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O Poder Judiciário e a lei.

A decisão contra a lei na jurisprudência penal catarinense

O Poder Judiciário e a lei. A decisão contra a lei na jurisprudência penal catarinense

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Nas razões das sentenças, devem ser buscadas as motivações expressas ou implícitas. Mais ainda: no momento histórico, nas circunstâncias de toda ordem, na filosofia de vida do juiz e, é claro, na estrutura da própria sociedade.

SUMÁRIO. Apresentação. Introdução. Parte I – A decisão contra a lei na jurisprudência penal catarinense. 1. Furto privilegiado. 2. Cheque pré-datado. 3. Cheque: composição amigável. 4. Crime continuado. 5. Erro de fato e ficção jurídica 6. Política criminal. 7. Subjetivismo judicial e concurso aparente de normas. 8. Furto qualificado pelo abuso de confiança. 9 Ausência de prova. Parte II – O poder judiciário e a lei. 1. Separação de poderes, ciência e justiça. 2. O poder judiciário em face da lei. 3. Linguagem e direito. 4. Interpretação e aplicação do direito. 5. Personalidade do juiz e foro criminal 6. Técnicas judiciais para uma decisão contra a lei. 7. Sistema jurídico-penal brasileiro: outros detalhes de ordem legal, doutrinária e judicial. 8. Em torno da criação judicial do direito: síntese final. 9. Revisão crítica e observações complementares. Bibliografia.


APRESENTAÇÃO

1. Esta obra corresponde, sem alterações de vulto, à dissertação de mestrado defendida junto ao Curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, em 1979. Não lhe acrescentei, como pretendia inicialmente, qualquer capítulo novo. Convenci-me de que o tema escolhido – a decisão judicial contra a lei – permanece atualizado em si mesmo, por sua própria natureza. Preferi, então, preservar-lhe a estrutura, pois importante é o contexto histórico, são as ideias e concepções do momento, surgidas na empolgação da pesquisa ou garimpadas na doutrina e na jurisprudência.

2. O fato é que a hermenêutica jurídico-penal me acompanha desde o ingresso na carreira de magistério na Universidade Federal de Santa Catarina, precedido que foi de um trabalho com o sugestivo título de Interpretação e analogia em face da lei penal brasileira, de 1965. Na sequência das aulas senti o peso da responsabilidade inerente à exposição e abordagem de um direito penal diversificado, controvertido, contraditório, para espanto e surpresa de alunos que aguardavam respostas certas, de cunho teórico-dogmático. Felizmente, e quase ao mesmo tempo, pude contar com as atividades de Advogado da Justiça Militar do Estado, na área criminal, bem como de Membro do Conselho Penitenciário, que me reforçaram a percepção de divergências interpretativas a demandar explicações mais abrangentes.

3. Aproveito o ensejo para renovar minhas homenagens aos funcionários, colegas e docentes da Pós-Graduação em Direito, sob a Coordenação, na época, pela ordem, dos professores Acácio Garibaldi de Paula Ferreira S.Thiago e Paulo Henrique Blasi. Da mesma forma, e de modo muito especial, aos professores Osni de Medeiros Régis (Orientador), Osvaldo Ferreira de Melo e Luis Alberto Warat, integrantes da Banca Examinadora

4. Os anos se passaram e ainda hoje permanece explícita minha preferência por uma visão crítico-metodológica do direito penal, de que constitui exemplo a presente dissertação de mestrado. Quase tudo que depois escrevi se traduz em tentativa de aperfeiçoamento das observações então esboçadas.

5. Não descarto a validade dos inúmeros esforços da doutrina em termos de sistematização do ordenamento jurídico. De prévia organização teórica não pode afastar-se quem exerce o magistério ou labuta no foro criminal. Em contrapartida, insisto em apontar as limitações e fragilidades de toda e qualquer aventura dogmática, ao mesmo tempo em que proponho a desobstrução dos caminhos que ocultam as raízes ou categorias básicas do direito penal: força, poder, vontade, liberdade.

6. Ainda não perdi a esperança de que as atuais gerações de juristas despertem para a compreensão do caráter histórico-sociológico do direito. Se isso acontecer, acredito que novos horizontes se lhes abrirão aos olhos finalmente comprometidos com uma possível reconstrução ético-valorativa da própria dogmática jurídico-penal.


INTRODUÇÃO

O direito como fato concreto, como acontecimento real, como norma ditada pelo juiz, na esfera contenciosa, quase não é reproduzido nos livros de doutrina. Principalmente no Brasil. Daí a necessidade de serem consultados os volumes de jurisprudência.

Mas é pouco. Também a jurisprudência carece de interpretação mais abrangente, de análise crítica, permissivas de melhor compreensão do fenômeno decisório. Há uma psicologia da decisão, uma lógica da decisão, uma sociologia da decisão.

Contudo, o material a analisar – o texto dos acórdãos – não se presta, assim tão facilmente, a inferências e deduções, mormente quando o que se indaga é se há uma efetiva correspondência com a vontade expressa da norma legal.

Não bastassem os problemas da linguagem natural utilizada pelo legislador, que dizem da impossibilidade teórica, em hipóteses várias, de segura interpretação lógico-dogmática, há sempre as dificuldades inerentes à omissão das circunstâncias, de toda ordem, que concorrem para o veredicto. Tem-se que enfocar uma simples parcela, ou seja, os argumentos expendidos, e deles extrair detalhes que, à primeira vista, jamais transpareceriam. Nesse mister é indispensável o recurso aos doutos, o confronto com outros julgados, para não se dar a idéia de um trabalho no vazio. O consenso interpretativo se mostra muito importante quando está em discussão o afastamento, ou não, da lei.

2. A primeira parte da dissertação.

Interessamo-nos principalmente, na primeira parte da dissertação, pelos acórdãos que aparentavam distanciar-se das lições elementares dos compêndios no que concerne a uma correta exegese ou mecânica aplicação da lei. Mais ainda: teria de ser um distanciamento consciente, desejado, pouco importando se encoberto pela técnica da ficção. Possíveis descuidos, hipóteses controvertidas ou de alta indagação, polêmicas intermináveis e, ao reverso, hipóteses corriqueiras, de matemático enquadramento legal, cumprido à risca, tudo isso deixamos de lado.

É claro que, nessa triagem, tínhamos de contar com critérios pessoais. Sob esse aspecto é de se ressaltar que a maior preocupação residia na possibilidade de, em contrapartida, tornar perceptíveis as características procuradas. Não sabemos se alcançamos esse objetivo, se bem que tenhamos para tanto concentrado nossa atenção e nossos esforços.

A leitura do trabalho, no entanto, pode dar a imagem de aleatória escolha de arestos, ou de que uma boa parte dos demais ensejaria observações análogas. Certo, há vários outros que seriam suscetíveis do mesmo tipo de análise, mas exigiriam muito mais tinta e muito mais papel, o que seria desnecessário para os fins pretendidos, além de propiciar menor chance de aceitabilidade.

O fato é que a triagem foi feita segundo uma ótica mais ou menos rígida, em cima, inclusive, de antecedente atividade seletiva. A propósito, quando nos voltamos para o paciente exame de cada um dos acórdãos publicados nos últimos anos pelo Egrégio Tribunal de Justiça de Santa Catarina, na área criminal, com passagens por decisões anteriores, o que menos tínhamos em mente era seu eventual caráter repetitivo, a conferir-lhe ares de autêntico precedente jurisprudencial. Não, o que mais importava era a singularidade do caso concreto, representativo de um desafio à norma geral preestabelecida.

3. A segunda parte da dissertação

A segunda parte da dissertação traduz o cuidado de reforçar as observações esparsas em torno dos acórdãos analisados. Espécie de complementação ou, mesmo, de ampliação teórico-dogmática, a ponto de abranger outros campos do direito, sem embargo da presença preponderante, ainda aí, dos aspectos jurídico-penais.

Haveria que se buscar, na decisão contra legem, algum significado. Deixar de fazê-lo seria desperdiçar o tempo dedicado à pesquisa, que definharia completamente na simples menção de contrastes e desacordos. Valiosas, portanto, as lições dos especialistas. Seu aproveitamento se revelou evidente, pelas luzes que lançavam sobre a matéria.

Os comentários isolados da primeira parte encontrariam eco nas explicações, variadas, e de ordem bem mais geral, trazidas à colação.

4. Para finalizar.

Apesar das lacunas, das imperfeições, a obra deixou-nos a impressão de algum proveito pessoal. Não teria sentido guardá-lo conosco. Daí os melhores votos de que se estenda a todos os que, para felicidade nossa, não se entediarem com sua leitura.


PARTE I

FURTO PRIVILEGIADO

1.1.A velha orientação. 1.2 A nova orientação. 1.3 As armas do juiz.

1.1. A velha orientação

O legislador de 1940, depois de descrever o furto, denominado simples, no art.155, caput, previu um aumento de pena no § 1º (furto noturno) e, logo a seguir, no § 2º, assim estatuiu:

Se o criminoso é primário, e é de pequeno valor a coisa furtada, o juiz pode substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços, ou aplicar somente a pena de multa.

Uma das discussões acerca da exegese do dispositivo diz respeito à possibilidade de estendê-lo à forma qualificadora de furto. O Tribunal de Justiça de Santa Catarina firmou a regra de que tal não pode ocorrer:

O Dr. Juiz de Direito, desacertadamente a nosso ver, aplicou à espécie sub judice o art. 155, § 2º, do Código Penal. Consoante vêm, reiteradas vezes, julgando os tribunais, o de Santa Catarina inclusive, no furto qualificado não tem cabimento tal aplicação. O inciso em questão, já por sua colocação no corpo do artigo, ainda pelo seu teor, tem em vista, tão só, os furtos de pequeno porte praticados por indivíduos despidos de maior periculosidade. A pena que o magistrado pode substituir é a que se comina ao furto simples (art. 155, caput, do Código Penal) (Jurisprudência do TJSC, Ap. Crim. nº 10.078, da Comarca de Concórdia. Des. Ferreira Bastos, Relator. 1965/1966, p. 592).

De fato, a intenção do legislador de limitar o benefício ao furto simples e ao furto noturno é de rara evidência. Decorre a assertiva de uma constatação: a de que o texto correspondente (§ 2º) está colocado logo após o caput e o § 1º. Somente às duas figuras, portanto, ao furto simples e ao furto noturno, é que acena a lei com o privilégio. Pelo mesmo princípio,

A circunstância do repouso noturno é uma agravante do furto simples, incabendo no furto qualificado. (Jurisprudência do TJSC, Ap. Crim. nº 10.528, da Comarca de Tubarão. Des. Marcílio Medeiros, Relator. 1968, p.500).

Crime de furto qualificado. É incompatível com essa espécie de furto a hipótese prevista no parágrafo primeiro do artigo 155 do Código Penal. (Jurisprudência do TJSC, Ap. Crim. nº 10.470, da Comarca de Campos Novos. Des. Trompowsky Taulois, Relator. 1968, p. 528).

Agora, o que carece de reparo é o quantum da reprimenda imposta pelo Magistrado, visto como, consoante jurisprudência consolidada nesta Câmara, a agravante do repouso noturno só tem aplicação nos casos de furto simples, incabendo nos de furto qualificado, que é o dos autos. (Jurisprudência Catarinense, Ap. Crim. nº 12.405, da Comarca de Criciúma. Des. Rubem Costa, Relator. 1973, vol. 2, p. 423).

O ilustre Dr. Juiz de Direito fixou em dois anos a pena-base, embora os antecedentes de EC e LC autorizassem maior quantidade. Mas no que não andou acertadamente o digno Dr. Juiz a quo foi quando a aumentou de oito meses em razão do § 1º do mencionado art. 155, pois conforme pacífica jurisprudência, "a agravante do repouso noturno só tem aplicação nas hipóteses de furto simples, sendo incabível quando se trata de furto qualificado. [Jurisprudência Catarinense, 1973, vol. 2, pág. 423 e 1972, vol. 2, p. 1260]. (Jurisprudência Catarinense, Ap. Crim. nº 13.489, da Comarca de Criciúma. Des. Trompowsky Taulois, Relator. 1976, vol. 13, p. 419).

MAGALHÃES NORONHA (Direito penal, vol. 2, p. 302/303), que apresenta uma série de argumentos no sentido da proibição legal, lembra que "se admitíssemos a aplicação no § 2º ao 4º, por identidade de razões ou princípios teríamos que admitir também que a este se aplicaria o § 1º. A réplica a isso parece-nos difícil. Mas o § 1º agrava a pena de um terço, de modo que se alguém praticasse furto com abuso de confiança (qualificação), durante o repouso noturno (§ 1º), poderia ser condenado ao máximo de oito anos com o acréscimo de um terço, o que daria pena superior ao máximo do roubo (art. 157)".

Ao furto qualificado não se aplica, pois, dissera antes o mesmo autor, a diminuição do § 2º do art. 155: "A disposição técnica do Código mostra-nos isso. No § 2º ele se refere a pena que não pode ser outra que a do furto simples, mencionada antes. Não pode ser a cominada dois parágrafos depois. Elementar conhecimento técnico faria então o legislador colocar esse parágrafo em último lugar. Não houve descuido do legislador". (ob. cit., pág. 301). É igualmente a opinião de NÉLSON HUNGRIA e HELENO FRAGOSO.

Escreveu o primeiro: "Como já foi observado, o diminuto valor da coisa subtraída não exclui o furto; mas a lei não deixa de tê-lo em conta, para um temperamento da sanção penal: identifica no caso um furtum privilegiatum, isto é, autoriza o juiz a reconhecer no pequeno valor, e desde que primário o agente, uma atenuante especial ou minorante da penalidade cominada quer ao furto simples, quer ao furto noturno (abstraído o furto qualificado)". (Comentários ao código penal, vol. 7, pág. 29).

Segundo HELENO FRAGOSO, o § 2º do art. 155 outorga ao juiz "uma faculdade para corrigir, pela eqüidade, a rigorosa sanção cominada ao crime de furto. Aplica-se ela tanto ao furto simples como ao furto noturno..." (Lições de direito penal, vol. 1, p. 244). Volta ao assunto em sua Jurisprudência Criminal, nº 63: "O § 2º do art.155 não se aplica em caso de furto qualificado. Na hipótese de subtração com destreza da importância de Cr$ 65,00, entendeu o juiz de aplicar o disposto no § 2º do art. 155, considerando estarem configurados os seus pressupostos. A 2ª Câmara Criminal do T.J. da Guanabara, na Ap. Crim. 34.362, relator o des. Thiago Ribeiro Pontes, decidiu em contrário, afirmando que aquela disposição não se aplica ao furto qualificado. Decisão correta. O citado dispositivo de lei aplica-se somente ao furto simples e ao furto noturno" (pág. 51).

O Tribunal de Justiça de Santa Catarina vem sendo fiel a esse entendimento:

Não ocorre a minorante do art. 155 § 2º. Mesmo que se considerasse de pequeno valor as coisas furtadas, o que não é o caso, pois custaram ao ofendido mais de duzentos cruzeiros novos – e se tivesse como possível, no furto qualificado, contrariando prestigiosas opiniões, a aplicação do citado permissivo legal (...) (Jurisprudência do TJSC, Ap. Crim. nº 10.715, da Comarca de Palhoça. Des. Marcílio Medeiros, Relator. 1969, p.. 569).

Não o impressionavam acórdãos de outras plagas, favoráveis à extensão do benefício:

Embora seja tranqüila a jurisprudência do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, quanto à aplicação do § 2º, do art. 155, do Código Penal, nos crimes de furto qualificado, o contrário vem sendo decidido por outros Tribunais, inclusive por esta Colenda Câmara Criminal, que a tem repelido. (Jurisprudência do TJSC, Ap. Crim. nº 11.233, da Comarca de Florianópolis. Des. Miranda Ramos, Relator. 1971, vol. 2, p. 796).

Em 1972, porém, talvez porque houvesse encontrado melhor solução, já não recusou validade à tese que sempre rejeitou. Tratava-se de réu menor, condenado a 2 anos de reclusão e um cruzeiro de multa, por furto qualificado (art. 155, § 4º, inciso IV, do Código Penal):

Pede-se a aplicação do art. 155, § 2º, por ser pequeno o valor da coisa subtraída. Realmente, o valor do furto não chegou ao salário-mínimo da região, verificando-se, ademais, que a maior parte da mercadoria foi restituída ao legítimo dono. No entanto, é mais indicado, na espécie, e de melhor política criminal, manter a pena imposta, concedendo-se ao réu, que é menor e primário, para se lhe dar uma oportunidade de reingressar no justo caminho, o benefício do sursis...(Jurisprudência do TJSC, Ap. Crim. nº 11.955, da Comarca de Porto União. Des. Marcílio Medeiros, Relator. 1972, vol. 2, p. 1169).

A Primeira Câmara Criminal, se voltou a reafirmar o velho ponto de vista, deixava claro, no entanto, que o caso concreto não permitia decisão diferente:

Desse modo, não há falar em abrandamento da punição, pois a pena privativa de liberdade já foi fixada no mínimo e, outrossim, mesmo que se entenda, em tese, aplicável, no furto qualificado e continuado, o privilégio estabelecido no § 2º, do precipitado art. 155, para o furto simples, circunstâncias especiais do caso impossibilitaram o tratamento benigno (Jurisprudência Catarinense, Ap. Crim. nº 13.646, da Comarca de Lages. Des. Rubem Costa, Relator. 1976, vol. 13, p. 373).

A mesma Câmara teve o cuidado, em outro acórdão, de esclarecer na respectiva ementa que a desclassificação "para privilegiado" era inadmissível "na espécie":

Furto continuado e qualificado pelo concurso. Desclassificação para privilegiado. Inadmissibilidade na espécie. Ainda que, por interpretação liberal e extensiva, se considere cabível a desclassificação do furto continuado e qualificado pelo concurso para a modalidade privilegiada, não se pode, entretanto, admiti-la se circunstâncias especiais ocorrentes não a recomendam.

Que circunstâncias especiais eram essas? Conforme consta do corpo do acórdão,

Os fatos ocorreram em zona rural, de poucos recursos policiais, onde sabidamente os crimes contra o patrimônio, em regra, ocasionam generalizada inquietação, mormente se repetidos; as coisas furtadas tinham apreciável valor e não foram inteiramente recuperadas; e, por sobre isso, inegável a periculosidade dos réus, embora primários. (Jurisprudência Catarinense, Ap. Crim. nº 13.794, da Comarca de Maravilha. Des. Rubem Costa, Relator. 1976, vol. 13, p.377).

1.2 A nova orientação

Assim, já se podia imaginar que, mais cedo ou mais tarde, haveria de surgir o "caso concreto" que justificasse uma posição desapegada da antiga orientação. Esta, ainda que consentânea com o ponto de vista do legislador – o texto da lei continuava o mesmo – estava perdendo, pouco a pouco, o prestígio original.

Por isso, quando dois réus foram condenados por furto qualificado pelo concurso de agentes, sendo um deles primário, com 19 anos de idade, e o outro reincidente específico, não teve dúvida a Primeira Câmara Criminal em manter a sanção do primeiro, nada obstante recurso da Promotoria Pública, inconformada com a decisão que reduziu a pena de 2 anos para 8 meses, com base no § 2º do art. 155. Reza a ementa:

Furto privilegiado. Delito qualificado pelo concurso de duas pessoas, sendo um agente primário e outro reincidente específico. Ínfimo prejuízo da vítima. Aplicação do § 2º do art. 155, C.P. Admissibilidade. A qualificação do furto, por si só, não desautoriza a aplicação do § 2º do art. 155 do Código Penal, que deve ser avaliada frente às circunstâncias especiais do caso, do valor do prejuízo sofrido pela vítima e, notadamente, das personalidades dos transgressores. (Jurisprudência Catarinense, Ap. Crim. nº 12.641, da Comarca de Balneário Camboriú. Des. Tycho Brahe, Relator. 1976, vol. 14, p. 461).

A douta Procuradoria manifestou-se "pelo provimento do recurso com o decorrente ajustamento das penas impostas". Portanto, mesmo na espécie, não admitia uma reviravolta no entendimento jurisprudencial, fruto de uma desapaixonada exegese dos dispositivos legais.

Pouco adiantou. Decorridos mais de 30 anos de vigência do Código, já se podia, finalmente, pelo menos em relação a um dos réus, olhar de frente o rigorismo da lei para afastá-la no caso concreto:

.... o adotar, pura e simplesmente, indiscriminadamente, sem a avaliação das circunstâncias que impregnam cada caso, a orientação jurisprudencial suso invocada, "quando possível reconhecer o furtum privilegiatum, é incorrer no summum jus, summa injuria, conforme decidiu a Câmara Criminal, em acórdão da lavra do eminente Des. Marcílio Medeiros (apelação criminal nº 13.510, da comarca de Criciúma, julgada em 15-12-1975). A espécie dos autos comporta uma dúplice solução, determinada, cada qual, pelas condições pessoais dos apelados, e considerando, em relação a cada um deles, o valor, aliás não mencionado nos autos, das coisas furtadas. Ao acusado JC, ao tempo do crime com 19 anos de idade, primário, deve ser, pelo furto de duas latas de conserva um pouco enferrujadas, imposta a pena de 2 anos de reclusão, além da multa cabível ? Ora, não se pode afirmar tivesse a vítima, em função do furto, sofrido qualquer prejuízo. Assim, ante a primariedade do réu e ao ínfimo prejuízo da vítima, é aplicável, excepcionalmente, o art. 155, § 2º, do Código Penal, inobstante a ocorrência de delito qualificado, visto que "a qualificação e o caráter continuado da infração não arredam, por si só, a aplicação do § 2º, do art. 155, do C.P., devendo ser considerado, além das circunstâncias especiais do caso, o valor do prejuízo sofrido pela vítima" (Julgados do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, vol. 35, pág. 78) (idem, pág. 462).

Em síntese: em se tratando de réu primário, menor, que pratica furto qualificado de duas latas um pouco enferrujadas, não convém seguir a lei, sob pena de iniqüidade.

Sublimamos a frase: não convém seguir a lei. E foi isso, afinal, o que ocorreu. O esforço, aliás compreensível, no sentido de justificar para a espécie a minorante do § 2º do art. 155, invocando-se para tanto o caráter excepcional de sua aplicação, não consegue encobrir o afastamento da lei. Há clareza no acórdão: a rejeição do furtum privilegiatum importaria adesão ao summum jus, summa injuria. Assim, visível a criação de uma antinomia entre o princípio da lei e o princípio de justiça material, recurso extremo de que dispõe o magistrado quando não pretende transformar-se em instrumento passivo de uma determinação legal ocasionalmente draconiana.

O juiz, no fundo, julga a lei, ou da inevitabilidade de sua aplicação. Tanto isto é verdade que o furto dos mesmíssimos objetos importou para o co-réu uma punição visivelmente elevada: 5 anos e um mês de reclusão, além de multa de Cr$ 12,00. Em outras palavras, pareceu juridicamente correto conceder a um dos acusados os benefícios possíveis, legais e extra-legais; e, ao segundo, todos os rigores da lei. Este, em primeira instância, fora condenado à pena de 5 anos e 1 mês de reclusão, reduzida para 4 anos e 2 meses por força da regra do § 2º do art. 155. Mas não mereceu condescendência:

Se, quanto ao acusado C, agiu corretamente o magistrado ao aplicar o favor legal, já o mesmo não pode ser asseverado quanto ao acusado G, que, por ser reincidente específico, não podia, frente aos termos categóricos do cânone penal aplicado, ser beneficiado, pois "O benefício do art. 155, § 2º, do CP, só deve ser outorgado a transgressores de boa personalidade" (Julgados, supra referido, vol. cit., pág. 220), e não se pode pretender como de boa personalidade quem, como este acusado, além de reincidente específico, amplamente documentado nos autos, contava, ainda, com a prática de outro delito e posterior condenação (idem, ibidem).

Por maus antecedentes, inclusive reincidência específica, deixava o co-réu de beneficiar-se dos favores do § 2º do artigo 155 e, pior ainda, deveria ter sua pena calculada com base no famigerado nº I do art. 47 (acima da metade da soma do mínimo com o máximo)

E assim foi feito. Desta vez, nada de invocação do summum jus, summa injuria. Teria a douta Primeira Câmara achado realmente justa a condenação correspondente a 5 anos e 1 mês? Do ponto de vista da justiça formal, não resta a menor dúvida. No que concerne à convicção de haver aplicado a pena adequada, sob o prisma da justiça material, o assunto não ficou bem esclarecido. É que, ao fundamentar-se a decisão, fala-se agora em expressa proibição de lei, em "termos categóricos do cânone penal". Se a vantagem é privativa do criminoso primário, na expressão do Código, não poderia estender-se ao reincidente, àquele que denota má personalidade. Por maior que fosse a boa vontade da egrégia Câmara, não teria condições de, num passe de mágica, transformar o reincidente em primário. Dura lex, sed lex, diria ela agora, a título de velada censura ao MM. Juiz a quo...

1.3. As armas do juiz

O que se pode concluir de tudo isso é que o julgador dispõe, pelo menos, de duas armas bem distintas: summum jus, summa injuria e dura lex, sed lex. A primeira é utilizada, indiscriminadamente, ainda que ao arrepio de texto expresso de lei, pelo juiz que se preocupa, acima de tudo, com a justiça material, isto é, com a justiça adaptada —segundo sua concepção pessoal — ao caso concreto. O que vale é o problema, a requerer uma solução única, em função de seus dados e circunstâncias. É claro que não se dispensa uma argumentação, cuja solidez, por sinal, passa a constituir o ponto de honra de seu artífice. A segunda, relacionada com o fiat justitia, pereat mundus, importa um posicionamento prévio de inteira dependência para com o ordenamento jurídico. Obrigação do juiz é interpretar e aplicar a lei, pura e simplesmente, pouco importando sua opinião a respeito do respectivo conteúdo e as possíveis conseqüências de uma automática subserviência. Respeita-se, com isso, onde houver, o princípio da separação dos poderes, além de se exercitar, com absoluta imparcialidade, a regra da justiça formal.

Há posições intermediárias. Uma delas se revelou, exatamente, com a "dúplice solução" apregoada no venerando acórdão analisado. Mas é preciso ler nas entrelinhas. A extensão do citado § 2º foi aceita sem mais problemas porque havia precedentes de outros tribunais, a indicar que inexistia uma total segurança a respeito da sua impossibilidade. Os velhos argumentos não pareciam, assim, tão resistentes; e se o caso concreto suscitava uma decisão benigna, a solução seria o abandono do princípio, ainda que em caráter excepcional. Já o mesmo não poderia ocorrer se o réu é reincidente. Havia prova nos autos, mais do que segura, em tal sentido. Ora, a redução prevista no parágrafo é privativa do réu primário, daria muito na vista passar por cima do texto legal. Inexistiam precedentes. Quem se arriscaria a ser o primeiro? Quem se atreveria a decidir abertamente contra a lei? O Juiz a quo o fez, só que um erro não justifica o outro — acrescentaria, quem sabe, a douta Câmara.

A propósito, em outro processo, quando a condição de reincidente impedia os favores do requerido dispositivo, não se relutou em seguir à risca a letra da lei, embora com censuras ao seu rigorismo:

Decidiu com acerto a respeitável sentença de fls. ao reconhecer, com base em indícios fortes e convincentes, que não comportam outra conclusão, ter efetivamente o apelante, conforme relatado na denúncia, furtado de uma gaveta do armazém de propriedade de AP, na cidade de Antônio Carlos, uma cédula de cem cruzeiros. Todavia, quanto à pena, embora reincidente genérico o réu, atendido o pequeno valor do furto e a circunstância de encontrar–se ele embriagado, portanto sem a exata compreensão do alcance e gravidade dos seus atos, é de ser reduzida a um ano e um dia, isto é, um dia somente acima do mínimo legal. Não se faz maior redução, ou se substitui a reprimenda, visto tratar-se, como já exposto, de reincidente. Excessivamente rigoroso o Código Penal em matéria de delitos contra o patrimônio, de molde a não permitir, num caso como o dos autos — furto de pequena quantia praticado por um bêbado — a aplicação do benefício estabelecido no art. 155, 2º, constrangendo Juízes e Tribunais a impor ao agente pena por demais elevada em relação ao delito praticado. (Jurisprudência Catarinense, Ap. Crim. nº 13.108, da Comarca de Biguaçu. Des. Marcílio Medeiros, Relator. 1975, vol. 7/8, p. 435).

Se o texto se mostra claro, se manifesta é a intenção do legislador de afastar do réu primário o alcance de sua regra, o máximo que se faz, ou que se pode fazer, em determinadas circunstâncias, é deixar registrado na sentença ou no acórdão a desaprovação judicial. Quanto ao acusado, que sofra os efeitos do legem habemus.

Mas quando a "clareza" não chega a obter por parte de todos a unanimidade de pontos de vista, e o exame das conseqüências práticas das possíveis decisões afeta a sensibilidade do aplicador da lei, procura-se, desde logo, uma saída para o impasse. Tem que ser, de preferência, uma saída honrosa, baseada na lei, mesmo que o legislador manifeste seu espanto com tanta engenhosidade.

É por isso que se consegue, sem maiores problemas, como ocorreu em 1970, desclassificar um furto duplamente qualificado (CP, art. 155, § 4º, incisos II e IV) para o furto privilegiado do art. 155, § 2º. Só que os réus eram primários e, melhor ainda, menores de 21 anos:

A solução aventada, na decisão transcrita, é de ser aplicada ao caso dos autos, por isso que, também aqui, resultou evidenciado que os apelantes, ao se apossarem do veículo não revelaram a intenção de dele se apropriarem. Ao contrário é indisfarçável que pretenderam e tão somente, usá-lo, nos passeios que empreenderam, pelas ruas da cidade, circunstância essa que, por si só, afasta a hipótese do furto do automóvel. No entanto, servindo-se, arbitrariamente, do veículo consumiram a gasolina e óleo existentes no carro, verificando-se, quanto a estes, o crime de furto. Não é outra a solução proposta pela Procuradoria Geral do Estado, quando assinala que, na espécie, "não se pode deixar de reconhecer que o furto foi de ínfimo valor, visto como não ultrapassou do combustível consumido na circulação do veículo pela cidade, o que, juntamente com a qualidade de primários dos acusados, justifica a incidência do § 2º do já referido art. 155, como pleiteiam os apelantes". Assim, pelas razoes expostas, dá-se provimento em parte ao recurso para, desclassificando o crime, condenar os réus como incursos no art. 155, ou seja, para "furto de pequeno valor" (Jurisprudência do TJSC, Ap. Crim. nº 10.997, da Comarca de Porto União. Des. Miranda Ramos, Relator. 1970, p. 491).

Em nenhum momento do venerando acórdão se afirmou ter desaparecido o concurso de agentes. Bem ao contrário, a co-delinqüência, que justificaria, no entanto, a aplicação do art. 155,§ 4º, IV, foi apregoada do começo ao fim, sem maiores problemas. Reconheceu-a expressamente a Primeira Instância. Agiu de modo contrário a Câmara Criminal, com a maior naturalidade, limitando-se a desclassificar a figura delituosa para o art. 155, § 2º, pelos motivos já expostos. Primariedade e pequeno valor da coisa subtraída concorreram, decisivamente, para a pena definitiva de 1 ano de reclusão, convertida em detenção com sursis.

Difícil, praticamente impossível, afirmar se houve simples descuido, recurso à ficção ou consciente e propositada eliminação da forma qualificada, pela prevalência do furto privilegiado. Casos semelhantes ocorrem aqui e ali, suscitando as mesmas dúvidas. O fato é que ainda recentemente voltou o Tribunal de Justiça de Santa Catarina, por sua Segunda Câmara Criminal, acatando parecer da Procuradoria, a esclarecer que

O concurso de agentes, que é incontestável, era suficiente para justificar o enquadramento no parágrafo 4º, art. 155. De nenhuma valia a afirmativa da primariedade e do pequeno valor das coisas furtadas, porquanto a qualificativa é decorrente da forma de perpetração do delito, quando o agente demonstra maior persistência à pratica de seu objetivo ilícito e, portanto, maior necessidade de repressão. Assim, nos termos em que o problema foi colocado, nada há que se fazer. (Jurisprudência Catarinense, Ap. Crim. nº 14.502, da Comarca de Caçador. Des. Tycho Brahe, Relator. 1977, vol. 17, p. 487).

Capítulo 2

2.1. Ausência de fraude 2.2. A grande revelação 2.3. Redefinição aclaratória

2.1. Ausência de fraude

De conformidade com o disposto no art. 171, § 2º, VI do Código Penal incorre nas mesmas penas do estelionato quem emite cheque sem suficiente provisão de fundos em poder do sacado, ou lhe frustra o pagamento.

Interpretando o dispositivo, esclarece NÉLSON HUNGRIA que "se o agente emite o cheque apenas para fornecer um documento de dívida, cientificado o tomador da inexistência (ou insuficiência) de provisão, não será subjetivamente reconhecível o crime." (Comentários ao código penal, vol. 7, p. 241). Mais adiante: "Já nos referimos acima ao caso em que o tomador, ao receber o cheque, está ciente da ausência de provisão: deve entender-se que o aceitou apenas como um título de dívida, e, assim, ou foi o próprio emitente que lhe deu tal ciência, e não haverá o dolo específico do crime, ou, ainda que silente o sacador, deixará de haver o crime, porque o que a lei tutela, na espécie, é o cheque como instrumento de pagamento, e não como título probatório de dívida" (idem, p. 242).

Eis a lição de MAGALHÃES NORONHA: "... é claro que o beneficiário que aceita um cheque, com data posterior à da emissão, fica ciente da inexistência de fundos do emissor. A pós-data é confissão deste que não possui cobertura no momento e por isso mesmo pede um prazo para realizá-la. Passando-se assim os fatos, como poderá mais tarde o portador, na cobrança, alegar que foi iludido, que estava na crença de que havia fundos, se, na realidade, o que houve foi promessa do emissor de pagar naquele dia? É como se o tomador ou credor de uma letra de câmbio, não paga no dia do vencimento, se fosse queixar à polícia por não ter sido reembolsado". (Direito penal, vol. 2, 1963, p. 536/537).

Na esteira desse entendimento, decidiu a Egrégia Câmara Criminal de Santa Catarina, em 1968, que

a emissão de cheque pós-datado faz presumir o conhecimento da indisponibilidade de fundos da parte do sacador. O crime de estelionato somente é punível a título de dolo, específico e genérico: aquele configurado pela ciência da impossibilidade de efetuar o pagamento, este resultando da intenção de obter lucro em detrimento do patrimônio alheio (Jurisprudência do TJSC, Ap. Crim. nº 10.533, da Comarca de Jaraguá do Sul. Des. Nogueira Ramos, Relator. 1968, p. 563). Ficou então esclarecido que ‘o que a lei penal pune no nº 6 do § 2º, do artigo 171, é unicamente a emissão fraudulenta de cheque sem suficiente provisão para pagamento. Quando feita aquela como garantia de negócio realizado, uso que já se faz freqüente, escapa da sanção penal, constituindo, antes, transação de natureza civil’ (idem, p. 565).

Pouco importava se o automóvel adquirido fora logo em seguida vendido em outra cidade pelo apelante, que, aliás, tinha sido condenado na forma do art. 171, caput, e, não, do respectivo § 2º, VI.

Em recurso de habeas corpus deixou-se igualmente assinalado que

se o cheque foi emitido como instrumento de dívida e não como ordem de pagamento à vista, inocorre o crime de fraude no pagamento por meio de cheque.

Eis os fatos principais:

Pelo que consta dos autos, a 28 do mês de outubro próximo passado (1967), o recorrido L.V. efetuou, na cidade Blumenau, avultada compra de mercadorias, pagando-as através de cheques contra o Banco do Comércio e Indústria de São Paulo S.A. Alguns desses cheques foram datados de 28, outros do dia 29 e os demais pós-datados, inclusive um com vencimento previsto para 30 de dezembro do corrente ano. Na oportunidade da emissão, ao que declararam os próprios prepostos das firmas vendedoras, ficou assentado que os títulos datados de 28 e 29 de outubro seriam apresentados dias após essas datas. Todavia, no mesmo dia 29, suspeitando de L., o gerente de uma das casas vendedoras dirigiu-se ao Banco sacado, e verificando aí que o mesmo não tinha fundos no estabelecimento em apreço, queixou-se à autoridade policial e cientificou as demais firmas interessadas. L. foi preso e com ele foram também presos B.V. e S.L, que o acompanharam nas compras, lavrando-se na Delegacia de Polícia o respectivo auto de prisão em flagrante. (Jurisprudência do TJSC, Recurso de Habeas Corpus nº 880, da Comarca de Blumenau. Des. Marcílio Medeiros, Relator. 1968, p. 84 e 85).

