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A dignidade (da pessoa) humana

A dignidade (da pessoa) humana

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Palavras-chave: dignidade – princípio – dignidade humana – pessoa humana

Sumário: 1. Introdução ao tema dignidade humana; 2. A importante contribuição do positivismo jurídico; 3. A adoção do princípio da dignidade na relação entre capital e trabalho. 4. À guisa de conclusão.


1. Introdução ao tema dignidade humana

Uma tarefa deveras interessante seria a de identificar os direitos sociais que salvaguardariam, em qualquer sítio onde se realizasse o labor humano, as condições de trabalho mínimas, abaixo das quais não haveria trabalho digno. Estaríamos a contrastar a diversidade das pautas de direitos sociais com a necessária transcendentalidade de um atributo que é imanente ao gênero humano em qualquer atmosfera cultural, qual seja, a dignidade.

Embora se alardeie o seu caráter difuso ou impreciso, o conceito dignidade humana não pode ser simplesmente sublimado, antes se exigindo a depuração de seu possível significado, a sua latitude conceitual. E é assim, sobremodo, quando se pretende distinguir, propriamente, a dignidade da pessoa humana, atentando-se, então, para o que se dirige, nessa expressão particularista, ao homem concreto e individual, à sua realidade idiossincrática, inextensível desde logo a toda a humanidade [01].

Ainda no plano semântico, nota-se que a palavra dignidade possui tríplice sentido, pois qualifica, à primeira vista, um modo de proceder e também a pessoa que assim procede: o sujeito é digno porque se comporta dignamente. O seu terceiro sentido – que nos interessa de imediato – não deriva de uma conduta, nem mesmo de um padrão de conduta, senão de uma qualidade inerente ao ente, homem ou mulher, não importando seu modo de conduzir-se. A dignidade da pessoa humana é, já agora, um pressuposto de qualquer conduta, um limite externo e de caráter tutelar imposto à ação.

Estende-se esse limite ao mundo potencial dos contratos, vale dizer, à esfera de liberdade – que tem, paradoxalmente, também a dignidade humana como fundamento. Talvez por isso, e com alguma fineza de espírito, Flauber nos teria provocado: "Que é, pois, a igualdade, se não a negação de toda liberdade, de toda superioridade e até da Natureza mesma?" [02].

Daí se depreende uma evidente correlação lógica: se a dignidade é uma qualificação comum a todos os seres humanos, a sua realização normativa terá sempre a igualdade como um pressuposto. As pessoas seriam igualmente dignas. Isso nos remeteria a uma concepção de igualdade material bastante afinada com o ideário da Ilustração e aparentemente estranha a uma evolução dos estudos filosóficos que vem resultando no resgate do sujeito.

É como se tivéssemos uma porção de humanidade que nos faria credores do mesmo tratamento, não obstante as nossas pontuais dessemelhanças. Nesse bocado de gente residiria nossa intangível dignidade, vale dizer, a dignidade da pessoa humana – que se reporta, ao dizer de Jorge Miranda, "a todas e cada uma das pessoas e é a dignidade da pessoa individual e concreta" [03].

A questão, uma vez mais, se renova: seria possível delimitar, exempli gratia por meio da enumeração dos direitos fundamentais, a parcela inviolável de direitos que nos conferiria identidade? Assim se referiu Boaventura Souza Santos:

Temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades. [04]

Com igual sentido, Bobbio adverte que "o próprio homem não é mais considerado como ente genérico, ou homem em abstrato, mas é visto na especificidade ou na concretude de suas diversas maneiras de ser em sociedade, como criança, velho, doente etc" [05].

Como regra, as constituições de estados democráticos que se seguiram às de Querétaro e Weimar repousam na dignidade da pessoa humana a unidade de sentido e de valor que conferem ao sistema de direitos fundamentais nelas consagrado [06]. O art. 1º, III, da Constituição brasileira diz ser a dignidade da pessoa humana um dos fundamentos da República. O desafio de atribuir conteúdo a esse princípio, tão caro às democracias garantistas, não se exaure, porém, nas elucubrações de uma aventura teórica, antes se justificando pela força normativa que qualifica os princípios constitucionais [07], exigindo-lhes um significado jurídico.


