Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/13541
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

A estratégia internacional de combate à lavagem de dinheiro.

A política brasileira e a cooperação internacional na matéria

A estratégia internacional de combate à lavagem de dinheiro. A política brasileira e a cooperação internacional na matéria

Publicado em . Elaborado em .

A atenção para as atividades ilícitas da criminalidade organizada não constitui novidade. O que é novo é seu caráter transnacional, assim como a proporção relevante dos bens e ativos ilícitos em relação à economia legítima.

A lavagem de dinheiro e o financiamento do terrorismo

A comunidade internacional reconheceu desde logo o caráter transnacional das organizações criminosas e tomou consciência de que o avanço da criminalidade organizada representava uma nova ameaça à estabilidade e à segurança coletivas. Mobilizou-se, então, para criar instrumentos legais capazes de conter e neutralizar essa alteração perversa da ordem internacional.

A Convenção contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas ou "Convenção de Viena, de 1988", adotada pela ONU, tornou obrigatória a caracterização da lavagem de dinheiro procedente do tráfico de entorpecentes e crimes conexos como delito penal.

Essa Convenção limitou o novo tipo penal à conduta de reciclar bens, direitos e valores oriundos do narcotráfico e delitos conexos e teve como objetivo proteger o bem jurídico da ordem socioeconômica, de vez que o crime organizado, com as altas somas de ativos provenientes do tráfico de entorpecentes, podia penetrar, contaminar e corromper as estruturas dos governos, das atividades comerciais e financeiras legítimas e da sociedade em geral.

O princípio da autonomia ou independência do processo penal do crime de lavagem em relação ao crime anterior é questão fundamental para viabilizar a persecução criminal, pois o crime de lavagem se pratica, em geral, em país diferente daquele onde se perpetrou o crime inicial ou originário. A autonomia da punibilidade significa que o crime de lavagem é punido, ainda que desconhecido ou isento de pena o autor do crime anterior, ou o delito tenha sido praticado no exterior.

A multiplicidade de ordenamentos jurídicos existentes no mundo globalizado permite que o crime organizado tire partido das disparidades e vantagens no tocante a leis tributárias e de sigilo bancário, exigências de identificação e de constituição de empresas e restrições cambiais. O desconhecimento das leis de outro país, as dificuldades com a língua, o acesso limitado a informações, a morosidade com que são coletadas, os entraves burocráticos e o alto custo das investigações no exterior são fatores que inibem a capacidade das autoridades de levar a bom termo o seu trabalho. Enquanto isso, a formidável globalização dos serviços financeiros permite aos criminosos fazer instantaneamente, e praticamente sem custo, múltiplas transferências de recursos entre jurisdições, apagando qualquer vestígio de pista que pudesse auxiliar na investigação.

Cabe destacar alguns dos conceitos chave estabelecidos no texto da "Convenção de Viena, de 1988", e consagrados na abordagem hodierna do problema. Esses conceitos dizem respeito aos vínculos entre as diversas modalidades de crime organizado, ao seu caráter transnacional, à sua capacidade de auferir grandes lucros e, por isso mesmo, de minar a sociedade em todos os níveis e setores; outras perspectivas de grande atualidade são a necessidade de promover o desmonte do crime organizado mediante estrangulamento de sua capacidade financeira, a responsabilidade compartilhada dos Estados no enfrentamento do problema e a importância de intensificar ações coordenadas de cooperação internacional sob a égide do regime legal multilateral adotado pelas Nações Unidas. O confisco de bens e ativos oriundos do crime continua sendo, nos dias atuais, uma das estratégias mais eficazes no combate ao crime organizado. O volume de tais confiscos serve como um dos indicadores da eficácia de um regime de combate à criminalidade.

Outro marco jurídico importante em matéria de combate à lavagem de dinheiro é representado pela Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional ou "Convenção de Palermo", adotada em 2000. Os dispositivos que tratam especificamente da lavagem de dinheiro constituem um avanço significativo em relação ao quadro normativo sobre a matéria criado pela "Convenção de Viena, de 1988". A criminalização da lavagem do produto do crime é estendida a uma gama inédita de infrações principais, quais sejam: todas as infrações graves, a participação em atos e atividades delituosas de um grupo criminoso organizado, atos de corrupção e atos de obstrução da justiça.