Foi o gerente de uma das casas que, apressadamente, impediu se tomasse conhecimento da existência de fraude, certamente não confessada pelas partes. Se os cheques deveriam ser apresentados em data posterior e se a pretensa vítima violou o acordo, que desnaturava os títulos, como apregoar a prova do indispensável elemento subjetivo? Valeu a atitude por seu aspecto prático, uma vez que as mercadorias foram devolvidas, mas não serviu como expediente suscetível de desvendar o que precisava ser desvendado.

Decisão correta, ao que tudo indica. Entretanto, em face dos termos genéricos do art. 171, caput, que define o estelionato, seria preferível que se deixasse explícito, na ementa, o motivo inspirador: ausência de dolo.

Outros acórdãos se seguiram. Na verdade, não eram revolucionários, havia precedentes do Pretório Excelso. Note-se que, algumas vezes, a hipótese de cheque entregue em garantia de pagamento de dívida era capitulada, na denúncia, no art. 171, § 2º, VI, o que facilitava a absolvição:

A existência de fraude, pois, no ato da transação, não cabia mesmo admitida e sem fraude não há o delito pretendido. (Jurisprudência do TJSC, Ap. Crim. nº 11.225, da Comarca de Joinville. Des. Rubem Costa, Relator. 1970, p. 581).

Observe-se o detalhe: sem fraude não há o delito pretendido, ou seja, precisamente o de fraude no pagamento por meio de cheque. Desnecessário reproduzir os argumentos expendidos.

Outras vezes, porém, e isto é sintomático, hipóteses idênticas eram enquadradas, para possível condenação, no caput do artigo. Pouco adiantava:

Emissão de cheque pós-datado. Sabendo o recebedor que não havia fundos na data em que lhe foi entregue, transforma-se ele em título de crédito, deixando o fato de ser estelionato. (Jurisprudência do TJSC, Ap. Crim. nº 10.770, da Comarca de Tubarão. Des. Waldir Taulois, Relator. 1969, pág. 701).

2.2. Mudança de orientação

O tema já estava ficando monótono, cansativo, quando surge uma novidade:

Habeas corpus. Prisão Preventiva. Pacientes que conseguiam "comprar" veículos automotores para revenda, dando aos respectivos proprietários, como entrada, pequena parcela em dinheiro e emitindo, a fim de satisfazer o restante do preço estipulado, cheques pré-datados, com o propósito declarado de não efetuar, na ocasião oportuna, depósito bancário das importâncias correspondentes. Figura de estelionato na modalidade prevista no caput do art. 171 do CP. Conveniência da medida preventiva, para assegurar a aplicação da lei penal, suficientemente justificada. Ordem denegada (...). Segundo noticiam os autos apensados, os pacientes, em conluio, conseguiram adquirir, em lugares diversos, veículos automotores, dando aos respectivos proprietários, como entrada da "compra", pequena parcela em dinheiro e emitindo, para satisfazer o restante do preço estipulado, cheques pré-datados, mas já com o propósito (fls. 34) de não efetuar, como de fato não efetuaram, na ocasião oportuna, o depósito bancário das correspondentes importâncias. E tão logos os veículos iam sendo adquiridos, por tal meio fraudulento, eram eles vendidos em outras praças. Assim, obtinham vantagem ilícita, em prejuízo do patrimônio alheio. (Jurisprudência Catarinense, Habeas Corpus nº 5.577, da Comarca de Dionísio Cerqueira. Des. Rubem Costa, Relator. 1976, vol. 14, p. 317).

Decisão corretíssima. E a grande, a enorme lição que dela deflui — afora seu caráter técnico-jurídico — consiste no fato de que há um limite para o grau de paciência do julgador. O tema, até então, era versado principalmente à luz do § 2º, n. VI, e os tratadistas e a jurisprudência já haviam, quase em uníssono, chamado a atenção para a impossibilidade de fraude na emissão de cheque como garantia de pagamento. A hipótese valia, por extensão, para o próprio caput do artigo, que exige, com todas as letras, se obtenha vantagem ilícita "induzindo ou mantendo alguém em erro".

Ora, como poderia o tomador ser induzido em erro se sabia que estava recebendo um cheque desnaturado, com data falsa? Se os seus termos eram claros no sentido de que, naquele momento, o pedaço de papel não valia nada, absolutamente nada?

Relembrando: foi esse o caminho seguido pelos venerandos acórdãos citados, pelo menos no seu enunciado formal. Parece supérfluo voltar a transcrevê-los.

A jurisprudência tem sido liberal nessa questão de cheque sem provisão de fundos, e isto é o resultado de uma experiência que não é só do Brasil, mas do mundo inteiro — dizia, num de seus votos, o eminente Ministro Evandro Lins e Silva. Ainda recentemente, lendo um livro do membro da Corte de Cassação da França, Casamayor, há pouco editado, verifiquei que o problema é também muito agudo na França e em muitos países, de modo a congestionar os serviços da Justiça Criminal. Mostra esse autor que no Japão já foi excluído do Cód. Penal esse crime, que hoje é punido com sanção administrativa severa, para evitar que não aconteça o que está ocorrendo, inclusive aqui no Distrito Federal, segundo informações que tenho, onde há um volume imenso de processos por cheque com insuficiência de fundos em poder do sacado. A verdade é que o cheque se desvirtuou, na sua aplicação prática. Hoje, ele é utilizado abertamente para garantia de dívida, em substituição às promissórias. (VENTURA, Paulo. Crimes contra o patrimônio, p. 160/161).

A respectiva ementa era curta e fulminante:

Estelionato – Cheque – Garantia de dívida. Se o cheque foi entregue como garantia de dívida, para desconto futuro, e não como ordem de pagamento à vista, não se configura o delito de estelionato. (idem, pág. 157).

Todos esses argumentos ruíam de repente. As peculiaridades do caso concreto, sub judice, clamavam por uma condenação. Entre a desmoralização do cheque, verdadeiro fato consumado, e o aviltamento da justiça, como virtude, havia uma diferença enorme. Impunha-se, por outro lado, conciliá-la com o direito.

No fundo, nada mais fácil.

Releia-se, por exemplo, a seguinte passagem:

(...) mas já com o propósito (fls.34) de não efetuar, como de fato não efetuaram, na ocasião oportuna, o depósito bancário das correspondentes importâncias. E tão logo os veículos iam sendo adquiridos, por tal meio fraudulento (...).

Muito simples, portanto. Se os gregos e troianos reclamam a presença de fraude, seja como fato típico, seja como elemento subjetivo, basta descrever o evento e, nele, identificar a má-fé. Já não mais se tratava de inexistência de erro porque a vítima sabia ser o cheque antedatado. Não, o erro da vítima consistia no fato de acreditar que o emitente, estando bem intencionado, honraria o compromisso na época oportuna. Tanto que dele recebera um cheque (instrumento de prova) e lhe confiara, por exemplo, um automóvel!

O delito, assim, exatamente porque alusivo ao caput do art. 171, independia das formalidades requeridas para a figura do cheque como ordem de pagamento à vista. Da mesma forma ocorreria se ao invés de cheque desnaturado se assinasse, verbi gratia, uma nota promissória. Só que não era esse o entendimento da jurisprudência liderada pelo Egrégio Supremo Tribunal Federal.

A sutil distinção, visível no acórdão de Santa Catarina, já era sustentada por HELENO FRAGOSO:

É hoje pacífico, na doutrina e na jurisprudência, o entendimento de que não há crime quando o cheque é antedatado. Em tais circunstâncias, não funciona o cheque como instrumento de pagamento, mas como título de dívida, qual letra de câmbio. O recebimento ou a aceitação de cheque sem fundos, em garantia de dívida, poderá eventualmente configurar o crime previsto no art. 160 C.P. É bem de ver, todavia, que pode o uso de um cheque sem fundos servir de meio fraudulento para a prática do crime de estelionato. Esta hipótese é, aliás, freqüente. O sujeito ativo do crime, para melhor convencer a vítima, entrega-lhe um cheque antedatado, como reembolso da vantagem fraudulenta que obtém. Nesse caso, configura-se o crime de estelionato, previsto no art. 171 do Cód. Penal caput, não sendo, evidentemente, a hipótese do § 2º n. VI. O cheque sem fundos funciona aqui como simples meio fraudulento, equiparado a qualquer outro artifício. (Lições de direito penal, vol. 2, p. 366/367).

A tanto não parecia chegar a jurisprudência de nosso Estado, como já ficou exposto, mas é certo que o problema se ligava, algumas vezes, à insuficiência de prova. Curiosamente, porém, preferiam-se outros argumentos, que dogmatizavam, sem abrir exceções, a impossibilidade de fraude na hipótese da emissão de cheque como garantia de dívida ou promessa de pagamento.

2.3. Redefinição aclaratória

Foi preciso um caso mais forte, berrante, assustador, para provocar, pelo menos, o reexame da matéria. Foi preciso que um grupo de estelionatários partisse para ações repetidas, contra vítimas diferentes, na base do "negócio" alto (veículos automotores), para que se procurasse com urgência o socorro do legislador, até então aparentemente impassível. Como sempre – ou quase sempre – nenhuma lei foi editada, tinha-se que contar com os mesmos textos legais.

Fez-se, como se esperava, uma redefinição: quer dizer, desde que a orientação predominante já não constituísse, por si só, uma redefinição de conceito. Porque, em caso positivo, então se teria mesmo era voltado ao estado original, ou advogado uma terceira possibilidade. De qualquer forma, e como a prova de má-fé saltava aos olhos, encontrou-se o que se pretendia, ou seja, o agasalho da lei.

Como explicar o fenômeno?

"Os juízes, quando interpretam a lei, argumentam estar produzindo definições aclaratórias dos significados dados pelo legislador – aduz, com a autoridade de especialista, LUIZ ALBERTO WARAT. Mas, em realidade, o legislador não propõe nenhum critério definitório. As normas gerais não contém propostas definitórias para seus conceitos" ( A definição jurídica, p. 47).

Em bom português, o sentido de um texto vai depender mesmo é da predisposição emotiva de seu intérprete, à luz das peculiaridades do caso concreto. É este que, no fundo, aclara a mensagem legislativa, até então concebida de modo diverso. A decisão considerada justa passa a encontrar respaldo na mesma norma que, até bem recentemente, parecia dizer coisa distinta.

Capítulo 3

3.1 O direito penal como sistema fechado 3.2 Cheque sem fundos: interpretação uniforme 3.3 A novidade jurisprudencial 3.4 Caso típico de decisão contra a lei 3.5 A desmoralização do cheque: repercussão jurídico-penal

3. 1. O direito penal como sistema fechado

Qualquer pessoa que exerça atividade no foro deve ter parado um dia para perguntar: "Afinal, o direito é a mesma coisa que a lei?" Há os que passam a vida tentando oferecer uma resposta convincente e, por mais taxativos que pareçam, provavelmente guardam consigo uma dose de dúvida e incredulidade.

NÉLSON HUNGRIA se mostrou categórico:

A fonte única do direito penal é a norma legal. Não há direito penal vagando fora da lei escrita. Não há distinguir, em matéria penal, entre lei e direito. Sub specie juris, não existe crime "sem lei anterior que o defina", nem pena "sem prévia cominação legal". Nullum crimen, nulla poena sine proevia lege poenali. A lei penal é, assim, um sistema fechado: ainda que se apresente omissa ou lacunosa, não pode ser suprida pelo arbítrio judicial, ou pela analogia, ou pelos "princípios gerais do direito", ou pelo costume. Do ponto de vista de sua aplicação pelo juiz, pode mesmo dizer-se que a lei penal não tem lacunas (...) Os preceitos sobre causas descriminantes, excludentes ou atenuantes de culpabilidade ou de pena, ou extintivas de punibilidade, constituem jus singulare em relação aos preceitos incriminadores ou sancionadores, e, assim, não admitem extensão além dos casos taxativamente enumerados. Notadamente, é de enjeitar-se a teoria das "causas supra-legais de exclusão de crime ou de culpabilidade", excogitada pelos autores alemães para suprir deficiências do Código Penal de sua pátria (velho de mais de meio século), não se justificando perante Códigos mais recentes, que procuram ir ao encontro de todas as sugestões no sentido de se obviarem os inconvenientes do sistema fechado da lei penal (Comentários ao código penal, vol. 1, p. 9 e 76/77).

Simetria, pois, do direito penal, já que não há que distinguir entre causas favoráveis e desfavoráveis ao réu. E sua identificação com a lei, expressão da "vontade coletiva" (idem, p. 67), ainda que, eventualmente, consubstanciada num decreto-lei.

O respeito à lei, em qualquer circunstância, constituiria verdadeiro tabu. Todas as concessões do inesquecível Mestre, no sentido de humanização ou acomodação, eram feitas nos limites da amplitude ou generalidade do texto:

Aplique-se a "justiça do caso concreto", tanto quanto o permita a norma legal ao definir a "justiça do caso abstrato", e isto mais acentuadamente numa época, como a atual, de profunda crise político-social, a exigir uma longa transfusão de eqüidade no sistema jurídico, para evitar-lhe o desmantelo e ruína. Mas, fiquem aí os juízes. Não passem daí, pois, do contrário, estariam tomando a iniciativa de demolição da ordem jurídica. Deixar ao livre alvedrio ou variável critério dos juízes a aplicação do que eles, fora da lei, entendem por direito, seria fazer da justiça uma incerteza e uma constante ameaça à segurança dos direitos individuais e sociais (idem, ibidem)

O exame da jurisprudência nos permite afirmar que não é seguida a lição de NÉLSON HUNGRIA. E é justamente a discrepância jurisprudencial que reaviva a cada instante a indagação sobre a inevitabilidade da identificação do direito com a lei, emanada ou não do respectivo poder. Afinal, todas as dificuldades de interpretação da lei não chegam ao ponto de impedir se obtenham, aqui e ali, convergências refletoras de significativo consenso.

3.2. Cheque sem fundos: interpretação uniforme

Significativo consenso existiu, por exemplo, na verificação da inexistência de autorização legal para que se apregoasse inocorrente o crime de emissão de cheque sem fundos se veio a ser pago antes da denúncia. Para se chegar a tal conclusão, diga-se de passagem, não se gastou muito fosfato. Foi suficiente abrir o Código Penal e verificar que em nenhum momento se consignou regra em tal sentido. Assim, o artigo 48, IV, b, determina seja atenuada a pena do agente que tenha procurado, por sua espontânea vontade e com eficiência, logo após o crime, evitar-lhe ou minorar-lhe as conseqüências, ou reparado o dano antes do julgamento. Trata-se de preceito geral, válido para todos os crimes, que se pressupõem, obviamente, tentados ou consumados. O § 1º do art. 171, por seu turno, reportando-se ao § 2º do art. 155, somente preconiza a substituição da pena de reclusão pela detenção, sua diminuição de um a dois terços ou a aplicação exclusiva da pena de multa. Já o art. 108 se refere à extinção da punibilidade, pelo ressarcimento dano, apenas no peculato culposo.

3.3. A novidade jurisprudencial

Mas em Santa Catarina, como em outros Estados, por inspiração do Supremo Tribunal, o Eg. Tribunal de Justiça passou a decidir de modo diferente:

Por conseguinte, provado o pagamento do débito, antes da denúncia, não mais se justificava o prosseguimento do processo, na forma da jurisprudência de nossa Egrégia Corte de Justiça, e do próprio Pretório Excelso (Jurisprudência Catarinense, Habeas Corpus nº 4.921, da Comarca de Florianópolis, Des. Reynaldo Alves, Relator. 1973, vol. 2, pág. 316). Cheque sem fundos (Cód. Penal – art. 171, § 2º inciso VI). Extinção da punibilidade do crime pelo pagamento antes do recebimento da denúncia. Desnecessidade de que esse pagamento se efetue antes de oferecida a peça vestibular. Falta de justa causa para a ação penal. Decisão mantida. (...) Conforme entendimento assente no Excelso Pretório, as medidas contra os cheques sem fundo tendem a ser mais de ordem administrativa do que penal (R.T.J., 46/553), dando azo a que a composição havida entre as partes, pelo ressarcimento do dano, ocasione a extinção da punibilidade. Segundo a orientação que norteia esse entendimento, não demonstrada lesão patrimonial, a emissão de cheque sem fundos se mostra indiferente ao direito penal. Ora, não havendo crime, inexiste, como corolário lógico, justa causa para a ação penal. Mas a denúncia já estava oferecida quando os cheques foram pagos, adverte o douto recorrente. De fato. Entretanto, tal circunstância não modifica a situação do recorrido, pois a diretiva adotada é a de que a ação penal só pode ser instaurada com justa causa se o cheque não houver sido pago, valendo recordar que ela (a ação penal) não se inicia pelo oferecimento, senão pelo recebimento da denúncia (R.T.J., 59/373), e isto ainda não ocorrera (Jurisprudência Catarinense, Recurso Criminal nº 6627, da Comarca de Rio do Sul. Desª. Thereza Tang, Relatora. 1975, vol. 7/8, p. 471).

Fala-se, primeiro, em extinção da punibilidade pela composição entre as partes. Depois se vai mais longe: o ressarcimento do dano impede se configure o próprio crime. Faz-se, porém, uma ressalva:

(...) não há confundir a emissão de cheque sem fundos com o crime de estelionato, conforme o caput do art. 171 do Cód. Penal, pois são delitos diferentes. "A assimilação de um ao outro foi instituída entre nós por causa da substância da pena, que é a mesma, e não por causa da substância da fraude, que é diversa na configuração de qualquer deles" (R.T.J. 68/716). Inaplicável, portanto, a jurisprudência desta Egrégia Câmara trazida à colação pelo recorrente, porquanto o caso focalizado no venerando aresto citado diz respeito ao tipo fundamental de estelionato (caput do art. 171), quando a indenização do prejuízo – que, salvo no peculato culposo, não figura entre os modos de extinção da punibilidade (Cód. Penal, art. 108) – não admite o trancamento da ação penal pela singela razão de que, então, o pagamento ocorre depois de já consumado o crime (R.T.J., 68/718), situação evidentemente diversa da que o ocorre na emissão de cheque sem provisão de fundos (idem, p. 417/418).

Assim, o favor jurisprudencial se cinge à emissão de cheque sem fundos, não se estendendo ao caput do art. 171, conforme, aliás, se reafirmou em outro acórdão:

Disso resulta que se se tratasse de emissão de cheque sem fundos, pela jurisprudência ainda em vigor nesta Casa, o caso seria de absolvição, mas como se trata de estelionato (art. 171), o ressarcimento apenas constitui a atenuante que o Dr. Juiz de 1º grau considerou a prevista no art. 48, IV, b, do Cód. Penal, não servindo para os efeitos do § 1º do art. 171 (Jurisprudência Catarinense, Ap. Crim. nº 14.419, da Comarca da Capital. Des. João de Borba, Relator. 1977, vol. 17, p. 390).

Nem ao menos há necessidade de liquidar, de uma só vez, o cheque. O acordo com o lesado impede a criminalidade do fato, ou sua censurabilidade:

Fraude no pagamento por meio de cheque. Composição amigável entre as partes, como parcelamento da dívida. Despacho que rejeita a denúncia. Manutenção. Aceitando o credor, como liquidação de cheque emitido sem cobertura bancária, novas condições de pagamento, firmadas em contrato, parcelando a dívida, restou desnaturado o instituo do cheque e ilidida a própria criminalidade do fato imputado ao agente, justificando-se a rejeição da denúncia (Jurisprudência Catarinense, Recurso Criminal nº 6.662, da Comarca de Balneário Camboriú. Desª. Thereza Tang, Relatora. 1975, vol. 9/10, pág. 529).

No que, porém, assiste razão ao réu – encontrando a matéria abrigo da douta Procuradoria Geral do Estado – é de ter sido desnaturada a função precípua do cheque, dês que, sendo ordem de pagamento à vista, concordou o lesado com o parcelamento da dívida, recebendo antes da denúncia, a importância de hum mil cruzeiros, de um total de três (fls. 26 v). (...) In casu, se inexiste forma contratual de parcelamento da dívida, o lesado, ao aceitar por conta do título, antes da denúncia, a quantia já mencionada, desvirtuou a finalidade do cheque, e, destarte, resultou sem razão de censurabilidade a conduta do agente (Jurisprudência Catarinense, Ap. Crim. nº 13.968, da Comarca de Caçador. Des. Trompowsky Taulois, Relator. 1976, vol. 14, p. 379/380).

3.4. Caso típico de decisão contra a lei

É hora de, juntamente com outras decisões, examinar os argumentos expendidos. Pois bem, em nenhuma oportunidade se aponta o dispositivo legal que sustenta a vitoriosa orientação. É que simplesmente não existe. Não existindo, a única saída é o recurso à ficção, pouco importando se a Terra continua girando em torno do Sol...

Quer dizer, se há o desejo de absolver, e se a lei não oferece o menor amparo (muito pelo contrario), o jeito é decidir contra ela. E como não fica bem, na maioria das vezes, afirmar de público que se está decidindo contra a lei, convém manter as aparências, mesmo com o sacrifício dos conceitos mais rudimentares do direito.

Não há, data venia, outra explicação para a tese de que o crime de fraude no pagamento por meio de cheque se consuma... com o recebimento da denúncia! Sim, com o recebimento da denúncia (pelo menos em Santa Catarina), ficou bem claro nos acórdãos aludidos, que devem ser cotejados com este outro, bastante elucidativo:

Fraude no pagamento por meio de cheque. Absolvição porque ressarcido o prejuízo no curso da instrução criminal. Decisão reformada. Pago o cheque depois de recebida a denúncia, tal ocorrência serve para atenuar a pena, mas não atua como causa extintiva do crime de estelionato (Jurisprudência Catarinense, Ap. Crim. nº 13.012, da Comarca de Jaraguá do Sul. Des. João de Borba, Relator. 1975, vol. 7/8, p. 470).

Reza, aliás, a súmula nº 554 do Supremo Tribunal Federal:

O pagamento de cheque emitido sem provisão de fundos, após o recebimento da denúncia, não obsta ao prosseguimento da ação penal.

É preciso, todavia, ler nas entrelinhas. Quem se sente à vontade para transferir à vítima o poder de, recebendo o dinheiro ou concordando em recebê-lo mais tarde, extinguir não só a pena mas o crime – melhor ainda, impedir-lhe a própria configuração – nenhum constrangimento terá em propor um limite de tempo, igualmente inventivo, para a milagrosa excludente. Quem pode o mais pode o menos. O Egrégio Tribunal, em decisão livre, originária de si próprio, simplesmente criou uma regra, como poderia ter criado outra.

E o mais curioso – sem ser surpreendente – é que de forma alguma concebe sua extensão a outros delitos patrimoniais. Não, para esses delitos não há mal nenhum em acenar com a proibição da lei.

Mas por que, então, não admite a inexistência de furto com a devolução da coisa furtada? Por que insiste com a punição do estelionato cujo prejuízo foi integralmente reparado, mesmo com juros e correção monetária? Que estranho fascínio exerce sobre o desembargador catarinense, sobre o ministro do mais alto Pretório, a figura do emitente de cheque sem fundo?

3.5. A desmoralização do cheque: repercussão jurídico-penal

Nenhum fascínio, segundo nos parece. O que os impressiona, isto sim, é a reparação do dano, realizada ou prometida. O que os sensibiliza é desequilíbrio da punição criminal, a valer como um bis in idem em face do ressarcimento. O que pesa na balança, principalmente, são as avalanches de processos dessa natureza, denotativos de que o cheque já não é mesmo, perdeu o valor e a dignidade que deveria ostentar no seio da população. E aquilo que, ao contrário do que pensava o legislador, pouco a pouco se transfigura, se avilta, se deprecia, em si e por si, não deve continuar a merecer proteção jurídico-penal. A menos, claro, que não tenha havido indenização, porque então se patentearia a fraude, tornada duvidosa – eis um detalhe importante – com o referido ressarcimento.

Só que nem todos concordam, seja com os aspectos técnico-jurídicos, seja com as conseqüências práticas.

RICARDO ANDREUCCI, por exemplo, não se convence dessa última versão: "A alegação de o pagamento ser prova da ausência de dolo é, ainda que não se deseje, um subterfúgio para a não punição em razão da carência de dano" ("A propósito do conceito de pena e de ressarcimento do dano em Del Vecchio", Ciência Penal, ano 3, n.º 1, 1976, p. 59).

Comenta HELENO FRAGOSO:

Cheque sem fundos. Pagamento no curso da ação penal. Ausência de justa causa. Decidiu o STF, por sua 2ª Turma, unanimemente, que o pagamento do cheque implica em ausência de justa causa para o prosseguimento da ação penal, no h.c. 43.647, relator o Min. Villas Boas (Rev. Trim. Jurispr. 39/370). Esse é o desdobramento final da orientação que começou por atribuir o efeito de fazer desaparecer o crime ao pagamento realizado antes da abertura do inquérito, logo estendido ao pagamento antes de instaurada a ação penal. Quando se afirma, inexplicavelmente, que a ausência de prejuízo pelo ressarcimento constitui ausência de crime, a conseqüência lógica é a que estamos presenciando nestas últimas decisões. Ela deflui também da concepção, a nosso ver equívoca, de que a tendência da legislação é no sentido das sanções administrativas e não penais. A tendência da legislação é no sentido das sanções administrativas e penais, reforçando, e não enfraquecendo, a tutela jurídica do cheque como fabuloso instrumento de circulação de riquezas. (Jurisprudência criminal, p. 79).

Do mesmo FRAGOSO:

O que estamos vendo é a polícia transformar-se em instrumento de coação para a cobrança de cheques. (Revista de direito penal, n.º 3, jul./set. 1971, p. 96).

As críticas, ainda recentes, se avolumam, como as de PAULO L. NOGUEIRA: "Não se pode negar que tal entendimento, tecnicamente, não encontra nenhuma fundamentação legal e constitui um precedente perigoso" (Questões penais controvertidas, p. 146); e PAULO R. VENTURA: "Tal entendimento é insustentável e mesmo revolucionário no Direito Penal, já que o ressarcimento do dano não é causa de extinção de punibilidade ou exclusão de crime, não integrando, sequer, o tipo de delito. Adotado, como medida de política criminal, se converte num precedente perigoso, porque incentiva que se desnature a finalidade do cheque, passando a ser usado como título de crédito e não ordem de pagamento à vista" (Crimes contra o patrimônio, p. 121).

NILO BATISTA, em mais de uma oportunidade, enxergou detalhes positivos: "Esse entendimento jurisprudencial – contra o qual todos os estudiosos de Direito Penal se levantaram, e que é de fato tecnicamente insustentável – talvez seja julgado historicamente como inspirada criação da Corte Suprema ("Algumas palavras sobre descriminalização", Revista de direito penal, n.º 13/14, jan./jun. 1974, p. 36). Do mesmo autor: "Trata-se de criação pretoriana, que veio atender às particularidades do delito em questão; se foi criticada pela ofensa ao sistema, deve ser elogiada pela criatividade, pelo realismo com que estatuiu uma solução que atende a todos os interessados, e evita acréscimos ao congestionamento da justiça criminal" (Decisões criminais comentadas, p. 64)

Capítulo 4

4.1. Interpretação rigorosa 4.2. Limites da decisão judicial 4.3. Interpretação liberal 4.4. Ideologia do juiz 4.5. Direito concreto

4.1. Interpretação rigorosa

O cotejo do art. 51, caput, do Código Penal, que trata do concurso material de crimes, com o respectivo § 2º, atinente ao crime continuado, conduz à certeza de que este, na concepção do legislador, não passa de uma forma especial daquele. Assim, quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, importa verificar se são da mesma espécie e se, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro. Impõe-se-lhe, em caso positivo, a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços. Em caso negativo as penas se aplicam cumulativamente.

Como vem se comportando, nos últimos anos, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina no que tange à interpretação e aplicação do dispositivo?

Dois acórdãos se sobressaem por sua severidade. O primeiro, lavrado em junho de 1957, indeferia por maioria de votos e consoante o parecer da douta Procuradoria Geral, o pedido de revisão criminal no sentido de ser reconhecida a figura do crime continuado. Segundo se assinalou,

Nem mesmo os furtos praticados nas residências dos desembargadores ON e AP, todos na mesma noite e para a perpetração dos quais se valeu o requerente da mesma escada, podem ser havidos como um delito continuado único. (...) Assim, ainda que a identidade na maneira de execução, como o emprego dos mesmos meios, tenha a maior significação – no caso, o uso de escada – e que as duas infrações aludidas hajam sido cometidas na mesma noite, ainda assim é inadmissível falar-se, na espécie, em continuação porque, aqui, a diversidade de "lugar" reveste-se da maior relevância. Infere-se dos autos em apenso que o requerente, embora não condenado anteriormente, é um profissional do furto. Ora, as "visitas" a duas casas efetuadas em seguida uma à outra, ou muito tempo depois, constitui pormenor destituído de qualquer significação para um gatuno profissional. A tendência inequivocamente revelada para a prática de crimes dessa natureza desautoriza seja ele beneficiado pela verificação de uma circunstância que no seu caso terá sido puramente acidental. Seria, na verdade, tratar com mais benignidade um gatuno inveterado do que quem tivesse furtado ocasionalmente, só porque entre os furtos decorreu lapso de tempo mais ou menos longo, valendo o absurdo para realçar a sem razão do pedido. Por conseguinte, as condições de tempo, maneira de execução e outras semelhantes demonstrarão a continuação quando o julgador não colher dos autos outros elementos mais elucidativos que afastem formalmente a sua configuração (Jurisprudência do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, Revisão Criminal nº 453, da Comarca de Florianópolis. Des. Hercílio Medeiros, Relator designado. 1957, p. 144).

Trata-se, por certo, de decisão severíssima, mormente porque os argumentos apresentados, conquanto aceitáveis, não se harmonizam, à saciedade, com os dizeres da lei. Uma vez que o dispositivo, aplicado indiscriminadamente, beneficiaria gatunos profissionais e não profissionais, podendo, inclusive, nas circunstâncias, deixar de abranger estes últimos, o que seria uma injustiça, cuidou-se de fazer desde logo a distinção. A lei, por isso, não atingiria ladrões inveterados, ainda que objetivamente presentes as condições homogêneas de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes.

No segundo acórdão, igualmente respeitável, mas rigoroso, é feita referência ao caso enfocado, considerado "idêntico ou até mais próximo da continuidade", haja vista que "ali, não obstante haver o delinqüente, na mesma noite, servindo-se da mesma escada, furtado duas residências próximas, entendeu o Tribunal, por maioria de votos, tratar-se de dois crimes distintos e não de um delito continuado, único" (Jurisprudência do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, Revisão Criminal n.º 621, da Comarca de Curitibanos. Des. Belisário Costa, Relator. 1965/1966, pág. 739).

Eis os fatos e os motivos da decisão, com o posterior adendo de se estar diante de indivíduo de maus antecedentes:

O requerente foi condenado a seis (6) anos de reclusão e ao pagamento da multa de Cr$ 3.000, como incurso duas vezes no art. 155, § 4º, inciso IV do Código Penal. Em companhia do co-réu, J. de O, condenado também a 5 anos de reclusão, por ser de menoridade, praticou o requerente dois crimes de furto no distrito de Ponte Alta do Sul, em Curitibanos, no dia 24 de novembro de 1957. No percurso entre a sede do referido distrito e a localidade de Encruzilhada, arrombaram os acusados duas casas residenciais, cujos moradores estavam, no momento, ausentes delas, furtando roupas, utensílios domésticos, armas e outros objetos, de relativo valor. Condenados, não apelaram da decisão, e pretende agora o requerente 0 de 0, minoração de pena – sob o fundamento de tratar-se de crime continuado, na forma prevista no artigo 51, § 2º, do Cód. Penal. Não lhe assiste razão, todavia, por não estarem satisfeitos no caso os requisitos do referido dispositivo, ou sejam, as condições de tempo, lugar e maneira de execução, que configuram a continuidade do delito. Embora no mesmo trajeto ou estrada, os lugares, as casas e as pessoas furtadas foram diferentes, como também os objetos – tudo a constituir claramente um concurso material de delitos, de punibilidade cumulativa, e não apenas agravada, como pretende o requerente (idem, págs. 738/739).

A diversidade de vítimas – apesar de os crimes serem de furto – e os maus antecedentes do réu impediram o reconhecimento da forma continuada. Essa liberdade é professada por MANOEL PIMENTEL em sua conhecida obra Do crime continuado:

Ao juiz criminal, no caso concreto, compete dizer se houve ou não um crime continuado, respeitados os limites objetivos fixados pela concorrência de crimes da mesma espécie e pela homogeneidade das condutas delituosas, e a pena será imposta tendo em vista a gravidade penal, a personalidade do agente, e a sua culpabilidade diminuída, de modo a não beneficiar excessivamente o delinqüente perigoso, com tendência para a habitualidade, e não castigar severamente aquele que tenha persistido na prática dos crimes apenas porque favorecido pelas circunstâncias e situações exteriores. Entretanto, nenhum critério rígido presidirá o reconhecimento da continuação delituosa. Não serão as regras ditadas por critérios subjetivos ou objetivos, ou por ambos, que nortearão o julgador, mas sim, os critérios de necessidade, de oportunidade e de utilidade de tal reconhecimento (p. 216).

Data venia, discordamos do respeitável ponto de vista externado pelo ilustre Mestre, que, impressionado com a "impossibilidade de serem fixados critérios seguros para conceituar-se exatamente os contornos da figura", engrossa a fileira dos que transferem a tarefa ao prudente arbítrio do juiz (idem, p. 111/112). Certo, concordamos em que convém "afastar a idéia de receita de bolo, em que os ingredientes são dosados de tal forma que o resultado venha a ser sempre o mesmo, pois nem em tais casos acontece de resultar invariavelmente bem sucedido o cozinheiro" (idem, p. 115). Entretanto, força é convir que o eminente Professor, embora bem intencionado, para resolver um problema acaba criando um novo, ainda mais complexo. O que ele prega, no fundo, e daí nossa apreensão, é que se façam bolos sem receita.

4.2. Limites da decisão judicial

Incidentalmente, chegamos ao cerne da questão que mais nos preocupa neste trabalho: a que se refere aos limites da decisão judicial. É bom, pois, que se adiantem algumas considerações, a título provisório.

À semelhança de tantos outros, o crime continuado é instituto jurídico que atende aos interesses do réu. Sem sombra de dúvida, atende igualmente aos interesses da coletividade: não se há de criar entre ambos uma irredutível oposição. Regulado por lei, que lhe fixa os contornos, não pode, sem mais nem menos, transformar-se em instrumento de nocividade social – salvo se possuir duas faces, o que é inconcebível.

Perigoso, assim, sob pretexto de imprecisão legislativa, de interpretações inconciliáveis, de aplicação prática contraditória, resolver o impasse com a transferência do encargo ao prudente arbítrio do juiz, inspirado pelas luzes da necessidade, oportunidade e utilidade. Pouco importa se, na vida real, como acontece, aliás, em processos de qualquer natureza, o que vale é a posição afinal tomada pelo juiz. Não, no plano dos princípios, no campo das idéias (ideologia) não cabem concessões, a não ser para reconhecer, se for o caso, a razoabilidade dos demais pontos de vista.

Assim, a opinião de MANOEL PIMENTEL não deixa de ser razoável, porque advoga a justiça do caso concreto, justiça material, de que o juiz se torna arauto. Não deve, porém, ser acatada, e por dois motivos: a lei, bem ou mal, indicou os parâmetros do crime continuado; não cabe ao juiz, sob a alegação de "necessidade", "oportunidade" ou "utilidade", expressões terrivelmente vagas e imprecisas, restringir-lhe o campo de aplicação. Ademais, que juiz confessaria na sentença estar decidindo segundo seu "imprudente" arbítrio? O máximo que faz é uma crítica, aberta ou velada, ao conteúdo da lei, o que é bem diferente. Até mesmo quando decide contra legem – e exatamente por isso – o magistrado não se considera imprudente, mas pregoeiro de algum princípio mais elevado, que por certo considera útil, necessário ou oportuno.

Preferimos, pois, nada obstante as dificuldades inerentes à delimitação do instituto, e por se tratar de figura criada em benefício do acusado, os critérios puramente legislativos. Por impossível que pareça o alcance de tal desiderato, e por mais que se revista a assertiva de cunho meramente retórico, não vemos razão para ceder, no plano doutrinário, a critérios ainda mais vagos, imprecisos e contraditórios. Onde existe lei não pode haver arbítrio. Conquanto a decisão tomada se revele prudente, justa e ponderada (justiça material), merecedora de encômios, não vemos como aprová-la sem crítica se a norma legislativa sofreu cortes e arranhões, em nome dos interesses sociais.