2. A importante contribuição do positivismo jurídico

É acertado dizer que o positivismo jurídico enfatiza a distinção entre justiça e validade da norma. Como ressalta Ferrajoli, ele próprio um expoente dessa vertente teórica, essa divergência – ou mesmo indiferença – entre a norma justa e a norma válida "não significa, em absoluto, que o Direito não incorpore valores ou princípios morais e não tenha, ao menos nesse sentido, alguma relação conceitual necessária com a Moral: o que seria absurdo, dado que todo sistema jurídico expressa pelo menos a Moral de seus legisladores, qualquer que seja esta" [08]. Ainda em conformidade com Ferrajoli, o positivismo jurídico se resolve em duas assertivas:

a)que a moralidade (ou a justiça), porventura presente em uma norma, não implica sua juridicidade (sua validade ou, de forma ainda mais genérica, sua pertinência a um sistema jurídico);

b)que a juridicidade (a validade) de uma norma não implica sua moralidade (sua justiça).

Bem entendido, estamos a nos ambientar no plano teórico do positivismo jurídico e especulando, em outra dimensão (dogmático-normativa), sobre o conteúdo de um princípio, o da dignidade humana. Não nos interessa conjecturar sobre as características do direito positivo [09] (que é assunto afeto à teoria das normas), mas sim acerca do que significa aquele princípio, o da dignidade, segundo a análise positivista [10].

E não se há tratar, aqui, apenas do caráter formal das proposições ajustadas ao positivismo jurídico [11], pois, caso o propósito do presente ensaio fosse, assim e apenas, o de considerar um conceito abstrato de dignidade humana, satisfaria decerto o que se extrai de fascículo emblemático da encíclica Rerum Novarum de Leão XIII:

A ninguém é lícito violar impunemente a dignidade do homem, do qual Deus mesmo dispõe com grande reverência, nem colocar impedimentos de modo a impedir que ele alcance a vida eterna; pois, nem mesmo por livre arbítrio, o homem pode renunciar a ser tratado segundo sua natureza e aceitar a escravidão do espírito; porque não se trata de direitos cujo exercício seja livre, senão de deveres para com Deus que são absolutamente invioláveis.

Após afirmar que era impossível cumprir o desígnio (pregado pelos socialistas) de ver a todos, em uma sociedade civil, elevados ao mesmo nível, e reiterar Santo Tomás ao dizer que "a propriedade particular é um direito natural do homem: o exercício desse direito é coisa não apenas permitida, sobretudo a quem vive em sociedade, senão absolutamente necessária", Leão XIII insinua o possível significado da dignidade humana:

Não é justo nem humano que se exija do homem tanto trabalho a ponto de fazê-lo, por excesso de fadiga, embrutecer o espírito e enfraquecer o corpo. A atividade do homem, limitada como a sua natureza, tem limites que não se podem superar. O exercício e o uso a aperfeiçoam, mas é preciso, de vez em quando, que se a suspenda para dar lugar ao repouso.

A dignidade da pessoa humana estaria malferida sempre que o limite razoável de fadiga, abstratamente considerado, fosse excedido para o homem ou a mulher que estivessem a prestar trabalho. Mas esse significado, sendo embora formal (porque abstrato), não poderia ser adotado pela teoria positivista enquanto não fossem superados dois obstáculos: a) a sua inspiração mística ou religiosa (assim é porque Deus não tolera a fadiga e somente por isso, ou isso basta); b) a existência, em uma análise a priori, de trabalho que se revelaria indigno sem o componente da fadiga, a exemplo daquele que se realiza em tenra idade, ou sob ameaça física ou moral, ou ainda a envolver o comércio do corpo humano, ou enfim a implicar, de algum modo, a degradação da pessoa que trabalha.