O terrorismo e seu financiamento.

A ameaça do terrorismo figura na agenda da ONU há várias décadas. Não obstante a falta de consenso sobre uma definição universalmente aceita do terrorismo, a comunidade internacional começou cedo a elaborar um quadro legal para combater essa grave ameaça à paz e segurança das nações e a fomentar a cooperação internacional na matéria.

Entre 1963 e 1999 foram adotadas 12 Convenções e Protocolos voltados para a prevenção e supressão do terrorismo. Mais recentemente, em abril de 2005, foi adotada a Convenção Internacional para a Supressão de Atos de Terrorismo Nuclear, que se encontra aberta para assinaturas até 31 de dezembro de 2006, e, portanto, ainda não vigente. A essas 13 Convenções, somam-se outros 15 instrumentos regionais sobre a matéria, entre eles, a Convenção Interamericana contra o Terrorismo.

A Convenção para a Supressão do Financiamento do Terrorismo, adotada pela ONU em 1999, prescreve a criminalização de um ato terrorista, que vem descrito como "um ato que constitua delito no âmbito de e conforme definido em um dos tratados relacionados no anexo", a saber, as Convenções antiterrorismo da ONU que contêm dispositivos penais; ou "qualquer outro ato com intenção de causar a morte de ou lesões corporais graves a um civil, ou a qualquer outra pessoa que não participe ativamente das hostilidades em situação de conflito armado, quando o propósito do referido ato, por sua natureza e contexto, for intimidar uma população, ou compelir um governo ou uma organização internacional a agir ou abster-se de agir".

A Convenção detalha as medidas internas que os Estados devem adotar para coibir e neutralizar os preparativos para a prática de atos terroristas, dentro ou fora de seu território, bem como para combater atividades ilegais conexas a delitos de terrorismo. Para tal fim, os Estados deverão exigir das instituições financeiras medidas de controle de clientes e supervisão de operações financeiras, de modo a prevenir, em última análise, o financiamento do terrorismo. Também requer-se a adoção de medidas de supervisão das entidades que prestam serviços de remessas financeiras e de controle do transporte transfronteiriço de moeda e instrumentos ao portador negociáveis. O intercâmbio de informações entre os Estados deve ser seguro e rápido, com vistas a evitar o cometimento do delito do financiamento do terrorismo.

A ratificação universal e a efetiva implementação dos instrumentos legais contra o terrorismo e seu financiamento constitui uma das condições indispensáveis para obter progressos na luta contra essa nova ameaça dos tempos atuais. A Resolução 1373 (2001) do Conselho de Segurança das Nações Unidas tornou obrigatória tal medida. Os Estados devem "tornar-se membros dentro da brevidade possível das Convenções e Protocolos relevantes" e "aumentar a cooperação e implementar plenamente as Convenções e Protocolos relevantes".

Vale notar que até setembro de 2001 apenas 2 países haviam ratificado todas as 12 Convenções e Protocolos da ONU sobre a matéria. Em fevereiro de 2005, o número de países ascendia a 61. Em setembro de 2005, o Brasil depositava o instrumento de ratificação do diploma legal da ONU referente à supressão do financiamento do terrorismo, e, paralelamente, entregava ao Secretário-Geral da OEA a Carta de Ratificação da Convenção Interamericana contra o Terrorismo.

A adesão universal aos instrumentos internacionais de combate ao terrorismo continua sendo um dos grandes desafios para as Nações Unidas. O procedimento adotado pela maioria dos países de submeter determinado instrumento legal internacional à apreciação e aprovação do Poder Legislativo tem sido apontado como um dos principais motivos da demora, por vezes injustificada, na incorporação desse instrumento no ordenamento jurídico nacional. No entanto, parece razoável o argumento de que os Congressos ou Parlamentos têm sua agenda própria, com critérios e prioridades nem sempre coincidentes com os dos outros Poderes. Além disso, as matérias em tramitação no Poder Legislativo muitas vezes submetem-se a intenso processo de negociação, como é próprio dos regimes democráticos.