Nenhum juiz, ainda que inteligente, probo, estudioso, pode arvorar-se em "dono da verdade", sentir-se capaz de, sem grandes esforços, apreender o enigmático sentido da justiça material, imaculada e pura. Daí a vantagem da lei: "Imparcial e serena, porque dispõe para todos, há de oferecer maior garantia no delicado terreno da honra, da liberdade e da própria vida do que a sentença sem freios, sem limites, nem sempre destituída de caprichos e de rancores", conforme assinalado alhures (Interpretação e analogia em face da lei penal brasileira, pág. 48).

Em suma, quando está em jogo a liberdade do indivíduo, formalmente garantida por norma legal, não serão as dificuldades de interpretação que irão justificar se advoguem princípios que, na prática, haja vista a imprecisão dos novos termos propostos, transferem ao juiz um poder quase absoluto de decisão. É responsabilidade demais para uma pessoa só.

Se as mesmas leis, apesar da fixidez e imutabilidade de sua roupagem, sofrem as mais díspares interpretações, o que prejudica sensivelmente a imagem de segurança jurídica que deveriam projetar, imagine-se quanta insegurança não pode acarretar, atrelada a injustiças, abusos, distorções, a sentença pretensamente auto-suficiente, desapegada de critérios externos. A tanto, aliás, não aspira o magistrado, ciente de suas limitações.

Está para nascer o juiz enciclopédico, onipotente, infalível, cuja personalidade tenha sido forjada fora dos limites terrestres. Os valores que abraça, colhidos do seu íntimo ou dos padrões morais dominantes, nem por serem seus ou por denotarem isenção de ânimos e uma piedosa preocupação de fazer justiça, não alcançam, repentinamente, o status de perfeição e veracidade absolutas. São, ainda, valores de um ser humano, de alguém que apenas se distingue dos demais pela função específica de dizer o direito. Podem e devem ser submetidos à crítica, em termos elevados, quer pela doutrina, quer pelos tribunais superiores, nos casos concretos. E os valores da suprema instância também guardam, por certo, as mesmas características, somente prevalecendo por seu aspecto prático, pela própria natureza do direito.

O mesmo não se pode dizer, na área criminal, quando se trata de sustentar a aplicação de critérios que, embora não abraçados expressamente por lei, traduzem uma solução que se pretenda mais justa, adequada e razoável, favorável ao acusado. A assimetria do direito penal já não é mais hipótese a ser testada, teoria a ser defendida, mas se constitui, acima de tudo, no mais perceptível dos seus sinais característicos. Ou seja, se de um lado se prega o princípio da reserva legal, de outro se admite, no campo das escusas penais, uma fonte bem mais ampla, batizada com nomes variadíssimos: direito natural, bom senso, costumes, razão, lógica do razoável, política criminal, etc.

O exame da realidade não deixa por menos: é o juiz, quase sempre, que se antecipa ao legislador. O caso sub judice, gerador do problema, não o deixa inerte em sua missão. Não o desanima a insuficiência legislativa; chega a enfrentar, por vezes, o desacerto da solução previamente estabelecida. Aqui e ali vai preenchendo as lacunas que, quase sempre, resultam muito menos de um dado palpável do que de seu poder inventivo. Inteligência e sensibilidade se unem para a busca do veredicto que melhor se ajuste à situação até então impensada, ou antevista em horizontes acanhados. Dir-se-ia que o próprio fato se apresenta com a luz que, até o momento desconhecida, ilumina sua decisão.

Também no direito penal o juiz é arquiteto, construtor e artesão. E o é, sem dúvida, mesmo em matéria de incriminações, se bem que sua maior contribuição histórica, nos últimos séculos, tenha ocorrido na criação ou alargamento de institutos ligados aos exclusivos interesses da defesa. Assim, igualmente, na redefinição limitadora de figuras delituosas antes interpretadas sem parcimônia.

4.3. Interpretação liberal

É o que se verifica, por exemplo, com o crime continuado. Os precedentes do Eg. Tribunal de Justiça de Santa Catarina não evitaram que, a certa altura, se começasse a encarar o instituto com mais liberalidade. Assim, quando a reincidência específica concorreu para que se aplicasse, em primeira instância, a elevada pena de 11 anos de reclusão, relativos, tão-só, a 2 furtos qualificados, não titubeou em reduzi-la para 9 anos e 2 meses, por força do artigo 51, § 2º. E o fez sem maiores explicações doutrinárias, limitando-se a revelar a constatação de que, nada obstante favorecerem ao revisando as condições de tempo e lugar, o Juízo a quo escolhera, sem fundamentar, as sanções do art. 51 caput:

A sentença deu o réu como incurso nas sanções do artigo 51, caput, em tela, sem fundamentar a razão porque escolhera esse dispositivo mas, conforme ressaltou o revisando, os delitos que praticou foram continuados, eis que dos dois roubos que praticou pelas condições de tempo e lugar pode ser o segundo admitido como continuação do primeiro e, assim, a pena a ser aplicada seria a de um aumentado de 1/6 a 2/3. O inciso em que está incurso o réu prevê uma pena de reclusão de 2 a 8 anos e, tendo em vista a reincidência, a pena há de ser estimada entre 5 e 8 anos. A sentença orçou, pelo que se deduz, a pena em 5 anos e meio para cada delito, donde os 11 anos para os dois, aplicados na forma do artigo 51, caput. Esta pena singular de 5 anos e meio, calculada ante as circunstâncias judiciais pelo julgador de primeira instância, deve ser aumentada ante o reconhecimento da ocorrência do § 2º do artigo 51 e 2/3, ou sejam, 9 anos e dois meses (Jurisprudência do TJSC, Revisão Criminal nº 772, da Comarca de Itajaí. Des. Euclydes Cintra, Relator. 1968, p. 167).

Os maus antecedentes (reincidência específica) não mais prejudicavam a admissão do crime continuado.

Em outro acórdão já se passou a afirmar (antiga Câmara Criminal), peremptoriamente, que "a pluralidade do sujeito passivo não constitui obstáculo para o reconhecimento do furto continuado" (Jurisprudência Catarinense, Apelação Criminal nº 11.480, da Comarca de Itajaí, Des. Eduardo Luz, Relator. 1971, p. 862).

Pouco tempo depois, em 1972, também em Câmara Criminal, apontavam-se novos rumos, diametralmente opostos à orientação contida nos dois primeiros acórdãos citados. E o texto do Código, insista-se, permanecia o mesmo.

Eis os termos da respectiva ementa:

Crime continuado – Critério de benignidade do instituto – Reajustamento da reprimenda penal. Na apreciação do crime continuado, a condição de tempo não pode ser vista com excessivo rigor, nascido o instituto para atenuar o rigor punitivo (Jurisprudência Catarinense, Apelação Criminal n.º 11.563, da Comarca de Lages. Des. Eduardo Luz, Relator. 1972, vol. 2, p. 1281).

Esse critério de benignidade se percebe facilmente do exame dos fatos:

Desse modo, afora o primeiro furto de dinheiro, praticado pelo apelante em agosto de 1969, os demais, realizados em janeiro, março, abril, maio e junho, nas residências, pela maneira idêntica de execução devem ser havidos como continuados, ficando reajustada a reprimenda penal para 1 (um) ano de reclusão pelo furto de dinheiro e 1 (um) ano de reclusão pelos demais furtos, com o acréscimo da continuidade de 2 (dois) meses, totalizando uma pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de reclusão, mantidas as demais cominações da sentença apelada (Idem, p. 1281).

Relembrando: antes, furtos praticados na mesma noite, ou no mesmo trajeto, contra vítimas diversas, não ensejavam, praticamente, a forma continuada. Agora não. Conquanto cometidos em oportunidades distintas, em meses diferentes, poderiam considerar-se como continuados.

Inútil o reexame aprofundado do texto do Código para saber, com absoluta certeza, quem, afinal, decidia com ou contra a lei. A linguagem natural com que esta se apresenta está longe de permitir afirmações dogmáticas. A interpretação da lei, embora única (não necessariamente imóvel) se pretende ser verdadeira, acaba dependendo, quase sempre, no dia-a-dia forense, das concepções pessoais de seus autores, apesar do esforço de imparcialidade. Estes, inclusive, como é público e notório, não estão isentos de mudança de opinião, provocada pelos mais variados fatores. Já não se trata, pois, de exegese diversa porque diferentes os protagonistas. A reviravolta de jurisprudência, mantida a composição do órgão, é bem o atestado da faceta camaleônica do texto legislado. As palavras da lei, conquanto imutáveis, parecem emitir mensagens divergentes, o que constitui um disparate do ponto de vista lógico. Em verdade, é a disposição pessoal do intérprete, são os valores ocasionais dominantes, as pressões de toda ordem que contribuem para a ênfase de determinado aspecto, ora efetivamente captado, ora meramente refletido.

Prosperaram as novas idéias acerca do crime continuado:

Os três crimes de furto imputados ao requerente foram praticados nesta cidade, na noite de 27 de dezembro de 1962, sendo o primeiro na "Lavanderia Serratine" e o segundo na firma "Machado e Cia", situadas na rua Trajano, e o terceiro no sobrado da loja "A Macedônia", na rua Felipe Schmidt, onde reside seu proprietário. Pelas condições de tempo, lugar e maneira de execução, ocorreu, realmente, na espécie, o crime continuado, desde que os delitos sendo da mesma natureza foram praticados em casas contíguas e na mesma noite (...). Como o réu é reincidente específico e são idênticas as penas, está ele sujeito a uma delas, ou seja, a de 5 anos e 15 dias de reclusão que, aumentada de um terço, totaliza 6 anos, 3 meses e 20 dias (Jurisprudência Catarinense, Revisão Criminal nº 963, da Comarca de Florianópolis. Des. Alves Pedrosa, Relator. 1973, vol. 1, pág. 442).

Data o venerando acórdão de março de 1973. Como a condenação em primeira instância tinha sido de 15 anos e 45 dias de reclusão não é difícil compreender o enorme sentido, para o revisando, da pena retificada. De sua dívida penitenciária para com o Estado foram-lhe deduzidos quase 9 anos. Quais os fatores da diferença de tratamento? Hipótese quase idêntica fora reputada havia anos, pela própria Corte de Justiça, como de concurso material, a demandar a soma das penas.

Desta feita, porém, consolidava-se a tendência de não mais restringir a clientela dos autores de furtos continuados. Nela também se encaixava a categoria dos reincidentes específicos. A lei penal já se mostrava por demais rigorosa para com eles, não convinha complicar-lhes a situação com sutilezas jurídicas que, no final das contas, não resultavam de texto expresso. Retirada estratégica: o que antes se considerava necessário, útil e oportuno – a severidade da punição – sofria os embates do desgaste proporcionado pelo passar dos anos. As valorações se transmudam. Já não mais se via o ladrão comum de residências, ainda que tendente à recidiva, como o representante máximo da nocividade social. A quantidade de furtos não representava, necessariamente, o sinal supremo da incorrigibilidade, a requerer, como contrapartida meramente defensiva, uma conta de somar no cálculo das penas. Perdia o direito, cada vez mais, o sentido lógico dos números. Na mente do julgador penetravam sub-repticiamente idéias subversivas.

Que idéias eram essas?

A clareza das fontes nos induz a transcrever as palavras de seus ilustres redatores:

De seu turno, a Jurisprudência de nossos Tribunais, conforme podemos constatar (R.T. n.ºs 429, página 454; 423, pág. 432), tem se orientado, relativamente ao crime continuado, num sentido mais benéfico, já que, ao revés, aplicada a soma das penas atribuídas a cada delito, em termos de recuperação do infrator, traria, sem dúvida, conseqüências desastrosas e incondizentes com a melhor política criminal (Jurisprudência Catarinense, Apelação Criminal nº 12.183, da Comarca de Porto União. Des. Ary Oliveira, Relator. 1973, vol. 2, p. 407).

Mesmo que não haja um perfeito vínculo de continuidade entre as duas ações delituosas configurativas de roubo, justifica-se o reconhecimento de crime continuado, com o fim de abrandar a elevada reclusão, quando se trata de réu menor já suficientemente apenado (Jurisprudência Catarinense, Apelação Criminal nº 12.331, da Comarca de Porto União, Des. Ary Oliveira, Relator. 1974, vol. 5/6, p. 565).

Na conceituação do delito continuado, a condição de tempo não deve ser interpretada com rigor excessivo, uma vez que o instituto nasceu tendo como uma das suas finalidades a atenuação do rigor das penas. "De há muito abandonou a jurisprudência, aliás sem qualquer lesão à lei, a antiga exigência da identidade física dos ofendidos para o reconhecimento do crime continuado" (Jurisprudência Catarinense, Revisão Criminal nº 1.037, da Comarca de Lages. Des. May Filho, Relator. 1974, vol. 5/6, p. 654. Também Jurisprudência Catarinense, Revisão Criminal nº 1.269, da Comarca de São João Batista. Des. May Filho, Relator. 1977. vol. 15/16, p. 500).

Muito embora divergente a jurisprudência no que diz respeito à aplicabilidade da continuação, em crime de roubo, é de ser o parecer acolhido. Em outra oportunidade (Jurisprudência Catarinense 5/6, pág. 585 e seguintes) esta Egrégia Câmara já teve oportunidade de examinar a matéria fixando ponto de vista de que "tratando-se de crimes lesivos a interesses jurídicos inerentes à pessoa, não é admissível a continuação", mas se se trata de delitos contra o patrimônio, em que há pluralidade de lesados pode-se, inobstante, reconhecer a continuação, porque "como o bem jurídico tutelado é puramente material, e as sanções impostas às agressões a esses bens bastante acentuadas, adotou-se, como na maioria dos tribunais o critério da benignidade precisamente para humanizar a pena (Jurisprudência Catarinense, Apelação Criminal nº 13.163, da Comarca de Lages. Des. João de Borba, relator. 1975, vol. 9/10, pág. 605).

4.4. Ideologia do juiz.

Exsurgem, do exposto, vários tópicos e preocupações: recuperação do infrator; qualidade da política criminal; impropriedade de sanções elevadas; objetivos do instituto do crime continuado; natureza do delito patrimonial; humanização da pena. Mais uma vez se dá conta o julgador de que certas concepções não podem ser desprezadas em sua missão constitucional. Com mais exatidão, de que assimilou determinadas idéias, valorizadas positivamente, e que devem ser trazidas à colação no momento do veredicto, lado a lado com a ideologia do legislador. A psicologia do julgamento, como realidade fenomênica, suplanta toda e qualquer expectativa baseada em elucubrações racionais de gabinete.

É claro que o analista só apreende uma parcela dessa realidade. Mas é claro também que ela se mostra suficiente para a constatação de que a subserviência à lei, face ao princípio da separação dos poderes, é diretamente proporcional à sua força persuasiva. Referida força persuasiva, por seu turno, há que ser encarada globalmente, isto é, nos aspectos intrínsecos (conteúdo, carga emotiva ou valorativa) e extrínsecos (circunstâncias históricas, principalmente). A linguagem natural do legislador permite, por outro lado, a constante adaptação do texto à personalidade e preferências do intérprete, o que dificulta sobremaneira, por falta de base científica, a afirmação dogmática de se tratar de posicionamento conforme ou contrário à lei. Nem mesmo se pode afastar a hipótese de uma preferência meramente ocasional, sujeita, portanto, aos azares das circunstâncias. O juiz, afinal, deve oferecer sua decisão, tem que optar dentro de certo prazo, o acúmulo de serviço e a complexidade do tema podem perfeitamente abalá-lo na pureza do raciocínio ou na consistência da própria convicção. Afora tudo isso, há que se realçar que está diante de um caso concreto, real e vivo, cuja singularidade é incapaz de se amoldar à mais sutil das distinções hipotéticas dos livros de doutrina, ou de outros casos submetidos a julgamento.

4.5. Direito concreto

São esses casos singulares que suscitam a formação do direito. Quer dizer, de um direito localizado, em primeiro lugar. A regra jurídica dele derivada pode, no entanto, fenecer ou expandir-se. Nesse último caso, à semelhança de uma semente lançada em solo fértil, encontrou condições para esse crescimento. O alargamento e a reprodução exigem espaço, morrem outras sementes, definham regras jurídicas justapostas, ou voltam ao estado de latência. O fenômeno contagia todas as instâncias, por mais avisadas e maduras que sejam. Não existe direito, existem direitos. Não existe direito penal – já que o escolhemos como modelo – mas direitos penais. É mais adequado falar em direito penal catarinense, sumariado por sua Egrégia Corte, do que em direito penal brasileiro. O Juiz de Comarca, principalmente ele, quando se enfoca o aspecto contencioso, acatando ou não as diretrizes cambiantes dos tribunais superiores, e é intuitivo que se inclina pela orientação da Corte de seu Estado, se constitui, em termos quantitativos, no depositário e artífice do direito concreto.

Capítulo 5

5.1. Preocupações sistemáticas 5.2. Exercício ilegal da medicina 5.3. Casa de prostituição 5.4. Direitos desarmônicos

5.1. Preocupações sistemáticas

FRANCISCO MUNÕZ CONDE, em sua Introducción al derecho penal, p. 181, citando ENGISCH no rodapé, faz o seguinte desabafo: "Parece mentira que numa ciência tão problemática como a do direito penal sejam as questões sistemáticas as que ocupem a atenção dos penalistas".

As preocupações sistemáticas são, porém, inevitáveis. Sem embargo, o sistema não pode "resolver todos os problemas que o conhecimento e aplicação das normas jurídicas suscitam; mas ainda que pudesse fazê-lo, nem sempre são as soluções sistemáticas as mais corretas do ponto de vista de umas justiça material; o sistema não é o fim da ciência, senão um mero instrumento, muito importante, isto sim, posto a seu serviço" (idem, p. 166).

Ademais, há uma distância enorme entre as teorias de gabinete, insuscetíveis de comprovação científica, apesar de eruditas, e a prática judiciária. Para começo de conversa, não dá para esquecer que as leis penais (fiquemos com elas) conservam, ainda, caráter nacional. São elas, pois, que devem fornecer o material para a construção do sistema. Além disso, enquanto não revogadas formalmente, conservam – o que é elementar – sua validade. Se conservam sua validade, não podem acolher teorias opostas, o que é diferente de permitirem, mormente pela generalidade de seus termos, sua adaptação às novas circunstâncias. Não é a maior ou menor imprecisão de sua linguagem que vai justificar a intromissão de premissas que dificilmente perdem o caráter artificial ou subjetivo. A importância destas reside mais em sua força persuasiva, eis que "no processo decisório, como lembra LUÍS FERNANDO COELHO, entram em jogo fatores extra-lógicos e mesmo certa dose de irracionalismo; não existe a regra certa para cada situação e nem é possível a configuração enunciativo-conceitual exata das situações que a vida apresenta" (Aulas expositivas de Teoria geral do direito. Interpretação do direito, p. 38).

Na área do direito penal, a melhor teoria é aquela cujas bases e conseqüências são compreendidas e aceitas por um analfabeto. Seremos os últimos, no entanto, a menosprezar, como na fábula da raposa e das uvas, a enorme contribuição da doutrina para o desenvolvimento da disciplina. Não se faz direito sem teoria, sem trabalho de síntese e esquematização. Nossas reservas se voltam apenas para as pretensões dogmáticas, que teriam o condão de tornar ultrapassadas, num campo visceralmente contencioso, pontos de vista até bem pouco tempo acatados e respeitados. E é por isso mesmo que preferimos a faceta valorativa do direito, sempre aberta e exposta ao choque das opiniões, de que ninguém deve abrir mão.

"É a determinação dos valores – afirma HENRI BATIFFOL – que está no centro das preocupações jurídicas contemporâneas" (La philosophie du droit, p. 78).

E se existe alguém que não pode fugir desse imperativo, em razão de suas funções, esse alguém é o magistrado. Cabe-lhe a missão de dizer o direito. No fundo, de ditar o direito, considerando que este não transparece cristalino dos textos, como normas gerais, e, mais ainda, tendo em vista que não consegue despojar-se dos valores previamente assimilados e incorporados à sua personalidade.

Nessa linha de raciocínio cabe concluir que as circunstâncias do caso concreto, submetido a julgamento, arrastam consigo a decisão na medida em que atingem as emoções e sentimentos do juiz. A decisão é uma resposta afetiva, ainda que traduza, com exatidão, a vontade do legislador. O juiz, nesse caso, quase sempre considera justa, ou razoável, a solução preestabelecida. Pode ocorrer, inclusive, que não tenha opinião formada (donde a preferência pela solução do legislador) ou que se sinta impotente, dada sua formação profissional, ou a vigente situação política, para um gesto mais ousado. Em outros casos decide contra a lei, ora servindo-se da ficção, ora recorrendo a argumentos reveladores do voluntário afastamento.

Já não é mais possível, de qualquer forma, ignorar esses detalhes, em vã tentativa de preservar a teoria de vícios e contaminações que lhe seriam totalmente estranhos ou indiferentes.

Não, todo sistema jurídico é necessariamente apriorístico, artificial. Sua beleza arquitetônica, a indicar coerência e autodisciplina, pode mostrar-se insuficiente, porque vazia de conteúdo, para os fins a que se destina. Convém, pois, que se desfaça de sua roupagem formal, e com isso perdendo substância, para apreender nos fatos singulares a imensa e variada carga valorativa. "O tecido jurídico total, que efetivamente encontramos, afirma THEODOR VIEWHEG, não é um sistema em sentido lógico. É muito mais uma indefinida pluralidade de sistemas..." (Tópica y jurisprudencia, p. 117/118), haja vista que "a raiz de tudo está simplesmente em que o problema toma e conserva a primazia. Se a jurisprudência concebe sua tarefa como uma busca do justo dentro de uma inabarcável pletora de situações, tem que conservar uma ampla possibilidade de tomar de novo posição a respeito da aporia fundamental, isto é, de ser móvel" (Idem, p. 142).

5.2. Exercício ilegal da medicina

Essa busca do justo, porque alusiva ao caso concreto e dependente da valorização pessoal, dificilmente se amoldaria a modelos prefixados. Vejamos este acórdão:

T.S. foi condenado pela sentença de fls. 47 usque 56, à pena de seis meses de detenção, sendo-lhe concedido "sursis" – como incurso na sanção do artigo 282, combinado com o artigo 51, § 2º, ambos do Código Penal. (...). Nesta Instância, o ilustre representante da Procuradoria Geral do Estado opina pelo desprovimento do recurso. A sentença, sem embargo das brilhantes considerações expendidas, merece reformada. Não há dúvida – e o próprio réu confessa – de algum tempo vinha ele "... exercendo atos típicos da competência de médicos. ..", na cidade de Palmitos "... e em outros municípios...", pertencentes à mesma comarca (fls. 47) (...). Mas se, realmente, é essa a situação, o que não pode deixar de ser reconhecido é a ocorrência no caso sub judice, do erro de fato – artigo 17 do Código Penal – a beneficiar o apelante. O réu era, constante e insistentemente, procurado por diversas pessoas. E as atendia, parece, com êxito – as informações são favoráveis – e sem receber remuneração. Se essas condições não descaracterizam o ilícito por que respondeu o apelante, conforme com propriedade salienta o digno Dr. Juiz "a quo", o certo é que exercia a atividade de "arrumador de ossos" – consta do decisório – "... em presença de facultativos...". Assim, com o beneplácito dos médicos, – acentue-se que estes não apresentaram reclamação – supondo situação permitida, porque plenamente justificada pelas circunstâncias (Jurisprudência do TJSC, Ap. Crim. nº 10.902, da Comarca de Palmitos. Des. Trompowsky Taulois, Relator. 1969, p. 673/674).

Eis aí, para quem tiver olhos para enxergar, um excelente exemplo de ficção jurisprudencial. Duas posições se destacam: a do Dr. Juiz a quo, homologada pela Procuradoria-Geral, de natureza legalista, e a da Câmara Criminal, que reformou a sentença para absolver o apelante. Argumenta esta última que inexistiu o crime de exercício ilegal da medicina porquanto o acusado exercia as atividades em presença de facultativos. Assim, ele supunha "situação permitida, porque plenamente justificada pelas circunstâncias".

A Colenda Câmara transferiu para a classe médica o poder de, pelo silêncio, omissão ou anuência implícita, impedir a formação do elemento moral atinente à figura delituosa em epígrafe. Mas se tal aconteceu, isto é, se o acusado passou a pensar que podia exercer atividades médicas porque os facultativos nada reclamavam, então incorreu em erro de direito, e não erro de fato. Ora, o erro de direito não escusa, convinha encontrar outro expediente, para manter as aparências. O importante era que, na concepção da Egrégia Corte, se fizesse justiça, mas justiça material, adaptada às peculiaridades do caso. Afinal, tratava-se de réu: a) constante e insistentemente procurado; b) que não recebia remuneração; c) que tinha êxito em suas intervenções; d) que agia sem oposição dos médicos. O erro de direito, que poderia inocentá-lo (ao menos como princípio), na verdade não o socorria (Código Penal, art. 16), apesar das severas críticas da doutrina: "O erro sobre a proibição, chamado erro de direito, deveria operar efeitos idênticos, porque quem atua desconhecendo o caráter ilícito de sua conduta atua sem consciência da ilicitude – que, segundo a doutrina prevalente na prática judiciária brasileira, é componente do dolo. A estúpida regra do art. 16 do CP. .." (BATISTA, N. Revista de direito penal, nº 15/16, jul./dez. 1974, p. 136). Comenta, por seu turno, BASILEU GARCIA: "O brocardo ignorantia legis non excusat, corporificando uma ficção, manda às vezes punir o verdadeiramente inocente, o que repugna ao senso de justiça. Ele afronta o princípio da culpabilidade. Convém aceitar as atenuações que tolera, e uma bem razoável é a eximente influência do erro de direito extra-penal, quando conduza a erro sobre elemento de fato da infração" (Instituições de direito penal, vol. 1, p. 277).

5.3. Casa de prostituição

A calculada substituição do erro de direito pelo erro de fato, a fim de propiciar a absolvição, antecipada em primeira instância, se deu, igualmente, no seguinte acórdão:

A manutenção de casa de prostituição, em zonas delimitadas e fiscalizadas pelas autoridades policiais, constitui erro de fato, que, nos termos do art. 17, do Cód. Penal, isenta o réu de pena (...). Diante disso, vale dizer, após cumprir tantas formalidades, para o funcionamento de seu conventilho, a ré, mulher ignorante, foi levada a acreditar que o poder público considera legal o seu indigno comércio. O Egrégio Supremo Tribunal através de inúmeras decisões, desde que se verifiquem as circunstâncias ocorrentes na espécie, reconhece a escusante do erro de fato (Jurisprudência do TJSC, Ap. Crim. n.º 10.168, da Comarca de São José. Des. Miranda Ramos, Relator. 1965/1966, p. 661/662).

HELENO FRAGOSO, depois de cerrada crítica a decisões dessa natureza, afirmando que "o erro, em tais situações, não seria jamais de fato, e, sim, de direito" (Jurisprudência criminal, p. 90/91) retifica o dito em nome de uma ficção bem mais sutil: "A tolerância policial é, em verdade, um fato desconcertante. Pode conduzir pessoas simples e ignorantes a um falso entendimento quanto à licitude do fato, tendo o agente boa-fé e praticando a ação sem a consciência de sua ilicitude ou reprovabilidade. Esses casos devem conduzir à absolvição, por ausência de dolo, que exige a consciência da antijuridicidade da ação" (Idem, pág. 95).

Já MAGALHÃES NORONHA, com os olhos na lei, e sem a menor preocupação, na hipótese, de corrigi-la por outras vias, apresenta as seguintes observações, suficientemente claras e precisas:

Mas qualquer que seja o comportamento das autoridades, não cremos que isso leve o sujeito ativo a erro de fato, mesmo porque a espécie seria antes de erro de direito. Realmente, conquanto hoje se note um movimento entre os juristas, principalmente os alemães, para não se distinguir o erro de direito do de fato e não obstante ser várias vezes difícil extremá-los, quando, p. ex., um elemento objetivo do delito é de natureza jurídica, a verdade é que nossa lei os distinguiu (...). No erro de direito (...) não erra a pessoa sobre elementos do fato que pratica. Executa-o voluntária e conscientemente, em todos seus pormenores, mas acredita ser lícito, não ser reprimido pela lei, ou por desconhecê-la ou por conhecê-la mal, isto é, por ignorar o praeceptum ou dele ter um conhecimento falso ou errado. Consequentemente, o que se poderia dizer é que, na hipótese, a tenancière, em face da atitude da Polícia e do Fisco, acreditava não ser punido pela lei o fato e, assim, estaria laborando em erro de direito. Mas, como nosso Código claramente diz no art. 16, tal erro não aproveita. Esposou ele a parêmia error juris nocet, e, portanto, não valerá ao delinqüente (Direito penal, vol. 3, p. 330).

O mesmo Autor se mostra cético no que tange à ocorrência do próprio erro de direito:

"Acresce ainda ser difícil aceitar-se que alguém, mesmo em face daquelas circunstâncias, possa ser vítima de erro de direito. Está na consciência de todos que a prostituição é um modo imoral de vida e, por conseguinte, difícil é aceitar-se que uma pessoa considere lícito favorecer ou explorar essa imoralidade. E é sabido que o mantenedor, gerente, etc., de casa de meretrício é, em regra, atilado e vivo, pois, se o ofício prescinde de cultura, exige, contudo, solércia, expediente e sagacidade" (Idem, ibidem).

O tema comporta outro tipo de ficção:

As pessoas que depuseram no processo nada referem com relação à natureza prostibular dessa "boîte" ao tempo em que o estabelecimento pertenceu ao ora apelante. Referências nesse sentido são feitas, mas relativamente ao tempo em que a "boîte" passou a pertencer à meretriz T.A. Esta, em seu depoimento, informa que ao tempo em que a "boîte" pertencia ao apelante, "o Delegado", juntamente com policiais, fiscalizavam diariamente a "boîte" que era de propriedade do denunciado. Não era possível que, debaixo de tal fiscalização, pudesse funcionar, ao invés da "boîte", uma "casa de prostituição" (Jurisprudência do TJSC, Ap. Crim. n.º 10.414, da Comarca de São Francisco do Sul. Des. Adão Bernardes, Relator, 1967, p. 165/166).

Mais recentemente, firmou-se o entendimento de que

Carece de suporte legal a alegação de que a casa de meretrício, com a conivência policial, não constitui crime (Jurisprudência do TJSC, Ap. Crim. n.º 11.883, da Comarca de Balneário de Camboriú. Des. Marcílio Medeiros, Relator. 1972, vol. 2, p. 1146)

Lenocínio. Crime configurado. Decisão mantida. A alegação de que a exploração de casa de meretrício não constitui crime, quando há conivência da polícia, não encontra qualquer amparo na lei e nem o licenciamento para o comércio faz desaparecer a ilicitude, "pois, a prevalecer esse entendimento seria a apologia do ilícito com fundamento na ilicitude (Jurisprudência Catarinense, A. Crim. n.º 13.407, da Comarca de Joinville. Des. João de Borba, Relator. 1975, vol. 9/10, p. 610).

Casa de Prostituição. Decisão condenatória acatada, em parte (...). A alegação de que a exploração de casa de meretrício não constitui crime, quando há conivência da polícia, não encontra qualquer amparo na lei e nem o licenciamento para o comércio faz desaparecer a ilicitude, "pois a prevalecer esse entendimento, seria a apologia do ilícito com fundamento na ilicitude" (Jurisprudência Catarinense, Ap Crim. nº 13.989, da Comarca de Canoinhas. Des. João de Borba, Relator. 1976, vol. 14, p. 393).

Mas não ficou afastada a possibilidade teórica de "erro de fato":

Não cabe, portanto, no caso sub judice, a absolvição por erro de fato, de que se encontram, na jurisprudência, várias decisões, inclusive desta Colenda Câmara, pois o apelado, como se depreende do acima exposto, tinha plena ciência da ilicitude do seu vil comércio (Jurisprudência do TJSC, Ap. Crim. n.º 11.883, da Comarca de Balneário de Camboriú. Des. Marcílio Medeiros, Relator. 1972, vol. 2, pág. 1147).

Se consciente da ilicitude do negócio de casa de prostituição o agente prosseguiu em sua atividade criminosa, a alegação de erro de fato desmerece acolhida (Jurisprudência Catarinense, Ap. Crim. n.º 13.085, da Comarca de Orleans. Des. Marcílio Medeiros, relator. 1975, vol. 7/8, p. 432).

Casa de prostituição – Alegativa de erro de fato repelida, porquanto claro dos autos que a ré tinha plena ciência da ilicitude do negócio (...). A alegação de erro de fato desmorona-se por si própria. O suposto consentimento do Delegado de Polícia para que a ré explorasse o lenocínio tem suporte apenas nas declarações da mesma, ressentindo-se de qualquer valia, até porque não soube sequer indicar o nome da autoridade conivente, e o procedimento policial, através de duas batidas no bordel, evidencia precisamente o contrário (Jurisprudência Catarinense, Ap. Crim. n.º 14.042, da Comarca de Joaçaba. Des. Marcílio Medeiros, relator. 1976, vol. 14, p. 364/365).

Portanto, não abdica o Tribunal de seu direito de continuar a recorrer à ficção, embora a reserve para hipótese em que se possa admitir a efetiva existência de erro (réus ignorantes, rudes, analfabetos).

Essa posição, com base na falta de consciência do ilícito, é moderada, porque se atém à preocupação de fazer justiça. Havendo erro, impeditivo de dolo, pouco importa a sua natureza, se de fato ou de direito.

Bem mais extremada era a posição do Egrégio Supremo Tribunal Federal, que não divisava criminalidade na manutenção de casa de prostituição em zona de tolerância confinada pela polícia, ou na sua prática em hotel licenciado. O Excelso Pretório reviu seu ponto de vista, mas se não o fizesse estaria concorrendo para a revogação definitiva do artigo 229 do Código Penal: "... parece claramente que o Eg. Tribunal vem decidindo contra o texto expresso da lei, revogando praticamente o citado dispositivo do Código Penal" (FRAGOSO, Heleno, Jurisprudência criminal, p. 89).

Daí a observação de ROBERTO LYRA FILHO: "Nós, professores, devemos confessar que, muitas vezes, ensinamos o direito no sentido estático enquanto ele caminha muito mais livre nos tribunais. Para dar, apenas, um exemplo (...) eu me referiria (...) em matéria penal, às críticas que ao Supremo Tribunal foram dirigidas por juristas de formação conservadora devido a decisões que optavam, sob pretextos diversos, por uma solução, de certo modo contra legem, como no crime de casa de prostituição, praticamente aniquilado. Direito é também lei, mas nem sempre a lei é o direito" (apud SOUTO, C., Teoria sociológica do direito e prática forense, p. 108/109).

5.4 Direitos desarmônicos

Essa eventual desarmonia entre lei e direito constitui fenômeno facilmente demonstrável, mas não evita a conclusão da existência de vários direitos igualmente desarmônicos. Esses vários direitos estariam simplesmente condicionados pelo teor da sentença final, que, por sua vez, dentre outros fatores, depende da maneira com que o magistrado encara sua função perante a sociedade. Assim, no plano contencioso, o que mais importa é a decisão, e não o texto de lei. Ora, está mais do que visto reagirem os julgadores de modo diverso diante de um mesmíssimo preceito legislativo. Já não se trata, apenas, de questão vinculada às dificuldades de interpretação decorrentes da linguagem natural. Esta sempre comporta, como se disse metaforicamente, "uma zona de luminosidade (composta pelos termos onde não existe nenhuma dúvida em relação à sua inclusão na classe)" (VERNENGO, J.V., WARAT, L.A. e CUNHA, R.M.C. da, Os problemas do significado da linguagem natural, Q. 14). Se é assim, e se as discrepâncias acontecem até mesmo nessa zona de luminosidade, há que reconhecer-se, realisticamente, a enorme importância desempenhada pela personalidade do julgador, sob todos os sentidos, inclusive no que concerne à idéia que faz de sua missão, em face dos outros poderes. Os mais impetuosos não hesitam em abrir caminhos por onde o legislador se omitiu ou opôs o seu veto. A "divisão dos poderes" não os inibe de considerar prevalente a solução tópica, individualizada, e que se legitima (na falta de outro termo) por si mesma, por emanar de quem emana. Outros reagem com menos desembaraço, o que não impede – bem ao contrário – se afirme, como o faz CHAÏM PERELMAN, que "todo debate judiciário, e toda lógica jurídica, apenas concernem à escolha das premissas que serão melhor motivadas e que levantam menos objeções. É papel da lógica formal tornar a conclusão solidária das premissas, mas é o da lógica jurídica mostrar a aceitabilidade das premissas" (Logique juridique, p. 176).

Que premissas seriam essas, que descriminam, praticamente, o delito de casa de prostituição?