Parece-nos, então, que a melhor – e não por acaso a mais festejada – contribuição do positivismo jurídico, a respeito do sentido de dignidade da pessoa humana, teria sido legado por Kant, o filósofo setecentista que iluminou o mundo da razão a partir de Königsberg [12]. É evidente que Kant não podia ambientar o seu conceito de dignidade sob a perspectiva do direito social, inclusive porque seguia Rousseau – a quem reverenciava como "o Newton da moral" – e concebia a constituição da sociedade civil a partir da vontade geral: a expressão da consciência pura de cada indivíduo, voz interior autônoma que Rousseau supõe idêntica para todos [13]. Gurvitch explica:

Se todo direito tem como fundamento último a vontade geral, que não é outra coisa senão um ingrediente imanente à consciência individual, e se toda possibilidade de fazê-la triunfar reside na instituição de uma relação contratual, todo direito se reduz unicamente ao direito individual. [14]

Mas, como Rousseau, também Kant dizia ser a dignidade moral indissociável da pessoa humana, dotada de razão e de vontade livre, sem que mais nenhum outro ser vivente o seja. Dignidade, assim, é "o atributo de um ser racional que não obedece a nenhuma outra lei senão a que ele mesmo se dá" [15]. Nesse contexto, Kant distingue entre aquilo que tem preço e o que tem dignidade:

No reino dos fins, tudo tem um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outro como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo preço e, portanto, não tem equivalente, então ela tem dignidade [16].

Ora, se o homem é o único ser racional e pode fixar fins para si próprio, deverá ele, assim abstratamente considerado, ser o fim em si mesmo de toda intervenção humana: "a pessoa não pode ser tratada (por outra pessoa ou por si mesma) meramente como um meio, se não que tem que ser, em todo momento, utilizada como fim; nisso consiste a sua dignidade" [17]. E quando estaria o homem a ferir a dignidade de outra pessoa, por impor-lhe conduta em que essa pessoa seria considerada um meio, não um fim?

Que nos valhamos, inicialmente, dos exemplos que outros teóricos, debruçados sobre a proposição kantiana, já esboçaram. Starck, citado por Hoerster [18], enumera as seguintes hipóteses de ações que estariam a violar o princípio da dignidade humana, por não cogitarem do homem como um fim:

- algumas sanções estatais como a pena de morte, a prisão perpétua sem possibilidade de liberdade intercorrente (por meio de indulto, por exemplo), as penas cruéis como a tortura e a prisão em célula "solitária" por tempo prolongado, sem contato com outras pessoas;

- determinados métodos de interrogatório em processo penal, como o uso de narcóticos, o detector de mentiras, o hipnotismo e a tortura;

- a negação de audiência judicial.

Mas Starck também se refere a hipóteses em que a dignidade humana não seria atingida por medida estatal, mas sim por ação de outros indivíduos, devendo a dignidade do lesado ser protegida eficazmente pelo Estado, inclusive mediante a incursão do autor em normas penais. Os exemplos seriam os seguintes:

- ataques à vida ou à honra;

- incitação ao ódio, a medidas violentas ou arbitrárias contra indivíduos ou grupos.

A partir da mesma concepção kantiana do princípio da dignidade humana, Jorge Miranda [19] indica preceitos da Constituição portuguesa que impedem seja o homem tratado como meio. Aproximando-se do escopo de nosso trabalho, o constitucionalista da Universidade de Lisboa inclui casos afetos também aos direitos sociais. Transcrevemos alguns desses exemplos:

- a garantia da integridade pessoal contra a tortura e as penas cruéis, degradantes ou desumanas (art. 25), inclusive em processo penal (art. 32);

- os direitos à imagem, à palavra e à reserva da intimidade da vida privada e familiar (art. 26, nº 1);

- as garantias contra a utilização abusiva de informações relativas às pessoas e famílias (arts. 26, nº 2 e 35);

- a direito de resposta e retificação na imprensa (art. 37, no 4);

- a proteção dos cidadãos em todas as situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho (art. 67, no 4);

- o direito de habitação que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar (art. 65, no 1);

- a proteção da família para a realização pessoal de seus membros (art. 67, no 1).


