplicável à ADIn por Omissão, e vice-versa.

A Ação Direta de Inconstitucionalidade Interventiva, por sua vez, foge à regra da fiscalização da constitucionalidade das leis e atos normativos, característica marcante do processo objetivo realizado junto ao Supremo Tribunal Federal. Diferente do que ocorre com as demais Ações Diretas, a ADIn Interventiva não servirá para analisar a compatibilidade de uma lei ou ato normativo face à Constituição. Seu objetivo é por termo a grave conflito federativo existente no país.

A Constituição Federal de 1988, em seu art. 34, VII, autoriza a União a intervir nos Estados-membros quando for necessário assegurar a observância dos doutrinariamente chamados princípios sensíveis. São eles o sistema representativo e o regime democrático, os direitos da pessoa humana, a autonomia municipal, a prestação de contas da administração pública, a aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde.

Assim, caso um Estado-membro, incluído o Distrito Federal, não respeitar um desses princípios, a União está autorizada a intervir para garantir seu acatamento. Contudo, essa intervenção, para concretizar-se, não depende de vontade política do Executivo, mas sim de um provimento judicial, emanado do STF. E este provimento judicial será proferido, exatamente, nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade Interventiva,

A mencionada Ação só poderá ser proposta pelo Procurador-Geral da República e julgada pelo Supremo Tribunal Federal. Julgada procedente, o Presidente do STF comunicará a decisão aos órgãos do Poder Público interessados e requisitará a intervenção ao Presidente da República, o qual estará obrigado a acatar a decisão judicial.

Verifica-se que não se trata de um clássico processo abstrato, mas sim um nítido caso concreto, a envolver a União, de um lado, e o Estado-membro, do outro, cada um defendendo seus interesses. Em que pese o reconhecimento de não-observância dos princípios sensíveis resultar de uma declaração incidental de inconstitucionalidade, não é ela o objetivo desse processo, sendo esta declaração apenas meio para se alcançar a decretação da intervenção federal.

Por fim, ainda temos a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental como instrumento para instaurar o processo objetivo junto ao Supremo Tribunal Federal.

A ADPF é o instrumento hábil para se evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público, ou para resolver relevante controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual, municipal e, inclusive, anteriores à CF/88.

A primeira particularidade desta Ação consiste em definir o que seria preceito fundamental. Até o momento não existe conceituação legal nem decisão do STF nesse sentido. Assim, cabe a doutrina tentar delimitar o objeto desta Argüição.

Para UADI LAMMEGO BULOS (2008, pg241), fundamentais seriam os preceitos que informam o sistema constitucional, que estabelecem comandos basilares e imprescindíveis à defesa dos pilares da manifestação constituinte originária. Ainda, inclui a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho, da livre iniciativa, do pluralismo político, sem esgotá-los.

Já para o Professor Cássio Juvenal Faria, citado por PEDRO LENZA (2008, pg.212), preceitos fundamentais seriam as normas qualificadas, que veiculam princípios e servem de vetores de interpretação das demais normas constitucionais. A título de exemplo, enumera os princípios fundamentais do Título I da Constituição, os integrantes da cláusula pétrea, os princípios constitucionais sensíveis, os que integram os direitos e garantias fundamentais, os princípios da atividade econômica, dentre outros.

Em que pese a autoridade dos conceitos enumerados acima, fato é que a tarefa de conceituar preceito fundamental mostra-se bastante complexa, sendo certo que apenas o Supremo Tribunal Federal, quando apreciar diretamente o tema, poderá por fim à diversidade de conceitos encontrados doutrinariamente.

Outra observação importante diz respeito ao caráter subsidiário da ADPF. O STF, juntamente com a grande maioria da doutrina, entende que a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental só poderá ser utilizada caso não exista outro meio capaz para sanar a lesividade, tal como qualquer das outras Ações Diretas.

Convém, neste ponto, atentar para o quanto observado pelo Ministro Celso de Mello, para o qual o princípio da subsidiariedade só poderá ser invocado quando os instrumentos disponíveis mostrarem-se capazes de neutralizar, de maneira eficaz, a situação de lesividade que se busca obstar com o ajuizamento da ADPF.

Neste sentido, a possibilidade de interposição de outros meios processuais, tais como o recurso extraordinário, ou mandado de segurança, posto que desprovidos de objetividade, não seriam suficientes para obstar o prosseguimento da Argüição.

Embora o presente trabalho não objetive aprofundar no estudo sobre a ADPF, não podemos deixar de mencionar as idéias do professor ANDRE RAMOS DE TAVARES (2007, pg.59). Numa apertada síntese, esclarecemos que o ilustre doutrinador defende a tese, bastante sedutora, de que a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental não possui caráter subsidiário, mas sim um caráter principal. Para ele, toda vez em que se falar em ofensa a preceito fundamental, está se falando em utilização da ADPF. Assim, subsidiárias seriam as outras Ações Diretas, caso não se tratasse de lesão a preceito fundamental.

Sobre o tema, merece aqui a transcrição de um trecho de sua obra:

(...) tem-se que, com a introdução da ADPF, o mais coerente e constitucionalmente admissível será para ela desviarem-se todos – insista-se uma vez mais – todos os casos de descumprimento de preceitos fundamentais da Constituição. A especialidade (e essencialidade) do instituto da ADPF encontra-se, portanto, aqui.

Em que pesem as características peculiares de cada Ação Direta, as mesmas possuem um ponto em comum, imprescindível para a configuração do modelo concentrado brasileiro, distinguindo-o do controle difuso. Estamos nos referindo aos efeitos das decisões.

A regra do processo judicial é que uma sentença só produzirá efeitos para aqueles que foram parte no litígio. Terceiros não poderão ter sua esfera jurídica atingida por uma sentença oriunda de um processo do qual não participaram. Esta é a lógica processual.

Contudo, tal regra não se aplica no processo concentrado, provocado pelas Ações Diretas. Ao questionar-se abstratamente a validade de uma norma, está se percorrendo um processo objetivo, desvinculando-se do conceito de partes. Por conseguinte, não é exagerado concluir que os legitimados a propor as Ações Diretas, quando o fazem, atuam representando a coletividade. E se é a própria coletividade que está ali envolvida no processo, será ela abraçada pelos efeitos da decisão que vier a ser proferida.

Em decorrência desse raciocínio, resta evidente que as decisões proferidas em sede de controle concentrado de constitucionalidade possuem efeito erga omnes. De outra forma não poderia acontecer. A grande valia de se provocar diretamente a Corte Constitucional é obter uma decisão que fulmine de uma só vez qualquer divergência que possa envolver a matéria. E este objetivo é alcançado justamente a partir do momento em que todos se submetem aos efeitos da decisão.

E a Constituição Federal de 1988 vai além. Não só terão eficácia contra todos, aí o efeito erga omnes, mas as decisões proferidas em controle concentrado terão efeito vinculante aos demais órgãos do Judiciário e da Administração Pública. Ou seja, os mencionados órgãos públicos não poderão contrariar o quanto decidido pelo Supremo Tribunal Federal.

Assim, tantos os particulares, que possuem interesse em determinada matéria, quanto a Administração Pública, ao lidar com a mesma, deverão observar, de forma cogente, o quanto decidido pela Suprema Corte.

Esta é, portanto, a característica primordial do controle concentrado brasileiro.

4.2 O CONTROLE DIFUSO

O controle difuso, conforme já esclarecido, desvencilha-se da noção de processo objetivo, abstrato, sendo exercido no modelo clássico de processo subjetivo.

No sistema brasileiro, ele poderá ser exercido por todo e qualquer juiz ou tribunal, ao apreciar toda e qualquer demanda. A apreciação é, portanto, livre, sendo desnecessário o preenchimento de quaisquer requisitos para tal desiderato.

O controle difuso é realizado por meio da chamada via de exceção. É que a alegação de inconstitucionalidade de determinada norma servirá apenas como fundamento para o acolhimento do pedido principal. Em outras palavras, não se objetiva unicamente o reconhecimento da incompatibilidade da norma com o ordenamento jurídico, mas sim que esse reconhecimento dê ensejo a uma outra conseqüência, neste caso, a procedência do pedido principal.

Assim, tanto o autor poderá alegar a inconstitucionalidade da norma na petição inicial quanto o réu poderá alegá-la ou rechaçá-la na peça contestatória, além de todos aqueles que participem da demanda, tais como assistentes, o Ministério Público, bem como pelo próprio magistrado.

Diz-se, nesse sentido, que a questão sobre a constitucionalidade é prévia, incidente, utilizada apenas para solucionar o litígio principal.

Quando se diz que qualquer Tribunal poderá exercer o chamado controle difuso, inclui-se aí, além dos Tribunais de Justiça, todos os Tribunais Superiores e, obviamente, o Supremo Tribunal Federal.

No caso do STF, o controle difuso será exercido quando o Tribunal estiver atuando como órgão recursal. Assim, apenas em sede de recurso extraordinário e ordinário é que se poderá falar em controle difuso de constitucionalidade.

Até este ponto, nota-se que não existem maiores dificuldades para se compreender e analisar o controle de constitucionalidade pelo modo difuso.