Ficou famosa a frase do eminente Ministro VILLAS BOAS: "Não se trata de crime contra os costumes, mas de fato tolerado e até imposto pelos costumes" (apud FRAGOSO, H.C, Jurisprudência criminal, p. 90; e NOGUEIRA, P.L, Questões penais controvertidas, p. 216). E, como sintetiza PAULO NOGUEIRA, se "existe uma tolerância declarada e consentida da parte das próprias autoridades", não se pode de maneira alguma, sob pena de incongruência, com tanta fiscalização policial e sanitária, "admitir processos contra estas mulheres", mantenedoras de casa de prostituição (Idem, p. 217).

A premissa oposta se identifica com a própria lei, com o artigo 229, devidamente interpretado. "A prostituição – argumenta NÉLSON HUNGRIA – é tolerada como uma fatalidade da vida social, mas a ordem jurídica faltaria à sua finalidade se deixasse de reprimir aqueles que, de qualquer modo, contribuem para maior fomento e extensão dessa chaga social" (Comentários ao código penal, vol. 7, p. 253/254).

Por isso mesmo não se pode contestar a assertiva de que o julgador, ao encontrar uma grave antinomia entre a solução legal e aquela que reputa correta, acaba, não raro, preferindo esta última. Para tanto, quando deixa de recorrer à ficção, não se furta a expor a antinomia abertamente, de conformidade com as exigências do caso concreto.

Destarte, se não hesita em enfrentar a lei nesses casos extremos, assumindo no processo importante papel político, imagine-se como não o faz, bem mais à vontade, quando o permitem a vagueza e a anemia das palavras da lei: "É bem conhecido que, em certos domínios – lembra ROBERT LEGROS – o juiz dá aos textos legais uma interpretação tão audaciosa, e até astuciosa, que o legislador aí não mais encontraria sua obra" ("Considérations sur les motifs," Revue de droit pénal et criminologie, 1970/1971, p. 5).

Aduz, a propósito, CHAÏM PERELMAN: "J. Esser constata, em sua obra mais recente, que a enumeração dos métodos de interpretação dos textos, o recurso aos precedentes e aos princípios gerais, aos fins e aos valores que o legislador procura promover e proteger, todo este arsenal de argumentos é totalmente insuficiente para guiar o juiz no exercício de suas funções, porque nenhum sistema estabelecido a priori lhe pode indicar, num caso concreto, a qual método de raciocínio ele deve recorrer, se ele deve aplicar a lei literalmente ou, ao contrário, restringir ou ampliar o alcance desta" (Logique juridique, p. 82).

Capítulo 6

6.1. Lei, segurança jurídica, ideologia 6.2. Liberdade atual dos juízes criminais 6.3. Ausência de co-autoria 6.4 Pequeno prejuízo e furto privilegiado 6.5. Ausência de condenação por "maus tratos" 6.6. Anti-legalismo e sentimentos da sociedade 6.7. Decisões motivadas

6.1. Lei, segurança jurídica, ideologia

A observação de J. ESSER, endossada por CHAÏM PERELMAN, há pouco referida, de que nenhum sistema estabelecido a priori pode indicar ao juiz num caso concreto o método de raciocínio a que deve recorrer nos traz à tona, mais uma vez, a questão da importância, fundamental e decisiva, da idéia que ele, juiz, faz de sua missão. Mesmo no sistema jurídico da família romano-germânica não passa de uma ficção a soberania absoluta da lei, fenômeno atualmente reconhecido pelos próprios defensores do positivismo (DAVID, René, Les grands systèmes de droit contemporains, p. 102/103). Os juízes manteriam uma certa independência em face da lei porque "nesses países Direito e Lei não se confundem. A própria existência de um poder judiciário, e o próprio princípio da separação dos poderes, com as vantagens que nós lhe atribuímos, estão ligados a essa independência (idem, p. 126).

Estranha metamorfose: a divisão dos poderes não deveria implicar, na expressão de MONTESQUIEU, que os juízes não seriam mais do que "a boca que pronuncia as sentenças da lei; seres inanimados que não podem moderar nem sua força nem seu rigor"? (Do espírito das leis, p. 160) Não lhes estaria vedada, por perigosa, toda tentativa de interpretação? (BECCARIA, César. Dos delitos e das penas, p. 35/38).

Não, os fatos, a bem dizer, desmentiam tudo isso, mas não se há de negar que a ideologia apregoada conseguiu, de certa forma, parcela de seu intento. A segurança jurídica identificada com o irrestrito cumprimento da lei, expressão da vontade popular, exigia por parte do magistrado uma espécie de sacrifício de suas concepções pessoais de justiça. Mas a verdade é que, paralelamente, pouca necessidade tinham os juízes de insurgir-se contra os preceitos legislados. Respeitavam-nos porque, até certo ponto, concordavam com os valores vigentes. Não constituíam seres incomuns, incapazes de se deixarem absorver pela engrenagem histórica, social e ideológica.

6.2. Liberdade atual dos juízes criminais

Os juízes criminais – voltemos a eles – dispõem, de fato, de ampla liberdade na escolha da decisão. Essa liberdade é ainda maior na fixação do "quantum" apenativo, independentemente do que a respeito preconiza o Código Penal. Quase infinitas são as explicações para o fenômeno. Muitas delas, sem se restringirem aos dias de hoje, já foram lembradas neste trabalho.

A proliferação de teorias, doutrinas, escolas, ou o nome que se dê a opiniões acerca de determinada temática jurídico-penal, contribuiu enormemente para que isso acontecesse.

Esse aumento, em proporção geométrica, das obras publicadas, ou a simples notícia, resumida, das microscópicas e múltiplas distinções dogmáticas, nacionais e estrangeiras, concorrem, juntamente com as já existentes, para uma absolvição prévia dos pecados ou pecadilhos acaso cometidos na decisão tomada. É difícil não encontrar, na fundamentação de uma sentença, a coincidência de argumentos já expendidos por respeitável tratadista. Nesse mister, aliás, salvo se outras são as preocupações, a última coisa que importa é o exame da adequabilidade da opinião ao sistema nacional vigente, limitada originalmente ao ordenamento jurídico alienígena.

Mencionada proliferação teórico-doutrinária, diga-se de passagem, muitas vezes importada de outras terras, só pode ter um saldo positivo. Este, contudo, seria muito mais elevado qualitativamente se os maiores de nossas letras jurídico-penais filtrassem os temas abordados, deixando de lado aqueles que não passam de variações de ordem meramente sistemática. Se bem que até mesmo essas variações, pelos artifícios de que os juristas se servem, acabem repercutindo naquilo que mais interessa: uma decisão aproximada das exigências de uma justiça compatível com a gravidade dos fatos, revalorizados à luz das concepções dominantes.

6.3. Ausência de co-autoria

Examinemos, para começar, um caso de co-autoria:

E os fatos ocorreram da seguinte maneira: WTB, o principal acusado, vendo que lhe haviam cortado o pneu de seu automóvel, agindo com deliberação e assumindo o risco do evento, dirigiu-se agressivamente contra EB, agarrando-o e rolando com o mesmo pelo chão, por estar convicto de ter sido a vítima o autor do dano em seu veículo. Serenados os ânimos, novo entrevero ocorre entre W e E, repetindo-se a cena da primeira briga. Ora, a vítima teve sua clavícula quebrada e, assim, não há como não responsabilizar WTB pelo evento. Já o mesmo não se pode dizer no que toca ao outro recorrente – HJ. É que esse cidadão, que se encontrava jogando baralho no clube, nenhuma interferência teve no primeiro entrevero e, no segundo, limitou-se, apenas, a dar um soco ou tapa que atingiu a vítima. Condená-lo, só por isso e nas condições em que os fatos ocorreram, no crime de lesão corporal de natureza grave, face à co-autoria, seria severidade excessiva, ainda mais que dúvidas sérias perduram quanto ao momento da ocorrência da fratura sofrida pela vítima, se antes ou após sua intervenção na luta entre W e E" (Jurisprudência Catarinense, Ap. Crim. nº 12.508, da Comarca de Pomerode. Des. João de Borba, Relator. 1974, vol. ¾, p. 461).

Deixemos de lado o problema das "sérias dúvidas" quanto ao momento da ocorrência da fratura, dúvidas por sinal consideradas inexistentes na instância de primeiro grau. Elas constituíram apenas uma argumentação complementar: "ainda mais que". O que importava era a valoração dos fatos praticados pelo segundo recorrente. Pois bem, pela sua insignificância não poderiam redundar numa condenação por lesão corporal grave, mesmo face à co-autoria, o que seria "severidade excessiva".

Severidade excessiva: eis aí a expressão mágica que desconhece barreiras. O MM. Juiz a quo, no entanto, a desconheceu, porque lhe parecia mais relevante o fiel cumprimento da lei. Com efeito, de conformidade com o disposto no parágrafo único do artigo 48 do Código penal, "se o agente quis participar de crime menos grave, a pena é diminuída de um terço até metade, não podendo, porém, ser inferior ao mínimo da cominada ao crime cometido". Com esta premissa, ajustada, à perfeição, àquela do caput do artigo 48, ninguém pode deixar de chegar à sentença condenatória.

Acontece que, atualmente, o parágrafo único do artigo 48 corresponde a uma espinha atravessada na garganta do aplicador da lei penal. Raro encontrar quem não o abomine, por traduzir responsabilidade objetiva (CIRIGLIANO FILHO, R. "Inovações da parte geral do código penal de 1969", Revista de Informação Legislativa, nº 27, 1970, p. 52; COSTA JUNIOR, Paulo José da, "Direito penal da culpa", Ciência Penal, 1, 1975, p. 79/81; MEDEIROS, Marcílio, "O novo código penal", Ordem dos Advogados do Brasil, Seção de Santa Catarina, nov./1972, p. 60/62). Na dificuldade que acarreta uma reinterpretação, porquanto inconvincente, uma das saídas é colocá-lo de lado, como se não existisse. A sensibilidade do intérprete diante do caso concreto, ao captar a "severidade excessiva" que lhe é inerente, erige esta última em princípio norteador da decisão. Em suma, não deve ser aplicada a lei excessivamente severa.

6.4. Pequeno prejuízo e furto privilegiado

Ressalte-se que, na espécie, a solução de eqüidade ou de política criminal ficou apenas implícita, no sentido de que não foi mencionada expressamente no acórdão. Noutros, porém, a expressão aparece, conquanto os efeitos sejam os mesmos:

Embora de certo valor a coisa subtraída, se o lesado foi ressarcido de grande parte do prejuízo, restando recuperar importância bem inferior ao salário mínimo, é possível, conforme as circunstâncias e tratando-se de réu primário, aplicar o art. 155, § 2º, do Código Penal (...). Cuida-se, como sustenta um dos arestos citados, de uma solução ditada pela política criminal, "pois a lei penal foi excessivamente rígida em relação à punição dos crimes contra a propriedade, criando situações de clamorosa injustiça quanto à apenação, rigidez essa que tem sido obviada pelo esforço jurisprudencial no sentido de encontrar uma conciliação entre os interesses sociais e a oportunidade que os delinqüentes primários devem ter para a volta ao bom caminho" (Jurisprudência do TJSC, Ap. Crim. n.º 11.885, da Comarca de Sombrio. Des. Marcílio Medeiros, Relator. 1972, vol. 2, p. 1.148 e 1.149).

O acórdão em pauta é datado de 1972. A tese nele contida foi rejeitada três anos depois. Era um caso, porém de vários réus (Jurisprudência Catarinense, Ap. Crim. nº 12.710, da Comarca de Balneário de Camboriú. Des. Ary Oliveira, Relator. 1975, vol. 7/8, p. 452). Em 1973, por sinal, tinha sido reafirmada, mas com o adendo de que a espécie em julgamento não comportava sua aplicação – réu de maus antecedentes, embora primário; ausência de devolução espontânea (Jurisprudência Catarinense, Ap. Crim. º 12.451, da Comarca de Santa Cecília. Des. Marcílio Medeiros, Relator. 1973, vol. 2, p. 382/383).

O que havia de peculiar no processo criminal de 1972? Eis a resposta: "A substituição da pena, in casu, justifica-se plenamente, impondo-se ressaltar que o acusado, humilde roceiro, encontrava-se à época do fato assoberbado por problemas de toda a ordem, tendo a seu encargo o sustento de seu velho pai, atacado de grave enfermidade, e a manutenção de sua mãe e vários irmãos pequenos". Por isso, e por ser primário, de bons antecedentes, e ainda porque "o animal furtado, vendido a terceiro, foi restituído ao legítimo dono, sendo o comprador reembolsado de grande parte do preço que pagou", deu-se provimento ao recurso "para substituir a pena de reclusão por detenção, concedendo-se ao réu o benefício do sursis" (Jurisprudência do TJSC, Ap. Crim. nº 11.885, cit., p. 1.149 e 1.148).

Vê-se claramente que a condenação com sursis parecia a solução justa para o Egrégio Tribunal. Mas a pena de reclusão, na época, era incompatível com o benefício. Seria atrevimento demais estendê-lo à reclusão, não havia notícia de que alguma Corte houvesse chegado ao que facilmente se acoimaria de "heresia jurídica". Como contornar a situação? Bem, se poderia substituir a reclusão por detenção, na forma do § 2º do art. 155. É verdade que se estava diante do furto de um boi, detalhe que não correspondia à exigência de ser "de pequeno valor a coisa furtada".

Nada obstante... Quem disse, afinal, ser o juiz uma peça inerte no momento em que sente sobre si – ainda mais em grau de recurso – a enorme responsabilidade de decidir a sorte de seu semelhante? Quem afirmou não possa ou não deva ter uma visão de conjunto do ordenamento jurídico? Como proibir o magistrado de, ao se deparar com a regra do § 1º do art. 171, onde se fala em pequeno valor do prejuízo, no crime de estelionato, apreender o descompasso, o desacerto, a injustificável diferença de tratamento?

O legislador pode impor quase tudo. Entretanto, não pode prever, infinitas são as variáveis e combinações, todos os casos concretos da vida real. E, se faz distinções, não pode impedir que o intérprete as considere irrelevantes.

Tudo isso explica, mas não invalida uma simples constatação: a de que o juiz, sensibilizado com as características únicas da hipótese em julgamento, decide contra legem. E diz abertamente: questão de política criminal. Ou pode não dizê-lo, tantos são os meios de que dispõe para alcançar o mesmo objetivo.

6.5. Ausência de condenação por maus-tratos

Outro exemplo, bastante significativo:

Acordam, em Câmara Criminal, à unanimidade e de acordo com o parecer da Procuradoria Geral do Estado, conhecer da apelação e dar-lhe provimento para absolver o réu. Custas na forma da lei. E assim decidem nos termos do parecer da Procuradoria Geral do Estado que se adota como razão de decidir: "Trata-se, na hipótese dos autos, de réu que, por haver abusado dos meios de correção e disciplina, foi condenado à pena de multa, como infrator do art. 136 do Código Penal. Em razão disso, interpôs o presente recurso, através do qual pretende a reforma da sentença. Malgrado as opiniões contrárias, temos para nós que a absolvição do acusado, na Superior Instância, será mais um ato de boa política criminal. Se é verdade que o réu, no episódio relatado na denúncia, agiu com excessivo rigor, ao ponto de lesionar o próprio filho, não é menos certo afirmar-se que foi esta a primeira vez que ele assim procedeu. Também não há negar que o acusado, de acordo com o que disseram as testemunhas, é considerado um homem bom, sério, correto e trabalhador, ao passo que o menor E., por sua proverbial desatenção às ordens paternas, além de outras diatribes, vinha fazendo por merecer castigo e reprimenda. Demais disso, os maus-tratos infligidos àquele menor não tiveram o caráter de habitualidade, constituindo-se mesmo em ação isolada, explicável por sobrecarga emocional, ante a seqüência dos motivos acima referidos. O acórdão invocado pela defesa e a decisão por ela transcrita, do eminente juiz paulista, hoje desembargador do Tribunal de Alçada Criminal, Valentim Alves da Silva, indicam, com o toque da sabedoria, o caminho a seguir em situações iguais a esta. Aliás, os efeitos negativos dessa condenação já se prenunciavam no curso do processo, quando se ficou sabendo que o menor E. não ia mais à escola e andava perambulando pelas ruas, ao passo que o réu, cuja indiciação representava seriíssimo golpe à sua autoridade, não sabia como retomá-la naquela conjuntura. É fora de dúvida que o acusado, nesta altura, ainda que mereça ser absolvido, terá recebido uma dura lição e uma severa advertência, a fim de que se modere e, daqui por diante, castigue os filhos de outra maneira. Agora, insistir numa punição judicial, que perdurará por anos seguidos como um estigma e uma parede a dividir pai e filho, parece-nos, data venia, não atender de modo algum ao espírito da lei e ao interesse social (Jurisprudência do TJSC, Ap. Crim. n.º 11.376, da Comarca e Campos Novos. Des. Eduardo Luz, Relator. 1971, vol. 2, p. 871/872).

O judicioso parecer, adotado como razão de decidir, vem aqui transcrito, na sua íntegra, porque se constitui num dos raros modelos de ricas argumentações convergindo, em harmonia, para um único objetivo: a justificativa, abertamente confessada, de uma absolvição contra legem. Alinhemos as razões invocadas: réu primário, de ótimos antecedentes; ação isolada, explicável por sobrecarga emocional; efeitos negativos da condenação no que concerne à educação da vítima; o processo, em si, suficientemente válido como dura lição e severa advertência; punição judicial: estigma a dividir pai e filho. Em suma: antinomia entre uma boa política criminal (espírito da lei, interesse social) e outra, eventualmente má, decorrente de uma aplicação formalista do artigo 136 do estatuto repressivo. Nem mesmo faltou o detalhe da "absolvição do acusado, na Superior Instância", como a sugerir que esta, por algum motivo que não ficou explícito, se sentiria mais à vontade para um veredicto liberto de preconceitos legalistas.

E foi o que ocorreu. A Corte de Justiça, como que sopesando, com precisão de ourives, os prós e os contras de uma condenação, acabou preferindo a segunda alternativa, atenta, de modo particular, às conseqüências práticas no caso concreto. Agindo como agiu é claro que se auto-reconheceu com o direito de afastar a lei em nome de uma indagação mais aprofundada acerca dos fundamentos da repressão criminal. O fenômeno, que se generaliza, foi anunciado, dentre outros autores, por ROBERT LEGROS: "Mas o que é mais impressionante é constatar que o juiz penal procede cada vez mais frequentemente à pesquisa dos fundamentos da repressão e dos limites do direito de punir" (Droit pénal, vol. 1, p. 70).

6.6. Anti-legalismo e sentimentos da sociedade

Referida pesquisa, é bom que se acrescente, quase sempre transparece, com mais nitidez, diante das peculiaridades do caso concreto.

Há momentos em que os fatos, se fazendo acompanhar de uma certa tonalidade, despertam o juiz de sua sina legalista para transformá-lo em fonte e porta-voz de um outro direito, liberto, assim, das parcerias habituais. A honra profissional, identificada com o legalismo, como que se transforma, se transmuda, ganhando matizes que revelam uma subitânea e radical tomada de consciência. Ao menos por um instante, já não se é o que se era, prevalece o anti-legalismo. Por paradoxal que se afigure, o fenômeno pode traduzir – e traduz muitas vezes – a par de uma eventual contribuição para a evolução do direito, o sinal de uma revolta, a coragem de um desafio, a positividade de uma oferta, o indício de uma vocação, o coroamento de uma carreira. Sem embargo, se a tanto chega o juiz, é bem provável que o faça amparado pelo prestígio social das novas idéias, de que se torna arauto. Refleteria, de certa forma, os sentimentos da sociedade (CARBONNIER, Jean, Sociologie juridique, pág. 197) porque "escravo do direito vivo, e não de sua norma imperfeita e esclerosada", como se refere HENRY LEVY-BRUHL, (Sociologia do direito, p. 35), que não vê razões, todavia, para a preferência do subjetivismo judicial.

6.7 Decisões motivadas

O problema, porém, é insolúvel, já o reconhecera o mesmo autor, HENRI LEVY-BRUHL (ob. cit., p. 77). No entanto, a necessidade de motivar a decisão, se não o resolve, pelo menos o ameniza. Dir-se-ia que o próprio legislador, proclamando essa obrigatoriedade, e o juiz, ao cumpri-la à risca, contribuem enormemente para o que se poderia chamar de "acordo de cavalheiros", com enormes benefícios para o meio social. É que a motivação da sentença tem o condão de, precisamente, fazer desaparecer o subjetivismo, ao menos como tentativa. Tudo se processa como se uma força imparcial, superior e altaneira, estivesse a dirigir os passos do juiz.

É claro que, descoberto o princípio da norma geral, tende ele a prevalecer, em nome da segurança jurídica. Está longe o dia em que o intérprete há de sentir-se plenamente livre para impor sua exclusiva e única vontade. O tratamento igual para situações iguais exige-lhe um ponto externo de referência, ainda mais porque não pode competir, em face de suas limitações, com as soluções previamente ditadas pela condensação de experiências em temas de extrema complexidade. O juiz não é um ser à parte do contexto social.

Até aí, portanto, nada de extraordinário. Mas é forçoso reconhecer que a singularidade do caso concreto suscita, não raro, sérias interrogações, dúvidas fundadas, conflitos de valores. Não basta, quando possível, apreender mecanicamente o que foi por terceiros estatuído. O exame das conseqüências é tarefa que não escapa ao mais bisonho dos aplicadores das leis. E essas conseqüências são avaliadas, em regra, de conformidade com os padrões vigentes, por sua vez enfocados segundo uma ótica mais ou menos pessoal.

Em outras palavras: arbítrio e subjetivismo judiciários são expressões que, se podem ser combatidas no plano das idéias, obtendo a contestação forte adesão emotiva, não deixam, todavia, de alcançar respaldo na realidade fenomênica. A posição contestatória vale somente por seu conteúdo retórico, o que já se constitui, em si e por si, numa das mais importantes conquistas da ideologia político-jurídica.

Daí o acerto da explicitação das motivações da sentença. E é justamente quando elas conflitam com as diretrizes legais que se percebe, com nitidez, o caráter problemático do direito contencioso: isto é, o prevalecimento da solução tópica, nem sempre conflitante, por sinal, com as pretensões sistemáticas. Os argumentos invocados viriam então cobrir com o manto da razoabilidade o que poderia tomar outro rumo se se ficasse limitado às injunções de esquemas rígidos, inflexíveis.

Em suma, é pouco, muito pouco, decidir com a letra da lei, com o desdobramento de seu espírito, e principalmente contra ela. É verdade que sua menção expressa, desacompanhada de maiores considerações, se encontra na vida forense com certa abundância, tamanho é o volume das demandas. Mas permanece o significado: aceitação de suas premissas e conseqüências práticas. Na última hipótese, porém, e até mesmo na hipótese intermediária (de contornos tão fugidios), há que se impor um esforço incomum. E como se trata de convencer despe-se o juiz de preconceitos de ordem meramente subjetiva (age em tal sentido) para realçar o que lhe parece traduzir, objetivamente, a solução correta, compatível com as circunstâncias e as escalas de valores correspondentes. Confrontadas as várias possibilidades, muitas delas em trilhas opostas, acaba vencedora aquela que parece ligar-se a um posicionamento considerado mais razoável, o que não elimina a dose de aceitabilidade da outra solução igualmente imaginada, mas deixada de lado, por inferior.

O fenômeno é particularmente dramático na área criminal, em que a carência de soluções legais intermediárias (abstraídos os recursos inventivos do magistrado) impõe o radicalismo de uma absolvição ou condenação. A Lei 6.416, de 24/5/77, representou nesse aspecto uma certa conquista.

Capítulo 7

7.1. A importância prática do subjetivismo judicial 7.2. Furto e venda da coisa furtada 7.3. Homicídio qualificado-privilegiado 7.4. Absorção do crime-meio 7.5. Liberdade judicial

7.1. A importância prática do subjetivismo judicial

Fizemos referência, linhas atrás, ao posicionamento de HENRY LEVY-BRUHL, na discussão sobre o subjetivismo judiciário. A supressão dos textos "seria um remédio pior do que o mal, pois o juiz, privado do freio que é o texto legal, seria levado a estatuir segundo suas convicções políticas, filosóficas ou religiosas, e o mesmo litígio estaria sujeito a ter uma solução diferente de acordo com o tribunal que o ponderasse". A experiência do passado, as exigências de segurança jurídica e o caráter democrático da norma legislativa afastavam qualquer dúvida quanto à necessidade de "que o juiz permaneça servidor da lei". Ressalva, porém, a faculdade de temperar-lhe o rigor com uma grande liberdade de interpretação (LEVY-BRUHL, Henry, ob. cit., p. 77/78).

Para E. S. DE LA MARNIÈRE, é ao jurista, "em todas as funções às quais ele pode ser chamado, que cabe não somente agir de sorte que a regra jurídica exata, lógica e objetivamente determinada, receba aplicação em cada circunstância, de modo que seja assegurada a previsibilidade da solução de todo litígio, donde uma real segurança e a liberdade do homem, mas também que as partes tenham plena consciência dessa segurança, da preeminência absoluta da lei, no sentido mais elevado do termo, da ausência de todo arbítrio da parte daqueles que terão de decidir ou fazer-lhes aplicação, de que esta última não depende em nada, a qualquer título que seja, da pretendida ou mesmo real influência de que possa dispor seu adversário, fosse ele o próprio Estado, por motivos de ordem política, ou de ordem econômica ou de ordem social" (Eléments de méthodologie juridique, p. 201/202).

É a justiça do computador, previamente alimentado... pela sabedoria divina?

Resta saber se o juiz aceita esse jogo mecanicista. Resta indagar se o juiz, mesmo diante de texto expresso, não estatui segundo suas convicções políticas, filosóficas ou religiosas. Quase sempre no bom sentido, parece que o faz, principalmente em face dos insolúveis problemas de interpretação. Por exemplo, "em mais de trinta anos de vigência do CP não se conseguiu harmonia de interpretação jurisprudencial a respeito da reincidência entre furto e roubo, se genérica ou específica", afirma DAMÁSIO E. DE JESUS (Direito penal, vol. 1, p. 534). A explicação do fato reside também na "extrema severidade para com o delinqüente" (idem, ibidem) que representava a hipótese de reincidência específica.

Inevitável, pois, a parcela de contribuição subjetiva.

7.2. Furto e venda da coisa furtada

Infindável a enumeração de outros exemplos.

Vejamos:

A venda, através de documentos "frios" da coisa furtada, não configura o crime de estelionato, traduzindo tal venda simples complemento do furto, sendo por este absorvido (Jurisprudência Catarinense, Ap. Crim. nº 12.506, da Comarca de Campos Novos. Des. Marcílio Medeiros, Relator. 1973, vol. 2, p. 356).

Tal decisão é, de certa forma, banal. Nada tem de surpreendente. Mas se vem a ser lembrada é porque significa "uma justa preocupação: a louvável intenção de suavizar a aspereza das normas sobre o concurso de delitos (...). Força é reconhecer, então, que a ocorrência de um só crime, furto ou estelionato, o que não nos parece doutrinariamente correto, tem aceitação na Jurisprudência sob a inspiração de princípios de Política Criminal, no sentido de suavizar a aplicação da pena" (JESUS, Damásio,ob. cit., p. 113/114). É a opinião, também, de MAGALHÃES NORONHA (Direito penal, v.2,1963,p. 283).

Mais uma vez, portanto, a "política criminal", elevada à categoria de princípio geral superior, concorre para que seja sumariamente desconhecida a claríssima regra do concurso material de crimes (Código Penal, art. 51). Alega-se que "subtrair, para proveito próprio, inclui a disposição subseqüente", tenha ou não, esta última, tipicidade criminosa e seja executada, quem sabe, meses ou anos depois (Jurisprudência Catarinense, Ap. Crim. nº 12.506, cit,. pág. 356). É a saída artificial, perfeitamente compreensível, com largo apoio doutrinário, para quem se recusa, eventualmente, a cometer uma iniqüidade. Nosso Código Penal, aliás, concentra o seu rigor na classe dos delinqüentes contra o patrimônio, reservando especial predileção para com o ladrão comum. Não é fácil encontrar quem faça coro a tanta má vontade.

7.3. Homicídio qualificado-privilegiado

Em matéria de concurso aparente de normas nosso Tribunal encontrou, certa feita, o caminho moderado do meio-termo, diante de um homicídio qualificado pela traição, cometido, entretanto, por motivo de relevante valor social. Fixou a pena nos limites de 12 a 30 anos e, depois, sem o menor problema, reduziu-a de um quarto, com base no § 1º do art. 121 (Jurisprudência do TJSC, Ap. Crim. nº 10.874, da Comarca de Santa Cecília. Des. Marcílio Medeiros, Relator. 1969, p. 597/598). Não se fala, em nenhum momento, em política criminal. Ao que parece, no entanto, o espírito do rei Salomão baixou à Terra, à semelhança do que teria sucedido quando se aplicou ao furto qualificado a regra do § 2º do art. 155.

7.4. Absorção do crime-meio

Ainda dentro do tema:

Peculato e falsidade ideológica. Absorção do crime menor pelo mais grave. Sentença condenatória reformada, em parte. Se as declarações falsas em documentos foram inseridas para ensejar a subtração dos dinheiros públicos, há a absorção da falsidade pelo peculato (...). É que a falsidade ideológica constituiu, na espécie, precisamente, o expediente fraudulento usado para a subtração do numerário público, fim objetivado pelos apenados (Jurisprudência do TJSC, Ap. Crim. n.º 11.587, da Comarca de Capinzal. Des. Rubem Costa, Relator. 1972, vol. 2, p. 1246/1247).

Estelionato – Delito de falsidade – absorção do crime-meio – Nulidades repelidas – Condenação. O uso do papel falso ou falsificado para obter de outrem a entrega de dinheiro etc. é estelionato, absorvido o falsum (...). O delito de falsidade – in casu materializado na procuração falsificada – que permitiu o recebimento do dinheiro, foi o meio para atingir o estelionato. É por este absorvido. É conhecida a controvérsia relativa ao concurso entre o crime de falsidade documental e o crime patrimonial, quando o falsum é o meio para a obtenção da vantagem. Mas o Pleno do Supremo Tribunal Federal declarou a inexistência de concurso de crimes, proclamando tão só a existência do delito-fim – estelionato (R.T.J., vol 52/182) (Jurisprudência do TJSC, Ap. Crim. n.º 11.587, da Comarca de Florianópolis. Des. Eduardo Luz, Relator. 1972 vol. 2, p. 1298/1299).

Não pretendemos reavivar os debates. Interessa-nos somente, nesta passagem, sublinhar o que foi dito: absorção do crime menor pelo mais grave. É de imaginar-se que assim também tenha sido considerada a falsificação documental a que alude o segundo aresto, isto é, um delito menor em relação ao estelionato.

E se a hipótese fosse inversa? Com mais precisão: e se o delito-meio fosse mais grave do que o delito-fim? Os que têm mentalidade lógica se apressariam em responder que seria inconcebível a mesma orientação. Ficariam talvez estarrecidos com estes venerandos acórdãos:

Falsificação de documento público e subseqüente prática de estelionato com o uso do falso. Absorção do primeiro crime que só serviu para obtenção da vantagem patrimonial que era o fim do agente (estelionato) (Jurisprudência Catarinense, Ap. Crim. n.º 13.000, da Comarca de de Dionísio Cerqueira. Des. Ivo Sell, Relator 1976, vol. 11/12, p. 458).

Falsificação de documento público e subseqüente prática de estelionato com o uso do falso. Absorção do primeiro crime pelo segundo, porque a prática da falsificação era indispensável para o estelionato que era o crime-fim do agente (Jurisprudência Catarinense, Ap. Crim. n.º 13.781, da Comarca de São Miguel do Oeste. Des. João de Borba, Relator. 1976, vol. 14, p. 387).

É que a falsificação de documento público, ideológica ou material, tem penas mais elevadas que o estelionato, além de não conhecer formas privilegiadas...

Fenômeno curioso: os fatos geram a regra com eles compatível –absorção do delito-fim (mais grave) pelo delito-meio (menos grave) – e esta como que deles se desliga para, na volta, com mais autonomia, abranger hipóteses bem mais amplas. Confessa-o a própria Eg. Segunda Câmara Criminal:

(...) esta Egrégia Câmara (Ap. Criminal 13.000, de Dionísio Cerqueira, de 3.6.76; e 13.781, de São Miguel do Oeste, de 23.9.76) já assentou que no concurso de crime de falso com o de estelionato, em que a falsidade funcione como crime-meio, se deva reconhecer a prevalência do crime-fim, sem se ater ao problema de qual seria o crime a que a lei comina pena maior (Jurisprudência Catarinense, Ap. Crim. n.º 14.258, da Comarca da Capital. Des. João de Borba, Relator. 1977, vol. 15/16, p. 428/429).

Não custa repetir: "sem se ater ao problema de qual seria o crime a que a lei comina pena maior".

7.5. Liberdade judicial

Conclusão: "Dá-me uma regra, não importa qual seja, e eu farei um julgamento". Dir-se-ia que na mente do julgador, quando preocupado com a valoração dos fatos, e desde que o permitam as circunstâncias (o sentimento da própria liberdade de ação), a última coisa que pesa é a pretensa imposição de uma norma geral pré-estabelecida. Esta só tende a prevalecer se o intérprete concorda com ela (concordância em termos, por não lhe ocorrer outra melhor ou em razão das condições materiais que tem diante de si) ou se sente psicologicamente constrangido a dar-lhe execução. Essa liberdade de ação, a que nos referimos, aumenta à medida que o texto se imobiliza no tempo. O detalhe não invalida – bem ao reverso – a receptividade de novas idéias, disseminadas no meio social, com realce, é óbvio, para aquelas especificamente relacionadas com o mundo vivencial e funcional dos juristas.

7.6. Escolas de direito.

Por outro lado, e em síntese: dá para imaginar um sistema jurídico formalizado, tomando-se a lei como coordenadas, mas é ilusório pensar que surta, ou possa surtir, sequer a metade dos seus efeitos. Por isso mesmo são dignas de encômio, porque bem mais realistas, as academias de direito que, sem prejuízo de uma orientação básica, teórico-dogmática, aproximam professores e alunos dos volumes de jurisprudência. Vamos mais adiante: escolas que não se contentam com a simples formação jurídica, alimentada de si mesma, como que suspensa no ar. Escolas que, sabendo da inserção do direito num contexto mais amplo, não constroem diques nem fecham comportas. Microscópio e telescópio podem viver em harmonia. Diríamos melhor, se impossível a conciliação: ao aluno, a floresta; ao profissional, as árvores.

Capítulo 8

8.1. O exemplo clássico do famulato. 8.2. A imagem distorcida do furto doméstico. 8.3. A doutrina de Hoeppner Dutra 8.4. Persistência da posição jurídica. 8.5. A reação jurisprudencial

1. O exemplo clássico do famulato

Já expressamos nossa opinião de que o Código Penal de 1940 concentrou o seu rigor contra os autores de crimes patrimoniais, com especial atenção para com os que cometem furtos. Coerentemente, estendeu esse rigor a certos crimes contra a administração pública de efeitos lesivos ao patrimônio, ou, simplesmente, reveladores de cobiça material.

Substancial alteração dos limites apenativos haveria, por exemplo, no furto cometido com abuso de confiança (art. 155 § 4º, II). "Trata-se de circunstância subjetiva, reveladora de maior periculosidade do agente que não só furta, mas viola a confiança nele depositada", comenta MAGALHÃES NORONHA (Direito penal, vol. 2, 1963, p. 297). E logo viria o exemplo, que se tornara clássico: "O criado que fica em casa, na ausência do patrão, e subtrai objetos que aí se encontram, furta com abuso de confiança. .." (idem, ibidem).

Prelecionava NÉLSON HUNGRIA: "O caso típico é o do chamado famulato (próprio ou impróprio): o empregado doméstico ou qualquer outro locador de serviço (permanente ou acidental) subtrai objeto existente no local de trabalho" (Comentários ao código penal, vol. 7, p. 40).

Também BENTO DE FARIA: "Tal se verifica no delito praticado pelo criado, que tem a entrada livre nas dependências da casa, pela pessoa encarregada de guardar a coisa, etc." (Código penal brasileiro comentado, vol. 5, p. 24).

HELENO FRAGOSO participava do consenso: "É o caso do famulato (furto praticado por empregado), ou de alguém que se valha de relações de amizade ou de uma situação de confiança, para mais facilmente subtrair a coisa alheia" (Lições de direito penal, vol. 1, p. 246).