3. A adoção do princípio da dignidade na relação entre capital e trabalho

No mundo do trabalho, a justificação dos direitos sociais de índole trabalhista a partir da premissa de que o homem não deve prestar o seu labor em condições que o façam somente vegetar, ou que o tornem um mero instrumento de prazer ou cobiça, pode ser aclarada com base em remissões várias, a saber:

- a proibição de trabalho além da periodicidade diária e/ou semanal que permite ao empregado usar o salário para prover sua alimentação, moradia, descanso, lazer etc.;

- a proibição de despedida arbitrária, pois esse modo de dispensar o empregado implica considerar o valor social do trabalho como um postulado menos relevante que o da livre iniciativa, instrumentalizando o trabalhador;

- a garantia de salário que assegure a satisfação das necessidades vitais do trabalhador e de sua família, sendo esse o fim a ser alcançado;

- a garantia de trabalho sem risco, a qual pode ser extraída das normas que impõem sanção jurídica para a hipótese de acidente de trabalho;

- a proibição de trabalho insalubre ou perigoso (os quais conduziriam o empregado a enfermidade ou morte), de novo subtraindo-lhe o interesse de trabalhar para proporcionar a si e a aos seus a provisão de bens que lhes proporcionem felicidade;

- a proibição de trabalho infantil em circunstâncias que inviabilizem a sua formação acadêmica, moral e física;

- a adoção de sistema de revista de trabalhadores que exponha a intimidade destes, sobretudo quando se distinguem os meios de segurança patrimonial aplicados aos empregados e à clientela.

A dificuldade de encontrar o mínimo existencial que asseguraria uma vida digna e, no particular, um trabalho digno reclama, evidentemente, uma atuação discricionária dos que promovem ou atuam o direito, dos seus intérpretes enfim. Ademais, a resignação ou a anuência do trabalhador que é aviltado em sua condição humana não interfere na qualificação da conduta patronal, cabendo lembrar, pelo seu apelo ilustrativo, trecho da obra de Ingo Sarlet [20] em que ele faz referência a "polêmica decisão do Conselho de Estado da França, que considerou correta a decisão do prefeito da comuna de Morsang-sur-Orge, ao determinar a interdição de estabelecimento (casa de diversão) que promovia espetáculos nos quais os espectadores eram convidados a lançar um anão o mais longe possível, de um lado a outro do estabelecimento. Para o Conselho do Estado [...] estes ‘campeonatos de anões’ não poderiam ser tolerados por constituírem ofensa à dignidade da pessoa humana, considerando esta (pela primeira vez no direito francês) como elemento integrante da ordem pública, sendo irrelevante a voluntária participação dos anões no espetáculo, já que a dignidade constitui bem fora do comércio e é irrenunciável".

Mas voltemos à formulação kantiana para explorar a concepção de que o uso da energia de trabalho apenas como um meio, sem atentar para a condição humana de quem realiza o labor, revelaria a inobservância do postulado da dignidade.

Em dado momento, Hoerster, professor de filosofia do direito na universidade de Manguncia, especula sobre exemplo curioso, que ele mesmo formula: "suponhamos que viajo em um táxi: uso o taxista?" O questionamento é intrigante, pois importa decidir se a utilização do taxista e de seus serviços apenas como um meio para o filósofo chegar ao seu destino (alcançando o seu fim pessoal) significaria uma violação ao princípio da dignidade da pessoa humana. Ou se seria válido, como pareceu a Hoerster, argumentar que não se estaria a utilizar o taxista meramente como um meio uma vez que ele, o taxista, também estaria interessado em promover o deslocamento do filósofo e este lhe pagaria o preço ajustado ou o habitual.