Na esteira do raciocínio já explanado, convém, agora, tecer considerações acerca dos efeitos das decisões proferidas no modelo de controle de constitucionalidade em tela.

Retomando o que fora dito inicialmente, temos que o controle difuso ocorre dentro do que chamamos de processo subjetivo. Esta classificação do processo reúne as características clássicas do mesmo, trazendo a noção de partes, litígio, interesse contraposto etc. Consequentemente, em se tratando de processo subjetivo clássico, não tem como se desvencilhar dos efeitos das decisões que a ele são inerentes.

Primeiramente, reforçamos que só participará do processo aquele que tiver interesse direto na causa. É preciso que o bem jurídico em litígio relacione-se diretamente com autor e réu, pois serão eles os únicos legitimados a demandar em juízo por aquele. Assim, diz-se que o autor e o réu estão a defender interesses exclusivamente próprios.

Neste ponto já se observa uma diferença em relação ao controle concentrado, pois, neste caso, a parte (leia-se interessado) não atua em nome próprio, defendendo interesse exclusivamente seu, mas sim em nome da coletividade, defendendo interesses que dizem respeito à sociedade.

Continuando, a regra primordial do processo é que a coisa julgada só produzirá efeitos para aqueles que participaram da demanda. Apenas quem pôde se manifestar e se defender é que poderá sofrer as conseqüências do quanto decidido pelo Judiciário. Tal previsão encontra fundamento nos princípios do contraditório e ampla defesa, posto que sua observância é imprescindível para a legitimidade de todo processo judicial.

Raciocinando: se alguém não teve a oportunidade de se defender, de se manifestar, de apresentar sua visão, seu entendimento sobre determinada causa ou assunto, produzir provas, obviamente que não poderá ter sua esfera jurídica atingida por uma discussão que envolveu apenas terceiros. Esta é a lógica do processo subjetivo.

E, seguindo esta lógica, podemos concluir que a decisão do juiz ou Tribunal que apreciar a inconstitucionalidade de determinada lei ou ato normativo produzirá efeitos apenas para as partes envolvidas no processo que ensejou tal decisão. Ou seja, O Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, por exemplo, poderá concluir que tal lei viola a Constituição Federal e que, por isso, o autor tem determinado direito. Por mais que existam inúmeros outros casos nitidamente semelhantes, aquela decisão do Tribunal só terá validade para as partes do processo em que foi proferida.

Contudo, ressaltamos que esse modelo não se resume às instâncias ordinárias, merecendo destaque o papel do Supremo Tribunal Federal no julgamento desses casos concretos.

No sistema jurídico brasileiro, por meio do Recurso Extraordinário, o STF poderá ser provocado para se pronunciar acerca de um caso concreto, desde que a discussão em tela envolva matéria constitucional.

Neste molde, funcionará ele como um Tribunal recursal, porém, com um reduzido âmbito de atuação. Bem verdade, o que se reduz é o acesso ao STF, é a possibilidade de provocar a manifestação do Tribunal. Caso o recurso preencha os requisitos exigidos pela legislação processual, o Supremo Tribunal terá a liberdade para resolver o que entender cabível no caso apresentado, sempre analisando as questões constitucionais.

Em consonância com o panorama já apresentado, impende salientar que, ao julgar os Recursos Extraordinários, o STF analisa um caso concreto. É certo que se limita à matéria constitucional, porém, continua a atuar num caso concreto.

Tal distinção é importante para se ter em mente os efeitos das decisões do Tribunal nesses casos. Assim, conforme a regra processual apresentada anteriormente, se a decisão é proferida num caso concreto, num processo chamado subjetivo, terá ela efeito apenas para as partes envolvidas. Em se tratando de STF, apreciando Recursos Extraordinários, aquilo decidido pelo Tribunal apenas vinculará as partes envolvidas, produzindo seus efeitos apenas dentro do processo que originou esta decisão.

Assim, reforçando o já explicado no tópico anterior, temos que o Supremo Tribunal Federal atua, em nosso sistema, com dupla função, apresentando dois jurídicos. Um deles é o de Tribunal Constitucional, com a competência única de guardar a Constituição Federal, competência essa exercida no interior de um processo objetivo, destinado exclusivamente a provocar a jurisdição constitucional. Já num outro plano, o STF atua como um Tribunal Recursal, analisando a insatisfação das partes nos casos concretos, desde que tal insurgência se volte a matérias constitucionais.


5 A REINTERPRETAÇAO DO STF (GILMAR MENDES)

Analisando o panorama apresentado anteriormente, especificamente quanto aos papéis do Supremo Tribunal Federal no ordenamento jurídico brasileiro, poder-se-ia concluir que existe uma incongruência no controle de constitucionalidade pátrio.

É que, em nosso modelo, temos um mesmo Tribunal atuando de forma distinta, com efeitos distintos, sem aparente razão para tanto. Como já dito, o STF poderá atuar como uma espécie de Tribunal Constitucional, com decisões de efeitos erga omnes, ou como Tribunal Recursal, com decisões de efeitos inter partes.

Essa situação provoca uma aparente contradição, posto que o STF julga, em regra, processos de grande relevância. Caso a decisão seja proferida em controle difuso, em que pese a importância do precedente, ela só valerá para as partes do processo. Em contrapartida, caso ela tivesse sido apresentada em sede de controle concentrado, a mesma decisão, proferida pelos mesmos Ministros, agora teria efeito vinculante e para todos.

Reconhecendo a incongruência da situação apresentada, o professor Dirley da Cunha Junior (2007, pg.73) adverte:

Ora, no contexto atual, é absolutamente sem sentido, chegando a soar como teratológica, a explicação de que, no controle difuso, o Supremo decide inter partes, enquanto no controle concentrado decide erga omnes. E tudo isso só porque o STF, na primeira hipótese, declara a inconstitucionalidade resolvendo uma questão incidental e, na segunda, declara a mesma inconstitucionalidade solucionando a própria questão principal. Onde está a lógica disso, já que – seja decidindo incider tantum ou principaliter tantum – o órgão prolator da decisão é o mesmo?

Conforme já estudado, tal discrepância deriva do fato de termos, nós brasileiros, importado os sistemas norte-americano e austríaco de controle de constitucionalidade, fundindo-os. Cada um possui características próprias, com soluções próprias para suas imperfeições. Em nosso caso, já que estabelecemos um sistema híbrido, novas soluções precisariam ser apresentadas para os novos problemas surgidos. Particularmente, quanto aos efeitos das decisões, o constituinte originário introduziu o art. 52, X, da Constituição Federal de 1988.

5.1 O PAPEL DO SENADO FEDERAL

O constituinte de 1988 não deixou de observar o inconveniente fruto desta situação e, com o intuito de saná-la, instituiu o art. 52, inciso X da Constituição Federal, com os seguintes dizeres:

Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal:

...

X- suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal;

A doutrina sempre interpretou esse dispositivo como a única forma de se atribuir efeitos erga omnes às decisões do STF que fossem proferidas em sede de controle difuso de constitucionalidade. Na prática, ocorre o seguinte: ao reconhecer a inconstitucionalidade de determinada norma em sede de um caso concreto, o STF comunica ao Senado Federal o teor da sua decisão para que este, entendendo ser conveniente, edite uma resolução suspendendo a execução da mencionada norma.

Assim, somente após a publicação da Resolução do Senado Federal é que aquela decisão da Corte Suprema produziria efeitos para todos. Enquanto a suspensão não ocorrer, não há que se reconhecer efeitos exógenos ao entendimento do STF.

Logicamente, ressaltamos que o Senado só iria atuar na hipótese de haver decisão do STF em sede de controle difuso, uma vez que as decisões proferidas em controle concentrado já possuem eficácia para todos e vinculante.

Um ponto importante a ser debatido consiste em saber se o Senado estaria obrigado a editar a Resolução ou se teria ele discricionariedade para decidir sobre a mesma.

Apesar de não ser unânime, prevalece o entendimento de que o Senado não estaria obrigado a editar a resolução suspendendo os efeitos da norma após decisão definitiva pelo Supremo Tribunal. Encontra-se fundamento justamente no princípio da separação dos poderes, posto que não se pode admitir que um Poder da República esteja compelido a acatar entendimento de outro.

Neste sentido, por todos, trazemos à colação o ensinamento do Professor Uadi Lâmmego Bulos (2008, pg.146), para o qual "o Senado não está obrigado a editar resolução suspensiva da inconstitucionalidade, porquanto sua atribuição é discricionária, de iniludível colorido político-normativo".

Acrescente-se que nem mesmo existe prazo constitucional, legal, sequer regimental, para que o Senado exerça sua competência. Se não há prazo, não há como se falar em mora, em inadimplência legislativa.

Por outra via, caso deseje exercer sua competência, evidencia-se que só poderá fazê-la nos estritos termos expostos no veredicto da Corte Maior. Logicamente, se a competência do Senado origina-se apenas com a decisão definitiva do STF, será ela balizadora da Resolução que, por ventura, venha a ser editada.