Dificuldade maior é causada pelas deficiências de conhecimentos técnicos ou jurídicos na esfera governamental para interpretar o instrumento legal internacional e adotar as medidas legislativas nacionais correspondentes. Por esse motivo, o oferecimento de assistência técnica por parte de unidades especiais de agências internacionais, como o Escritório das Nações Unidas para a Droga e o Crime (UNODC), a Comissão Interamericana para o Controle do Abuso de Drogas (CICAD/OEA) e o Comitê Interamericano contra o Terrorismo (CICTE/OEA), representa contribuição útil e necessária para a universalização da adesão e implementação do regime internacional de combate ao terrorismo. As dificuldades decorrentes da falta de capacitação nos campos legal, institucional, tecnológico e financeiro, para citar alguns setores mais pertinentes, representam desafio, muitas vezes intransponível, sobretudo em países em desenvolvimento. Mesmo no caso de países ou grupos regionais desenvolvidos e estruturados, a adesão universal a todos os instrumentos legais internacionais requer esforço concentrado e vontade política.

Recorde-se que a falta de consenso entre os membros da ONU quanto à definição do terrorismo tem obstaculizado a adoção de uma Convenção universal sobre o tema. A ambigüidade do conceito reflete-se no conhecido ditado "o terrorista de uns é o libertador de outros". Versão equivalente para ilustrar a relatividade do conceito seria "o terrorista de hoje é o herói de amanhã". A história proporciona exemplos a esse respeito. Yasser Arafat, líder da Organização para a Libertação da Palestina - grupo responsável por inúmeros atentados a bomba contra Israel ao longo da década de 1970 –, dividiu com os israelenses Shimon Peres e Yitzak Rabin o Prêmio Nobel da Paz-1994. Menachem Begin, Primeiro-Ministro de Israel, sempre crítico de Yasser Arafat, fez explodir o Quartel-General do exército britânico na Palestina, provocando a morte de 110 pessoas no Hotel Rei David, em Jerusalém. Anos depois, Begin foi agraciado com o Prêmio Nobel da Paz-1978, juntamente com o Presidente egípcio Anwar al-Sadat.

Os debates acerca da definição do conceito de terrorismo giram em torno da existência de identidade ou de distinção entre um grupo terrorista e um movimento de resistência a ocupação estrangeira e de libertação nacional. As Convenções e Protocolos da ONU caracterizam o terrorismo como a prática de certos atos específicos, como seqüestro de pessoas ou aeronaves, e colocam em segundo plano a motivação determinante de tais atos, pela sua inerente complexidade e dificuldade de caráter político, legal e moral.

A VI Comissão da ONU, encarregada de preparar uma Convenção universal contra o terrorismo, tem examinado, desde meados de 1970, diversas fórmulas inovadoras e conciliadoras sobre o tema, sem contudo alcançar êxito. A comunidade internacional, que tem sido unânime em protestar veementemente e condenar severamente atos de violência contra cidadãos inocentes, não demonstra a mesma sintonia quando se trata de definir como terrorismo certos atos, grupos e situações violentos.

A ambigüidade na definição do terrorismo ou na diferenciação de atos terroristas e de atos perpetrados sob a bandeira da luta legítima no exercício do direito à autodeterminação e independência contra a ocupação, agressão, colonialismo ou hegemonia estrangeira, ainda não superada no âmbito dos debates da ONU, certamente dificulta a tipificação do delito na legislação nacional dos Estados membros.


A Tríplice Fronteira e a suposta presença de terroristas.

A área geográfica de convergência das fronteiras da Argentina, Brasil e Paraguai, chamada de Tríplice Fronteira, é conhecida pela ocorrência de ilícitos como o contrabando de mercadorias, pirataria, , imigração ilegal, falsificação de dinheiro e de documentos, tráfico de armas e drogas, além de facilidades para a lavagem de dinheiro.

Com os atentados trágicos em Buenos Aires contra a Embaixada de Israel, em 1992, e contra um centro comunitário argentino-israelense, em 1994, que produziram um balanço global de 107 mortos e cerca de 500 feridos, a região passou a despertar suspeitas de manter vínculos com o terrorismo islâmico.