Outro seria o caso, pondera Hoerster [21], se de antemão ele tivesse o plano – e também o realizasse – de estafar o taxista, não lhe pagando a tarifa cobrada pela viagem. E também não se haverá de contrapor o princípio da dignidade da pessoa humana à ação que vise coibir uma ação ilegítima, ainda que o sentido de legitimidade nos transporte para outra discussão de fôlego, qual seja, a de confundi-la com legalidade (como propõem Kelsen e outros teóricos positivistas) ou a de deixá-la permear por algum juízo de valor.

Ilustrando essa possibilidade de se confrontarem a repressão contra o ato ilícito e a dignidade da pessoa humana, Hoerster [22] lembra a ação de vítima contumaz de furtos instalar um sistema de alarme que permita flagrar o agente do delito, este compreendido como meio da investigação. Na perspectiva de quem pretende aplicar essas considerações teóricas ao mundo do trabalho, poderíamos lembrar o flagrante preparado de prestação laboral que consista na exploração de "jogo do bicho" e ponderar, ainda com Hoerster, que "o princípio da dignidade humana proíbe frustrar a livre autodeterminação humana (o furto ou, no nosso exemplo, o trabalho capitulado como contravenção penal) na medida em que esta é eticamente legítima" [23]. Bem entendido, legítima seria a ação humana em abstrato, não a ação específica de furtar ou praticar contravenção penal.

O problema se resolveria com a exigência de que a licitude da ação humana seria um pressuposto para a dignidade do trabalho que por ela se desenvolvesse. E então se abre, mesmo para Norbert Hoerster, uma fissura no conceito puramente formal até aqui desenvolvido: "se o princípio da dignidade humana (...) somente pode ser sensatamente entendido no sentido que implica proteger as formas legítimas da autodeterminação humana, então é inevitável que a aplicação desse princípio esteja vinculada a um juízo valorativo moral" [24]. É que nem sempre a ilicitude se esgota na transgressão à lei, por vezes se configurando na ação que, embora socialmente reprovável, não está descrita em tipo penal algum.

O formalismo e o individualismo de Kant sempre despertaram a crítica de outros grandes pensadores [25], mas convém não desprezar a elaboração, embasada em sua obra, de um conteúdo jurídico para o princípio da dignidade da pessoa humana. Importa perceber que o significado assim atribuído a esse princípio tem rica aplicação no âmbito do direito trabalhista.


4. À guisa de conclusão

A se compreender que o princípio da dignidade da pessoa humana é fundamento da República e causa primeira da tutela dos direitos sociais, interessa consultar o significado de tal princípio, ainda mais quando esse seu conteúdo jurídico se reveste de força normativa, a exemplo do que sucede a todos os princípios constitucionais.

A dignidade da pessoa humana é conceito que não se reporta ao sentido de dignidade vinculado ao modo de ser de uma conduta ou do agente (conduta digna de pessoa digna), mas é uma qualidade que precede e limita qualquer ação humana. Portanto, se a dignidade é uma qualificação comum a todos os seres humanos, a sua realização normativa terá sempre a igualdade como pressuposto

A evolução do conceito, a ponto de o princípio correlato ganhar a preferência dos Estados democráticos na decisão sobre o que haveria de dar unidade de sentido e valor aos seus sistemas de direitos fundamentais, não pode prescindir, ainda hoje, do significado que lhe deve ser atribuído a partir da distinção kantiana entre as coisas que têm preço e aquelas que, não podendo ser substituídas pelo equivalente, possuem dignidade. A razão e a vontade livre de que somente o homem é possuidor impediriam que as intervenções humanas não tivessem a pessoa como fim, tendo-a apenas como meio.

Sob tais premissas, a sentença de Kant é definitiva: "a pessoa não pode ser tratada (por outra pessoa ou por si mesma) meramente como um meio, se não que tem que ser, em todo momento, utilizada como fim; nisso consiste a sua dignidade". No mundo do trabalho, é possível reportar-se a vários direitos sociais de índole trabalhista que se justificam na premissa kantiana.