8.2. A imagem distorcida do furto doméstico

Não vemos, em regra, no furto doméstico o menor sinal de periculosidade. O quadro circunstancial que o caracteriza conduz exatamente a uma conclusão oposta. A consciência, como classe, da própria inferioridade econômico-social, evidenciada pelo contraste com os bens do patrão e pelo papel que se lhe reserva no âmbito restrito de suas funções corrói, com extrema facilidade, os freios inibitórios do empregado doméstico. O contato diário com dinheiro e objetos de valor que, por ironia ou fatalidade do destino, não lhe pertencem, constitui o pano de fundo da superveniente convicção de que pouca diferença fará, a quem tem muito, a perda eventual de algumas fatias.

Portanto, enquanto o deslize permanecer aí, na linha de ofensa aos bens patrimoniais, não há como reconhecer-lhe maior gravidade para, em conseqüência, reproduzi-lo em texto de lei com severas ameaças. Sua inutilidade se aliaria a uma flagrante injustiça, pouco importando se existiu ou havia motivos para existir confiança.

Conviria, pois, de uma vez por todas, eliminar essa imagem negativa acerca do furto doméstico deixada pelos melhores de nossos doutrinadores, sem que, obviamente, nenhuma culpa tenham em cartório. Trata-se de mero trabalho interpretativo, e de uma honestidade tão palpável que se chegava a afirmar, implicitamente, em total fidelidade à orientação do Código, desaparecer a figura se se tornasse evidente a maior confiança do patrão, revelada pela prévia entrega da coisa ao empregado. Não haveria mais furto, e sim apropriação indébita, de pena de reclusão reduzida à metade (FRAGOSO, H.C., ob. cit., p. 246/247; HUNGRIA, N., ob.cit., p. 40; NORONHA, E.M. ob.cit., p. 297; FARIA, B. de, ob. cit., p. 88 e 92/93).

Concretamente: se alguém, por um motivo qualquer, confiasse suas jóias à empregada doméstica, para que as guardasse em seu quarto, deixando o restante de seus bens como sempre os deixara, estaria concorrendo – é a lei! – para que a subtração de alguma quinquilharia representasse, além da multa, uma responsabilidade criminal de 2 a 8 anos de reclusão, enquanto a apropriação das jóias estaria cotada a 1 a 4 anos de reclusão, além de multa bem mais leve.

8.3. A doutrina de Hoeppner Dutra

Essa delimitação do furto com abuso de confiança, com tanta facilidade relacionado ao furto doméstico, e empregatício, não haveria de ficar assim, aceita incondicionalmente, sem uma análise mais aprofundada, capaz de levar a distinções que retratam a evolução do fenômeno jurídico.

Válida, pois, a tentativa de HOEPPNER DUTRA, no âmbito doutrinário, de restringir o campo de aplicação do dispositivo. A severidade da punição era tão clara que quanto mais gente escapasse, melhor. Desta feita, contudo, não mais haveria necessidade de expedientes ficcionistas. Sua posição, ao contrário, tem até maior embasamento legal. Não exige a lei abuso de confiança? Pois então a primeira coisa a fazer no caso concreto é verificar a sua efetiva ocorrência. Esta não poderia ser presumida por preconceitos em nenhum momento enumerados no texto normativo. É um perigo afirmar a existência de confiança em relações de domesticidade, de emprego etc., porque uma coisa não implica a outra, necessariamente. Trata-se de "circunstância de ordem subjetiva". A confiança constitui "um liame particular entre duas pessoas", decorre "de estado particular de fidelidade" (O furto e o roubo, p. 190/191).

8.4. Persistência da posição crítica

Sem embargo, continuamos a não vislumbrar a menor razão, qualquer que seja o enfoque (censura moral, periculosidade, utilidade social etc.) para se apenar com severidade dobrada o furto cometido com abuso de confiança. É até sustentável o ponto de vista de maior reprovabilidade (maior periculosidade, maior nocividade social etc.) do furto praticado às pressas, nos primeiros dias de relação empregatícia. Denotaria, pelo menos, uma predisposição delituosa. Revelaria uma personalidade que se antecipa aos efeitos deletérios de uma situação vivencial sumariamente amputada. Criminalidade precoce, ou, então, forjada em emprego anterior. Confiança ou desconfiança da vítima são pormenores que não podem afetar, em princípio, o grau de responsabilidade criminal. Se assim não fosse deveriam ser enforcados os filhos adultos que furtam de seus pais. O próprio legislador, aliás, acabou entrando em contradição, ao retirar do âmbito punitivo do furto qualificado, sem criar uma figura equivalente, hipóteses flagrantes de incondicional confiança. A propósito, estelionato e apropriação indébita são crimes que só se configuram, na maioria das vezes, porque existe confiança da vítima.

Ambos mereceram, todavia, melhor tratamento por parte do legislador. Quem poderá negar que este não se deixou impressionar pelo status de seus protagonistas, uma vez que não primou pela coerência? Quem poderá negar que o legislador jamais se imagina na pele do ladrão, a quem abomina, pela conotação de aviltamento sócio-intelectual, mas aceita, de certo modo, consciente ou inconscientemente, a imagem refinada do estelionatário e figuras similares? O estelionatário usa roupas finas, tem modos delicados e é capaz de conviver em altas rodas. O ladrão comum pertence à ralé, à classe dos miseráveis. Anda mal vestido e é semi-analfabeto. Assim, se o "golpe" do primeiro atingiu um teto elevadíssimo mas, descoberto, redunda em nenhum prejuízo para a vítima, o juiz pode substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços, ou aplicar somente a pena de multa (não se trata de matéria pacífica). O mesmo não ocorre com o segundo, nos termos da lei. Benefício dessa natureza é limitado pelo valor – pequeno – da coisa subtraída.

O estelionatário pode convidar um comparsa, para ajudá-lo na empreitada. O delito permanece o mesmo. Se o ladrão comum o fizer. .. furto qualificado!

O ladrão comum é rude e rústico. É capaz de destruir ou romper obstáculo à subtração da coisa. O estelionatário não passa de um cavalheiro: os obstáculos que rompe ou destrói (a desconfiança, a defesa psicológica da vítima) pertencem a um nível imaterial, bem mais elevado, portanto.

O ladrão comum é capaz de servir-se de chave falsa, que os intérpretes zelosos logo equiparam, em certas circunstâncias, à verdadeira.

O estelionatário prefere os ardis, as encenações, os artifícios, tudo isso intrinsecamente falso, é verdade, mas de uma beleza, uma capacidade inventiva merecedora, sem dúvida, de uma certa reverência.

O ladrão comum pode também, eventualmente, imitar o estelionatário, furtando com fraude. Nunca, porém, chegará aos pés deste. Uma sutil distinção legal o coloca em seu devido lugar: não lhe dá promoção e, ainda por cima, acena-lhe com as penas do furto qualificado.

8.5. A reação jurisprudencial

A lei já vem pronta. Até onde é digerida, sem sinais de rejeição, é questão difícil de esclarecer. Sabe-se apenas que conhecidos os sintomas, os efeitos, porventura contraproducentes, se tende a tratá-la com reservas. Não dando muito na vista, em nome dos interesses sociais, pode-se negar-lhe aplicação. Uma das técnicas é readquirir a consciência do poder decisório e, desconhecendo os argumentos de autoridade, redefinir os termos incomodativos. Escreveu LUIS ALBERTO WARAT: "mediante a operação de redefinição o julgador poderá efetuar interessantes deslocamentos de sentido. Eles determinam ampliações ou restrições no campo extensional, que provocarão na zona excluída ou incorporada uma alteração do signo deôntico que até então lhe correspondia" (El derecho y su lenguaje, p. 171).

É processo que se harmoniza com o desejo de adequação ideológica. Esta se produz, por exemplo, "aproveitando-se a ambigüidade por anfibologia semântica que apresentam muitos dos termos das normas gerais, que só podem carregar-se de significação através de um juízo de valoração. Os termos como "maliciosamente", "objeto obsceno", "ânimo lascivo", "abusar desonestamente" necessitarão sempre de uma definição estipulativa. Se o juiz não definisse esses termos em sua sentença, muito provavelmente deixaria a impressão de haver produzido uma decisão arbitrária" (ob. cit., p. 136/137).

Foi nessa base que decidiu a Câmara Criminal de Santa Catarina, contando já a seu favor com importantes precedentes de outras Cortes:

Não é simples relação empregatícia que configura a qualificativa do abuso de confiança (Jurisprudência do TJSC, Ap. Crim. nº 11.446, da Comarca de Joinville. Des. Trompowsky Taulois, Relator. 1971, vol. 2, p. 814).

Não se justifica, realmente, no caso, o acolhimento das qualificativas. (...) a outra, vez que simples vínculo empregatício (balconista), por si só, não significa tenha havido abuso de confiança (Jurisprudência do TJSC, Ap. Crim. nº 11.281, da Comarca de Florianópolis. Des. Rubem Costa, Relator. 1971, vol. 2, p. 858).

Vê-se que também no direito nem tudo está perdido, quando resta uma esperança. É claro que ainda haverá algum processo em que a vítima vai jurar por todos os santos que confiava até demais no acusado. Mas o juiz lhe responderá que é pouco, para uma prova robusta. E repetirá o refrão: "Não é a simples relação empregatícia. .." É o que fará. Provavelmente o fará. Convém que o faça.

Capítulo 9

9.1. Concurso material de furtos. 9.2 Corrupção ativa e corrupção passiva. 9.3. Ausência de prova da co-autoria no furto.

9.1. Concurso material de furtos

De conformidade com o disposto no artigo 386 do Código de Processo Penal, o juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que reconheça: I – estar provada a inexistência do fato; II – não haver prova da existência do fato; III – não constituir o fato infração penal; IV – não haver prova de ter o réu concorrido para a infração penal; V – existir circunstância que exclua o crime ou isente o réu de pena (arts. 17, 18, 19, 22 e 24, § 1º, do Código Penal); VI – não existir prova suficiente para a condenação.

Eis aí, presenteada pelo legislador, a mais poderosa arma de que dispõe o magistrado para uma eventual decisão contra legem, em benefício do réu. O freio desempenhado pela Superior Instância não modifica a situação, pois também ela faz uso do artifício, divergindo do Juízo a quo, quando o entende recomendável.

Dos itens apontados merece realce o nº VI – não existir prova suficiente para a condenação.

Vejamos alguns casos:

Por sentença que transitou em julgado, o suplicante foi condenado a cumprir pena de dez anos de reclusão e multa de NCr$ 5,00, como incurso dez (10) vezes no art. 155, do Código Penal (...) A douta Procuradoria Geral opinou no sentido de ser deferido o pedido, para fixação da pena em seis (6)anos de reclusão, visto a hipótese configurar o crime continuado e não o concurso material (Jurisprudência do TJSC, Revisão Criminal nº 739, da Comarca de Tubarão. Des. Rubem Costa, Relator. 1968, p. 162).

Como decidiu, na revisão criminal, o Eg. Tribunal de Justiça? Não vendo caracterizado o crime continuado, chegou, no entanto, por outras vias, à pretendida redução de pena: ausência de prova quanto a 4 delitos.

Juízo a quo e Procuradoria haviam enxergado prova suficiente dos 10 furtos. Com a diferença de que esta procurou amenizar a situação do revisando, cuja pena de 10 anos traduzia, sem dúvida, incompreensível rigorismo. Propôs o crime continuado e a pena correspondente: 6 anos. Considerando justa a nova apenação, mas não aceitando, por incabível, a tese do crime continuado, a Egrégia Corte conseguiu chegar exatamente até ela, por intermédio da clássica incerteza da materialidade alusiva a alguns delitos.

Não afirmamos, categoricamente, pois não dispomos de elementos para tanto, ter havido uma ciente e voluntária decisão contra legem. As circunstâncias do caso, entretanto, (apenação elevadíssima, a sugestão da Procuradoria, a coincidência – por outros caminhos – da solução final etc.) permitem, ao menos, uma leve suspeita, a qual, aliás, mesmo transformada em certeza, em nada alteraria o juízo de razoabilidade do veredicto.

9.2. Corrupção ativa e corrupção passiva

O seguinte aresto merece transcrição integral:

Corrupção ativa e passiva – Prova duvidosa – Absolvição decretada. Insegura a tipificação do delito, mal esclarecidas as circunstâncias da ocorrência, não se há de condenar os réus, pessoas humildes, de ótimos antecedentes, nas severas sanções dos arts. 317, § 1º e 333, parágrafo único, do Código Penal. (...) Acordam, em Câmara Criminal, por maioria de votos, dar provimento para absolver os réus. Custas ex-lege. D.S., G.B.C. e A.D.B. foram processados na comarca de Ponte Serrada, aquele como incurso no art. 317, § 1º, do Código Penal, os demais no art. 333, parágrafo único, do mesmo diploma, sendo a final condenados – D a um ano, seis meses e seis dias de reclusão, os co-réus a um ano e quatro meses de reclusão, todos também em pena pecuniária. Os réus apelaram, opinando, nesta Instância Superior, a douta Procuradoria Geral pelo improvimento. São dois os fatos de que trata o presente processo. Com respeito ao primeiro, afirma-se que o recorrente D.S., soldado do destacamento policial de Ponte Serrada, à época servindo no município de Vargeão, recebeu de C., para permitir que seu filho menor de dezoito anos dirigisse automóvel, como preço, um leitão. De outra parte, quanto ao segundo, alega-se o seguinte: A.B. dirigia sem ter em ordem a documentação do carro. Surpreendido por D., foi por este advertido da infração e, sem que o multasse, marcou o prazo de quinze dias para providenciar os papéis, liberando em seguida o veículo. Antes de prosseguir, em resposta à pergunta de se não queria gratificá-lo, B. deu ao miliciano cr$ 10,00. D. declara que recebeu o leitão como presente, não em troca de permissão para que o menor continuasse a guiar. Nenhuma determinação recebera do juiz para não admitir que menores dirigissem; quando tal ordem recebeu, logo tratou de a cumprir. A versão de C., mais positiva, apresenta, todavia, imprecisões, não permitindo certeza de qual a verdade do caso. O mesmo acontece no outro episódio. Constatando a irregularidade, o soldado concedeu a B. quinze dias para acertar os documentos, tolerância de certo modo explicável tendo em vista a localidade em que o caso ocorreu, lá nos confins de Vargeão, onde as distâncias são grandes e demoradas as providências de ordem burocrática. Em reconhecimento, talvez, não por suborno, quando já liberado o carro, deu-lhe B. a quantia de Cr$ 10,00. Os ótimos antecedentes dos réus, o semi-analfabetismo dos mesmos, a rusticidade de C. e B. aumentam as dúvidas. Insegura a configuração dos ilícitos, não se há de castigá-los por tão pouco, com tão severas sanções (Jurisprudência Catarinense, Ap. Crim. nº 13.076, da Comarca de Ponte Serrada. Des. Marcílio Medeiros, Relator. 1975, vol. 9/10, pág. 532).

Esta segunda hipótese já se apresenta com maior dosagem de suspeita de engenhoso artifício para, mantidas as aparências, se chegar a uma decisão contra legem, detalhe que, da mesma forma, não lhe roubaria o sentido de aceitabilidade. É que, a par da condenação na Comarca, foi ela considerada correta no parecer da douta Procuradoria Geral e no voto de ilustre Desembargador, que ficou vencido. As razões que apresentou em separado traduzem uma versão bem mais compatível com as respectivas adequações típicas.

A leitura do acórdão permite vislumbrar os fatores que levaram a Colenda Câmara Criminal a prover o recurso nos termos do art. 386, VI, do C.P.P: 1) os réus eram pessoas humildes, de ótimos antecedentes; rústicos e semi-analfabetos 2) as sanções eram severas em relação ao pouco que fizeram. Tendência, pois, de minimizar a validade das provas produzidas, o que viria evitar uma condenação considerada injusta. O summum jus, summa injuria se combina, com perfeição, a esse rigorismo na exigência de prova suficiente.

9.3. Ausência de prova da co-autoria no furto

Inteligente, para os fins pretendidos, a saída encontrada para um caso de condenação por furto qualificado pela co-autoria, com réus primários e de conseqüências mínimas. A manifestação da douta Procuradoria no sentido do improvimento do recurso não impediu se descobrisse que, "muito embora esclarecido que ambos os acusados cometeram subtração, não ficou evidenciado que eles tivessem agido mediante concurso" (Jurisprudência Catarinense, Ap. Crim. nº 12.732, da Comarca de Xanxerê. Des. Ary Oliveira, Relator. 1975, vol. 9/10, p. 579).

Ficção por desclassificação dos fatos? Não temos a respeito resposta definitiva. É bem provável que haja ocorrido, para sorte dos réus e prevalecimento de uma justiça consentânea com o real significado ético-social de suas condutas.


PARTE II

1.1.. O princípio da separação dos poderes. 1.2. Lei e ciência. 1.3. Retorno às origens greco-romanas.

1.1. O princípio da separação dos poderes

A "separação de poderes", essencialmente, segundo MANOEL GONÇALVES, "consiste em distinguir três funções estatais – legislação, administração e jurisdição – e atribuí-las a três órgãos, ou grupos de órgãos, reciprocamente autônomos, que as exercerão com exclusividade, ou ao menos preponderantemente" (Curso de direito constitucional, p. 76). Ela é visível no regime presidencialista, onde à distinção de poderes "se soma sua independência" (idem, p. 80).

Pregada por MONTESQUIEU, que se inspirava na evolução constitucional inglesa – século XVII – tem merecido pouca atenção dos constitucionalistas pátrios no setor atinente às relações entre o Judiciário e o Legislativo. Concentram suas observações em torno deste último e do Executivo, "os dois poderes essencialmente políticos", na opinião de SAHID MALUF (Direito constitucional, p. 93).

PINTO FERREIRA, por exemplo, não chega a reservar um capítulo ao Poder Judiciário em seus preciosos Princípios gerais do direito constitucional moderno. Não bastasse isso, quando enfoca a separação dos poderes, se volta, de preferência, para os dois últimos: "De todas essas funções, pretende-se ser a legislação a mais importante no regime constitucional democrático, sobretudo no sistema da democracia clássica ou do Estado demo-liberal, motivo esse ocasionado pelo executivo, em face da experiência do antigo regime". Mais adiante: "As tendências mais recentes do constitucionalismo democrático e socialista, após a segunda guerra mundial de 1939 – 1945, vigentes nas novíssimas Constituições européias e asiáticas, assim como os novos rumos da democracia política norte-americana, procuram um equilíbrio pragmático entre os poderes executivo e legislativo, colimando agora a estruturação de um executivo forte, porém, legalizado e constitucional" (vol. 2, p. 120 e 121).

Para PAULO BONAVIDES, preocupado com "os novos poderes" (o poder partidário, grupos de interesses e de pressão, o poder militar, o poder burocrático, o poder das elites científicas, etc.) ( Ciência política, pág. 188) "a separação de poderes expirou desde muito como dogma da ciência. Foi dos mais valiosos instrumentos de que se serviu o liberalismo para conservar na sociedade seu esquema de organização do poder. Como arma dos conservadores, teve larga aplicação na salvaguarda de interesses individuais privilegiados pela ordem social" (idem, p. 162).

PONTES DE MIRANDA é mais explícito: "De posse da revolução, que se operava, a burguesia introduziu a técnica constitucional que lhe serviria, – a técnica que lhe permitisse, com os princípios vencedores (leis = vontade geral), dominar as massas. A eleição teria de organizar a Legislatura acima do povo. Seria o conjunto popular simples aparelho eleitoral. Entre a Constituição de 1793 e as outras o povo desceu de governante a governado. Mediatizado ele, o verdadeiro elaborador da lei foi o Parlamento. Tudo isso agradaria à burguesia e a Montesquieu. O Século XX evidenciou que também apraz aos grandes capitalistas, com o seu exército de parasitos na política e nas profissões" (Comentários à constituição de 1946, vol. 1, p. 526).

Sintetiza HAROLD LASKI: " (...) dada a natureza do Estado liberal, todas as questões tinham de ser referidas, em última instância, ao motivo essencial sobre o qual o Estado liberal assentava: o motivo de lucro" (O liberalismo europeu, p. 187). Nesse mister, sendo da natureza do homem procurar uma base ética para as idéias que o guiam na vida, a própria moralidade e a religião também teriam sido moldadas de maneira a servirem o Estado liberal (idem, p. 188).

1.2. Lei e ciência

Mas as leis – prossegue PONTES DE MIRANDA, abordando, incidentemente, detalhe que nos interessa – não são a única fonte do direito, das verdades jurídicas, cuja livre revelação, como meta, pertence à ciência: "Problema de feitura de leis é problema científico" (ob. cit., p. 528). Daí achar que "progressivamente se avança para a democratização dos processos de revelar o Direito, o que se fortalecerá com a investigação científica, que – no Direito, na Economia e na Sociologia, como na Física, na Química, na Biologia, e nas demais ciências – independe de corpos deliberantes que se tornariam supérfluo violento, subjetivo, da proclamação das verdades científicas. As Assembléias político-legislativas são correspondentes ao Estado do período que atravessamos. Modificam-se, aos poucos, com sensível perda do valor opinativo e do poder autoritário" (idem, p. 529).

Tem-se a impressão de que para o festejado jurisconsulto pátrio as várias ciências, por si sós, acabarão resolvendo um dia um problema que se eterniza: a descoberta e distribuição do direito-justiça. É como se a ciência alcançasse o misterioso poder de modificar o homem, e sempre para melhor. Este, então, é que seria, no final, manipulado pela sabedoria alcançada. Porque atualmente o que mais preocupa os homens de bem é o uso que dela fazem, ou possam vir a fazer, os responsáveis pelo destino da humanidade.

É claro que existem contestadores: "É inteiramente falso que tudo muda através da história: este dogma, tipicamente cientificista, vem do abuso de uma ciência histórica, que só percebe na história as mudanças, muito simplesmente porque nela só procura e releva as mudanças. A ilusão cientificista é que nada existe de permanente" (VILLEY, Michel. Philosophie du droit, p. 36).

O direito, aliás, é impensável sem o substrato de valores. Se costuma ser analisado como norma, por se tratar da parte mais visível, mormente para efeitos práticos, nem por isso perde seu contato com a realidade social, onde nasce e se desenvolve, ou se despe do que poderia ser chamado de seu espírito ou fundamento: o valor que o sustenta, que o legitima, que o informa ou justifica.

E, nessa área, as discussões são intermináveis, não parecendo que a ciência, isoladamente, tenha procuração ou carta branca para resolver, um dia, enigma tão fascinante. São palavras de BERTRAND RUSSEL: "Resta, no entanto, um vasto campo, tradicionalmente incluído na filosofia, em que os métodos científicos são inadequados, este campo inclui questões de valor decisivo; a ciência, por exemplo, não pode provar, por si só, que é mau sentir-se prazer em infligir sofrimento. Tudo o que se pode conhecer, pode ser conhecido por meio da ciência; mas as coisas que são, legitimamente, questões de sentimento, permanecem fora de seu domínio" (História da filosofia ocidental, vol. 4, p. 404/405).

Vem a calhar esta síntese de HENRIQUE STODIECK:

Assim esquematizados os problemas concernentes ao conhecimento jurídico, chegamos agora ao estudo dos problemas referentes à apreciação do justo. Como ponto de partida, podemos aceitar o critério, aceito por muitos autores, de que a reciprocidade é o fundamento do sentimento da justiça. Não só a reciprocidade nas relações civis e comerciais, em que a retribuição eqüitativa satisfaz ao que vende ou presta serviços, mas também a correspondência da pena ao crime praticado, tanto para o primitivo na vingança ou na lei do tabelião, como para o civilizado na pena proporcional à gravidade do crime praticado. Considera-se justo, portanto, a retribuição equivalente ao que se praticou ou cedeu. Se este princípio é universal, como o atestam os antropólogos, varia, no entanto, de acordo com as diversas sociedades e classes, a medida do que se considera equivalente. Indaga-se se essa relatividade não pode ser superada por um conhecimento objetivo de valores absolutos. Foi e ainda é este o objetivo das doutrinas do Direito Natural, que procuram descobrir normas universais que se devem conformar com a natureza. Se há autores que pretendem encontrar direitos que julgam valer para todos os homens, há outros que negam essa possibilidade. Kelsen, para somente citar um representante destes últimos, afirma que, em relação à questão do ordenamento justo das relações humanas, o conhecimento em nada progrediu desde a época em que o primeiro homem formulou a questão até as teorias mais elaboradas de nossos dias ("Problemas de filosofia do direito", Convenção coletiva do trabalho e outros ensaios, p. 72).

A possibilidade de uma justiça absoluta, com efeito, não passa para KELSEN de "um problema insolúvel para o conhecimento humano" (A justiça e o direito natural, p. 167). E adverte: "Deixados em apuros pelo relativismo sentem-se todos aqueles que não querem tomar sobre si esta responsabilidade, que desejam alijar a escolha pondo-a a cargo de Deus, da natureza ou da razão" (idem, p. 168).

1.3. Retorno às origens greco-romanas

Não é à toa que uma prestigiosa corrente de pensamento, espalhada pelo mundo inteiro, compreendendo o engodo de uma incondicional identificação do direito com os códigos e as leis, e longe de desprestigiar o avanço da ciência, vislumbra e acata "a revisão que ora se processa" como "uma tentativa de retornar às origens greco-romanas, em que o direito significava justiça e a Jurisprudência era a ciência e a técnica da solução razoável, prudencial, equilibrada e justa dos litígios sociais" (COELHO, L.Fernando, Introdução histórica à filosofia do direito, p. 127/128).

A grande maioria dos acórdãos analisados – do Tribunal de Justiça de Santa Catarina – retratou exatamente esse novo espírito, comprovando, ao lado de tantos outros arestos de âmbito universal, que a teoria é válida porque alicerçada na observação e análise da realidade fenomênica. Resta, sem embargo, o outro lado da medalha, cuja relevância não pode ser esquecida. Referimo-nos à conformidade dos demais arestos (salvo descuido nosso ou proposital omissão na "triagem", alusiva ao período 1968/1977) às linhas gerais ditadas pelo legislador, circunstância que, no entanto, não invalida as observações concomitantemente produzidas.

Nossa tese principal, aliás, não é a de que o julgador não cumpre a lei, e sim, que deixa de fazê-lo, e conscientemente, em determinadas situações. Poderia até proceder-se a uma pesquisa inversa: de casos em que o julgador observou a lei, sem que devesse assim agir, pelo contraste com os interesses sociais. Mas não conseguiria anular o sentido tópico da decisão jurídica, que não chega a ser visceralmente incompatível com a sistematicidade (REALE, Miguel, O direito como experiência, p. 137 e 274; PERELMAN, Chaïm, Logique juridique, p. 95). "O sistema – esclarece KARL LARENZ – não é nunca um sistema logicamente ‘fechado’ no sentido de que só exista nele um número completamente determinado e limitado de ‘lugares’ que pudessem ser ocupados pelos conceitos correspondentes, senão que está ‘aberto’ a novos fenômenos, é sempre modificável. Neste sentido, não é um sistema ‘rígido’, mas, em suma, semi-rígido, flexível" (Metodología de la ciencia del derecho, p. 377/378).


Capítulo 2

2.1. Descoberta ou criação do direito? 2.2. Arsenal de ambigüidades. 2.3. Papel da dogmática. 2.4. Códigos antigos. 2.5. Lenitivo psicológico e filosofia de vida. 2.6. Separação de poderes: nova dimensão. 2.7. Desacordo de atitudes.

2.1. Descoberta ou criação do direito?

"Hoje, preleciona MACHADO NETO, graças à crítica severa que contra a escola exegética levantaram todas as grandes teorias hermenêuticas, ainda que se conserve – por comodismo – a metáfora silogística de origem kantiana, o certo é que todos sabemos da função criadora da aplicação judicial" (Teoria da ciência jurídica, p. 189).

Sim, todos sabemos – ou quase todos – mas há os que se negam a aceitar a realidade, ou reconhecê-la de público. Inventam-se dezenas de soluções técnicas, procedimentos hermenêuticos; contrasta-se a letra com o espírito; fala-se em bem comum, em fins sociais; admite-se que o juiz, sem desvirtuar as feições da lei, deva "arredondar as suas arestas, e, sem torcer-lhe a direção, adaptar a rigidez do seu mandamento às anfractuosidades naturais de cada espécie", não podendo, todavia, "decidir contra legem" (FRANÇA, R. Limongi. O direito, a lei e a jurisprudência, p. 200 e 202).

Assim também ALÍPIO SILVEIRA. Escreveu precioso trabalho sobre o tema, intitulado Hermenêutica no direito brasileiro. Obra de fôlego, de paciente pesquisa, em que aceita, em síntese, que "o juiz, ao aplicar ou adaptar a norma ao caso concreto atenderá ao que pedem a idéia de justiça e a utilidade comum" (vol. 1, p. 69) e lembra, referindo-se à ficção, que "o juiz também lança mão de tais processos, quando o caso concreto o permite" (idem, p. 254). Nega, porém, possa afastar-se da lei (idem, p. 129 e 167), tendo o cuidado de esclarecer que o conceito de decisão contra legem não é nem claro nem intuitivo, inclusive porque as idéias fundamentais dos juristas das várias escolas e épocas oferecem alcance diverso a seu entendimento (idem, p. 189).

Segundo MÁRIO GUIMARÃES, "terá o magistrado em mente que o direito visa o bem estar do povo, o respeito às liberdades individuais, o progresso da nação, a paz social" (O juiz e a função jurisdicional, p. 331). Difícil, sem dúvida, conciliar tudo isso com a total subserviência à lei. Mas era exatamente o que ele pregava, quem sabe por nela vislumbrar, com exclusividade, todas essas virtudes: "Deverá o juiz obedecer à lei, ainda que dela discorde, ainda que lhe pareça injusta. É um constrangimento que o princípio da divisão dos poderes impõe ao aplicador. Seria o império da desordem se cada qual pudesse, a seu arbítrio, suspender a execução da norma votada pelos representantes da nação. Lembremo-nos, ainda uma vez, de que todo o poder vem do povo e que o povo cometeu aos membros da assembléia, e não a juízes, a tarefa de formular as regras jurídicas que o hão de governar. Admitir possa o magistrado tornar prevalecente a sua opinião, contra a exarada, por modo lúcido, no texto, fora superpor a sua vontade individual à da maioria parlamentar, nas democracias, ou a do ditador, nos regimes discricionários" (idem, p. 330/331)

Vê-se que, esquecido das premissas (o povo como fonte do poder) MÁRIO GUIMARÃES acabou enxertando os regimes ditatoriais. Disse ainda, mais adiante: "No trabalho de adaptação é que se desenvolve o esforço ciclópico do juiz. Deve o magistrado manter-se fiel à lei, procurando, todavia, sem destruí-la, ajustá-la aos fatos sociais" (idem, p. 332).

Ouçamos CARLOS MAXIMILIANO: "Em geral, a função do juiz, quanto aos textos, é dilatar, completar e compreender; porém não ─ alterar, corrigir, substituir. Pode melhorar o dispositivo, graças à interpretação larga e hábil; porém não ─ negar a lei, decidir o contrário do que a mesma estabelece" (Hermenêutica e aplicação do direito, p. 106/107). Não se recorre á eqüidade "senão para atenuar o rigor de um texto e o interpretar de modo compatível com o progresso e a solidariedade humana; jamais será a mesma invocada para se agir, ou decidir, contra prescrição positiva clara e precisa" (Idem, p. 215/216). Aqui e ali, todavia, aplaude JEAN CRUET (o juiz, "o artífice laborioso do Direito novo contra as fórmulas caducas do Direito tradicional"), os métodos teleológico e histórico-evolutivo ("o bom intérprete foi sempre o renovador insinuante, cauteloso, às vezes até inconsciente, do sentido das disposições escritas – o sociólogo do Direito") ao mesmo tempo em que subordina o direito – e daí a exegese da lei – aos princípios da moral, do senso ético de um povo em determinada época, e nega valor à interpretação que "conduz a injustiça flagrante, incoerências do legislador, contradição consigo mesmo, impossibilidades ou absurdos", devendo-se então "presumir que foram usadas expressões impróprias, inadequadas, e buscar um sentido eqüitativo, lógico e acorde com o sentir geral e o bem presente e futuro da comunidade" (idem, p. 205/206). E reconhece que vem prevalecendo o summum jus, summa injuria (idem, p. 209).

2.2. Arsenal de ambigüidades

Com esse arsenal de ambigüidades, com esse manancial de argumentos polivalentes, é fácil jurar fidelidade à lei: como é praxe, aliás, entre os nossos mais categorizados juristas. Não foi sem mais nem menos, conforme já ressaltamos, que ALÍPIO SILVEIRA cuidou de lembrar a imprecisão do conceito de decisão contra legem.

O próprio NÉLSON HUNGRIA, mestre dos mestres, com toda a sua luta contra os pandetistas do direito penal, contra os cálculos matemáticos que faziam perder de vista os pontos de partida da "mais humana de todas as disciplinas jurídicas", assinalados "na realidade concreta e palpitante do drama da vida e de seus protagonistas"; o próprio NÉLSON HUNGRIA, que verberava "o direito penal de ‘roupas feitas’, estandardizadas", "o absurdo de abranger a multifariedade da vida e do homem dentro de apriorismos inteiriços e estáticos"; que só admitia "o direito penal que penetre e compreenda, para poder tratá-la, a realidade de cada criminoso, no momento do seu crime, na sua vita anteacta, na sua psicologia, na sua índole, nas suas possibilidades de readaptação" ("Os pandetistas do direito penal", Comentários ao código penal, vol. 1, apêndice, p. 579 a 593), parecia não se dar conta de que toda essa pregação, aliada, por sinal, a tantas outras, de teor semelhante (p. 45 a 85), entrava em choque com a ideologia do Código Penal, com sua rígida estrutura, com os entraves da pena mínima – e, o que é mais surpreendente, com a doutrina, por ele esposada, da completude do ordenamento jurídico do ponto de vista do legislador.

É dele esta feliz passagem: "Longe de mim afirmar que o juiz não deva ilustrar-se, consultando a lição doutrinária e pondo-se em dia com a evolução jurídica; mas se ele se deixa seduzir demasiadamente pelo teorismo, vai dar no carrascal das subtilitates juris e das abstrações inanes, distanciando-se do solo firme dos fatos, para aplicar, não a autêntica justiça, que é sentimento em face da vida, mas um direito cerebrino e inumano; não o direito como ciência da vida social, mas o direito como ciência de lógica pura, divorciado da realidade humana; não a verdadeira justiça, que é função da alma voltada para o mundo, mas um direito postiço, arrebicado, sabendo a palha seca e cheirando a naftalina de biblioteca" (p. 57/58).

A autêntica justiça é sentimento em face da vida, é função da alma voltada para o mundo. ..

Só que, no final das contas, o sentimento era o sentimento do legislador; e o mundo, o mundo por ele prefigurado.

2.3. Papel da dogmática

Inevitáveis, pois, e precisamente porque sintonizavam com esse "outro lado" do inolvidável penalista, os habilidosos recursos de interpretação lógico-finalista, as redefinições de conceitos, a desqualificação de fatos. Importantíssimo, nesse mister, o papel da dogmática, como ressalva SANTIAGO NINO: "(...) a característica distintiva da dogmática é que, assim como no caso dos juízes, essa função de reconstrução do direito se realiza, não em forma aberta, senão em forma encoberta, utilizando um aparato conceitual retoricamente efetivo que cumpre a função de fazer aparecer as soluções originais que ela propõe como se derivassem de algum modo, às vezes misterioso, do direito positivo. Algumas dessas técnicas (...) cumprem, em geral, a importante missão de ajustar o direito a certos ideais racionais e axiológicos, ao mesmo tempo em que dão a sensação de preservar a segurança jurídica ao permitir sustentar que as soluções propostas não supõem modificação alguma do direito positivo, mas derivam implicitamente dele" (Notas de introducción al derecho. La ciencia del derecho y la interpretación jurídica, p. 26).

Noutra passagem: "... pressupondo a racionalidade do legislador, os juristas dogmáticos podem atribuir-lhe as soluções propostas por eles para adequar o direito a certos standards axiológicos vigentes, preencher suas lacunas, eliminar suas contradições, precisar seus termos vagos, prescindir das normas supérfluas etc., sem que apareçam como uma modificação da ordem jurídica positiva, senão como se se tratasse de uma descrição do direito vigente tal como genuinamente deve ter sido pensado pelo legislador. Esta técnica, por certo, não é empregada em forma cínica ou especulativa pelos juristas, mas, na maioria dos casos, com honestidade científica, obedecendo a hábitos teóricos herdados por tradição e cujos resultados aparecem como satisfatórios ao permitir compatibilizar o desejo de segurança jurídica com o de adequação da ordem jurídica a pautas de racionalidade e de justiça" (idem, p. 131).