Após os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, a área tornou a ser vista como possível centro de arrecadação e remessas de dinheiro para o financiamento de organizações islâmicas terroristas. Declarações de autoridades norte-americanas, amparadas por notícias de imprensa ou supostas fontes de inteligência e relatórios e estudos de empresas multinacionais que vendem serviços de consultoria em matéria de segurança, inteligência e proteção a investidores e governos, apontavam para a existência na região de células terroristas ativas ou adormecidas, de campos de treinamento de combatentes, de centros de recrutamento e doutrinamento, além de intensa atividade de financiamento do terrorismo.

Tal campanha contra a região motivou declarações das autoridades competentes brasileiras, reafirmando que a rigorosa vigilância, exercida desde o início dos anos 1990, sobre indivíduos e grupos suspeitos de vinculação com organizações terroristas internacionais, em estreita cooperação com as autoridades de outros países interessados, não produziu evidências comprobatórias do desenvolvimento de atividades terroristas na região e de possíveis remessas de recursos financeiros para organizações terroristas. Ademais, tendo presente a composição multi-étnica e a convivência pacífica tradicional de todas as raças que compõem a população brasileira, as autoridades do País ressaltaram a necessidade de evitar a imposição de estereótipos que tendam a estigmatizar comunidades específicas, com base em parâmetros étnicos ou religiosos.

Preocupados com a expansão dos ilícitos praticados na região e seus possíveis vínculos com grupos terroristas ou financiamento de suas atividades em outros países, os Governos da Argentina, Brasil e Paraguai decidiram criar, em 1996, o "Comando Tripartite da Tríplice Fronteira", mecanismo informal integrado por autoridades policiais, imigratórias, aduaneiras, de segurança e de inteligência. O grupo tem por objetivo exercer vigilância e controle sobre as atividades do crime organizado na região, incluindo as que possam estar relacionadas com o terrorismo e seu financiamento, mediante o fortalecimento da cooperação e do intercâmbio de informações e experiências. A partir de 2002, os Estados Unidos da América passaram a integrar o mecanismo, que também ficou conhecido desde então como Grupo 3+1. Os quatro países que o integram realizam intercâmbio de opiniões sobre as medidas de prevenção e combate ao terrorismo na região, sobre o aperfeiçoamento da cooperação entre autoridades judiciais, policiais e de análise financeira e outros aspectos da problemática da região, como controles fronteiriços, seja migratórios seja aduaneiros.

Vale mencionar que o Grupo 3+1 vem, de longa data, mostrando um tênue equilíbrio entre posições nacionais e percepções nem sempre convergentes sobre a gravidade e a extensão da ameaça ou presença terrorista na região. Certo descompasso e falta de sintonia emergem de forma mais evidente em questões como o próprio mandato do Grupo, a amplitude de temas a serem tratados e a prioridade a ser atribuída a cada tema da agenda.

Em linha com as prioridades da política externa de seu Governo, a parte norte-americana defende que as atividades do Grupo 3+1 deveriam focalizar prioritariamente as ações de combate ao terrorismo e seu financiamento, dada a presença de numerosa população muçulmana e de origem árabe na região e a potencial atividade de proselitismo e levantamento de recursos para organizações políticas, sociais e humanitárias que atuam no Oriente Médio e podem eventualmente servir de fachada para grupos terroristas.

A Tríplice Fronteira demonstra a complexidade do encaminhamento da problemática de segurança pública, segurança nacional, ameaças do crime organizado ao sistema financeiro, à economia de mercado e à estabilidade e justiça social, em ambiente transnacional e com ordenamentos jurídicos diferenciados e percepções de risco bastante distintas. A sinergia entre crimes comuns, crime organizado e terrorismo se potencializa na Tríplice Fronteira devido ao ambiente financeiro caracterizado pelo uso intenso de dinheiro em espécie que funciona como uma usina de geração de fundos para essas atividades delituosas.

Entretanto, nunca é demais reiterar que o Brasil defende e muito se orgulha da convivência harmoniosa entre nacionais de diferentes etnias e religiões, que contribuem e partilham do desenvolvimento do País. Estigmatizar um segmento da população não contribui para a construção da democracia e do bem-estar almejado pela nação.