BIBLIOGRAFIA CONSULTADA:

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 1982. São Paulo: Malheiros Editores, 1997

DOMÉNECH, Antoni. El Eclipse de la Fraternidad. Barcelona: Crítica, 2004

FERRAJOLI, Luigi. Garantismo: una discusión sobre derecho y democracia. Tradução para o espanhol de Andrea Greppi. Madrid: Editorial Trotta, 2006

FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. A Ciência do Direito. São Paulo: Atlas, 1980

GRAU, Eros Roberto. O Direito Posto e o Direito Pressuposto. São Paulo : Malheiros, 1996

GURVITCH, Georges. La Idea del Derecho Social. Tradução para o espanhol de José Luis Monereo Pérez y Antonio Márquez Prieto. Granada: Calmares, 2005

HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia. Vol. I. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997

HOERSTER, Norbert. En Defensa del Positivismo Jurídico. Tradução para o espanhol de Ernesto Garzón Valdés. Barcelona: Gedisa Editorial, 2000

MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo IV – Direitos Fundamentais. Coimbra: Coimbra, 1998

PIOVESAN, Flávia. Discriminação. In Fórum Internacional sobre Direitos Humanos e Direitos Sociais. Org. Tribunal Superior do Trabalho. São Paulo: LTr, 2004