Tudo isso se tornava mais nítido, no foro criminal, à medida que aumentava o sentimento de liberdade do julgador, proporcional à passagem dos anos, já que, nas palavras de MACHADO NETO, " toda época de recente codificação é idólatra da lei, que se apresenta no corpo dos códigos como algo completo e acabado" (ob. cit., p. 90).

Realizada a pesquisa no último decênio, não foi difícil encontrar os vivos sinais de abertura e inconformismo.

2.4. Códigos antigos

Esse recurso à ficção e a princípios gerais não escritos, conforme se poderia mesmo antever, ocorre com freqüência em países que relutam em adaptar a legislação às novas concepções ético-jurídicas. A Bélgica, por exemplo, com seu Código Penal de 1867, só veio a conhecer por via jurisprudencial (e doutrinária, certamente) institutos como os do crime continuado, estado de necessidade, legítima defesa como excludente genérica do crime (matéria controvertida, mormente em relação aos bens patrimoniais), erro invencível de fato e de direito. Escreve ROBERT LEGROS: "Enquanto a lei só prevê como causas de justificação a ordem legal da autoridade, a demência e a força maior, a corte de cassação decidiu várias vezes que estes casos são apenas aplicações de um princípio geral aplicável, por analogia, à coação moral, ao estado de necessidade, ao erro invencível, de direito e de fato" ("Considérations sur les lacunes et l’interprétation en droit pénal", Revue de droit pénal et de criminologie, out./ 1966, p. 21). No que tange às "excuses", isto é, às "circunstâncias previstas especialmente pela lei e que, sem suprimir a infração, acarretam seja a redução da pena, seja mesmo sua supressão" (Droit pénal, vol. 2, p. 430), viu-se o julgador na contingência de estendê-las a outras figuras delituosas, apesar de expressa proibição legal. Certas normas repressivas, por outro lado, deixaram simplesmente de sofrer aplicação.

Esclarece o mesmo Autor "que a extensão favorável ao acusado revela por vezes a existência de verdadeiros direitos naturais. Não de direitos vagamente inerentes à natureza humana, mas de direitos que o juiz reconhece precisamente em virtude dos princípios gerais que inspiram a interpretação extensiva. É assim que acontece de o juiz decidir contra legem, fazendo apelo a um princípio geral, aparecendo este, portanto, como superior à lei positiva, o que é a verdadeira característica do direito natural" (Revue de droit pénal e de criminologie, cit., p. 22).

Há mesmo os que afirmam não caber ao legislador limitar nem o domínio nem as condições de exercício das causas de inimputabilidade (menoridade, coação, doença mental). Como todo instrumento ou meio de defesa, pertencem ao direito natural. Tudo o que o legislador pode fazer é "lembrar-lhes a existência a fim de facilitar a tarefa dos defensores" (DOUCET, Jean-Paul. Précis de droit pénal général, p. 193).

Quaisquer que sejam as tentativas de fundamentação, o fato é que a jurisprudência reage à petrificação dos textos legais com interpretações adaptativas e, mesmo, com autonomia derrogatória.

2.5. Lenitivo psicológico e filosofia de vida.

O fiel cumprimento da lei não deixa de ser um posicionamento cômodo. Na maioria das vezes significa autêntico lenitivo psicológico porque se transfere a responsabilidade da decisão para um poder mais alto. Ainda assim não atiraremos pedras nos que, por formação, entendem ser este o mais caro de seus deveres. Ninguém está obrigado, seja a que pretexto for, a violar sua consciência, sua própria personalidade.

Todavia, a partir do momento em que o juiz se dá conta de que pode, em atenção aos interesses sociais, conciliar a lei com a eqüidade, e assim mesmo permanece inflexível, apegando-se com indiferença à solução estereotipada e inconseqüente, há que merecer uma certa censura. É que, neste caso, não se mostra sincero na opção, mas desperdiça a oportunidade que, a seus próprios olhos, se lhe oferecia para uma espécie de doação.

Eis aí um tema polêmico, profundo, controvertido. Por sua própria natureza pertence ao campo da filosofia ético-jurídica, transcendendo a esfera do direito normativo. Sem pretender explorá-lo, limitamo-nos a fazer o registro, quiçá como tentativa de ilustrar, por outras vias, o mito da separação dos poderes. É que, na prática, pouco importando os fatores que, lentamente, para eles contribuem, hão de refletir-se na sentença os valores últimos, fundamentais, de que o juiz é portador. Sem dúvida, também ele adota uma filosofia de vida, que não pode ser olvidada quando está em jogo a liberdade de seu semelhante. Até que ponto ela influi no veredicto, permissivo, como se sabe, dos mais variados recursos inventivos, é assunto que escapa à melhor das análises jurisprudenciais. O fato é que "a função judicial – nas palavras de RICARDO ENTELMAN – é fundamental em qualquer comunidade organizada. Deve, portanto, ter-se por finalidade não só que os juízes sejam maiores de idade e bons pais de família, mas também que conheçam e sejam claramente conscientes da natureza de sua função" ("La interpretación", Derecho al derecho, p. 95).

2.6. Separação de poderes: nova dimensão

Assim, observa DIEZ PICAZO, "quando o juiz e o intérprete deixam de ser os servidores de um legislador absoluto e, em virtude do princípio da divisão de poderes, atuam como órgãos independentes de um Estado democrático, sua função adquire um significado autônomo – administrar justiça – que, embora se realize em execução da lei, se desvincula de algum modo da ‘vontade do legislador’ " (Experiencias jurídicas y teoría del derecho, p. 246).

"Sua função adquire um significado autônomo". Quer dizer, cai por terra, como um castelo de cartas de baralho, toda a racionalidade, de cunho ideológico, da velha teoria da separação dos poderes. Esta, porém, permanece de pé, porque devidamente redimensionada.

Abandonemos por um momento a companhia dos juristas e ouçamos o que nos tem a dizer, a propósito do assunto, um especialista em lingüística, BERTIL MALMBERG: "Se observarmos a língua em sua relação com a sociedade e a cultura das quais é porta-voz, e considerarmos a conexão indissolúvel que a une ao mundo ideológico ou conceptual do que fala ou escreve, suas mudanças nos parecerão já conseqüência natural e inevitável das mudanças sociais e culturais, das modificações das classes sociais, das flutuações das opiniões e hábitos de pensamento, das crenças e avaliações que caracterizam o curso da história. Quando se modificam os conteúdos que hão de transmitir-se, modifica-se automaticamente a língua. Novos conceitos exigem palavras novas; novos fatos conferem às palavras antigas um conteúdo novo" (A língua e o homem, p. 155).

É possível, pois, conviver com as palavras com a maior naturalidade, porquanto adaptadas aos novos hábitos e conveniências. Pouco importa se, em outras épocas, era bem diversa sua carga semântica ou ideológica.

2.7. Desacordo de atitudes

No entendimento de GENARO CARRIÓ, a divergência entre os juristas que afirmam que "os juízes criam direito" e os que o negam não é propriamente um desacordo sobre o que fazem os juízes, nem se resume a uma disputa puramente verbal. Servindo-se de uma terminologia de Charles L. Stevenson, que distingue entre desacordos de crenças (relacionados com a forma como as coisas têm de ser fielmente descritas e relacionadas) e de atitudes (referentes à forma como as coisas têm de ser preferidas ou não preferidas, e, por isso, com a forma como elas hão de ser conformadas pelos esforços humanos), situa-a, substancialmente, nesta última. E explica: "Este desacordo de atitudes versa sobre duas coisas: a) sobre o que deveriam fazer os juízes; e b) sobre o que deveriam fazer os juristas ao teorizar acerca do labor judicial. Para os que afirmam ‘os juízes criam direito’, os juízes deveriam tomar mais resolutamente a dianteira de suas atribuições e atuar com clara consciência da importante função que lhes cabe cumprir na sociedade; e os juristas deveriam atender mais aos fatos e problemas concretos que aparecem ao nível da função judicial e dedicar menos atenção ao irreal mundo das normas gerais. ‘Os juízes criam direito’ resume ou destaca esta dupla atitude, do mesmo modo que, no contexto da polêmica, sua negação resume ou destaca a atitude oposta" (Notas sobre derecho y lenguaje, p. 85/86).

Trata-se de assinalar, para fins práticos e teóricos, a enorme importância atribuída ao trabalho judicial na dinâmica dos fenômenos jurídicos. Nessa questão, encoberta pela aparência descritiva dos enunciados, há que realçar-se a alta dose de carga emotiva, que é típica do vocabulário político em sentido amplo. As respectivas formas de expressão estão destinadas a proporcionar uma "imagem" ou "quadro" capaz de "provocar adesões ou sublinhar certos aspectos insuficientemente atendidos. Elas não descrevem nada ou, ao menos, não é esse seu uso primário" (ob. cit., pág. 88). E conclui: "O fato de que a divergência seja basicamente um desacordo de atitudes: a) explica que a controvérsia pode subsistir ainda que se logre uma completa concordância quanto aos fatos e se chegue a estipular uma notação descritiva unívoca e precisa; e b) põe de manifesto o inadequado da posição de quem se empenha em ventilar a controvérsia como se se tratasse de uma divergência sobre o que fazem os juízes. Tal enfoque do problema conduz a uma interminável reiteração das posições originárias e, em definitivo, à exasperação ou ao cansaço" (idem, p. 89).

Resume NORBERTO BOBBIO: "Não é necessário sublinhar o parentesco entre as polêmicas acerca do método e aquelas acerca da função; quem valora as argumentações de caráter lógico-sistemático mostra, com isso, que prefere um juiz que se limite a declarar o direito existente; quem dá preferência à investigação dos fins sociais e dos interesses, prefere um juiz criador" (El problema del positivismo jurídico, p. 28).

No plano dos fatos, aliás, não cabe mais controvérsia, ou não deveria saber. Não tem sentido discutir em torno de uma realidade que, através de metodologia adequada, logrou ser conhecida. Conhecida e explicada: na lição de ALF ROSS, "as máximas de interpretação (...) são conjuntos sistemáticos de frases atrativas (a miúdo cunhadas em forma de provérbios) e de significado impreciso que podem facilmente ser manejadas de maneira tal que conduzam a resultados contraditórios". E prossegue: "Dado que não existem critérios objetivos que indiquem quando deve aplicar-se uma máxima e quando outra, elas oferecem grande amplitude para que o juiz chegue ao resultado que considera desejável" (Sobre el derecho y la justicia, p. 148).

O fenômeno, em suma, existe. Como a Terra, a girar em torno do Sol. Só que a ideologia de muitos impede, senão seu reconhecimento, pelo menos sua proclamação às claras. É uma técnica de refrear desvios e distorções. Porque essas máximas de interpretação acabam habilitando o juiz a "alcançar a conclusão que considera desejável nas circunstâncias", mas sempre dentro de determinados limites. Ao mesmo tempo, preservam "a ficção de que só está obedecendo à lei e aos princípios objetivos de interpretação". Mas não deixa de ser "um problema interessante de psicologia social determinar por que se deseja ocultar o que realmente ocorre na administração da justiça" (ROSS, Alf, ob. cit., p. 148/149).


Capítulo 3

3.1. Vagueza e ambigüidade. 3.2. O caráter convencional dos símbolos. 3.3. Compromissos ideológicos do juiz. 3.4. Zona de luminosidade. 3.5. Homicídio e transplante de coração.

3.1. Vagueza e ambigüidade

O profissional do direito, pode-se dizer, conhece quase todos os problemas práticos acarretados pela linguagem no que concerne à interpretação. No entanto, não é um lingüista, necessariamente. E se não deu atenção à matéria, à maneira do especialista, o máximo que pode ocorrer é desconhecer a terminologia adequada, os conceitos desenvolvidos, detalhes de sofisticação do tipo linguagem-objeto, metalinguagem, etc. Todavia, ninguém melhor do que este para refrear, com sólidos argumentos, certas pretensões dogmáticas dos jurisconsultos.

A linguagem do direito é a linguagem natural. E não poderia ser outra. O direito, como técnica de controle social, só teria razão de ser se as respectivas regras fossem suscetíveis de compreensão pela maior parte das pessoas.

Não havendo outra saída, nada obstante o possível hermetismo terminológico, continuam as leis a serem redigidas com o mesmo instrumental utilizado pelo cidadão comum para com outrem comunicar-se. A forma escrita e a observância de determinadas regras de elaboração, que lhes emprestam ar pomposo, não as isentam de dois vícios fundamentais, inerentes à linguagem-matriz: vagueza e ambigüidade.

"Diz-se que um termo é vago quando existem objetos para os quais é impossível afirmar se o termo é aplicável ou não é aplicável. A vagueza dos termos tem dado lugar a inúmeros argumentos sofísticos: pense-se, p. ex., nos termos "montón" e calvo; quantos grãos de trigo são necessários para fazer um "montón" de trigo? Quantos cabelos deve perder um homem para que seja calvo? O tema é de interesse porque na opinião de alguns filósofos não pode afirmar-se a priori de nenhum termo das linguagens interpretadas (isto é, atendendo ao significado pelos símbolos) que não careça de vagueza" (CAPELLA, Juan-Ramón, El derecho como lenguaje, p. 248).

A pluralidade de significados de uma única palavra (significante) conduz ao conceito de ambigüidade, a implicar, portanto, diferentes campos de extensão, de conotação. Somente o contexto em que se insere a palavra permite a descoberta do significado pretendido, o que nem sempre ocorre com facilidade.

Eis a síntese de ROBERTO J. VERNENGO, LUIZ A. WARAT e ROSA MARIA C. DA CUNHA: "Até agora, distinguimos duas classes de termos: os nomes próprios, utilizados para designar uma coisa em particular, e as palavras de classe, que servem para agrupar muitas coisas sob um mesmo rótulo, com base em certas características que as coisas têm em comum. Pode-se, assim, dizer que os termos gerais têm um significado denotativo e outro conotativo, entendendo por denotação a classe de objetos aos quais é corretamente aplicável um termo e, por conotação, as propriedades possuídas por todos os objetos que se inserem dentro da extensão do termo. Esses dois elementos servem para explicar, também, duas características que os termos da linguagem ordinária apresentam: a ambigüidade e a vagueza. A primeira surge quando um mesmo termo pode ser aplicado a classes de objetos diferentes por apresentar mais de um núcleo de significação conotativa. Caracterizaremos, assim, um termo como ambíguo, quando o mesmo possui mais de um significado. A vagueza, ao invés, apresenta-se quando, em função das regras de uso, aparecem casos onde é impossível determinar a aplicação ou não da regra" (Os problemas do significado da linguagem natural, Q. 32).

3.2. O caráter convencional dos símbolos

É preciso sempre ter-se em conta que "a relação entre o significante e o objeto com os seus atributos concretos não apresenta qualquer caráter de necessidade e surge por um ato totalmente arbitrário", afirma ANTONIO PAGLIARO (A vida do sinal, p. 52). Noutro tópico: "... o sinal lingüístico é um símbolo vivo, aberto na sua funcionalidade tanto ao jogo da fantasia, como às frias leis da razão. Esse sinal é portador de um significado, que se forma e se renova, se plasma e reaviva conforme o vigor e a riqueza do conteúdo de consciência que nele se traduz, ou a virtuosidade técnica do falante. Essa vitalidade interior não cabe no símbolo matemático, que forçosamente representa um determinado valor, duma maneira muitíssimo mais rígida e uniforme" (idem, p. 83/84).

Ouçamos, por fim, GENARO CARRIÓ: "Toda linguagem é um sistema ou conjunto de símbolos convencionais. Este último quer dizer que não há nenhuma relação necessária entre as palavras, por um lado, e, por outro, os objetos, circunstâncias, fatos ou acontecimentos, em relação aos quais aquelas cumprem suas múltiplas funções. A convenção que acorda a uma palavra ou expressão uma função determinada pode ser explícita e ad hoc, como ocorre no caso de uma linguagem artificial qualquer, ou tácita ou geral, como ocorre no caso das linguagens naturais" (Notas sobre derecho y lenguaje, p. 63/64).

3.3. Compromissos ideológicos do juiz

Articular as noções de língua e fala, na expressão de LUIS WARAT, "implica (... ) afirmar a criatividade decisória do juiz, seu poder para mudar linhas de soluções, a necessidade de pensar o direito não só em termos de segurança jurídica como também em termos de eqüidade. A relação marca também a vinculação existente entre as palavras da lei e os compromissos ideológicos, podendo-se afirmar, através da análise lingüística, a idéia de que as normas não têm significações precisas à margem das intenções ideológicas de seus intérpretes" (El derecho y su lenguaje, p. 83).

Os maiores problemas de interpretação jurídica dizem respeito à vagueza dos termos. Dir-se-ia que o próprio legislador, sentindo a incapacidade de encontrar – o que seria mesmo impossível – palavras precisas, inequívocas, transfere o encargo ao julgador, a quem acena com termos excessivamente genéricos, anêmicos, vazios de conteúdo. Poder-se-ia contestar com a riqueza de processos hermenêuticos especificamente destinados a desvendar-lhes o segredo. Lamentavelmente, porém, nenhum deles alcançou notoriedade científica ou suficiente poder persuasivo para, por si só, merecer preferências apriorísticas. Impõe-se, no final, dadas as constantes dificuldades práticas para a solução do impasse, uma tomada de decisão, em função das circunstâncias e da sensibilidade ideológica do intérprete.

3.4. Zona de luminosidade

Não convém, todavia, exagerar. Todos os tratadistas são acordes em que existe uma zona nuclear, denominada típica, ou de luminosidade, que permite seja apreendido o exato sentido – ainda que não eliminativo de outros, já então duvidosos – da palavra ou frase sob análise. É a certeza dessa verificação que conduz a decisões serenas, desapaixonadas, mormente quando ao julgador nada mais importa do que o fiel cumprimento da lei. E como tais hipóteses são realmente numerosas na vida forense, impõe-se a paralela constatação de que a linguagem natural, utilizada pelo legislador, não constitui entrave à distribuição de uma justiça formal, que toma por paradigma o texto de lei, corretamente interpretado à luz da hipótese sub judice. Nesses casos, por sinal, o que se mostra menos relevante é o chamado "argumento de autoridade", porque supérfluo, haja vista a extrema facilidade com que a situação concreta se encaixa na visível e flagrante tipicidade da descrição normativa.

Não se há de olvidar, no entanto, a faceta característica da "verdade jurídica", eventualmente diversa da verdade histórica. O que vale são os dados trazidos ao bojo dos autos e a maneira como o próprio juiz, de conformidade ou não com certas diretrizes de ordem processual, os pesa e avalia, ungindo-os com o selo de sua autoridade: "Pouco me serve uma norma abstrata da lei, entendida conforme à minha razão (ou a uma razão ou critério predominante), se no caso concreto controvertido o juiz a entende de modo oposto. O que nela pronuncie, as palavras de sua sentença, serão o real, efetivo e válido direito; a delimitação concreta, unicamente válida, do campo de meu direito subjetivo. O juiz, como realizador da lei, aplica seu mandato, mas, em cada caso que se apresenta para sua decisão, cria uma nova realidade". É o esclarecimento de RODRIGUEZ-AGUILERA, que já havia advertido: no Direito "os fatos não são a verdade histórica, ainda que para ela se tenda, mas a verdade provada, determinada, às vezes, por aquilo que dessa verdade se quis provar" (El lenguaje jurídico, p. 53 e 48).

Tudo isso não é incompatível, evidentemente, com a constatação, há pouco mencionada, da enorme quantidade de situações facilmente assimiláveis, qual força centrípeta, à concentração de clareza de que toda norma, em princípio, é portadora.

Em outras palavras, se os postulados da lingüística, enfocada esta, de modo particular, à luz dos problemas de aplicação do direito, afastam a possibilidade de afirmações categórico-dogmáticas acerca do exato sentido e alcance dos textos normativos, confirmam, ao mesmo tempo, a correção da correspondência de muitas hipóteses, porque ligadas à propalada "zona de luminosidade".

E se, em tantos outros casos, reputados duvidosos, é da valoração pessoal do juiz que vai depender a extensão do termo, não se há de negar que ele o faz empregando a mesma linguagem corriqueira que, eventualmente, se mostra suficiente para o fim almejado. Ora, se um juiz, nesse trabalho de definição ou redefinição, consegue ser entendido, não há por que negar a mesma faculdade ao legislador.

3.5. Homicídio e transplante de coração

LUIS ALBERTO WARAT, para ilustrar o condicionamento semântico da inclusão ou exclusão de algum caso numa das classes do ilícito, apela para o mais conhecido dos delitos, o homicídio. "Tomemos para ilustrar o hoje famoso caso dos transplantes de coração. Evidentemente, se introduzimos dentro do conceito de morte a nota de que o coração deve deixar de funcionar, o profissional que efetuou a operação cometeu homicídio, e ao contrário não se enquadra dentro desse campo extensional se excluímos da conotação de morte a referida nota e a substituímos por a de que certas ondas cerebrais devem deixar de operar. Ambas as possibilidades significativas são válidas. Dependerá então da valoração do julgador qual das duas alternativas assumirá efetivamente. Se o propósito do julgador é incluí-lo na classe dos indivíduos homicidas admitirá a primeira nota, e se seu propósito é excluí-lo, optará pela segunda" (ob. cit. p. 171).

Uma pequena observação: fala-se aí em propósito do julgador com o visível sentido de ênfase, de realce. Nada impede que o magistrado não tenha, em princípio, propósito algum, mas simplesmente se deixe seduzir pela exegese que lhe pareça correta, apegando-se, quem sabe, aos argumentos de autoridade. Em suma, que se mostre, desde o início, indiferente à conclusão a que friamente haveria de chegar.

Com esta ressalva, podemos voltar ao que foi sublinhado: o propósito de condenar ou absolver. Nesse passo, a tarefa inteira se colocou nas mãos do julgador. E o argumento decisivo é a flexibilidade de textura dos tipos legais, a ensejar possa o juiz, "mediante uma alteração intencional, decidir se o caso em questão entra ou não dentro de uma particular classe tingida pelo signo de proibido" (idem, ibidem).

Nada a contestar. Mas é de se insistir em que, se o comentarista conseguiu, servindo-se da linguagem natural, distinguir soluções que conduzem a resultados opostos; isto é, se lhe foi possível equacionar situações que, isoladas, perdem praticamente o caráter de vagueza e ambigüidade, não há como recusar ao legislador a utilização dos mesmos recursos. E se este último os utiliza, dada a importância da matéria, não se pode passar ao exagero de se continuar conferindo ao juiz, por simples amor ao princípio, todo o poder e toda a responsabilidade.

O exemplo citado vem inclusive referendar a regra de que são os fatos, as descobertas, as mudanças sócio-culturais, a complexidade (crescente) da vida gregária que tornam inadiável a intervenção dos órgãos normativos, inclusive para explicitar o que até bem pouco tempo não precisava ser explicitado. Ao fazê-lo, retoma o legislador – o que é de extrema relevância na área jurídico-penal – o papel que normalmente se lhe reserva, restabelecendo-se um equilíbrio que, ao menos em teoria, não deixa de ser compreensível.


Capítulo 4

4.1. Distinção. 4.2. Interpretação e sentido literal possível. 4.3. Decisão contra a lei. 4.4. Os vários "direitos".

4.1. Distinção

"A aplicação do Direito – escreve CARLOS MAXIMILIANO – consiste no enquadrar um caso concreto em a norma jurídica adequada. Submete às prescrições da lei uma relação da vida real; procura e indica o dispositivo adaptável a um fato determinado. Por outras palavras: tem por objeto descobrir o modo e os meios de amparar juridicamente um interesse humano" (Hermenêutica e aplicação do direito, p. 19).

Mais adiante: "A aplicação, no sentido amplo, abrange a Crítica e a Hermenêutica; mas o termo é geralmente empregado para exprimir a atividade prática do juiz ou administrador, o ato final, posterior ao exame da autenticidade, constitucionalidade e conteúdo da norma. Nesse caso, em vez de aquela disciplina absorver as outras duas, completa-lhes a obra" (p. 22).

Também para DÍEZ PICAZO "cabe buscar uma diferença entre o que ontem chamávamos ‘aplicação’ e a ‘interpretação’. A ‘aplicação’ se move sempre no terreno dos casos concretos, para opinar, para suscitar pretensões ou para decidir. A ‘interpretação’ é sempre investigação ou busca do direito, qualquer que seja sua sede ou finalidade. Caberia falar por isso de uma interpretação não aplicadora" (Experiencias jurídicas y teoría del derecho, pág. 237).

A distinção em pauta é compreensível e útil em nossa exposição. Mormente num sistema jurídico legalista ela aparece com nitidez, seja quando a lei é respeitada, seja na hipótese contrária. Neste último caso, então, não há como fugir do esquema apresentado. Ao afastar-se da lei, que por certo já foi interpretada, o juiz aplica preceito diverso e, como é lógico, o fenômeno "aplicação do direito" acabou se desligando do fenômeno "interpretativo".

Já tivemos oportunidade de observar, na análise da jurisprudência penal catarinense, muitos casos em que o magistrado, ao perceber as conseqüências de uma aplicação mecanicista da norma sob exame, preferiu trilhar caminho diverso, fazendo então de si mesmo, ou dos valores por ele abraçados, a fonte ou razão desse desvio. Em algumas oportunidades se mostrou bastante a redefinição das palavras do texto, técnica essa destinada a devolver simbolicamente ao legislador o cetro do poder normativo.

E se enfocamos agora a matéria sob o prisma da aplicação do direito o fazemos com o fim específico de realçar, mais uma vez, a função criadora da jurisprudência.

4.2 Interpretação e sentido literal possível

Segundo KARL LARENZ, "o sentido literal possível constitui o limite da interpretação em sentido próprio. O que não se encontra dentro do marco do sentido literal possível não pode ser um significado a averiguar mediante a interpretação. Uma ‘interpretação’ incompatível com o sentido literal é, na realidade, desenvolvimento judicial do Direito sob a forma de uma integração ou de uma correção da lei". (Metodología de la ciencia del derecho, p. 270).

É a posição de KARL ENGISCH: "Como critério decisivo para a determinação dos limites entre uma interpretação extensiva, ainda permitida, e uma aplicação analógica, que já não o é – determinação essa que, sendo necessária em cada novo caso, é frequentemente insegura – temos de novo o sentido literal possível" (Introdução ao pensamento jurídico, p. 242/243).

Observe-se que KARL LARENZ se refere à interpretação "em sentido próprio": mesmo no caso em que o resultado se encontre fora do sentido literal possível, traduzindo formulação modificativa do direito, se pode ainda dizer que tudo ainda não passa de "uma continuação, em outra escala, da interpretação" (ob. cit., p. 256).

O tema traz à baila uma conhecida observação de GUSTAV RADBRUCH: a interpretação jurídica "não é pura e simplesmente um pensar de novo aquilo que já foi pensado, mas pelo contrário, um saber pensar até ao fim aquilo que já começou a ser pensado por um outro. Sem dúvida, ela parte da interpretação filológica da lei; mas para ir mais além dela" (Filosofia do direito, p. 231).

O assunto é interminável. Está sempre aberto à discussão.

4.3. Decisão contra a lei

Se existe decisão contra a lei isto é sinal de que ela já se submeteu à interpretação em face do caso concreto, que estaria nela inserido. O juiz, porém, abandonando a lei, aplica uma outra norma, que se legitima – pelo menos em parte – por si mesma, porque "descoberta" ou "inventada" por alguém funcionalmente habilitado. A aplicação do direito contencioso, em suma, vai depender fundamentalmente do juiz, e não da lei. Se esta é respeitada, na maioria das vezes – e há uma variedade de explicações para o fenômeno, de ordem política e psico-sociológica, nem por isso se há de minimizar, ainda nesses casos, o desempenho jurisdicional.

"O pensamento dos juristas – pondera PUIG BRUTAU – parece que sempre tem oscilado entre estes dois extremos: de um lado, o ideal de conseguir que a realização da justiça consista tão-só na aplicação rígida de umas regras previstas de antemão; e, de outro, a conveniência de solucionar cada caso de uma maneira justa e, para tanto, prescindir de tecnicismos e de soluções predeterminadas. A realização do direito deve buscar seu centro de gravidade entre estas atitudes extremas e contrapostas: o que ocorre, porém, é que este centro não deixa de variar, constituindo assim a sua determinação a tarefa mais apaixonante, talvez, do método jurídico" (A jurisprudência como fonte do direito, p. 97/98).

Uma coisa, no entanto, é o que os juristas pensam ou pregam nos seus livros de doutrina; coisa diversa é o que se observa na prática forense. Não há dúvida, quanto a esta, de que o tal "centro de gravidade" é reivindicado pelo juiz, pouco importando se, impressionado pelo mito da divisão dos poderes, se esforce para manter a aparência de legalidade de suas decisões. "A sobrevivência do Código de Napoleão até a época do motor de explosão e de combustão interna, da eletrônica e do socialismo, é milagre dos Tribunais", na expressão de ALIOMAR BALEEIRO (O supremo tribunal, esse outro desconhecido, p. 99).

4.4. Os vários "direitos"

"É significativo que cada uma das quatro palavras mais usadas na ciência do direito, isto é, Justiça, Direito, Lei e Moral, palavras para idéias dos próprios fundamentos dessa ciência, são aquelas sobre cujo significado os juristas não chegaram a acordo e ainda hoje não foram capazes de concordar. Também neste caso há os que afirmam ser impossível uma resposta". Com esta introdução, que pedimos de empréstimo a ROSCOE POUND (Justiça conforme a lei, p. 2), já deixamos antever que não pretendemos, neste tópico, enfrentar o problema. Contentamo-nos apenas em realçar, sem pretensões "reducionistas", a volubilidade do direito como fato, o que fica bem claro quando as preocupações se voltam para a observação daquilo que ocorre na faixa contenciosa. Referimo-nos ao direito particularizado, individualizado, microscopizado, isto é, válido e efetivo para determinada pessoa ou grupo de pessoas; do direito concreto, ditado pelo juiz, e como tal experimentado, vivido ou sofrido pela parte.

Os processos judiciais, com suas técnicas de busca da verdade "relevante" (o fato provado, como base de uma decisão), não passam de laboratórios vivos em que se procura determinar, sob o manto do poder auto-reconhecido, o que convém ao Estado e aos litigantes, em termos de conduta. Culminam com uma sentença, precisamente a peça-chave, sua razão de ser. Seu enunciado solene, prenhe de implicações ético-sociais, encontra no que se passou o motivo que leva a conformar um destino, a propor e impor para o futuro, modificando o mundo. Um mundo que é nitidamente sentido, de modo especial, pelas partes em litígio.

É nessa hora que vêm à tona, com toda a força e pujança, como que contrariando, ou corroendo, a viga-mestra da segurança jurídica, os incontáveis fatores circunstanciais: situação econômica das partes; qualidade das provas; personalidade do juiz; ambiente político-social; disponibilidade de tempo; momentâneas predisposições psicológicas; esmorecimento e resignação, etc.

Na frente de tudo, a relatividade da interpretação. Segundo GEORGES KALINOWSKY, "é obedecendo às regras extra-lógicas da prudência jurídica que o intérprete do direito, antes de seguir as regras lógicas correspondentes, subtende no texto interpretado, em caso de argumento a maiori ad minus, a cláusula ‘no máximo’; no caso de argumento a minori ad maius, a cláusula ‘no mínimo’; no caso de argumento por analogia, a cláusula ‘todos os casos pertencendo à mesma espécie que"; e, enfim, no caso de argumento a contrario, a cláusula restritiva ‘somente’. A interpretação do direito que exige a virtude de justiça é assim uma operação de prudência e não de lógica" (Introduction à la logique juridique, p. 170).

Seria fácil lembrar que o próprio sistema, prevendo os recursos judiciais, e transferindo à Suprema Corte a última palavra em matéria de interpretação jurídica, se encarrega de eliminar ou minimizar os problemas dessa natureza. Mas não seria difícil contestar que se trata de solução teórico-legal que encontra, na prática, reduzida ressonância.

O próprio Supremo Tribunal não está imune a divergências interpretativas entre seus membros. O êxito de uma causa continuaria assim a depender, no final das contas, de uma ocasional e momentânea decisão majoritária. A criação das "súmulas de jurisprudência predominante" não evitou dores de cabeça: também elas acabaram passando pelo crivo de interpretações divergentes. A reviravolta jurisprudencial, por outro lado, ainda não foi riscada do vocabulário forense.

Restariam os tribunais de segunda instância, cujos integrantes retratam essas particularidades, e em proporção bem mais elevada, por motivos óbvios.

É evidente, além disso, que as demandas, de um modo geral, terminam nas comarcas. Não é, pois, sem razão que autores como LUIS ALBERTO WARAT, alargando o conceito de fontes materiais do direito, nelas incluem as respectivas academias: "Quando se fala do ensino como fonte, pretende-se principalmente colocar o processo educacional como um dos elementos de maior relevância para a atividade dos órgãos decisórios. A força dessa expressão pretende iluminar uma situação que tem sido negligenciada pelas seculares reflexões sobre o ato de interpretação da lei: o fato de que o ensino do saber jurídico convencional deve ser visto como a instituição de maior gravitação para a imposição de certos conteúdos para as normas ditadas pela autoridade" ("A função retórica do mito jurídico", Revista do C.C.J.E.A. UFSM. jul./dez. 1977, p. 33/40).

Ninguém é melhor reflexo dessa influência do que o juiz em começo de carreira, dada a proximidade temporal com os bancos universitários. Eis aí mais um detalhe a acrescentar à imensa gama de circunstâncias que concorrem para uma expectativa que nada tem de certa ou de segura: a sentença definidora ou concessiva de um direito, sempre suscetível, aliás, de reformas. ..

Analisada a questão sob outro prisma, e diante da verificação de que a maioria das causas não passa por uma revisão de segundo grau, pode-se vislumbrar um certo desafogo. Nem sempre a uniformidade é o que convém, principalmente por ser difícil discernir ou identificar os elementos que a justificariam. O juiz de comarca conhece, ao menos, ou logo passa a conhecer, as peculiaridades regionais. Daí afirmar JOÃO BATISTA HERKENHOFF, após pesquisa sócio-jurídica sobre a função judiciária no Estado do Espírito Santo, que "a consciência, pelos juízes, do poder e dever de adaptar o Direito nacional e os valores culturais, em que está baseado, à vida interiorana, – foi comprovada" (A função judiciária no interior, p. 146). Noutro tópico: "os juízes, não obstante sofrendo os condicionamentos predominantemente conservadores do sistema jurídico e de sua própria ideologia conservadora, encontram, no interior, uma realidade social ainda mais conservadora e, assim, atuam nela como agentes de mudança progressista" (idem, ibidem).

Mas são os tribunais superiores, por sua natural ascendência, que consolidam e aceleram a evolução jurídico-interpretativa. O distanciamento do cenário fático propicia maior liberdade para criações no plano normativo-jurisprudencial, o que não implica afirmar que são esquecidas as características e exigências do modo de vida interiorano.

Aliás, se fosse permitido falar em "natureza das coisas" (mais uma expressão ambígua!), logo viria à mente a maior adequabilidade aos órgãos superiores da mencionada criação normativo-jurisprudencial. Não teria sentido a colocação inversa, que entraria em choque com os conceitos e hábitos de hierarquia e autoridade. E não se trata de simples apreciação formalista: há, no fundo, o reconhecimento valorativo de maior condensação de experiência.


Capítulo 5

5.1. A individualização da pena. 5.2. Instrução do processo. 5.3. O problema penitenciário. 5.4. R. Stammler e a submissão à lei. 5.5. O cumprimento da lei, como regra. 5.6. Juiz, máquina pensante. 5.7. Função de equilíbrio

5.1. A individualização da pena

A existência de "vários direitos" está intimamente relacionada com a personalidade do juiz. Afora, pois, tantos outros fatores acidentais, há de contar o litigante com a eventualidade de estar diante deste ou daquele magistrado, seja na instrução do processo, seja na prolação da sentença.

O fenômeno é visível na área criminal, inclusive em matéria de aplicação de pena. Já não se trata de divergências concernentes à identificação da figura delituosa, em suas formas simples, qualificada ou privilegiada; já não é o caso de salientar, por exemplo, os contrastes relativos à apreciação do concurso aparente de normas. Todos esses detalhes, é claro, justificariam o capítulo. Mas vamos deixá-los de lado.

Não, quando citamos a hipótese de aplicação da pena já o fazemos no pressuposto de estar conhecido o delito e, em conseqüência, os limites mínimo e máximo da apenação. Entra em cena, então, a personalidade do juiz. Todo o esforço do legislador penal brasileiro no sentido de orientar-lhe os passos e, de certa forma, tolher-lhe a liberdade (normas gerais do artigo 42; mínimos e máximos; agravantes e atenuantes obrigatórias etc.) não impede que a desejável e tão decantada "individualização da pena" corresponda, na prática, ora a uma utopia ou impossibilidade; ora a uma ficção, quase sempre em benefício do réu; ora a um gravame ocasional e injustificado, provocado pelos excessos de avaliação subjetiva, ou, ao reverso, pelo entrave do mínimo estabelecido.