Acontece, porém, que esse instrumento não é inteiramente capaz de abarcar todas as manifestações do Pretório Excelso que deveriam possuir um efeito erga omnes. É que, cada vez mais, a clássica declaração de inconstitucionalidade abre espaço para que sejam utilizadas as novas técnicas de decisão no exercício de controle de constitucionalidade.

Imaginemos a hipótese de o STF dar uma interpretação conforme a Constituição a determinada controvérsia, ou então reconhecer a inconstitucionalidade de apenas determinada interpretação, ou ainda declarar a inconstitucionalidade sem redução de texto. Em todas essas hipóteses há um pronunciamento do Tribunal inovando a ordem jurídica, reconhecendo que determinados termos não são compatíveis com o sistema constitucional. Entretanto, em nenhum desses casos existe uma simples declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo. E se essa declaração não existe, o Senado Federal não poderá editar Resolução suspendendo os efeitos dessa norma.

Ainda, existe a possibilidade do Senado Federal simplesmente quedar-se inerte. Tendo em vista que o mesmo não é obrigado a editar a resolução, temos como perfeitamente possível que a mencionada Casa Legislativa simplesmente não se manifeste, situação facilmente encontrada nos dias atuais.

Daí surge a indagação de como sanar esse anacronismo, que será abordada a seguir.

5.2 A SOLUÇAO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Em que pesem as manifestações doutrinárias acerca desta temática, certo é que é o entendimento do Supremo Tribunal Federal que dirá como a questão deverá ser resolvida. A doutrina sempre fornecerá fundamentos para a atividade jurídica, mas divergências sempre surgirão no meio acadêmico. Por outro lado, as decisões do Supremo Tribunal Federal, concorde a doutrina ou não, deverão sempre ser respeitadas, pois são elas que ditam as regras efetivamente. Por esta razão, começaremos a analisar a decisão do STF a respeito do tema antes de mencionar a doutrina. A ela, então.

A manifestação do Supremo Tribunal ocorreu em sede da Reclamação Constitucional n° 4.335-5/ACRE, em que foi relator o Ministro Gilmar Mendes. Entenda o caso.

A Defensoria Pública do Estado do Acre ajuizou a Reclamação em face da decisão do Juiz de Direito da Vara de Execuções Penais da Comarca de Rio Branco, a qual indeferiu o pedido de progressão de regime em favor de vários réus que cumprem penas de reclusão em regime integralmente fechado, em decorrência da prática de crimes hediondos. A defensoria alega o descumprimento da decisão do Supremo Tribunal Federal no HC 82.959, da relatoria do Ministro Marco Aurélio, quando a Corte afastou a vedação de progressão de regime aos condenados pela prática de crimes hediondos, ao considerar inconstitucional o § 1°, do art. 2° da Lei 8.072/1990.

Importa esclarecer que a decisão do STF que reconheceu a inconstitucionalidade da vedação de progressão de regime se deu em sede de controle difuso, nos autos de um Habeas Corpus, portanto, vinculada a um caso concreto.

Ao apreciar a Reclamação ajuizada pela Defensoria Pública do Estado do Acre, o Ministro Gilmar Mendes acolheu a tese apresentada e deu provimento à Reclamação, reconhecendo efeitos erga omnes à decisão anteriormente prolatada no Habeas Corpus. Ao justificar seu entendimento, primeiramente o mencionado Ministro leciona que, com o advento da Constituição Federal de 1988, o modelo concentrado de controle de constitucionalidade sofreu grande expansão, com uma conseqüente multiplicação de decisões dotadas de eficácia geral, passando agora a figurar como regra o controle concentrado, superando o controle difuso de constitucionalidade.

Em suas palavras, reconhece que "a Constituição de 1988 modificou de forma ampla o sistema de controle de constitucionalidade, sendo inevitáveis as reinterpretações ou releituras dos institutos vinculados ao controle incidental de constitucionalidade, especialmente da exigência da maioria absoluta para declaração de inconstitucionalidade e da suspensão de execução da lei pelo Senado Federal".

Continuando, acrescenta que tal tendência já encontra concreção, ao mencionar o entendimento do STF de que os órgãos fracionários de outras Cortes estão exonerados de submeter a declaração de inconstitucionalidade ao plenário, quando já houver decisão da Suprema Corte a respeito da matéria. Neste caso, entende o Ministro que o STF não poderia deixar de atribuir significado jurídico à declaração de inconstitucionalidade proferida em sede de controle incidental, sendo certo que, agindo assim, acabou por reconhecer efeito jurídico transcendente à sua decisão.

Por outro lado, apesar da Constituição de 1988 reproduzir um dispositivo que vem desde a Constituição de 1934, repetido nas Constituições de 1946 e 1967/69, adverte que é outro o contexto normativo que se coloca para a suspensão da execução pelo Senado no âmbito do ordenamento jurídico atual. É que, com o advento da nova ordem jurídica pátria, a Corte Suprema teve seu papel primordial substancialmente alterado, passando a atuar efetivamente como Guardiã da Constituição, fato verificado com o novo controle concentrado exercido através das ações diretas, exigindo, assim, uma nova compreensão do tema.

Prossegue, em seu voto, frisando que "a natureza idêntica do controle de constitucionalidade, quanto às suas finalidades e aos procedimentos comuns dominantes para os modelos difuso e concentrado, não mais parece legitimar a distinção quanto aos efeitos das decisões proferidas no controle direto e no controle incidental".

É de se ver, sem nenhuma dúvida, que o Ministro Gilmar Mendes entende que o dispositivo constitucional que atribui ao Senado Federal a competência para dar efeitos erga omnes às decisões do STF, proferidas em controle difuso, está superado. Nitidamente, entende o Ministro e Professor que o modelo está ultrapassado e precisa de uma reformulação. Entretanto, até o momento apenas foram expressadas opiniões pessoais. É preciso, ainda, que se apresentem fundamentos jurídicos para viabilizar o quanto pretendido.

Assim, para dar sustentação jurídica à sua tese, Gilmar Mendes, em seu voto, observa que "É possível, sem qualquer exagero, falar-se aqui de uma autêntica mutação constitucional em razão da completa reformulação do sistema jurídico e, por conseguinte, da nova compreensão que se conferiu à regra do art.52, X, da Constituição de 1988". Em outros termos, fala-se em uma autêntica reforma da Constituição sem expressa modificação de texto.

Entende, em seu voto, o Ministro Gilmar Mendes que, hodiernamente, a fórmula relativa à suspensão de execução da lei pelo Senado Federal há de ter simples efeito de publicidade. Se o STF chegar à conclusão, em sede de controle difuso, de que a lei é inconstitucional, definitivamente, essa decisão terá efeitos gerais, fazendo-se a comunicação ao Senado Federal apenas para que este publique a decisão no diário do Congresso. "Não é mais a decisão do Senado que confere eficácia geral ao julgamento do Supremo. A própria decisão da Corte contém essa força normativa". Neste molde, o Senado teria apenas o dever de publicação, de dar publicidade a uma decisão já definitiva.

Não haveria vinculação, portanto, entre os efeitos erga omnes da decisão definitiva do STF e a Resolução expedida pelo Senado Federal. Os efeitos viriam de qualquer modo, dependendo exclusivamente do Tribunal. Caberia ao Senado, unicamente, dar um caráter de publicidade àquela decisão, sem nenhuma implicação com o seu conteúdo.

Adverte o Ministro que:

Esta solução resolve de forma superior uma das tormentosas questões da nossa jurisdição constitucional. Superam-se, assim, também, as incongruências cada vez mais marcantes entre a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e a orientação dominante na legislação processual, de um lado, e, de outro, a visão doutrinária ortodoxa e- permita-nos dizer – ultrapassada do disposto no art. 52, X, da Constituição de 1988.

Outro que compartilha do posicionamento aqui apresentado é o também Ministro do STF Eros Grau. Nos autos da Reclamação nº. 4.335, em que se deu o voto do Ministro-Relator Gilmar Mendes, requereu visto do processo e apresentou seu voto, ensinando que:

Mutação constitucional é a transformação do sentido do enunciado da Constituição sem que o próprio texto seja alterado em sua redação, vale dizer, na sua dimensão constitucional textual. Quando ela se dá, o intérprete extrai do texto norma diversa daquelas que nele se encontravam originariamente involucradas, em estado de potência. Há, então, mais do que interpretação, esta concebida como um processo que opera a transformação de texto em norma, porém de um texto a outro texto, que substituiu o primeiro.

Por este raciocínio, conclui Eros Grau que Gilmar Mendes "não se limita a interpretar um texto, a partir dele produzindo a norma que lhe corresponde, porém avança até o ponto de propor a substituição de um texto normativo por outro".

Em seu posicionamento, foi mais incisivo do que o Ministro Gilmar Mendes. Acompanhando o voto do Relator, Eros Grau conclui que, em verdade, houve uma alteração no próprio texto constitucional:

Passamos em verdade de um texto [pelo qual] compete privativamente ao Senado Federal suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal, a outro texto: "compete privativamente ao Senado Federal dar publicidade à suspensão da execução, operada pelo Supremo Tribunal Federal, de lei declarada inconstitucional, no todo ou em parte, por decisão definitiva do Supremo" (grifos nossos).