NOTAS

  1. Cf. MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo IV – Direitos Fundamentais. Coimbra: Coimbra, 1998, p. 169. O autor distingue em nota: "Da mesma maneira que não é o mesmo falar em direitos do homem e direitos humanos, não é exactamente o mesmo falar em dignidade da pessoa humana e dignidade humana. Aquela expressão dirige-se ao homem concreto e individual; esta à humanidade, entendida ou como qualidade comum a todos os homens ou como conjunto que os engloba e ultrapassa".
  2. Apud DOMÉNECH, Antoni. El Eclipse de la Fraternidad. Barcelona: Crítica, 2004, p. 27.
  3. Op. cit., p. 168.
  4. Apud PIOVESAN, Flávia. Discriminação. In Fórum Internacional sobre Direitos Humanos e Direitos Sociais. Org. Tribunal Superior do Trabalho. São Paulo: LTr, 2004, p. 336.
  5. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 68.
  6. Cf. Jorge Miranda, op. cit., p. 166, reportando-se ao art. 1º da Constituição de Portugal e, em nota, também às constituições da Irlanda, da Alemanha, da Índia, da Venezuela, da Grécia, da Espanha, do Peru, da China, do Brasil, da Namíbia, da Colômbia, da Bulgária e de Cabo Verde, todas elas a prestigiar a dignidade da pessoa humana.
  7. Ver, entre outros: BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 1982. São Paulo: Malheiros Editores, 1997, cap. 8, passim.
  8. FERRAJOLI, Luigi. Garantismo: una discusión sobre derecho y democracia. Tradução para o espanhol de Andrea Greppi. Madrid: Editorial Trotta, 2006, p. 12.
  9. Segundo Tércio Ferraz Junior, "direito positivo, podemos dizer genericamente, é o que vale em virtude de uma decisão e só por força de uma nova decisão pode ser revogado. O legalismo do século passado entendeu isto de modo restrito, reduzindo o direito à lei, enquanto norma posta pelo legislador. No direito atual, o alcance da positivação é muito maior" (FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. A Ciência do Direito. São Paulo: Atlas, 1980, p. 41). O autor complementa: "Decisão é termo que tomamos num sentido lato, que ultrapassa os limites da decisão legislativa, abarcando, também, entre outras a decisão judiciária..."
  10. Ao diferenciá-lo da hermenêutica jurídica e do realismo jurídico, Dworkin (apud HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia. Vol. I. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, pp. 247-250) observa que o positivismo jurídico "pretende, ao contrário, fazer jus à função da estabilização de expectativas, sem ser obrigado a apoiar a legitimidade da decisão jurídica na autoridade impugnável de tradições éticas. Ao contrário das escolas realistas, os teóricos Hans Kelsen e H. L. A. Hart elaboram o sentido normativo próprio das proposições jurídicas e a construção sistemática de um sistema de regras destinado a garantir a consistência de decisões ligadas a regras e tornar o direito independente da política. Ao contrário dos hermeneutas, eles sublinham o fechamento e a autonomia de um sistema de direitos, opaco em relação a princípios não jurídicos".
  11. Eros Grau (GRAU, Eros Roberto. O Direito Posto e o Direito Pressuposto. São Paulo : Malheiros, 1996, p. 26) observa que o pensamento jurídico moderno tem a marca do formalismo e do positivismo. Mas o formalismo, cujas construções se apóiam em um discurso abstrato, é insuficiente para explicar o direito. Mesmo no plano abstrato, o direito é um produto histórico-cultural, que não pode ser completamente abarcado por explicações lógicas ou racionais. Quanto ao positivismo, que tem a recusa a qualquer referência metafísica como postulado básico, diz-se que a) não admite ele a existência de lacunas e estas existem no sistema jurídico; b) encontra dificuldades insuperáveis para explicar os conceitos indeterminados, as normas penais em branco e as proposições carentes de preenchimento com valorações, caindo em discricionariedade que se converte em arbítrio do juiz; c) é enfim inoperante diante dos conflitos entre princípios, remetendo a sua solução à discricionariedade do juiz ou negando o caráter normativo dos princípios; d) não tem como tratar da legitimidade do direito e, por isso, a legalidade ocupa o lugar desta no seu quadro.
  12. A pequena cidade em que nasceu e viveu (1724-1804), sem dela jamais ter saído.
  13. A vontade geral não se opõe à vontade individual (pois seria a vontade individual comum a todos), mas sim à vontade particular (que variaria de indivíduo a indivíduo). Rousseau esclarece: "Que a vontade geral seja em cada indivíduo um ato puro do entendimento que prevalece no silêncio das paixões, (...) ninguém ponha em dúvida". Apud GURVITCH, Georges. La Idea del Derecho Social. Tradução para o espanhol de José Luis Monereo Pérez y Antonio Márquez Prieto. Granada: Calmares, 2005, p. 289.
  14. Op. cit., p. 292.
  15. Kant, em Metafísica dos Costumes, apud HOERSTER, Norbert. En Defensa del Positivismo Jurídico. Tradução para o espanhol de Ernesto Garzón Valdés. Barcelona: Gedisa Editorial, 2000, p. 92.
  16. Kant, apud Miranda, op. cit., p. 169. Ou apud Hoerster, op. cit., p. 92, ambos a transcrever excerto de Metafísica dos Costumes.
  17. Kant, apud Hoerster, op. cit., p. 92.
  18. Op. cit., p. 93.
  19. Op. cit., p. 16
  20. SARLET, Ingo W. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 112.
  21. Op. cit., p. 94.
  22. Op. cit., p. 95.
  23. Op. cit., p. 96.
  24. Cf. Hoerster, op. cit., p. 96.
  25. Arthur Schopenhauer (apud Hoerster, op. cit., p. 91) opôs: "Essa frase tão infatigavelmente repetida por todos os kantianos: ‘há que tratar sempre a pessoa como um fim e nunca como um meio’ soa certamente importante e, por isso, é sumamente adequada para todos aqueles que desejam ter uma fórmula que os libere de todo pensamento; porém, vista com clareza, é uma expressão sumamente vaga, imprecisa, que aponta muito indiretamente a sua intenção e que, para cada caso de sua aplicação, requer previamente uma explicação, precisão e modificação especial; mas é geralmente insuficiente, diz pouco e, ademais, é problemática". A seu turno, Proudhon (apud Gurvitch, op. cit., p. 370) se sentia distanciado de Kant "pelo caráter abstrato de seu idealismo, pela ausência do ponto de vista ideo-realista, por seu individualismo e seu nominalismo a respeito do ser social, pela falta de reflexão sobre a totalidade e a ordem".

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVALHO, Augusto César Leite de. A dignidade (da pessoa) humana. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2259, 7 set. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13449. Acesso em: 17 abr. 2024.