A propósito, o artigo 42 do Código Penal, referente à aplicação da pena, ficou reduzido a valor de exportação.

Segundo a Exposição de Motivos, nº 24, "o juiz, ao fixar a pena, não deve ter em conta somente o fato criminoso, nas suas circunstâncias objetivas e conseqüências, mas também o delinqüente, a sua personalidade, seus antecedentes, a intensidade do dolo ou grau da culpa e os motivos determinantes (art. 42). O réu terá de ser apreciado através de todos os fatores, endógenos e exógenos, de sua individualidade moral e da maior ou menor intensidade da sua mens rea ou da sua maior ou menor desatenção à disciplina social. Ao juiz incumbirá investigar, tanto quanto possível, os elementos que possam contribuir para o exato conhecimento do caráter ou índole do réu – o que importa dizer que serão pesquisados o seu curriculum vitae, as suas condições de vida individual, familiar e social, a sua conduta contemporânea ou subseqüente ao crime, a sua maior ou menor periculosidade (probabilidade de vir ou tornar o agente a praticar fato previsto como crime)".

A excelência do programa está longe de encontrar apoio nos meios materiais de que dispõem os juízes. A solução, um tanto artificial, está em aplicar a pena mínima, quando o acusado é primário, e uma pena um pouco mais elevada, se é reincidente (Cf., dentre outros, BARRETO, D.L.G., Violência, arquétipo e lei, p. 81). Disso nos dão mostras, e servem de paradigma, os arestos dos Tribunais, que assim ratificam uma situação e, ao mesmo tempo, concorrem pelo exemplo à tendência ao tratamento uniforme.

5.2. Instrução do processo

Mas nossa preocupação maior não é a de tecer críticas ao sistema, e sim, a de apontar, grosso modo, o seu funcionamento. Impõe-se não perder de vista a enorme importância atribuída ao juiz, sem embargo da presença do Ministério Público e do advogado do réu, no encaminhamento e formação da prova relevante. Habilidade, competência, dedicação, e religiosa reverência à lei, a par das idéias preconcebidas a respeito do mérito de uma condenação possível, de que não se abstraem as conseqüências, são palavras ou qualidades que ninguém, em sã consciência, atribui a toda uma classe.

Uma das maneiras de não chegar, legalmente, à condenação, é colher, de preferência, informações superficiais, não tocar no âmago do problema, o que pode ocorrer tanto por desleixo como intencionalmente. É claro que, neste último caso, o magistrado não o faz de graça. Age conscientemente no sentido de que, a seu modo, filtrando o que escapou do aparelho policial, e como se estivesse investido do poder de julgar da oportunidade dos processos, se evite a formal exteriorização de uma verdade que deva conduzir a uma injustiça. Compenetrado da validade de sua atitude, atende ao provérbio de que é melhor prevenir do que remediar. Nunca é demais relembrar, por isso mesmo, que a técnica, em si, não se mostra das piores, considerando que na hipótese contrária, de efetiva transposição e correspondência da verdade fática, não se abandona, conforme o caso, o "remédio" da ficção jurídico-interpretativa ou da prevalência de princípios não escritos, recebam o nome que receberem: moral social, direito natural, política criminal, eqüidade, princípios gerais de direito, analogia, "summum jus, summa injuria" etc.

5.3. O problema penitenciário

Tem-se mesmo a impressão de que a área penal é propícia a impasses dessa natureza. O século XX, se não é testemunha da total derrocada da pena retributiva, válida como princípio, assiste, estarrecido, aos nefastos efeitos da indiscriminada segregação social, do enjaulamento coletivo. A lei da inércia continua a funcionar a todo o vapor, permitindo que o excesso de população carcerária dos grandes centros torne definitivamente irrecuperável uma boa parcela de clientes que careciam de tratamento bem mais humano.

Também o estigma da condenação, a repercutir no comportamento posterior do sentenciado, com reflexos negativos na própria sociedade, é outro dado que não é esquecido por muitos que detêm o poder de decidir a sorte de seu semelhante. Alguns tribunais, admitindo o fenômeno, chegam ao requinte de, mesmo "contra legem", dar provimento a recursos alusivos a simbólicas condenações à pena de multa.

Recorde-se que, nos últimos anos, tem havido um esforço para diminuir ou evitar os males da prisão (prisão-albergue, alargamento dos requisitos do sursis, do livramento condicional, decretos de indulto e redução de pena etc.) Conquanto se possa admitir que, por detrás de tudo, uma simples conta de somar tenha sido o estopim das providências (número de estabelecimentos prisionais visivelmente inferior ao vertiginoso crescimento dos mandados de prisão), o fato é que parece ter chegado ao clímax, com tremenda força expansiva, a conscientização da magnitude do problema no que concerne à degradação moral do acusado, iniciada com a sentença e completada, em grau superlativo, com o confinamento.

Seria muita ingenuidade imaginar que exatamente ao juiz criminal, desde o que inicia a carreira ao mais antigo membro do Excelso Pretório, tudo isso passasse despercebido – peças inertes a se curvarem, genuflexas, aos mandamentos sagrados e imutáveis de um texto legal cada vez mais contestado.

"Assim, pois, – assevera RECASÉNS SICHES – ainda que o Direito se proponha criar uma ordem certa e segura, inevitavelmente há uma margem de incerteza e de insegurança em todo sistema jurídico, para que este se possa ir adaptando às mudanças da realidade social, e também para que possa ir progredindo no sentido de uma maior aproximação aos valores que procura realizar" (Tratado de sociologia, vol. 2, p. 704).

Mais adiante: as valorizações complementares não contidas na lei ou no regulamento, os critérios axiológicos das convicções que predominam efetivamente na coletividade, numa certa situação histórica, "atuam sobre o comum das pessoas quando estas interpretam espontânea e diretamente o alcance de algumas normas jurídicas como modeladoras de sua conduta, e atuam também sobre os juízes e os funcionários públicos encarregados de decidir sobre os conflitos, ou de resolver sobre casos concretos" (idem, p. 731). Em passagem anterior: "Mesmo o juiz que queira ser o mais respeitoso da lei positiva sofre a influência da opinião pública sobre as operações interpretativas que deve realizar" (idem, p. 709).

5.4. R. Stammler e a submissão à lei

Mas "para o juiz – escreve RUDOLF STAMMLER – não existe a possibilidade de modificar (...) o Direito pela via originária. O juiz é independente dos demais homens, porém, se acha submetido sempre à lei. Ainda nos casos em que o conteúdo da lei não seja justo (...). Não é bom limar e polir um resultado desagradável ou francamente injusto do Direito vigente até conseguir um resultado intrinsecamente melhor, mas na realidade, ilegal. Não; o juiz deve ter o valor de aplicar também um Direito injusto, quando a lei o exija. Pois pior que dar uma solução desagradável a um caso isolado é destruir o que Kant chamou a "fonte do Direito": a confiança no Direito em geral e em seu caráter inviolável..." (El juez, p. 120/121).

Esse devotamento religioso à lei, justa ou injusta, felizmente não é acatado por todos. Serve a observação para reforçar o entendimento da importância reservada às convicções pessoais do magistrado, as quais decidirão, em última instância, certamente aliadas a outros fatores não negligenciáveis, se é o caso ou não de curvar-se incondicionalmente ao direito estatuído, nocivo aos interesses sociais.

"Os juízes marcham, algumas vezes – informa BENJAMIN CARDOZO – para conclusões impiedosas, sob o incitamento de uma lógica inexorável, supondo que ela não lhes deixa outra alternativa. Eles deploram o rito sacrificatório. Executam-no, não obstante, com os olhos cheios de espanto e voltados, convencidos de que ao enterrar a faca estão obedecendo aos imperativos de sua função. A vítima é oferecida aos deuses da jurisprudência, sobre o altar da regularidade" (A natureza do processo e a evolução do direito, p. 154).

Quem assimila, sem vacilar, a pregação de STAMMLER, e pretende de fato ser coerente, tem de condenar a dois anos de reclusão, pelo menos, ao peculatário de terceira categoria que se apropriou, num momento de fraqueza, de alguns míseros cruzeiros; e a 30 anos de reclusão a dois jovens que, habituados ao furto, por má-formação da personalidade, praticaram em concurso material 15 subtrações de objetos variados: sapatos, camisas, cigarro, sabonete, pasta de dente, notas de 10 cruzeiros, meio quilo de carne e 2 litros de leite. Se um deles, sozinho, tivesse levado tudo isso de uma só vez – por exemplo, de uma loja que encontrou aberta – seria condenado, quem sabe, à pena mínima de 1 ano. E se não tivesse "maus antecedentes", cumpriria a sanção em liberdade, por força do "sursis". É a lei... "Nada de política criminal", diria STAMMLER.

Não é este, como vimos, o posicionamento radical e definitivo do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, Estado que, por sinal, está longe de possuir os excessos corruptores de população carcerária, residindo as maiores dificuldades nas deficiências materiais e humanas das cadeias públicas do interior e na ausência de serviços de assistência social. Ainda assim se encontra motivo, como foi visto, – somente para exemplificar – para se vislumbrar o furto continuado em ações bastante distanciadas no tempo (janeiro, março, abril, maio e junho). Não consta que, em razão disso, tenha sido destruída a "fonte do direito", a confiança no direito em geral e em seu caráter inviolável. Há direitos e direitos. Há bons e maus direitos. A verdadeira destruição de um direito só ocorre se nada se tem a oferecer, em substituição compatível. Enxergar na lei valores absolutos, sem um prévio trabalho de crítica, e aplicá-la cegamente, já constitui um risco bem considerável. No entanto, enxergar na lei valores absolutos quando o prévio trabalho de crítica já revelou, digamos, sua monstruosidade, e assim mesmo persistir em sua aplicação, tendo plena consciência da liberdade de ação para um posicionamento diverso, consciência de que o mundo não iria ruir, mas receber o húmus do reflorescimento sazonado, é fazer tudo, menos exercitar, com sabedoria, o poder de julgar.

Não nos referimos, é bom insistir, àqueles que, por formação, pela assimilação de teorias estereotipadas, fortemente persuasivas, não vêem para si, com a maior honestidade possível, outro papel e outra missão.

5.5 O cumprimento da lei, como regra

E, por outro lado, não estamos a pregar o irrestrito afastamento da lei, como se esta, por sua natureza e destinação, representasse tudo o que existe de negativo no mundo dos valores. Seríamos incoerentes ao extremo, não só em relação às nossas próprias atitudes, como profissional, mas também, e principalmente, porque vemos na lei, em princípio, o reflexo de uma bem elaborada técnica de convivência social: inevitável, indispensável, insubstituível.

De que modo, aliás, em nossa época, desconhecer a presença estonteante da lei?

Não discutimos as nuances, implicações e meandros – bastante variáveis em função de sua importância intrínseca – por que passa a elaboração da lei. Simplesmente a aceitamos, embora com reservas, por seu sentido de ordenamento prático da vida comunitária. A imensa variedade das matérias abordadas, fruto de experiências milenares, a que não falta, porque imprescindível, a colaboração técnica dos especialistas, não iria retratar, sem mais nem menos, insensatez e incongruência. A tudo isso se acrescente, sem que se ateste a perfeição, a legitimidade dos órgãos que a elaboram ou ratificam, nos regimes democráticos.

5.6. Juiz, máquina pensante

Entretanto, a exaltação de um Poder não implica, necessariamente, o aviltamento dos demais. E a melhor maneira de aviltar o Judiciário é colocá-lo a reboque do Legislativo.

Nenhum juiz é máquina pensante, ligada à corrente elétrica. Mas é dessa forma que o vêem aqueles que o transformam em leitor diplomado de textos legislativos.

Não fora já suficiente a simples condição de ser humano, de carne e osso, dotado de razão e sensibilidade, haver-se-ia que levar em conta, de modo particular, a maneira como ele se prepara e se condiciona para encarar e exercer a missão confiada, umbilicalmente unida às características do fato sob julgamento e com a percepção, ao vivo, dos efeitos concretos de sua decisão. E, depois, como adverte BENJAMIM DE OLIVEIRA FILHO, "o juiz decide por meio de um processo muito mais intuitivo do que estritamente lógico; seu convencimento se estabelece por um impulso emocional, em que não transparece a fria racionalidade, em que a razão apenas interfere com uma força oculta, subjacente, presente sempre, mas não ostentativa, nem consciente. Firmado o convencimento, é que procura acomodar as regras, os motivos, os fundamentos" (O problema da aplicação da lei, p. 18).

Desta forma, e relembrando a comprovada impossibilidade científica de se chegar, por via interpretativa, a todo o campo denotativo e conotativo de qualquer lei (zona cinzenta), não vemos como negar a enorme relevância da personalidade do juiz na definição jurídica do fato sob seu julgamento (e de mais ninguém). Eis aí toda a grandeza e dramaticidade de sua função. Ao agir, não o faz em seu nome pessoal, mas de toda a coletividade. Age no exercício do Poder.

5.7. Função de equilíbrio

Fácil pois compreender que, em certas matérias como as de ordem penal, em que não estão em jogo os destinos imediatos da Nação, se sinta eventualmente no dever de impor um equilíbrio que inexistiria com a aplicação mecânica de uma lei cujo reiterado uso já mostrou sua impropriedade e inadequação ético-social. Que o faça com reservas, nos limites de sua consciência, tendo sempre em mente a dignidade do cargo, parece observação desnecessária. Mas que o faça, pouco importando se, descoberto o véu das aparências, tenha efetivamente decidido contra legem.

A expressão é rude, forte, constrangedora. Além disso, o risco de um desacerto não deixa de existir. Parece, entretanto, ser mal maior compactuar passivamente com a nota dissonante, com o joio do trigal; com uma grave falha, de repente percebida, e que se deveria inevitavelmente esperar de um legislador incapacitado para modelar a singularidade e mutação de valores. A ousadia de uma correção, temperada pela prudência, é tarefa que se impõe a todos os que, com boa vontade, em sua missão de julgar, sacrificando o formalismo, se dão conta de que podem contribuir para a formação de um direito mais justo.


Capítulo 6

6.1. A presença criadora da jurisprudência. 6.2. Recursos hermenêuticos

6.3. Analogia e interpretação extensiva. 6.4. Lacuna e ficção. 6.5. Antinomia valorativo-normativa. 6.6. O espírito da lei

1. A presença criadora da jurisprudência

"Os juízes resistem à aplicação de penas inadequadas e injustas", exclama-se na Exposição de Motivos do natimorto Código Penal de 1969, como a sintetizar-se um fato geral que, pela clareza e concisão do enunciado, já se acompanha da própria sustentação (n.º 19).

Que isso acontece já vimos em várias passagens deste trabalho, estendendo-se a afirmação aos demais ramos do direito.

"No direito brasileiro – afirma FERNANDO PINTO – são muitas as hipóteses comprobatórias de decisões contra legem, ou seja, da tese de que a jurisprudência pode ser considerada como fonte formal do Direito" (Jurisprudência, fonte formal do direito brasileiro, p. 91).

Eis a lição de PUIG BRUTAU, referente ao direito espanhol: "Em síntese, parece-nos francamente sustentável que também o nosso Direito Civil é, em certa e indubitável medida, um direito elaborado pelos juízes, ou, em sentido mais amplo, um direito cuja evolução é obra dos juristas" (A jurisprudência como fonte do direito, p. 236).

S. BELAID, em substanciosa monografia sobre o poder criador e normativo do juiz, em várias áreas do direito, conclui, a certa altura: "No cumprimento dessa função indispensável e irredutível às outras funções do Estado, o juiz exerce necessariamente um Poder criador e ordenador certo, que atinge as diferentes manifestações da vida social e marca profundamente todos os aspectos do ordenamento jurídico. Neste sentido, parece legítimo falar de Poder jurisdicional no sentido pleno da palavra, ao mesmo título em que se fala de Poder Legislativo ou de Poder governamental" (Essai sur le pouvoir créateur et normatif du juge, p. 339).

Finalmente, as considerações de MARTIN OVIEDO: "O juiz, os tribunais, alcançaram assim, em nossos dias, um lugar-chave. Nisso andou implícita uma determinada concepção política do Estado de Direito, de modo que este, ainda que com todas as limitações que fora necessário estabelecer, se convertesse no ‘governo dos juízes’, tal como havia descrito e desejado, mais do que predito, Lambert. Quaisquer que sejam os problemas de índole política e constitucional que este novo ponto de vista acarrete, sobretudo no que se refere ao controle jurisdicional das leis, o certo é que a doutrina tomou com firmeza certos rumos em que o centro do sistema jurídico vem a ser desempenhado pela atividade judicial" (Formación y aplicación del derecho, p. 141/142).

6.2. Recursos hermenêuticos

SANTIAGO NINO mostrou os inúmeros recursos, canalizados pela dogmática, que facilitam, sem maiores transtornos, a contínua adaptação das leis às novas tendências e aspirações ético-sociais. Explica TÉRCIO FERRAZ JUNIOR: "Um direito positivado, como é o atual, tende a estreitar, em nome do valor certeza e do predomínio da lei como fonte básica, o campo de atuação do intérprete, dando-lhe poucas condições para recorrer com eficiência a fatores extrapositivos, como os ideais de justiça, o sentimento do eqüitativo, os princípios de Direito Natural etc. Nestes termos, o conceito de lacuna (e os que lhe são aparentados, como interpretação extensiva, conceitos valorativos, normas abertas etc.) confere ao jurista a possibilidade de se valer daqueles fatores extrapositivos como se fossem positivos ou, ao menos, positiváveis. Com isso se regula também o próprio uso da analogia, da indução amplificadora, do tirocínio eqüitativo do juiz, de fórmulas valorativas como "bem comum", "sentido social da lei", da chamada interpretação econômica de fenômenos jurídicos etc." (A ciência do direito, p. 84/85).

Trocando em miúdos, e falando com franqueza, são incertos os limites do que se chamaria interpretação ou criação do direito. Apontam-se alguns critérios, como o do sentido literal possível. Tudo o que o exceder já se encaixa, com mais propriedade, no trabalho de elaboração, construção ou criação jurídica.

Já tivemos inclusive oportunidade de afirmar que, em se aceitando previamente todos esses aparatos, é cômodo bater no peito e apregoar a heresia jurídica de toda e qualquer decisão contra legem.

6.3. Analogia e interpretação extensiva

Teoricamente, é fácil diferenciar analogia de interpretação extensiva. Esta seria permitida, mesmo em direito penal, porque mero resultado de um labor exegético ainda apoiado na lei. A analogia, por seu turno, teria que pressupor encerrado o processo interpretativo. Só se justifica a partir do momento em que nenhuma lei, mesmo encarada a sua elasticidade, abarcaria a hipótese dada. A identidade de certos elementos comuns ensejaria a extensão da lei ao caso em pauta, mas sempre com a ressalva de fazê-lo não mais como conseqüência de atividade interpretativa.

Entretanto, o que é analogia para uns, para outros é interpretação extensiva. Neste último caso não haveria problema de subsumir a hipótese num próprio texto de incriminação penal: o princípio da reserva legal proíbe a analogia, não proíbe a interpretação extensiva.

O que vale é o espírito da lei, e não a sua forma textual. O que vale é o sistema. Convém, em qualquer caso, consultar o fim que lhe é inerente, ou adaptá-la à normal evolução dos fatos sociais. E a letra? Nunca serve para nada? Isto é, o legislador é o eterno incapacitado para a utilização de uma terminologia correta? A interpretação restritiva não seria uma forma de burlar a clareza do texto?

Com todas essas sutilezas, que são apresentadas em linguagem natural, a exigir, portanto, mil explicações distintivas (não raro contraditórias ou inconvincentes), é mais honesto declarar insolúvel o problema e, coerentemente, admitir que em muitos dos pretendidos jogos de interpretação o que ocorre mesmo é uma disfarçada imposição, contra legem, dos valores acatados pelo intérprete.

6.4. Lacuna e ficção

Pondera PAUL FORIERS, ao abordar a questão das lacunas em direito: "Em suma, ou a lacuna é técnica: ausência pura e simples de regulamentação, ou ela é prática: presença de uma norma que o juiz considera, no estado atual de nossas concepções e de nossos costumes, como inadequada, e que ele afasta. Para resolver neste caso a antinomia entre a norma que regulamenta uma matéria e as exigências sociais, o juiz age como se esta regra estivesse revogada, ele cria fictivamente uma lacuna a fim de reencontrar sua liberdade de criar uma norma nova" (Les lacunes du droit, in Le problème des lacunes en droit, p. 23/24).

Eis a opinião de LUIS A. WARAT: "A natureza epistemológica da expressão ‘lacuna da lei’ é para nós a mesma que atribuímos ao abuso do direito; as duas noções cumprem a nosso modo de ver uma idêntica função, ambas devem ser vistas como fachadas de justificação para ocultar o caráter construtivo de certas decisões judiciais e o conflito de sistema de regulação que elas implicam" (Abuso del derecho y lagunas de la ley, p. 97).

Referindo-se à figura da ficção, assim se manifesta CHAÏM PERELMAN: "Algumas vezes, inclusive, para obter um resultado desejado, o juiz será obrigado a recorrer a uma ficção, quer dizer, a uma qualificação contrária aos fatos, mas que é a única técnica de que ele dispõe para chegar ao resultado sem modificar os termos da lei" (Le champ de l’argumentation, p. 128).

Pela ficção se restringe ou se aumenta indevidamente (embora, em regra, com boas intenções) o campo de extensão de uma lei. Ela também ocorre quando se nega, simplesmente, sua aplicação. Ótimo artifício, de acordo com as circunstâncias, é declarar a debilidade da prova produzida.

Um caso típico de falsa qualificação dos fatos ganhou renome internacional: "Mais curioso é o exemplo dos tribunais ingleses que, no começo do século XIX, se viram confrontados com uma lei que qualificava de "grand larceny" e condenava à pena capital todo roubo de um valor igual ou superior a 40 shillings. Durante anos, os roubos, qualquer que fosse sua importância, eram estimados em 39 shillings até o dia em que, em 1808, um roubo de 10 libras, isto é, de 200 shillings, foi qualificado como roubo de 39 shillings. Diante desta ficção flagrante, o Parlamento foi obrigado a modificar a legislação na matéria" (PERELMAN, Chaïm. Droit, morale et philosophie, p. 142).

"Na Bélgica e na França – relata PERELMAN em outra obra – em vários casos de eutanásia, enquanto os fatos eram patentes e não controvertidos, o júri respondeu negativamente à questão: "A acusada é culpada da morte de tal pessoa"? Foi assim que uma mãe de família respeitada, tendo cientemente, com a ajuda de seu médico católico, provocado a morte de seu filho, nascido monstruoso em razão dos efeitos, nefastos mas desconhecidos à época, de uma droga, o softenon, foi declarada não-culpada pelo júri de Liège, enquanto nem a lei francesa nem a lei belga distinguem os casos de eutanásia de um homicídio puro e simples" (Logique juridique - nouvelle rhétorique, p. 63).

Há, em ambos os exemplos, um indiscutível fundo sentimental, em contraste com a brutalidade das soluções legalistas.

No Brasil, porém, e mesmo em Santa Catarina, a ficção no Tribunal de Júri ganha ares de insensatez. É assim que tiros de revólver pelas costas, contra vítima desarmada e desprevenida, já ensejaram o reconhecimento da legítima defesa putativa; e certeiras facadas no coração não foram reputadas causa da morte, nada obstante a opinião categorizada dos peritos oficiais. É possível que a vítima nem tenha morrido...

Os tribunais de júri, aliás, em qualquer parte do mundo, se mostram mais à vontade para uma decisão contra-legem, servindo-se largamente da ficção.

6.5. Antinomia valorativo-normativa

Um modo incisivo de decidir contra a lei é antepor-lhe, abertamente, um preceito geral mais elevado, que anularia sua aplicação. É o caso das antinomias: "Pela criação de uma antinomia entre uma disposição do direito positivo e uma regra de direito não escrita, limita-se o alcance do texto e se cria uma lacuna que o juiz preencherá conforme à regra de direito não escrita" (PERELMAN, Chaïm, ob. cit., p. 143).

Preferimos, neste caso, não falar em ficção jurisprudencial porque o jogo é feito às claras, sem outros subterfúgios. Em sentido amplo, porém, não há mal algum em rotular de ficções judiciais todos os meios utilizados para uma decisão contra legem.

Um detalhe: quando está em jogo a imposição de um comportamento é sempre útil subentender no texto a expressão "podendo e devendo fazê-lo, nas circunstâncias". O legislador, quase sempre, não utiliza ressalvas dessa natureza, e daí o risco de se pensar que o texto deve ser aplicado mecanicamente, como a valer por si só, independentemente das razões que o motivaram. Se as circunstâncias revelam que não havia sentido para o comportamento previsto deve-se considerar que desapareceram os motivos para a apenação correspondente. Isto é, que o dispositivo, simplesmente, não se aplica à hipótese. Neste caso não se está diante de nenhuma criação de antinomia. Foi o processo interpretativo que conduziu à afirmação da ausência de enquadramento.

Assim, por exemplo, quando o Código Penal determina no artigo 121, § 4º, que a pena é aumentada de um terço "se o agente deixa de prestar imediato socorro à vítima", certamente o faz no pressuposto de aumentar a culpabilidade daquele que não age de conformidade com a conduta preconizada. Mas se terceiros se anteciparam ao socorro, já não há mais razão para se continuar exigindo o que, nas circunstâncias, se mostrou impossível, desnecessário ou supérfluo. Desaparece, concomitantemente, o pretendido acréscimo de censurabilidade ético-social. Insistir na apenação só porque, na realidade, a atitude do réu corresponde matematicamente à descrição literal da lei é revelar um diminuto horizonte de raciocínio no que tange aos pressupostos do labor hermenêutico.

Esclarece KARL ENGISCH: "Se se considera o claro ‘teor verbal’ como um limite absoluto da interpretação, já não se trata aqui certamente de interpretação – nem sequer de uma interpretação frouxamente vinculada, enquanto se entenda que esta pressupõe um teor verbal ambíguo (plurissignificativo) e se afasta do sentido vocabular mais imediato e aparente, na direção de um mais distante. Mas as coisas já se apresentam doutra forma se entendermos os conceitos de interpretação ‘restritiva’ e ‘extensiva’ no sentido de que, através destes modos de interpretação, se faz vingar a genuína vontade ou a verdadeira valoração de interesses do legislador" (Introdução ao pensamento jurídico, p. 277).

Procedemos a estas considerações paralelas com o fito exclusivo de sublinhar o caráter diverso da antinomia há pouco referida. Nesta hipótese é o próprio dispositivo de lei que é confrontado com algum princípio extralegal ou supralegal. Trata-se de antinomia valorativo-normativa, pois se dá preferência, pelo contraste, a valores mais altos que estão implícitos no preceito reputado prevalente.

Assim, ao afirmar-se numa decisão – e vimos que isto tem ocorrido, inclusive, no Tribunal de Justiça de Santa Catarina – que o "pequeno prejuízo" deve ser levado em conta, para tratamento privilegiado, num delito (furto) que só o comporta se a coisa subtraída é de "pequeno valor", já não mais se está, de forma alguma, interpretando o dispositivo correspondente. Foi precisamente a atividade interpretativa que o considerou inadequado para a correta solução da espécie em julgamento. Cotejado com a regra do "pequeno prejuízo", que se reputou bem mais apropriada, sofreu os efeitos de eclipse momentâneo, como se não existisse. Vingou, em seu lugar, norma ou preceito não escrito, indicado como razão de decidir. Desta feita, nada de máscaras ou véus encobridores: decisão abertamente contra legem.

Note-se que até mesmo em relação ao estelionato privilegiado, em que a referência ao pequeno valor do prejuízo é feita pelo próprio legislador, parcela da doutrina e da jurisprudência limita o seu alcance: "(...) a lei tem em vista o prejuízo ao tempo da consumação do tipo penal", sua aleatória reparação "não pode ter força retroativa para desclassificar a infração penal do tipo fundamental para o privilegiado, uma vez que aquele já se encontrava perfeito e acabado quando da consumação" (JESUS, Damásio de, Decisões anotadas no STF em matéria criminal, p. 125 e 123).

Portanto, se o dispositivo legal do estelionato serviu de inspiração para decisões sobre o furto, contrariando norma expressa e específica, nem ao menos se apresenta isento de contestações quanto a seu campo extensional. Mas uma coisa é certa: para o estelionato há o consolo do "sentido literal possível", enquanto para o furto o consolo está na convicção do valor predominante de princípio supra-legal, adaptado às circunstâncias.

6.6. O espírito da lei

É preciso, entretanto, não confundir esse recurso extremo a um princípio não escrito com a indispensável atividade de pesquisa do espírito da lei, da razão que a inspirou, do fim que tem em vista. E como inexistem fórmulas definitivas para o exato equacionamento do problema não há outro jeito senão depender da intuição, da sensibilidade, da fineza de raciocínio e de apreensão, ou o nome que se dê à capacidade interpretativa do juiz em face do caso concreto.

O certo é que o texto (o invólucro, a roupagem verbal) se revela insuficiente, não raro, para abranger o que, nada obstante, se pretendia abrangido. Ou, então, se mostra excessivo em confronto com o objetivo implícito do legislador. A lição é milenar e encontra respaldo na experiência. Não há por que abandoná-la, ainda que persistam as dificuldades – e persistirão eternamente – para o traçado de limites com o trabalho de autônoma criação do direito.

Seria, por exemplo, fruto de imperdoável apego à letra da lei a inclusão de um alfinete comum entre as "coisas" que podem ser objeto da materialidade do furto. Se o legislador, portanto, deixa de fazer ressalvas sobre as coisas que, por sua extrema insignificância econômica, saem do âmbito de incidência do dispositivo (C.P., art. 155), não está por isso negando essa possibilidade. Exagerada e inadmissível a posição dos que veriam nessa delimitação um arbitrário mecanismo de retificação da lei e conseqüente criação judicial do direito. É que essa contribuição do intérprete, sendo prevista e admitida pelo legislador, é apenas reveladora do sentido e alcance da norma.

Só que ninguém é competente para, em teoria, indicar a quantidade mínima de alfinetes para a tipicidade do delito em pauta. Volta-se, com isso, à questão das "zonas" de luminosidade, de penumbra e de obscuridade. É na zona intermediária que ocorrem as verdadeiras dificuldades de hermenêutica, sendo impossível afiançar, com base em critério algum, que na hipótese dada ainda está presente o "espírito" da lei.

Inevitável, pois, na tarefa de interpretação e aplicação do direito, a dose de subjetividade, que se espera prudente, ponderada, razoável, sem que, com isso, se possa pretender resolvido o impasse. Restaria apontar os critérios objetivos de prudência, ponderação e razoabilidade.

Nessa linha de raciocínio, e desde que se voltem os olhos para a realidade dinâmica do direito, impõe-se o reconhecimento de uma efetiva participação normativa do julgador e da importância persuasiva da construção doutrinária dos argumentos de autoridade, aos quais aquele não está imune. Mas, no final de tudo, fundamentais são o selo e o rumo da decisão tomada.


Capítulo 7

7.1. Uma certa autonomia decisória. 7.2. O princípio da reserva legal. 7.3. Justiça penal material. 7.4. Defeitos de valoração e entraves dos limites abstratos da pena. 7.5. As peculiaridades do crime de omissão de socorro. 7.6. O problema do formalismo. 7.7. Tribunal do júri

7.1. Uma certa autonomia decisória

Por tudo o que já foi dito se mostra deveras contestável a assertiva de que o juiz deve cumprir, ou cumpre efetivamente, em razão do princípio constitucional da separação dos poderes, a norma ditada pelo Legislativo ou quem suas vezes fizer. Vá lá que o faça com mais ímpeto em determinadas áreas, de maior conteúdo político, social e econômico. É possível que em certos setores se autodiscipline, pela transcendência da matéria, cercada de pressões externas de toda espécie. Pode ocorrer, mesmo, que se sinta totalmente manietado, mas então não estará mais julgando, pois o julgamento implica uma dose mínima de liberdade para uma opção.

Essa liberdade deveria desaparecer se fosse possível ao legislador prever a solução adequada para todas as situações da vida real, submetidas a julgamento. Ora, tal não ocorre, evidentemente. "É somente em nome de uma justiça perfeita que seria moral afirmar pereat mundus, fiat justitia", adverte CHAÏM PERELMAN (Justice et raison, p. 80). Donde a necessidade de se conferir ao juiz, pelo contato com as peculiaridades do caso concreto, uma certa autonomia para a decisão.

Ninguém desconhece que isso representa riscos. Dos males, porém, o menor. A propósito, estamos mais ocupados em ver como as coisas acontecem e não como as teorias querem, às vezes inutilmente, modelar o mundo.

7.2. O princípio da reserva legal

Sem embargo, continuamos a advogar o "nullum crimen, nulla poena sine lege", reflexo de uma comprovada maturidade político-jurídica dos nacionais (BASTOS, J.J.C., Interpretação e analogia em face da lei penal brasileira, p. 61). Embora reduzido, com propriedade, às suas devidas proporções, de princípio ocasionalmente retórico (ou totalmente retórico: WARAT, L.A; CUNHA, Rosa M.C., Teoria geral do delito em instrução programada, p. 40/45), o fato é que vem surtindo, na prática, os efeitos que dele se espera. Sem reabrir o debate, adiantamos nossa incondicional adesão a esse precioso apotegma, plenamente válido para os dias de hoje, por sua conotação de garantia do indivíduo perante o Estado.

É claro que não o endossamos por amor ao princípio, pura e simplesmente. Adotamo-lo, com toda a convicção, porque temos os olhos voltados para nosso ordenamento jurídico-penal. Destarte, se nas condições atuais de nossa organização social o legislador brasileiro resolvesse abolir o latrocínio da lista dos delitos não relutaríamos em reconhecer no juiz a faculdade e o dever de uma condenação contra legem.

7.3. Justiça penal material

Se chegamos a esse ponto, eivado, quem sabe, de um certo paradoxo, fácil é deduzir o que pensamos de uma decisão que se afasta do rigorismo da lei para, em benefício do acusado, aproximar-se do que se poderia denominar de justiça material. Não a entendemos apenas possível, mas conveniente e necessária.

Por maior que seja a legitimidade dos parlamentos para a definição dos crimes e cominação das penas não se há de desconhecer que os respectivos preceitos não conseguem jamais traduzir uma exata exigência de justiça adaptada às características do evento. Devem ser encarados muito mais como proposta do que como solução. Dimanando, contudo, de onde dimanam, hão de merecer, como regra, mesmo porque o magistrado não é onisciente, uma espécie de acatamento prévio, que afinal se efetiva na falta de melhor critério. Qualquer legislação, entretanto, se apresenta com uma elevada carga de ideologia política, ou, pelo menos, de valores assimilados de toda ordem, de conformidade com a matéria regulada. Se essa ideologia política, ou se esses valores, na área penal, entram em choque, violentamente, com as concepções dominantes, favoráveis ao acusado, de que o juiz também é guardião, devem ser suplantados por estas últimas. A menos que ao juiz se negue a função e, em conseqüência, o Poder.

A maneira de captar as "concepções dominantes" acarreta um novo problema, praticamente interminável. Relaciona-se com os riscos a que aludimos. Pode mesmo ocorrer que sirvam de capa ou véu para o prevalecimento da ideologia do magistrado, que não sai por aí a fazer sondagens de opinião pública (nem sempre, aliás, as melhores). Não nos furtamos, contudo, a reafirmar nossa posição, pois vemos no ordenamento jurídico-penal brasileiro defeitos gravíssimos que só podem ser superados pela conscientização profissional do juiz.

7.4. Defeitos de valoração e entraves dos limites abstratos da pena

Parece ajustar-se ao sistema brasileiro a observação de R. SCREVENS a propósito do Código Penal da Itália: "O objetivo do legislador italiano é limitar o poder do juiz, dando-lhe o máximo de indicações legais" (Droit pénal comparé, p. 67).

Com efeito, nosso sistema jurídico-penal não oferece ao magistrado variáveis de opções impostas pelos pormenores do caso concreto em julgamento. Os interesses sociais, confundidos com a ideologia do Código, afastariam qualquer ingerência mais ousada do magistrado. Instituídos os mínimos e máximos da pena cominada abstratamente, teriam que ser respeitados com uma reverência religiosa, inquestionável, avassaladora. Pouco adiantava que o legislador abraçasse critérios absurdos e conflitantes.