Não bastasse, adverte o Ministro Eros Grau que "pouco importa a circunstância de resultar estranha e peculiar, no novo texto, a nova competência conferida ao Senado Federal", uma vez que esta modificação se legitima por meio da mutação constitucional, em seu entendimento.

Verifica-se, então, que ambos os Ministros, únicos até o momento, defendem a modificação do art. 52, X, da CF/88, a ser realizada pelo próprio Supremo Tribunal Federal, sob o argumento de que houve uma mutação constitucional do mencionado dispositivo, o que legitimaria atribuir ao Senado Federal a competência de, apenas, dar publicidade às decisões do STF.

Na doutrina, existem opiniões que corroboram essa intenção. Em sua obra acadêmica, o Professor Gilmar Mendes (2007, pg.1034) nos apresenta o posicionamento do ilustre Carlos Alberto Lúcio Bittencourt, o qual, com uma visão pioneira, em 1968 já defendia uma releitura do papel do Senado, em que pese a vigência de outra Constituição pátria:

Se o Senado não agir, nem por isso ficará afetada a eficácia da decisão, a qual continuará a produzir todos os seus efeitos regulares que, de fato, independem de qualquer dos poderes. O objetivo do art. 45, IV da Constituição (CF/67) é apenas tornar pública a decisão do tribunal, levando-a ao conhecimento de todos os cidadãos. Dizer que o Senado ‘suspende a execução’ da lei inconstitucional é, positivamente, impropriedade técnica, uma vez que o ato, sendo inexistente ou ineficaz, não pode ter suspensa sua execução" (MENDES, 2007, pg.1034).

Apesar desse posicionamento, à sua época, ser isolado, atualmente grande parte da doutrina abraça a causa e endossa a necessidade de reformular o papel do Senado no controle de constitucionalidade pátrio.

O professor Dirley da Cunha (2007, pg.74) chama atenção para o fato que :

É chegada a hora, assim, de se igualar as conseqüências da decisão da Suprema Corte, com o fito especial de estender os efeitos erga omnes às decisões de inconstitucionalidade proferidas pelo Tribunal no controle difuso de constitucionalidade, nos mesmos moldes do sistema norte-americano.

Em outro momento, conclui que, com a releitura do papel do Senado, o Supremo Tribunal Federal se firmará como Corte Constitucional, enaltecendo a jurisdição constitucional e reforçando o sistema de defesa da Constituição.

Impende esclarecer que o professor Dirley (2007, pg.91) utiliza o mesmo fundamento jurídico do Ministro Gilmar Mendes para viabilizar a reforma constitucional. Defende ele "uma mutação constitucional ou interpretação constitucional evolutiva com o escopo de redirecionar a competência do Senado Federal, prevista no art.52, X, da Constituição, para a atribuição, não mais de efeitos genéricos, mas tão somente de mera publicidade à decisão do Supremo".

Ambos são concordes em reconhecer que essa competência do Senado, se necessária à época da Constituição de 1934, hoje não mais encontra utilidade, em face da profunda alteração no sistema de controle de constitucionalidade apresentada pela Constituição de 1988, ampliando sobremaneira a incidência do controle concentrado em nossa jurisdição constitucional.

A lógica de tal posicionamento pode ser vislumbrada nesse questionamento apresentado:

Ora, se o Supremo Tribunal Federal pode, em sede de controle concentrado-principal, suspender, liminarmente e em caráter geral, a eficácia de uma lei e até mesmo de uma Emenda Constitucional, qual a razão hoje de limitar a declaração de inconstitucionalidade pronunciada pela Corte no controle incidental às partes do processo e condicionar a sua eficácia geral à intervenção do Senado? (CUNHA JUNIOR, 2007, pg.91).

A conclusão do professor Dirley da Cunha Junior coaduna-se com a apresentada pelo Ministro Gilmar Mendes, manifestando-se pela eliminação no sistema da intervenção do Senado nas questões constitucionais discutidas incidentalmente, e conferindo às decisões do STF a mesma eficácia geral e vinculante encontrada no modelo de controle de constitucionalidade norte-americano.

Mais timidamente, porém, não diferentemente, o professor Uadi Lâmmego Bulos (2008, pg.148) compartilha com as opiniões aqui apresentadas. Para ele:

No panorama do constitucionalismo de nosso tempo o mandamento cristalizado no art. 52, X, da Constituição encontra-se totalmente superado. Tal preceito, que remonta à Carta brasileira de 1934, já passou da hora de ser excluído da normativa constitucional pátria.

O Supremo Tribunal Federal é o oráculo do Texto Maior. Seus vereditos, independentemente de quaisquer chancelas, devem lograr eficácia contra todos e efeito vinculante, tanto na via de ação como na via de exceção. Por que não convertê-lo numa autêntica Corte Constitucional?

Assim, é inevitável reconhecer que a doutrina moderna avança no sentido de confirmar que o comando do art.52, X, da CF/88 perdeu sua utilidade. Aquilo que em 1934 servia como instrumento para equilibrar a Separação de Poderes, hoje é visto como entrave à celeridade da justiça constitucional. Entretanto, em que pesem as manifestações de desagravo, o mencionado artigo ainda se encontra no texto constitucional. Ele ainda faz parte do nosso ordenamento jurídico e precisa ser observado, uma vez que ainda produz efeitos.

Sendo assim, questiona-se: a mudança pretendida pelo Ministro Gilmar Mendes, corroborada pelo Ministro Eros Grau, encontra respaldo em nosso ordenamento? Poderá ela ser adotava, nos moldes dos votos relatados, e produzir os efeitos pretendidos?

Apresentamos, então, um questionamento apresentado pelo Ministro Eros Grau, na introdução do seu próprio voto-vista, e que traduz nossa indagação sobre a matéria:

"A essa altura importa indagarmos se não terá ele excedido a moldura do texto, de sorte a exercer a criatividade própria à interpretação para além do que ao intérprete incumbe. Até que ponto o intérprete pode caminhar, para além do texto que o vincula? Onde termina o legítimo desdobramento do texto e passa ele, o texto, a ser subvertido?"


6 A MUTAÇAO CONSTITUCIONAL

Conforme vimos no tópico anterior, o Supremo Tribunal Federal, liderado pelo Ministro GILMAR MENDES, está prestes a concluir um julgamento que, sem sombra de dúvida, será um marco na história do Tribunal.

Então relator do processo, o referido Ministro sustentou a tese de que as decisões do Tribunal proferidas em sede de controle difuso de constitucionalidade também deveriam possuir eficácia erga omnes e efeito vinculante, dando provimento à Reclamação constitucional ajuizada com este fim.

Sustentou que o art. 52, X, da CF/88 encontra-se ultrapassado, sendo certo que o papel do Senado, atualmente, deverá se limitar a apenas dar publicidade às decisões do STF. Para embasar juridicamente seu posicionamento, defende que se reconheça uma mutação constitucional do mencionado artigo, atribuindo-se, assim, um novo significado.

Em que pese o fato do julgamento ainda não ter se concluído na Corte Maior, relevante mencionar que o voto do então relator Gilmar Mendes já foi referendado pelo voto do Ministro Eros Grau e que, conforme o posicionamento da doutrina, tem toda a possibilidade de ser acolhido pelos Ministros restantes.

6.1 ENTENDENDO A MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL

Para podermos verificar se o argumento trazido pelo Ministro Gilmar Mendes tem coerência, antes precisamos ter a idéia do que consiste a mutação constitucional.

Primeiramente, esclarecemos que o termo está intimamente ligado com a hermenêutica constitucional. Segundo anota o Professor Pedro Lenza (2008, pg.68), foi o tema introduzido pela Professora da Faculdade de Direito da USP, Anna Cândido da Cunha Ferraz. Em seu trabalho, a ilustre doutrinadora diferenciou mutação constitucional de reforma constitucional.

A reforma constitucional consiste no clássico processo de mudança da Constituição, por meio dos procedimentos nela previstos, com o escopo de suprimir, alterar ou acrescentar dispositivos ao texto original. Por sua vez, mutação constitucional consiste numa espécie de mudança da Constituição, porém, sem alteração na sua redação original. O que é modificado é o alcance, a interpretação, o sentido de determinado termo ou expressão, porém, estes continuam intactos, sem modificação textual.

Em seu entendimento, Pedro Lenza (2008, pg.68) explica que as mutações "não seriam alterações ''físicas'', ''palpáveis'', materialmente perceptíveis, mas sim alterações no significado e sentido interpretativo de um texto constitucional".

Já para o Uadi Lammêgo Bulos, mutação constitucional é "o processo informal de mudança da Constituição, por meio do qual são atribuídos novos sentidos, conteúdos até então não ressaltados à letra da constituição, quer através de interpretação, em suas diversas modalidades e métodos, quer por intermédio da construção, bem como dos usos e costumes constitucionais".

O professor Inocêncio Coelho (2007, pg.123), em sua obra conjunta com Gilmar Mendes e Paulo Branco, nos ensina que:

As mutações constitucionais nada mais são que as alterações semânticas dos preceitos da Constituição, em decorrência de modificações no prisma histórico-social ou fático-axiológico em que se concretiza a sua aplicação.

Continua:

As mutações constitucionais são decorrentes – nisto residiria sua especificidade – da conjugação da peculiaridade da linguagem constitucional, polissêmica e indeterminada, com os fatores externos, de ordem econômica, social e cultural, que a Constituição – pluralista por antonomásia -, intenta regular e que, dialeticamente, interagem com ela, produzindo leituras sempre renovadas das mensagens enviadas pelo constituinte.

Destrinchando o quanto dito anteriormente, tem-se que a mutação faz parte da hermenêutica constitucional, pois, é justamente com as técnicas de interpretação que se possibilita ao operador do Direito atualizar o ordenamento jurídico. Os valores da sociedade, os conceitos do homem médio e os anseios do povo não são estanques. Eles evoluem. E não é a lei quem acompanha o ritmo dessas mudanças, mas sim os Tribunais, constantemente provocados para que adequem a norma legal à realidade.

Desse raciocínio, verificamos que o processo de mudança informal da Constituição (mutação constitucional) representa e concretiza o caráter dinâmico das normas jurídicas e, ao mesmo tempo, duradouro, pois referimo-nos à reinterpretação da lei (sentido amplo), porém, sem qualquer modificação em seu texto.

Nesse sentido, Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo nos ensinam que (2008, pg.545):

"As denominadas mutações (ou transições) constitucionais descrevem o fenômeno que se verifica em todas as Constituições escritas, mormente nas rígidas, em decorrência do qual ocorrem contínuas, silenciosas e difusas modificações no sentido e no alcance conferidos às normas constitucionais, sem que haja modificação na letra do seu texto. Consubstanciam a chamada revisão não formal da Constitucional. Em uma frase: ocorre uma mutação constitucional quando ‘muda o sentido da norma sem mudar seu texto".

Adiante, acrescentam:

"(...) outro fator que favorece sobremaneira a mutação constitucional informal é o caráter altamente abstrato e a textura aberta de grande parte das normas constitucionais. Essa característica das normas constitucionais deixa um razoável espaço de atuação aos agentes densificadores e concretizadores da Constituição, que têm a possibilidade de, sem deturpar ou afrontar a letra do Texto Maior, conferir-lhe sentido não previsto na ocasião de sua elaboração, porém, condizente com as modificações da realidade que desde então se verificaram" (grifos nossos).

Feitas essas considerações, questiona-se novamente se é possível utilizar esse instituto (da mutação constitucional) para modificar a competência do Senado Federal, prevista expressamente na Constituição Federal, na forma pretendida no voto do Ministro Gilmar Mendes.

6.2 A (IM)POSSIBILIDADE DE MUTAÇAO CONSTITUCIONAL

Para que o estudo fique claro, convém reproduzir textualmente a disposição do art. 52, X, da CF/88 e, consequentemente, apresentar o novo sentido que se almeja conferir ao dispositivo. Pois bem.

O art. 52, X, da CF/88 possui a seguinte redação:

Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal:

X- suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal;

Evidente que o referido artigo traz em si uma das competências que a própria Carta Magna reservou à Casa Legislativa. E esta competência é a de suspender a execução da lei declarada inconstitucional pelo STF.

Agora, nos cabe apresentar o novo sentido que se pretende atribuir ao citado artigo, por vias de mutação constitucional: compete privativamente ao Senado Federal dar publicidade à suspensão da execução, operada pelo Supremo Tribunal Federal, de lei declarada inconstitucional, no todo ou em parte, por decisão definitiva do Supremo.

Ao que nos parece, pela comparação das duas terminologias, não há como se justificar que a segunda resultou de uma mudança de interpretação da primeira, o que se esperaria de uma verdadeira mutação. Vamos às explicações.

Num primeiro plano, vemos que semanticamente as duas expressões são bastante distintas. "Suspender a execução" é uma expressão de conteúdo fechado, taxativo. Não poderá, nunca, se transformar em "dar publicidade à suspensão". São idéias distintas, com conteúdos e noções distintos, inconfundíveis. Não existe releitura, amadurecimento, atualização conceitual que consiga subsidiar uma alteração desse porte.

Assim, como vimos que a mutação constitucional consiste numa reforma constitucional sem modificação de texto, mas sim uma modificação apenas nos sentidos das terminologias, resta evidente que o quanto pretendido pelo Ministro Gilmar Mendes não encontra guarida nesse fundamento.

Ao justificar que houve uma interpretação evolutiva, nos dizeres do Prof. Dirley da Cunha, é necessário que a "nova interpretação" comporte no invólucro da expressão. Já disse o Ministro Eros Grau, em seu voto-vista, que "ainda quando operem o que chamamos de mudança de jurisprudência, os intérpretes autênticos não estão livres para modificá-lo, o texto normativo, à vontade, reescrevendo-o a seu bel-prazer".

O que se defende aqui é que, caso pretenda fazer uma releitura de certa norma, o intérprete não poderá adequá-la àquilo que simplesmente achar conveniente. É preciso que a reformulação encontre sentido e harmonia com a expressão já existente, posto que não há palavra na língua pátria destituída de qualquer conteúdo, a ponto de comportar um preenchimento em qualquer sentido desejado. Assim, existem noções mínimas que precisam ser observadas ao se reinterpretar uma expressão, sob pena de se incidir num neologismo, fato totalmente diverso de uma simples releitura textual.

Sendo certo que nem no voto do Relator Gilmar Mendes quanto no voto-vista do Ministro Eros Grau se falou em neologismo, concluímos que utilizar a mutação constitucional para modificar a competência do Senado é uma interpretação forçada, posto que distorce um instituto com o desiderato de modificar a Constituição, sem preocupação com seus limites.

Essa é uma conclusão, porém, exclusivamente semântica e conceitual. Observamos que, de acordo com o conceito de mutação constitucional, ela não se encaixa nos objetivos dos Ministros do Supremo Tribunal. Todavia, não existem apenas implicações semânticas nos votos apresentados, mas também jurídicas, e de grande relevância. Essas implicações jurídicas legitimam as modificações pretendidas?

Analisando o voto do Ministro Eros Grau, verificamos uma incongruência jurídica ao tratar novamente acerca da mutação constitucional. Como já apresentado, primeiramente ele define que a mutação constitucional consistiria na "transformação de sentido do enunciado da Constituição sem que o próprio texto seja alterado em sua redação" Contudo, a poucas linhas de distância, conclui o renomado Ministro que "Na mutação constitucional caminhamos não de um texto para uma norma, porém de um texto para outro texto, que substitui o primeiro", grifamos.

Sem necessidade de buscar maiores apoios na doutrina, sabemos que a característica da mutação é a alteração do alcance da norma sem alteração do texto. E disso o Ministro não discorda, posto que observou exatamente o mesmo em sua primeira passagem colacionada acima. Porém, conclui posteriormente que se enquadraria no conceito em estudo a alteração de um texto para outro texto, substituindo-o.

Em outra passagem, o Ministro Eros Grau reconhece que o Relator Gilmar Mendes não está apenas conferindo uma nova interpretação à Constituição, não está extraindo uma norma desse texto, mas sim criando novas disposições. "O que afirma o Relator é uma mutação, e não uma interpretação" distingue.

Novamente aqui se fez uma distinção equivocada, que não corresponde à realidade. A mutação decorre da interpretação, por excelência. Atribuir nova dimensão a uma expressão é interpretá-la sob novo ângulo, novo ponto de vista. É por meio da interpretação que se alcança a mutação. Assim, afirmar que existe uma profunda diferença entre mutação e interpretação é ir de encontro à própria essência do instituto, sendo evidente que não há como acolher o posicionamento do Ministro Eros Grau sobre esta matéria.

Obviamente que não se pretende aqui, em momento algum, corrigir equívocos de juristas do porte do Ministro referido. Na verdade, não se acredita que o ocorrido seja efetivamente um erro despercebido. Infere-se que o novo conceito de mutação constitucional foi conscientemente colocado no voto, com o nítido escopo de utilizá-lo como fundamento para concretizar a reforma desejada por Gilmar Mendes.

Ou seja, modifica-se o conceito de mutação constitucional para que esta dê suporte à modificação do art. 52, X, da CF/88. É a mutação do próprio conceito de mutação constitucional.

O Doutor Lênio Streck, em artigo publicado em co-autoria com Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira e Martoni Mont’Alverne Barreto Lima (2007, pg.2), no qual faz duras críticas às pretensões dos mencionado Ministros do STF, observa que:

O direito – compreendido no interior dessa ruptura paradigmática – não pode ser entendido como espaço de livre atribuição de sentido; essa questão assume especial relevância quando se trata do texto constitucional. Ou seja, em determinadas situações, mutação constitucional pode significar, equivocadamente, a substituição do poder constituinte pelo Poder Judiciário. E, com isso, soçobra a democracia.

Mais adiante, corrigem:

Com efeito, a tese da mutação constitucional é compreendida mais uma vez como solução para um suposto hiato entre texto constitucional e a realidade social, a exigir uma "jurisprudência corretiva", tal como aquela a que falava Büllow, em fins do século XIX (veja-se, pois, o contexto histórico): uma jurisprudência corretiva desenvolvida por juízes éticos, criadores do Direito" (Gesetz und Richteramt, Leipzig, 1885) e atualizadores da constituição e dos supostos envelhecimentos e imperfeições constitucionais; ou seja, mutações constitucionais são reformas informais e mudanças constitucionais empreendidas por uma suposta interpretação evolutiva.