A reação do juiz, embora lenta, não se fez por esperar. Assim, quando não utiliza a ficção, ou quando não antepõe à lei um princípio qualquer, reputado superior, faz da interpretação o instrumento maleável de sua preocupação de minimizar – no que nem sempre é feliz – o fato criminoso, aplicando, então, a pena mínima, ou absolvendo o acusado. Em outras palavras, sem condições para decidir em eqüidade, face à inexistência de opções gradativamente escalonadas, acaba adotando uma solução que, na base do "sim" ou do "não", fatalmente conduz a uma injustiça. Fica somente o conforto de haver evitado mal maior.

Trata-se de sistema excessivamente rígido em suas estruturas, atenuado pela lei n.º 6.416, de 24 de maio de 1977.

Permanecem de pé, todavia, os critérios de apenação que equiparam, por exemplo, a subtração de um pacote de biscoito, cometida em co-autoria, à perda total da visão; que valorizam com o mesmo peso uma bicicleta de criança milionária, furtada mediante fraude, e as mãos do pianista ou do trabalhador braçal; que permutam, com a maior naturalidade, a deformidade permanente ou a doença incurável com a nota de cem cruzeiros subtraída, em confiança, pela empregada doméstica.

Ai do servidor público que, num momento de fraqueza, recebe alguns trocados em razão da função, por mais miseráveis que sejam seus vencimentos. A lei não vê quantidade, não distingue entre pequeno e grande valor, e, em conseqüência, lhe destina reclusão de um a oito anos, e multa de seis mil a trinta mil cruzeiros. Até recentemente era pena para ser cumprida na sua totalidade, como regra geral, vedada a concessão de "sursis".

Contudo, como anotamos alhures, se ele deixa morrer um ser humano que eventualmente precisa de seu socorro, em grave e iminente perigo de vida, podendo prestar-lhe auxílio sem o menor risco pessoal, com um simples estender de mão, e assim procedendo por desejar-lhe a morte, friamente, calculadamente, seu drama é bem menor. Dizem os doutos (nem todos) que não pratica homicídio, mas omissão de socorro, avaliada somente em três a dezoito meses de detenção (permissiva, há muito, do "sursis") ou em multa de mil e oitocentos a doze mil cruzeiros) (Omissão de socorro e homicídio, p. 24/52).

7.5. As peculiaridades do crime de omissão de socorro

Doutrina e jurisprudência se unem para minimizar os crimes que afetam a vida e a integridade física de outrem.

É o preço que pagamos pelo incompreensível medo de uma justiça arbitrária, sem freios, sem controle, sem escrúpulos. E, também, pela imprevisão do legislador no que concerne à possibilidade de um tratamento privilegiado do crime comissivo-omissivo. Mas fica somente aí a imprevisão. Porque o legislador, no pleno exercício do seu poder normativo, também considerou como causa do crime "a omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido" (Código Penal, art. 11).

Eminentes doutrinadores, no entanto, embora reconhecendo que "o nosso direito positivo parece firmemente fundado na causalidade da omissão e silencia totalmente a respeito do dever jurídico de agir" (FRAGOSO, H.C., Conduta punível, p. 187) se apressam em negar vigência ao artigo 11, combinado com os artigos 15 e 121 ou 129, por exemplo.

Alega-se "que o dever jurídico de agir, nos crimes comissivos por omissão, não pode ser o que resulta da norma penal relativa aos crimes omissivos puros. Em tais casos, a própria norma penal estabelece a sanção para a inobservância da ordem, sendo cabível qualquer outra conseqüência penal pelos resultados da omissão (idem, p. 189).

Pouco importa se o artigo 135 retrata crime tipicamente de perigo, com dolo de perigo: "A ocorrência do dano não se compreende na volição ou dolo, pois, do contrário, não haveria por que distinguir entre tais crimes e a tentativa de crime de dano" (Exposição de Motivos do Código, n.º 43, in fine). O que importa, custe o que custar, e até mesmo a contradição evidente com paralelas afirmações acerca da exegese do artigo 135 (FRAGOSO, H.C., Lições de direito penal, parte geral, p. 196; parte especial, vol. 1, p. 99), é o reforço da função da garantia do tipo.

Somos os primeiros a admitir a altaneira preocupação de antepor a lei ao arbítrio judicial, diante, principalmente, das desastrosas conseqüências de eventual erro de julgamento acerca do elemento moral do crime. Entretanto, não nos furtamos a vislumbrar na doutrina esposada o visível caráter inventivo, haurido em argumentos extra-legais, com certo grau de razoabilidade, mas em franca oposição ao nosso ordenamento jurídico-penal.

Consola-nos o fato de outros eminentes autores advogarem ponto de vista diverso (BRUNO, A., Direito Penal, vol. 4, p. 254; FARIA, B., Código penal brasileiro comentado, vol. 4, p. 133; LUNA, E. da C., Estrutura jurídica do crime, p. 225 e 226; MARQUES, J.F., Tratado de direito penal, vol. 4, p. 333/334; RIBEIRO, J.S, Código penal comentado, vol. 3, p. 179; VERGARA, P., Delito de homicídio, p. 146) e a certeza de que as peculiaridades do caso concreto (se um dia, infelizmente, existir algum), pela sua monstruosidade, haverão de redespertar no julgador o direito e o dever, desta feita com inteiro amparo legal, de simplesmente fazer justiça.

Em verdade, é a ausência de soluções intermediárias que obriga a doutrina a retificar o alcance da lei, como se dá com a teoria do dever jurídico de agir. O legislador concorre, inconscientemente, para a escolha de soluções que não seriam, a rigor, as mais adequadas.

7.6. O problema do formalismo

Outras vezes, apegado ao ritualismo, a tabus formalistas, é o próprio juiz que, talvez mais legalista que a própria lei, entrega em holocausto sua liberdade e consciência, que ditariam a solução correta.

Imaginemos alguém que pratica tentativa de homicídio. O Ministério Público, no entanto, eventualmente procurando um caminho mais rápido (o procedimento, em regra, é lamentável), o denuncia por lesão corporal grave. Mas qual, aparecem falhas na perícia, falta o compromisso legal, as assinaturas são ilegíveis, não bastam fortes probabilidades científicas, só consta o nome de um experto, o texto é lacônico etc. Os sortilégios e magias da devoção ritualística reduzem o evento à dimensão de uma lesão corporal leve. Completa-se a cerimônia, se o réu é primário, com a apenação no mínimo legal (3 meses de detenção). Depois o inevitável: concessão de "sursis" ou liberdade plena, irrestrita, pelo reconhecimento da prescrição.

Observações semelhantes dizem respeito aos desastrosos efeitos da distinção entre crimes de ação pública e ação privada. Já se nota um certo esforço – espécie de ressurreição – no sentido de se evitar, por simples e religioso amor ao rito, ou às doces palavras da lei, injustiças das mais chocantes, em detrimento da vítima e dos mais caros interesses sociais. A segurança jurídica, até então confundida, em certos setores, com a divinização de textos meramente formalísticos, cede lugar às pressões de ex-devotos, contestadores, rebeldes, na doutrina e na jurisprudência, com razão preocupados com a nocividade intrínseca dos fatos reconhecida pelo próprio Código.

O Brasil é um país que nega à vítima de um estupro, ou a seus familiares, o direito de recorrer ao Ministério Público, se não são necessitados nos termos da lei. É um resíduo de sadismo legislativo. Já que a vítima sofreu tanto, dada a barbaridade do delito, com graves e esperadas repercussões em seu psiquismo, deve contratar advogado, desfazer-se de um terreno, de uma vaquinha, e viver os azares da ação penal privada. É a única maneira de alcançar uma duvidosa sentença condenatória. Ou, no que concerne à lei, de desencorajar uma demanda...

Dignas de transcrição, a propósito, algumas das conclusões de João José Leal inseridas em precioso trabalho a que intitulou "A ação deve ser pública, sem exceções":

b) A ação penal privada constitui-se num ônus indesejável para o ofendido, que além do prejuízo moral e às vezes material, deverá despender parte de seu patrimônio para processar criminalmente o seu ou o ofensor de um seu dependente. c) Por estabelecer uma distinção burguesa e capitalista entre ofendido rico (que deverá custear as despesas) e ofendido pobre (que gozará do benefício da justiça gratuita), a ação penal privada não mais se coaduna com os princípios modernos da democracia social, que defende a igualdade jurídica para todos. d) Ensejando uma série de possíveis irregularidades ou de nulidades de ordem processual, a ação penal privada não se revela aconselhável, eis que desvirtua a justiça penal de seus fins mais legítimos. Na verdade, uma série de requisitos relacionados especificamente a este tipo de persecução criminal dificulta seu exercício pelo particular, favorecendo somente o delinqüente, que poderá ser beneficiado com a extinção da punibilidade por decadência, perempção ou perdão (in Revista Jurídica do Ministério Público Catarinense, vol. 1, p. 103/104).

7.7. Tribunal do júri

E já que temos falado, aqui e ali, de segurança jurídica, não custa lembrar, incidentemente, o nefasto papel desempenhado pela instituição do júri. Vinculada, por determinação constitucional, aos crimes dolosos contra a vida, que deveriam merecer maior proteção, conseguiria desorientar o mais ingênuo e fanático de seus defensores se ele se desse ao trabalho de consultar os volumes de jurisprudência com ela relacionados.

Há limites para a ficção jurídica. E se existe um órgão que dela usa e abusa em escala hipertrófico-patológica este órgão tem um nome: é o tribunal do júri. Afora as muitas exceções de praxe, tem cumprido fielmente a função de legitimar o homicídio, por mais bárbaro que se afigure, ou de conferir-lhe atenuantes terrivelmente falsas, fenômeno que só pode ser explicado por despreparo, ignorância ou má-fé, e quase nunca por uma razoável preocupação de fazer justiça.

Trata-se, aliás, de assunto antigo. A última coisa que se pode alegar é a falta de experiência na matéria. Já ponderava FILINTO BASTOS, em 1911: "Indiquei a impunidade (...) pela proteção desenvolvida, de modo escandaloso, perante os jurados que, na maioria dos casos, a não se tratar de um celerado desprotegido ou de algum ladrão, especialmente de gado vacum ou cavalar, absolvem os réus ou lhes impõem o mínimo de pena. Referi-me à incontestável decadência do Júri, por sua defeituosa organização e pelo menosprezo em que o têm os juízes de fato, que embaraçam a constituição do Tribunal e são indiferentes à repressão legal como às observações judiciais" (Estudos de direito penal, p. 208/209).

Inútil corrigir o instituto por meios exclusivamente jurídicos, como é do nosso feitio.

Preferimos, outrossim, deixá-lo de lado na pesquisa. Ainda que se constitua no mais evidente exemplo de plena, total, completa e acabada autonomia judicante, citamo-lo apenas de passagem. Seria um exagero tomá-lo como paradigma. Mas vale a observação final: a instituição persiste, para nosso orgulho democrático. Acima de tudo os princípios. Pouco importa se, na prática, redundem na concretização da "democracia do homicídio".


Capítulo 8

8.1. Segurança jurídica e justiça formal. 8.2. Separação dos poderes e criação judicial. 8.3. A interpretação como atividade cognoscitiva. 8.4. Vontade criadora do direito. 8.5. Julgamento com independência. 8.6. Síntese final

8.1. Segurança jurídica e justiça formal

Não deixa de ser curiosa a apregoada reserva que muitos juízes fazem de sua missão. Educados para o respeito à lei, cujo apanágio chega a constituir o ponto básico de sua deontologia profissional, negam abertamente a função criadora que, no final das contas, acabam exercendo. É que a lei, impessoal e genérica, se associa não somente à segurança mas a um tipo de justiça que não pode ser desprezada: a justiça formal, a exigir o mesmo tratamento para os casos iguais ou visivelmente aparentados. Como reconhecer, pois, que se foge a tão respeitável binômio? Como admitir que a decisão decorreu muito menos de um raciocínio silogístico, tendo a lei por premissa, do que do exame imparcial de suas conseqüências? Há que se responder negativamente à questão, em compreensível autodefesa, ainda que a história persista em provar o contrário.

8.2. Separação dos poderes e criação judicial do direito

Sim, tinha que sofrer um desgaste, e daí ser reinterpretada, a teoria da separação dos poderes. Seus antecedentes filosóficos e as primeiras aplicações práticas, após a Revolução Francesa e os códigos napoleônicos, não deixavam dúvida de que a lei – encarnação da razão e do próprio direito natural – promulgada pelo Poder competente, como representante da nação, haveria de impor-se por si mesma diante dos outros Poderes. Portanto, deveria o Judiciário limitar-se à sua constatação, vedada qualquer exegese, ou, pelo menos, qualquer interpretação que se afastasse dos limites impostos pelo texto. O melhor método teria que ser o lógico-gramatical. A busca do "pensamento do legislador" já seria em si perigosa, apenas se justificando quando visível a imprecisão do texto. O importante, de qualquer forma, seria o respeito integral ao que fora estatuído pelo legislador.

Pois bem, os erros que o princípio acarretava e os abusos supervenientes, levados ao apogeu na Alemanha Nazista, concorreram para que se atenuasse sua força retórica e, mais do que isso, para que sofresse radical cirurgia, estético-reparadora, a ponto de tornar-se quase irreconhecível.

Os primeiros retoques, confessados e requisitados, decorriam da impossibilidade de se prever, para submetê-la a controle prévio, a infinita variedade das situações da vida gregária. Impunha-se a contribuição judicial, ainda que pelo recurso à reta razão, direito natural, analogia, princípios gerais de direito, etc.

O caminho estava aberto para outras incisões, certamente mais profundas. O direito, por exemplo, residiria nos costumes e na jurisprudência neles baseada. Ou se ligaria à idéia de fim, porque instrumento de uma vontade e da luta por sua implantação. Teria que ser interpretado, e aplicado, com base nas circunstâncias reveladoras de seu fim.

Os choques de interesses estariam longe de encontrar a solução, de um modo automático, em regras pré-fixadas. O caso concreto revelaria ao juiz, não raro, a necessidade de "construir" a norma a ele ajustável. Para tanto, nem sempre bastava o emprego dos métodos tradicionais. As constantes transformações da vida social demandavam o reconhecimento de outras fontes, descobertas através da chamada "livre investigação científica".

Um pouco mais e o círculo se completa: acima de tudo os fatos sociais e a relatividade dos valores; a condição psicológica do juiz; a negação da metafísica e de direitos naturais absolutos; o "direito justo" e por isso livre de quaisquer amarras legais.

Explica-se: deixa a lei de ser fetichizada. Desce de seu pedestal. É feita por seres humanos, que não conseguem a tudo abarcar em fórmulas estereotipadas. Que obedecem, além disso, a critérios que logo ficam envelhecidos ou incapazes de se adaptarem às necessidades decorrentes da crescente complexidade da vida comunitária. A situação concreta, geradora do "problema", se mostra incapaz de se encaixar na solução apriorística e pretensamente inserida num plano sistemático.

Por trás de tudo o aspecto voluntarístico da interpretação, em contraste com o seu caráter meramente cognitivo. Assim como o legislador se move com certa liberdade dentro dos quadros da Constituição também o juiz se vê diante de mais de uma possibilidade, a requerer uma opção que vai redundar, inevitavelmente, na criação do direito (norma individual). O mesmo não se poderia dizer do teórico ou doutrinador, que se teria de limitar a apontar os sentidos possíveis da norma geral (KELSEN, Hans. Théorie pure du droit, p. 453/463).

8.3. A interpretação como atividade cognoscitiva

Impõe-se, no entanto, segundo entendemos, uma ressalva. Em sentido estrito, interpretar uma lei é revelar o sentido e alcance de seus termos. É processo que se prende ao conhecimento, e não à vontade. Trata-se apenas de "atividade cognoscitiva através da qual se indaga e se descobre a vontade da lei, aplicando-se um conjunto de regras e princípios" (FRAGOSO, Heleno. Lições de direito penal, parte geral, p. 90). Por outro lado, preceito comezinho de lógica impede se admita que o legislador queira e não queira, ao mesmo tempo. A solução da lei, no fundo, mesmo adaptada às circunstâncias, é uma só. O que ocorre são as naturais dificuldades ligadas ao processo interpretativo: a primeira delas diz respeito ao objeto, à roupagem normativa (problemas de lingüística, por exemplo) e a segunda ao agente da interpretação, que não pode se libertar de suas limitações pessoais, das peculiaridades do caso, dos valores incorporados à sua personalidade.

8.4. Vontade criadora do direito

Daí, portanto, as inevitáveis divergências, o que não elimina um razoável consenso acerca dos chamados "casos típicos". Os debates se cingiriam à "zona cinzenta", de um modo geral. E, como o juiz não pode deixar de decidir, há que se reconhecer que, na prática, nada obstante seu esforço de imparcialidade, de consulta aos valores dominantes, sua vontade acaba sendo criadora de direito. E isto tanto diretamente, no caso concreto, como indiretamente, através da publicação de acórdãos, quando integrante de tribunal superior. Na hora de fundamentar o veredicto não lhe parece difícil inverter o raciocínio. A solução que lhe pareceu correta, ou seu princípio norteador, ao invés de ponto de partida, passa a constituir a conseqüência da premissa fornecida pelo texto da lei.

O direito, diz-se então, quem o faz é a experiência, e não a lógica. Direito se constrói, pedra por pedra, de acordo com as circunstâncias e em função dos valores que a lógica do razoável, do humano, se encarrega de revelar.

Condescendentemente, aceita-se de certa forma o "sistema", porém com a ressalva de não se fechar jamais, porque fruto da capacidade de abstração, de generalização, é verdade, mas sempre como produto inacabado, suscetível de enxertos, adaptações.

Mais. A lei, se injusta, deve ser afastada. Direito injusto, para alguns, deixa de ser direito. Além isso, a lei não enseja a tão propalada segurança jurídica. Sua linguagem, como se viu, está longe de assemelhar-se à linguagem simbólica da matemática ou da lógica formal. As divergências doutrinárias e jurisprudenciais em face do mesmo texto certificam-lhe a imprecisão dos termos, as ambigüidades e incoerências. Declarações internacionais podem ser assinadas por países de ideologias opostas. Seus termos vagos se adaptam a todos os matizes (PERELMAN, Chaïm. Droit, morale et philosophie, p. 71).

As férias de um juiz, um ocasional afastamento, representam derrota ou vitória. E aquele jurisconsulto antes tão citado perde, aos poucos, terreno e autoridade. É lei sociológica: o respeito ao texto normativo é inversamente proporcional à sua petrificação no tempo.

8.5. Julgamento com independência

Reviravolta, pois, no próprio conceito de separação de poderes.

É que julgar, em suma, é optar entre valores. Se se pretende conferir ao Judiciário o "status" de autêntico Poder então não se lhe pode exigir mentalidade e atitude mecanicistas. Todo o poder emana do povo e não apenas o Poder Legislativo. A dignidade da função judiciária impõe-lhe, exatamente, essa independência. O acerto das decisões vai depender principalmente do estofo moral de seus integrantes, assim como a boa lei depende da personalidade dos legisladores.

Quando possível e conveniente, decide-se contra a lei, se esta não atende a elementar princípio de justiça. Recorre-se, destarte, à ficção, destinada a dar aparência de legalidade à sentença: finge-se que a solução se encaixa em determinado preceito, uma boa redefinição de conceitos já se mostrando capaz de atingir o mesmo objetivo.

Outras vezes, nada de encenações. Basta opor o "summum jus, summa injuria" ao "dura lex, sed lex" e assim afastar, com elegância, a decisão incômoda e constrangedora.

Age-se, pois, com ou sem ficção, exatamente como se vem fazendo há milênios, no incessante trabalho de construção do direito.

8.6. Síntese final

Se tivéssemos, agora, de concluir, diríamos em síntese final que:

I – O Tribunal de Justiça de Santa Catarina, à semelhança de outros Tribunais, e da própria Corte Suprema, vem decidindo conscientemente contra a lei em processos criminais em que, a seu juízo, o valor justiça deva preponderar. Serve-se, para tanto, de dois recursos ou técnicas fundamentais: o da ficção jurídica, destinada a emprestar aparência de legalidade à decisão (ficção quanto à prova dos fatos e ficção quanto a seu enquadramento legal), e o da adesão a preceito não escrito, reputado superior e por isso prevalente. As expressões preferidas, na criação dessa antinomia, são as de política criminal e summum jus, summa injuria.

II – A decisão contra legem constitui fenômeno universal, observável em todas as áreas do direito. Aumenta à medida que o texto legal se petrifica no tempo. Desmentindo, na prática, o princípio retórico da separação dos poderes, nos moldes em que era originariamente concebido, acabou concorrendo para que este sofresse reinterpretação compatível com a nova realidade. Admitida dentro de certos limites, jamais identificáveis, confere ao Judiciário o status de autêntico Poder, com todas as suas conotações políticas, econômicas, sociais e ético-jurídicas.


Capítulo 9

Sumário: 1. Direito como fato histórico. 2. Pluralismo jurídico. 3. Lei, ideologia, intérprete. 4. Decisão contra a lei. 5. Jogo de trocas recíprocas.

1.Direito como fato histórico

No capítulo do crime continuado – um dos temas da dissertação – já chamávamos a atenção para o tópico que mais nos preocupava, referente aos limites da decisão judicial. Ficou evidenciado que, para a resposta, pouco adiantavam as teorias de gabinete, desapegadas de base empírica.

É que o direito, se existe como fato histórico, como realidade palpável, haveria sempre que prevalecer diante de quaisquer outras pretensões apriorísticas, por mais racionais que se apresentassem. Assim sendo, conviria como ponto de partida abandonar qualquer espécie de reducionismo epistemológico e, ao mesmo tempo, buscar nas diversas correntes interpretativas as fontes de inspiração e de explicação, ainda que circunscritas, tantas vezes, ao plano meramente ideológico.

Difícil, com efeito, senão quase impossível, ascender a nível mais elevado, de cunho científico ainda mais rigoroso. É que o direito, quer como fato, quer como norma, quer como valor, a suscitar enfoques relativamente particularizados, refoge em sua síntese, em sua unicidade, em sua dinamicidade, aos rígidos espartilhos de teorias preestabelecidas. O direito é e, não, deve ser.

Tal afirmação, é bom que se ressalte, está longe de incompatibilizar-se com a amálgama didática entre fato, valor e norma. Dizer que o direito é não significa, em absoluto, reduzi-lo ao simples fato. Que fato? O fato histórico da criação legislativa, da decisão judiciária, do comportamento humano em geral. É que tais fatos deixam sempre entrever, com maior ou menor facilidade, sua carga valorativo-normativa. A lei, como norma, está presa a um valor, mas pode e deve ser encarada igualmente como fato concreto, como algo certo e definido no tempo e no espaço. Mesmo que por força de expressão, de sabor metafórico, uma lei nasce, cresce, definha, morre. Uma lei se pesa, se avalia, se julga, se aplaude, se cumpre, se descumpre. Respeitadas certas diferenças, é o que ocorre com a sentença judicial, com a decisão administrativa, com a conduta humana.

Além disso, é preciso ter sempre em mente que os valores, não raro, não passam de abstrações que os próprios fatos se encarregam de revelar em seu conteúdo concreto. Apresenta-se, com estes, a faceta material que arrasta consigo sua nova configuração ou delimitação. O valor, é claro, permanece, mas sempre condicionado, com variável elasticidade, à força contagiante dos próprios acontecimentos, reveladores, por seu turno, uma vez acatados, de uma nova conscientização, de um novo modo de encarar as coisas.

Daí termos admitido, a certa altura, a compatibilidade de uma interpretação "verdadeira" com sua "mobilidade". E não poderíamos pensar de modo diverso. Mero instrumento de controle social, não pode a lei decretar ou impedir o que está fora do seu alcance. Só se controla o que é controlável. Determinados fenômenos de ordem sociológica, à semelhança do que se passa com os fenômenos físicos, escapam a qualquer pretensão normativa. Conflitos sociais, crises econômicas, problemas psicológicos podem ser, quando muito, detectados. A lei, quem sabe, os ameniza, refreia ou acelera. Por si só, é incapaz de resolvê-los, mesmo que os súditos se dêem conta de suas vantagens. Além do mais, o legislador é parte integrante do contexto, o que significa dizer que sofre os seus efeitos, por mais bem intencionado que se revele.

2. Pluralismo jurídico

Impossível, assim, pelo menos em termos práticos, disciplinar por via legislativa, de modo estanque e definitivo, matérias intrinsecamente informes, cambiantes, voláteis. É por isso mesmo que o próprio legislador, se apercebendo do processo, e diante de outras dificuldades, se limita em muitas áreas a usar de fórmulas por demais vagas e abstratas, numa tentativa de abranger, em constante atualização, situações na verdade imprevisíveis. É assim que os sempre citados conceitos de "bons costumes", "mulher honesta", "pudor" etc. se adaptam sem maiores problemas tanto aos novos fatos como à letra e ao espírito da lei. Objetivamente: o mesmo evento, em épocas diversas, é capaz de ofender ou não a norma, sem que esta sofra o menor arranhão no que concerne à sua correta exegese.

Outras vezes, todavia, seja por defeito de técnica, seja principalmente por expressa intenção de impor seu próprio ponto de vista, emprega o legislador fórmulas bem menos maleáveis. No campo criminal, por exemplo, fixa os limites das penas e o início etário da responsabilidade; nega valor escusante ao erro de direito; disciplina o aborto, o homicídio eutanásico, as formas qualificadas de crime etc.

Não importam as razões que o levam a agir dessa forma. O que importa é saber que, paralelamente às suas razões, subsistem outras igualmente ponderáveis. Razões que se corporificam e se concretizam na própria realidade social. Pluralismo fático, pluralismo ético, pluralismo jurídico-normativo.

Emerge do contexto a figura do juiz, encarregado exatamente – é sua função – de dirimir os conflitos. Conflitos aqui e agora, localizados, com ingredientes e matizes próprios. O posicionamento do legislador constitui apenas um dos dados, embora o mais importante, em regra, entre todos os que exsurgem do imenso tabuleiro. Nenhum deles há que ser desprezado, mormente quando se consubstanciam nas condições materiais que serviriam de suporte e justificativa para uma das possíveis soluções de ordem prática. Preferível, às vezes, seguir o ritmo silencioso da evolução ético-social; ouvir os bastidores e, não, o palco iluminado, mas ilusório, do rígido esquema legislativo.

Facílimo compreender que, por detrás de tudo, ou como denominador comum, está o homem. Legislação, sentença, comportamento: tudo constitui, no fundo, obra humana, criação humana.

Portanto, quem quiser saber o que é o direito, consulte o que o homem faz. Olhe em seu redor. Se por acaso encontra leis que definem, ou pensam definir, o que é obrigatório, facultado ou proibido, convém continuar observando. Isto é, convém verificar se seus destinatários e, especialmente, os órgãos encarregados de dar-lhes execução, agem em tal sentido.

É claro que, nesse mister, entram em cena aparatos mais rigorosos. A começar, por exemplo, com o problema da linguagem natural, utilizada pelo legislador. Estaria o intérprete capacitado a captar a mensagem com extrema precisão, como numa equação matemática? Não, respondem os lingüistas. As expressões da lei, afora tantos outros pormenores, se ressentem de vagueza e de ambigüidade, embora se admita a existência de zonas de luminosidade (em que é bastante clara a aplicação do termo), de nebulosidade (zona cinzenta, controvertida) e de escuridão (em que é visível a exclusão do termo).

Pois bem, se esta era a posição dos lingüistas, deveriam parar por aí. Esse posicionamento encontrava ressonância no exame crítico do instrumental do jurista. Tornavam-se então compreensíveis as inúmeras divergências doutrinárias e jurisprudenciais, mormente quando ligadas às "zonas cinzentas".

Posturas mais livres, todavia, teriam que ser rechaçadas. Vislumbrar meros significantes nas palavras da lei e, na seqüência, afirmar o caráter totalmente retórico dos princípios da separação dos poderes e da tipicidade, dentre outros, assim como não enxergar qualquer sentido na expressão "decisão contra a lei" é assumir, em nome da coerência, um radicalismo incoerente. Seria preferível negar a existência de zonas de luminosidade e de escuridão e transformar tudo em zona de nebulosidade. Caberia, no entanto, perguntar: que gênero de palavras usam os analistas de linguagem? Por que pretendem que suas explicações podem tudo aclarar, recusando porém a mesma chance aos órgãos legiferantes?

Indagações desse tipo, se são válidas no plano teórico, crescem de importância quando se parte para o exame e conseqüente constatação de uma flagrante e substancial uniformidade interpretativa dos compêndios em face de casos hipotéticos ou concretos de fácil assimilação. Na área do direito penal, por exemplo, tudo fica mais nítido. Não parece aceitável que o mais simples dos mortais, diante do enunciado descritivo da legislação, ainda faça confusão entre os casos corriqueiros de furto, estupro e homicídio.

Admissível, pois, a verificação de uma zona fronteiriça no campo de aplicação do direito sem que se tome partido antecipadamente, porque insuscetível de comprovação científica, por esta ou por aquela corrente hermenêutica. Entretanto, aceitar outras zonas, de aquém e de além-fronteira, e assim mesmo transferir para o intérprete toda a responsabilidade no preenchimento do conteúdo da lei, que se apresentaria, sempre, como mero significante, é desconhecer - data venia - a realidade prática do processo comunicacional.

Assim, os princípios da separação dos poderes e da reserva legal não se revestem de caráter totalmente retórico, o que não implica conceder-lhes, necessariamente, caráter científico. Como simples regras de aplicação do direito, inseridas portanto no âmbito das instituições, não podem merecer tal epíteto. Sob esse ângulo, têm e terão sempre um embasamento político-filosófico. Agora, a questão de se saber se podem ser, ou são, efetivamente cumpridos, comporta uma abordagem científica, confiada de modo particular à lingüística e à sociologia. Conforme já ressaltei, a resposta é parcialmente positiva, embora volte a reconhecer o tom polêmico da proposição.

3. Lei, ideologia, intérprete

A verdade é que essas premissas teórico-metodológicas no campo da lingüística se confirmavam e se renutriam, a cada instante, na práxis. Conviria procurar outros elementos acaso concorrentes para uma explicação do fenômeno decisório.

Com efeito, uma vez analisados, como modelo, os acórdãos criminais do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, com ênfase para aqueles que se afastavam, conscientemente, quer das lições elementares da doutrina, quer de seus próprios precedentes judiciais, revelou-se convincente a presença de fatores de ordem filosófico-psicológica e histórico-social. Linguagem da lei, personalidade do juiz e valores dominantes entrecruzavam-se dialeticamente na apreensão explicativa da sentença. Quanto maiores as características de vagueza e de ambigüidade, maiores as chances de projeção, na exegese da lei e no veredicto, da personalidade do juiz e dos valores predominantes. Na medida, porém, em que diminuem os defeitos assinalados também se reduz a parcela de contribuição judicial, seja pessoalmente, seja como veículo de novas idéias ou estruturas ético-sociais. Chega-se mesmo a um ponto em que se verifica, em regra, nos casos de fácil assimilação, o prevalecimento da solução genérica preestabelecida, detalhe que não pode causar espanto num sistema jurídico de base nitidamente legalista. Segurança jurídica e relevância da justiça formal, como valores, se aglutinam para justificar o alinhamento judicial, sem prejuízo, é claro, como ocorre em todas as demais situações, de substratos mais profundos capazes de responder à questão com maior precisão ou autenticidade científicas.

Pois bem: nem sempre, assim mesmo, a lei é cumprida à risca. Desnecessário repetir os argumentos expendidos. Veladamente, pela técnica da pesquisa do "espírito" da lei, ou pelo recurso à ficção; e abertamente, pelo reconhecimento da prevalência de princípio não escrito, inconciliável com o princípio legal, resiste o magistrado às soluções estereotipadas para impor, em substituição, o ponto de vista que considera mais adequado.

Essa liberdade, como simples constatação empírica, tende a aumentar com o passar dos anos. É claro, no entanto, que pode concorrer – e concorre efetivamente – com outros fatores circunstanciais não negligenciáveis, alguns deles com força suficiente para anular seus efeitos. Mas não foi no dia seguinte ao da promulgação dos códigos napoleônicos que se forjaram as figuras do abuso de direito, do estado de necessidade, do erro invencível, do crime continuado e tantas outras. A propósito, não é o tempo em si, isoladamente, que propicia essa maior liberdade, mas a defasagem por ele acarretada entre os valores do texto e os valores novos, atrelados a uma sociedade em mudança.

Deduz-se daí, de qualquer forma, a enorme importância acordada à personalidade do juiz e à ideologia disseminada no meio social. O respeito à lei, com efeito, também se explica pela formação funcional, pelo medo ao ridículo e, inclusive, pelo reconhecimento da competência de outro poder para o equacionamento de problemas de extrema complexidade. Atende esta última hipótese, como já dissemos, a um autêntico lenitivo psicológico. Portanto, quando surge ainda assim o voluntário afastamento, a eliminar do mundo forense o puro raciocínio de lógica formal, há que se entregar o cetro ao magistrado, depositário e artífice do direito concreto, no âmbito contencioso.

Negar, na sentença, a influência de fatores psicológicos, é negar a própria psicologia e a condição humana do juiz. Negar a repercussão dos valores que abraça e das idéias diluídas no meio social é transformá-lo, gratuitamente, em máquina pensante, programada, o que constitui outro absurdo.

O magistrado possui dramas de consciência, que se tornam patentes quando tem que enfrentar a antinomia entre os valores da lei e aqueles que aceita pessoalmente. Em certas oportunidades, vai ao ponto de confessá-los na sentença, onde manifesta enfim sua preferência ocasional. As mesmas situações, anos antes, ou em outra latitude, receberiam no entanto tratamento diferenciado.

4. Decisão contra a lei

É claro que nem tudo o que não está escrito corresponde a algum princípio contrário à lei. Não é sem razão que, no afã de disciplinar a matéria, se permite com as exceções de praxe o recurso aos princípios gerais de direito, costumes, analogia etc. É o que se poderia chamar de tentativa de ampliação lógico-sistemática do critério legislativo. Haveria, então, princípios não escritos autorizados pelo legislador, ínsitos ao sistema. Princípios implícitos, praeter legem, correlacionados com as decisões do mesmo nome.

Com isso, volta-se ao problema, gravíssimo, das zonas de luminosidade, nebulosidade e escuridão, transferidas para um plano bem mais abstrato. Princípios praeter legem seriam, em teoria, aqueles princípios inferidos do sistema legal ou, então, aqueles princípios cuja evidência axiomática dispensa sua explicitação nos textos. Como identificá-los? Inevitável, na prática, a dose mínima de subjetividade, à semelhança do que ocorre quando o intérprete preenche de conteúdo os textos vagos e ambíguos. Mas o esforço é dobrado: nunca estão expressos, é preciso "descobri-los" e, além disso, fixar-lhes o sentido e alcance. Tarefa difícil, ficando sempre a sensação de dúvida e de incerteza quanto a seu exato posicionamento em face da lei. Ninguém contesta que podem servir de cobertura ou disfarce para uma decisão que, na realidade, se revelaria contra legem.

Por sinal, seria mesmo admissível essa categoria teórica intermediária? Seriam aceitáveis as categorias opostas "decisão contra a lei" e "decisão de acordo com a lei"?

Ora, a partir do instante em que se apregoa a capacidade de seu artífice – o próprio legislador – de atribuir à lei, previamente, um certo significado, um certo conteúdo, a implicar o caráter cognoscitivo da interpretação, já não é mais possível fugir do aludido esquema conceitual. E, depois, mais uma vez a observação dos fatos vem confirmar a validade da proposição. Quer dizer, inexiste ao menos o consolo, por parte dos que refutam a dicotomia, de ver sua teoria ratificada no mundo empírico do comportamento humano.

5. Jogo de trocas recíprocas

Nas razões das sentenças, analisadas em conjunto ou separadamente, devem ser buscadas as motivações expressas ou implícitas. Mais ainda: no momento histórico, nas circunstâncias de toda ordem, na filosofia de vida do juiz e, é claro, na estrutura da própria sociedade. Na verdade, os fatores se interpenetram mutuamente. Inútil apontar, em novo dogmatismo cientificista, uma "causa" única determinante. Pode-se, quando muito, partir para esquematizações didáticas, mas na medida em que se ganha em extensão se perde em profundidade. O direito, como fato concreto, é refratário às grandiloqüentes construções teóricas. Essencialmente dinâmico, acompanha em regra as transformações econômico-sociais, assim como para elas contribui, num contínuo jogo de trocas recíprocas.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BASTOS, João José Caldeira. O Poder Judiciário e a lei. A decisão contra a lei na jurisprudência penal catarinense. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2181, 21 jun. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13013. Acesso em: 19 abr. 2024.