Não obstante a distorção do instituto da mutação constitucional, tanto semântica quanto juridicamente, existem outras implicações, ainda jurídicas, que também precisam ser levadas em consideração ao se analisar os votos dos referidos Ministros do STF.

Como Guardião da Constituição, o STF tem plena consciência dos limites que a própria Constituição estabeleceu para sua reforma. Limites estes que visam, como já visto, garantir a durabilidade do Texto Constitucional, assegurando sua supremacia e rigidez em face das ingerências que invariavelmente irá sofrer.

Entretanto, abrindo mão dos limites constitucionalmente impostos, pretendem os Ministros Gilmar Mendes e Eros Grau efetivar uma verdadeira reforma constitucional, a seu bel-prazer. A tese por eles levantada não se enquadra em nova interpretação, mas sim em modificação expressa da Constituição. Dispensa-se o Poder Legislativo, dispensam-se as emendas constitucionais, dispensam-se os quoruns de aprovação e faz-se uma sorrateira alteração no texto constitucional.

O Poder Judiciário não possui legitimidade, ainda que se trate da mais alta Corte do País, para alterar a Constituição. O papel do Supremo Tribunal Federal é diametralmente oposto, é o de justamente preservar e defender o texto constitucional, atuar para que as disposições constantes na Carta Magna não sejam subvertidas, ignoradas ou extrapoladas.

Por sua vez, não pode a alta Corte do país se valer da prerrogativa de guardiã da Constituição para, singelamente, fazer alterações em suas disposições, ainda que se tenha a mais nobre das intenções.

Estamos a falar em ofensa à separação dos Poderes, uma vez que estaria o Judiciário, o qual não possui legitimidade para legislar, invadindo as esferas de atribuições do Poder Legislativo, este único apto a efetivar quaisquer mudanças no corpo da Constituição. Além, é preciso atentar para ofensas à rigidez Constitucional.

Como bem observado no tópico 2.2, a Constituição é o fundamento de validade de todo o ordenamento jurídico. Como norma suprema, instituiu regras próprias para sua reforma, limitando-a, bem como meios para garantir sua primordialidade. Quanto às regras, consagrou o Poder Legislativo como o único legitimado a efetuar qualquer modificação no texto constitucional, previu quórum qualificado de aprovação e discussão em ambas as Casas Legislativas, em dois turnos, dispensando-se até mesmo o Poder Executivo de todo este processo legislativo. Quantos aos meios de defesa, um dos mais importantes foi a concepção do Supremo Tribunal, voltado para salvaguardar a supremacia constitucional. E só. Defendê-la, sempre, reformá-la, jamais.

Ainda nas palavras do Professor Lenio Streck (2007, pg.2), um dos principais críticos ao posicionamento dos Ministros do STF, "o processo histórico não pode, desse modo, delegar para o Judiciário a tarefa de alterar, por mutação ou ultrapassagem, a Constituição do País".

E continua em sua crítica:

Em síntese, a tese da mutação constitucional advoga em última análise uma concepção decisionista da jurisdição e contribui para a compreensão das cortes constitucionais como poderes constituintes permanentes. Ora, um tribunal não pode mudar a constituição; um tribunal não pode "inventar" o direito: este não é seu legítimo papel como poder jurisdicional, numa democracia.

A atividade jurisdicional, mesmo a das cortes constitucionais, não é legislativa, muito menos constituinte (e assim não há o menor cabimento, diga-se de passagem, na afirmação do Min. Francisco Rezek, quando do julgamento da ADC n.º 1, quando este dizia que a função do STF é a de um oráculo (sic) que "diz o que é a Constituição").

Ainda ensina que o papel da jurisdição é o de levar adiante a tarefa de construir interpretativamente, com a participação da sociedade, o sentido normativo da constituição e do projeto de sociedade democrática a ela subjacente. Um tribunal não pode paradoxalmente subverter a constituição sob o argumento de estar garantindo-a ou guardando-a.

Admitir-se a procedência do quanto pretendido no julgamento da Reclamação 4.335 é legitimar o STF a extrapolar a função corretiva inerente à jurisdição constitucional. A interpretação constitucional desmesurada levaria o Tribunal ao absurdo de sempre produzir novos textos, acobertado pelo manto da mutação constitucional.

Outro aspecto a ser observado, ao se falar em objetivação do controle difuso, é a mudança trazida pela Emenda Constitucional n° 45, que introduziu no ordenamento jurídico a Súmula Vinculante, fato que, talvez, ponha termo em toda a discussão envolvendo os efeitos das decisões do STF proferidas em sede de controle difuso.

Consoante previsão do art. 103-A da CF/88, o Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.

Sem adentrar na discussão acerca da utilidade desse instrumento, fato é que o mesmo já vigora em nosso País. Assim, caso o Tribunal entenda, ou seja provocado para tanto, que determinada matéria que é constantemente julgada precisa ser uniformizada, procederá à edição de uma Súmula que represente seu entendimento acerca da matéria.

Observe-se que existe, então, em nosso ordenamento, a par das Ações Diretas, um mecanismo que possibilita o Supremo Tribunal Federal estabelecer um entendimento e vinculá-lo aos demais órgãos do Poder Judiciário e a todas as esferas da Administração Pública. Esse instrumento é a Súmula Vinculante.

Por conseguinte, atentemos para o fato que, para a edição da Súmula, é necessário um quorum especial, de dois terços, bem como que a matéria já tenha sido objeto de julgamento reiteradas vezes. Tais requisitos se justificam em virtude da dimensão que o efeito vinculante possui. É como se exigisse um amadurecimento do Tribunal e, consequentemente, das decisões, para que o mesmo fosse estendido a todos, o chamado efeito erga omnes.

Mas o que se deve ser levado em consideração é que a Súmula Vinculante foi recentemente incluída no Corpo Constitucional (2004). E esta recente inclusão confirma o sistema de controle de constitucionalidade adotado no Brasil: o sistema misto.

Conforme já estudado anteriormente, vimos que o Brasil adotou o sistema misto de controle de constitucionalidade, inspirado no controle difuso norte-americano e no controle concentrado austríaco. Ambos os sistemas convivem e se completam no ordenamento pátrio. E a instituição da Súmula Vinculante contribuiu para reforçar a nítida distinção que as diferentes formas de controle possuem.

Lembremo-nos que a idéia para a instituição de uma súmula com caráter vinculante foi apresentada pela primeira vez em 1963. Apenas 41 anos depois é que se chegou ao consenso de que sua aplicação seria útil ao direito brasileiro. E ao se falar aplicação, entenda como autorizar o STF a estender efeitos vinculantes e para todos nas suas decisões.

Estender os efeitos das decisões proferidas em controle difuso consistiria em tornar inócuas as Súmulas Vinculantes que agora (2004) podem ser editadas pelo Supremo Tribunal. Inócuas porque estas dependem da aprovação de dois terços dos membros do Supremo Tribunal para sua aprovação, ao passo que uma decisão aprovada em maioria simples, 6 contra 5, por exemplo, obviamente não uniformizada, já produziria efeitos contra todos sem maiores dificuldade.

Portanto, a sua instituição reforça que possuímos um controle concentrado, exercido por meio das Ações Diretas, com os já sabidos efeitos vinculantes e erga omnes, bem como um controle difuso, exercido, em regra, por meio de Recurso Extraordinário, com efeitos inter partes, que poderão ser estendidos a todos, caso o Tribunal sinta a necessidade para tanto, utilizando-se a Súmula Vinculante. Esta foi a opção do constituinte originário, percebida com a promulgação da Constituição Federal em 1988, bem como do constituinte derivado, verificada com a Emenda Constitucional n° 45/2004.

Em outras palavras, percebemos que, ao longo da vigência da Constituição Federal de 1988, o constituinte derivado (único legitimado a alterar o texto constitucional) reforçou a permanência de dois modelos de controle de constitucionalidade, sabendo-se que teve oportunidade para modificá-la. Para atribuir efeitos erga omnes às decisões do controle difuso, foram necessários 41 anos de amadurecimento. Assim, indaga-se: qual a legitimidade que o Supremo Tribunal Federal possui para, em apenas um voto, modificar todo um sistema constitucional, instituído e referendado pelos Poderes Constituintes?

Logicamente que a resposta não pode ser outra, a não ser: nenhuma. Mudanças na Constituição só podem ser realizadas após um amplo debate, amadurecimento e votação no Congresso Nacional. Qualquer outra forma é inválida, ilícita e deslegitimada.

Caso o Supremo Tribunal Federal entenda que determinada matéria é extremamente relevante e precisa ser uniformizada, verticalmente, estendendo-se seus efeitos para todos, já existe um instrumento para tanto, que é a Súmula Vinculante. Então, se existe tal instrumento, por que não utilizá-lo, ao invés de propor uma sorrateira reforma na Constituição, fantasiada de mutação constitucional?

Ressaltemos que o que se critica aqui não é o próprio conteúdo da mudança pretendida. Não se está a questionar quais os benefícios ou prejuízos que um possível efeito erga omnes à todas as decisões do STF poderia trazer ao ordenamento jurídico brasileiro. O que se impugna é a forma como essas mudanças estão sendo introduzidas em nosso controle de constitucionalidade.

O ilustre professor Pedro Lenza (2008, pg.155,156), em sua obra, traz brilhante observação sobre o tema, a qual, apesar de extensa, merece ser transcrita aqui, pela precisão e clareza:

Muito embora a tese da transcendência decorrente do controle difuso pareça bastante sedutora, relevante e eficaz, inclusive em termos de economia processual, de efetividade do processo, de celeridade processual (art. 5°, LXXVIII – Reforma do Judiciário) e de implementação do princípio da força normativa da Constituição (Konrad Hesse), parecem faltar, ao menos em sede de controle difuso, dispositivos e regras, sejam processuais, sejam constitucionais, para a sua implementação.

O efeito erga omnes da decisão foi previsto somente para o controle concentrado e para a súmula vinculante (EC n.45/2004) e, em se tratando de controle difuso, nos termos do art.52, X, da CF/88, somente após a atuação discricionária e política do Senado Federal.

Portanto, no controle difuso, não havendo suspensão da lei pelo Senado Federal, a lei continua válida e eficaz, só se tornando nula no caso concreto, em razão de sua não aplicação.

Assim, na medida em que a análise de constitucionalidade da lei no controle difuso pelo STF não produz efeito vinculante, parece que somente mediante necessária reforma constitucional (modificando o art. 52, X, e a regra do art. 97) é que seria possível assegurar a constitucionalidade dessa nova tendência – repita-se, bastante atraente – da transcendência dos motivos determinantes no controle difuso, com caráter vinculante.

Se aceita nos parâmetros propostos, a transcendência, com caráter erga omnes, dos motivos determinantes da sentença no controle difuso autorizaria, inclusive, o uso da reclamação em caso de descumprimento da tese constitucional resolvendo enquanto questão prejudicial. Outra não poderia ser a interpretação.

É de se observar que o Professor Pedro Lenza questiona exatamente, assim como nós, a forma como a mudança está sendo realizada no Direito Brasileiro. Para ele, faltam dispositivos que autorizem a pretendida reforma, dispositivos que só poderiam ser encontradas após uma emenda à Constituição.

A pretensão dos Ministros Gilmar Mendes e Eros Grau, até o momento os únicos dispostos a abraçá-la no STF, encontra óbice na Constituição e no próprio Direito como Ciência. Foram desprezados institutos jurídicos e disposições constitucionais, em prol de um aprimoramento no controle de constitucionalidade pátrio.

Entendemos que a modificação almejada do art. 52, X, da CF/88 não condiz com uma simples releitura, mas constitui uma verdadeira e cristalina reforma do seu texto, do seu sentido e do seu alcance. Reforma esta que não poderá ser concretizada por um julgamento no Supremo Tribunal Federal, ainda que todos os seus Ministros estejam de acordo.

Modificar o art. 52, X, da Constituição Federal não significa uma alteração apenas num artigo, mas significa uma alteração em todo nosso sistema de controle de constitucionalidade. A grande questão não é só alterar uma competência do Senado Federal, mas também alterar a forma como nossa lógica de controle se projeta.

Temos a tradição do controle difuso, do Recurso Extraordinário. Com a Constituição de 1988, o controle concentrado ganhou força e expressão, porém, sem ofuscar o controle dos casos concretos. Importamos dois sistemas de controle e viabilizamos a convivência entre ambos. Cada um exerce adequadamente seu papel em nosso ordenamento jurídico.

A distinção entre ambos reside, exatamente, nos efeitos em que cada um proporciona. Utiliza-se o controle concentrado, abstrato, por meio das Ações Diretas, justamente por ser apto a sanar a inconstitucionalidade integralmente, posto que vincula a todos, impossibilitando as exceções.

Porém, esclareço que não é o fato de termos a tradição de ambos os sistemas que impede a pretensão consubstanciada na Reclamação 4.335. A coexistência entre ambos os sistemas representa nossa realidade e nossa mentalidade. É assim que está disposto nosso controle de constitucionalidade. É dessa forma como dispõe a própria Constituição Federal

A tradição impede a mudança? Jamais. Contudo, se existe a pretensão de modificar, esta modificação deve ser concretizada pela forma correta e constitucionalmente legítima. Possuímos um Congresso Nacional que, apesar de todas as críticas, ainda possui a competência, exclusiva, diga-se de passagem, para fazer qualquer reforma no corpo da Constituição.

Se os Ministros entendem ser obsoleto o disposto no art. 52, X, devem se mobilizar para que uma proposta de emenda à Constituição seja apresentada, discutida e votada. O crivo do Poder Legislativo é imprescindível para tal desiderato. É assim como funciona nosso ordenamento jurídico.

Em seu voto, o Ministro Eros Grau afirma o seguinte:

Sucede que estamos aqui não para caminhar seguindo os passos da doutrina, mas para produzir o direito e reproduzir o ordenamento. Ela nos acompanhará, a doutrina. Prontamente ou com alguma relutância. Mas sempre nos acompanhará, se nos mantivermos fiéis ao compromisso de que se nutre a nossa legitimidade, o compromisso de guardarmos a Constituição. O discurso da doutrina [=discurso sobre o direito] é caudatário do nosso discurso, o discurso do direito. Ele nos seguirá; não o inverso.

Vislumbra-se que o mencionado Ministro reduz a questão a uma simples discussão doutrinária, como se estivéssemos tratando de conceituar um instituto jurídico. Além disso, despreza as manifestações doutrinárias, atribuindo ao Supremo Tribunal Federal carta branca para tomar qualquer decisão, mesmo que contrária ao posicionamento doutrinário pátrio, argumentando que este deve se submeter àquele, com relutância ou não.

Contudo, é preciso lembrá-lo que o cerne da questão não é apenas jurídico, o que estaria inserido na competência da Suprema Corte, mas sim político, envolvendo os Poderes da República. Modificar a Constituição, extinguindo uma competência do Senado Federal, não é uma decisão jurídica, mas sim política. E se é política, deverá ser tomada por quem de direito. Pra isso existem o Poder Executivo e o Poder Legislativo.

Os excessos do STF, personificados em seus Ministros, está contribuindo para torná-lo, sempre mais, um Tribunal político, desvinculando-o de seu real papel. Não sem razão, percebemos uma crescente crítica, doutrinária e midiática, ao papel desenvolvido atualmente pelo Tribunal, argumentando-se que o mesmo extrapola as questões constitucionais e passa a atuar como última instancia sobre as decisões que interessam politicamente ao Estado.

No caso em questão, se argumentou que a medida serviria para dar mais celeridade e eficiência ao processo judicial, evitando-se sobrecarregar o STF de processos repetitivos, além de conferir-lhe uma melhor característica de Tribunal Constitucional.

Acontece que esse argumento esbarra no próprio molde do controle concentrado. Hoje, nosso sistema comporta a concessão de medidas cautelares nos autos das Ações Diretas, ainda que proferidas monocraticamente. Tal instrumento visa, exatamente, dar celeridade e uniformidade ao processo brasileiro, possibilitando, por exemplo, que um Ministro do STF suspenda o julgamento de todas as ações que envolvam determinada matéria até o pronunciamento final do Tribunal, pronunciamento este que, por se tratar de controle concentrado, terá efeitos vinculantes e erga omnes em todo o território nacional.

E precisamos reconhecer que é muito mais célere conseguir um pronunciamento do STF ingressando com uma Adin, por exemplo, do que esgotar todas as instancias ordinárias para se interpor um Recurso Extraordinário e pleitear a mesma decisão. Portanto, ao se falar em celeridade, basta olharmos para nosso próprio sistema e explorar aquilo que já temos à disposição.

Por fim, resta a idéia da vantagem de se transformar o Supremo Tribunal Federal, cada vez mais, em um verdadeiro Tribunal Constitucional.

Como vimos, a idéia de Tribunal Constitucional foi desenvolvida por KELSEN e implantada, originariamente, na Áustria. Obviamente, lá se desenvolveu o que chamamos de Sistema Austríaco de controle de constitucionalidade, do qual o Brasil importou alguns institutos.

A característica marcante desse sistema é a de se ter um Tribunal com exclusiva competência para exercer o controle de constitucionalidade. Apenas este poderá resolver sobre a compatibilidade de uma norma com o ordenamento vigente. Ainda, ressaltemos que a manifestação do Tribunal se dá de forma abstrata, sem vinculação com um caso concreto. Consequentemente, como apenas o Tribunal poderá decidir sobre as inconstitucionalidades, nada mais lógico do que todas as suas manifestações terem efeitos erga omnes.

Significa dizer que o Tribunal foi não concebido para funcionar como uma instância recursal, mas, apenas, como um órgão como uma reduzida e exclusiva competência. Essa é a idéia de um verdadeiro Tribunal Constitucional.

Voltando para o Brasil, atentemos para o argumento utilizado por alguns dos defensores da reformulação do art. 52, X, da CF/88, a de que tal reforma resultaria em aproximar o STF de um clássico Tribunal Constitucional. Essa argumentação é apenas em parte – pequena, inclusive - verdadeira.

Atribuir efeitos vinculantes e erga omnes a todas as decisões do STF não significa transforma-lo num Tribunal Constitucional, uma vez que essa não é a característica que lhe confere tal status. O efeito erga omnes do verdadeiro Tribunal Constitucional decorre exclusivamente da lógica do sistema, posto que, ao apreciar a constitucionalidade abstratamente, estará atuando como legislador negativo, e é incontroverso que as manifestações do legislador, ainda que negativo, não podem ser direcionadas a uma única pessoa, a um único caso.

Assim, a simples idéia de estender os efeitos das decisões do nosso Supremo Tribunal é insuficiente para transformá-lo num verdadeiro Tribunal Constitucional. Para se alcançar tal desiderato, mais uma vez é preciso que se faça uma ampla reforma em todo nosso sistema jurídico, reestruturando as competências do STF, extinguindo-o como uma instancia recursal e conferindo exclusivamente a atribuição de decidir sobre todas as inconstitucionalidades suscitadas.

Obviamente que uma mudança desse porte não ocorre em um curto espaço de tempo. Deve ser fruto de um processo lento e histórico, com uma mudança de mentalidade da comunidade jurídica e do reconhecimento de que tais transformações trarão melhorias ao nosso controle de constitucionalidade.

Como ainda estamos bem longe de alcançar esses patamares, somos obrigados a concluir que todas as transformações que se pretendem fazer na Constituição e todos os argumentos utilizados carecem de amparo. Primeiramente, amparo constitucional, e, posteriormente, de amparo racional, sendo suficientes para que nos ergamos e contestemos tais incongruências, tudo com o único fim de preservar a higidez do nosso sistema jurídico e da nossa Constituição Federal.


7 CONCLUSÃO

Vimos no presente trabalho, que, com o advento da Constituição Federal de 1988, consolidou-se no Brasil um sistema misto de controle de constitucionalidade, no qual convivem harmonicamente os modelos concentrado e difuso de controle, oriundos dos sistemas austríaco e norte-americano, respectivamente.

Uma das características que distingue o modelo concentrado do modelo difuso, além dos órgãos legitimados para exercer o controle, relaciona-se com os efeitos das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, que foi o objeto do presente estudo.

No controle concentrado, exercido por meio das Ações Diretas, as decisões do STF operam efeitos vinculantes e erga omnes, ao passo que no controle difuso as decisões produzirão efeitos apenas entre as partes dos processos.

Como se trata do mesmo Tribunal, com a mesma composição, poder-se-ia questionar a incongruência de tal sistema, no qual o mesmo órgão ora profere decisões inter partes, ora as profere erga omnes. Em face de tal situação surge a competência do Senado Federal, hoje consubstanciada no art. 52, X, da CF/88, de suspender a execução, no todo em parte, de lei declarada definitivamente inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, estendendo a todos que não participaram do processo os efeitos da decisão do mencionado Tribunal.

Esse panorama, em teoria, resultaria num harmônico sistema de controle de constitucionalidade, com instrumentos capazes de sanar eventuais incongruências e irregularidades. Contudo, principalmente com a evolução do STF em matéria de hermenêutica constitucional, o mesmo tem se mostrado insuficiente. É que novas técnicas de interpretação estão sendo utilizadas, tal como a interpretação conforme a Constituição, concretizando o controle de constitucionalidade, porém, impossibilitando a atuação do Senado Federal, uma vez que não há, efetivamente, um reconhecimento de inconstitucionalidade da norma. Além disso, acrescente-se a própria inércia dessa Casa Legislativa e vivenciamos um colapso na ponderação entre ambos os modelos de controle de constitucionalidade.

Face esta realidade, o Ministro Gilmar Mendes, relator da Reclamação 4.335/ACRE, propôs, em seu voto, uma modificação em nosso sistema de controle de constitucionalidade, a qual resultaria numa jurisdição, segundo ele, mais célere e afinada com a modernidade.

Assim, defendeu que a competência atribuída ao Senado Federal no art. 52, X, da CF encontra-se obsoleta, ultrapassada, merecendo uma releitura. Para o Ministro, a mesma sofreu uma mutação constitucional. Agora, em vez do Senado suspender a execução da lei declarada inconstitucional pelo STF, propõe o Ministro que a este órgão seja atribuída a competência para, apenas, dar publicidade às decisões do STF, as quais já possuiriam o efeito erga omnes.

Compartilham desse posicionamento o também Ministro Eros Grau, o qual já apresentou voto-vista nesse sentido, e parte da doutrina, conforme demonstrado ao longo do presente estudo.

Contudo, entendemos que esse não é o melhor entendimento, pois esbarra em questões lógicas e jurídicas, as quais impedem sua concreção.

Primeiramente, vimos que o conceito de mutação constitucional foi deturpado nos votos dos Ministros. A mutação ocorrerá quando houver uma mudança de alcance da norma sem que haja uma mudança de seu texto. Essa é a sua essência. E o pretendido pelos Ministros é coisa diversa. Pretendem modificar a norma com uma real alteração do seu texto, ainda que não efetivamente incorporada ao corpo constitucional. Assim, o instituto da mutação constitucional é inadequado para subsidiar a reforma pretendida.

Dando continuidade, argumentamos que o Supremo Tribunal Federal, como órgão máximo do Poder Judiciário, não possui legitimidade para alteração a Constituição quando achar conveniente. A Carta Magna instituiu rígidos mecanismos para a sua alteração, os quais são de observância obrigatória. Conferiu ao STF a função de zelar e proteger seus preceitos, e não a de alterá-la. Dessa forma, temos como nitidamente inconstitucional a "interpretação" dada pelo STF ao art. 52, X, da CF/88, posto que se trata de uma reforma constitucional ás avessas.

Ressaltamos que, com a instituição da Súmula Vinculante no ordenamento jurídico pátrio, toda a presente discussão mostra-se infundada. É que, ao se utilizar das Súmulas, o STF estaria estendendo os efeitos das suas decisões a todos, com efeitos vinculantes. Por tal razão, não haveria aparente sentido alterar-se sorrateiramente um artigo da Constituição Federal para alcançar o mesmo fim.

Acrescentamos que a Súmula Vinculante, para a sua aprovação, exige um maior "amadurecimento" por parte do Tribunal, ao demandar o voto de, pelo menos, dois terços dos Ministros e restringir-se a matérias que já foram objeto de reiteradas apreciações. Tais requisitos demonstram que, para estender os efeitos das decisões, um caminho mais longo deve ser percorrido, justamente por se tratar de uma questão que envolverá a todos.

Por esta razão, entendemos que, caso o Supremo Tribunal Federal julgue necessário uniformizar em todo o país seu entendimento sobre determinada matéria, terá ele como instrumento para tanto a Súmula Vinculante. Assim, se já existem os mecanismos para este desiderato, não há razão para se alterar a Constituição, ainda mais da forma como se pretende.

Argumentamos, ainda, que a ideia de aproximar o Supremo Tribunal Federal de um verdadeiro Tribunal Constitucional não encontra guarida nos fundamentos apresentados tanto nos votos dos Ministros Gilmar Mendes e Eros Grau quanto na doutrina.

É que a característica primordial do verdadeiro Tribunal Constitucional não é proferir decisões com efeitos erga omnes, mas sim ser um órgão dotado de competência exclusiva para exercer o controle de constitucionalidade, funcionando efetivamente como um legislador negativo. A extensão dos efeitos de suas decisões decorre da lógica, e não de sua característica.

Para finalizar, observamos que as a reforma do art. 52, X, da CF/88 possui um verdadeiro cunho político, ainda que seja para aprimorar o Poder Judiciário. E decisões políticas só podem ser tomadas por quem de direito: Poder Executivo e Poder Legislativo. Ao Poder Judiciário é conferida unicamente a apreciação de questões jurídicas.

Caso entenda-se que a Constituição Federal possui trechos obsoletos, que exigem uma imediata reforma, o caminho a ser seguido é um só. Provocar o Poder Legislativo para que o mesmo, após discussões e votações, aprove uma Emenda Constitucional. É esta a forma prevista pela própria Constituição. Agir diferente é sabotar o texto constitucional, mesmo que se pretende aprimorá-lo.

Em vista de tudo quanto exposto, entendemos ser inconcebível a mutação constitucional da competência do Senado Federal prevista no art. 52, X, da CF/88. Assim, caso o julgamento da Reclamação 4.335 termine com um quorum favorável ao posicionamento do relator, abriremos uma porta para que, de agora em diante, o Supremo Tribunal Federal possua legitimidade e competência para moldar a Constituição Federal a seu bel-prazer, reunindo poderes quase que ilimitados, sepultando o princípio da separação dos Poderes e, por que não, a democracia brasileira.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RIBEIRO, Daniel Leite. O STF e a (im)possibilidade de mutação constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2147, 18 maio 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12876. Acesso em: 19 abr. 2024.