Na busca de soluções para a problemática do crime organizado e do financiamento do terrorismo na região da Tríplice Fronteira devem ser consideradas propostas, já bastante familiares aos países do nosso hemisfério, do desenvolvimento alternativo e auto-sustentável. Trata-se mais especificamente do que se convencionou chamar de "reconversão econômica" da região, para prepará-la às futuras condições de mercado comum, onde fatalmente serão anulados os incentivos fiscais de zonas francas e assemelhadas.


Quadro normativo brasileiro.

A inserção do Brasil no regime internacional de combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo deu-se a partir de 1998, com a sanção da Lei 9.613, a primeira lei "antilavagem" brasileira, que incorporou no ordenamento jurídico nacional um conjunto de medidas penais, processuais e administrativas para coibir a lavagem de dinheiro. A admissão do Brasil como membro pleno do GAFI/FATF, em 2000, demonstrou o reconhecimento da comunidade internacional aos progressos obtidos pelo País.

Vale ressaltar que o Brasil, ao dar-se conta da gravidade da ameaça que o crime organizado transnacional representava para a segurança nacional (definida em termos abrangentes como democracia, Estado de Direito, estabilidade do sistema financeiro, manutenção da ordem pública, do livre comércio e da livre concorrência), juntou-se aos esforços da comunidade internacional para criar um ordenamento jurídico capaz de frear o avanço da criminalidade.

Houve, portanto, uma genuína motivação de caráter interno e nacional - aspecto nem sempre devidamente considerado na literatura sobre a matéria -, no sentido de salvaguardar os interesses de segurança nacional e de preservar a ordem política e social, diante das ameaças contra o sistema financeiro nacional e contra a administração, a saúde e a ordem públicas advindas do crescimento exponencial do crime organizado em todas as suas variadas modalidades, com ou sem ramificações internacionais, tais como o tráfico ilícito de toda a espécie, principalmente drogas, armas e pessoas.

Não é demais lembrar que a magnitude relativa da economia brasileira na escala mundial, o crescimento do comércio exterior, a crescente integração regional, o grau de sofisticação do sistema financeiro, a estabilidade da moeda, o clima favorável a investimentos estrangeiros tornam o Brasil bastante atraente para a indústria da lavagem de dinheiro que constitui o engenho propulsor da criminalidade organizada.

Embora o País não apresente as características de "paraíso fiscal", pode ser vulnerável à ação de lavadores, particularmente no setor de comércio exterior e investimentos, onde se verificam não raro práticas de subfaturamento ou superfaturamento e mistura de recursos lícitos e ilícitos.

A legislação brasileira contra lavagem de dinheiro representou, de igual maneira, a resposta do Estado brasileiro aos compromissos assumidos em diversos foros internacionais.

Vale notar que, apesar do pronto engajamento do Brasil na luta internacional contra a lavagem de dinheiro - delito já contemplado na Convenção de Viena, de 1988 e, posteriormente, pormenorizado no Regulamento Modelo da CICAD, de 1992 -, verificou-se significativo descompasso na implementação dos compromissos internacionais assumidos pelo País. Os dispositivos antilavagem contidos naqueles documentos legais permaneceram sem aplicação prática, pois o ordenamento jurídico nacional não criminalizava a lavagem de ativos oriundos de atividades ilícitas, nem mesmo a ocultação dos ganhos do narcotráfico. Como "não há crime sem lei anterior que o defina" e "não há pena sem prévia cominação legal" (Artigo 1º do Código Penal), a atividade relacionada com a ocultação do produto do crime gozava de relativa impunidade.

Em todo o caso, a Lei nº 9.613/98, ateve-se deliberadamente ao regime prevalente na Europa e apregoado no Regulamento Modelo da CICAD e nas 40 Recomendações do GAFI/FATF, e reservou o novo tipo penal à reciclagem de bens, direitos ou valores, oriundos direta ou indiretamente de uma série de crimes graves, com características transnacionais, os quais foram elencados, em obediência ao princípio da taxatividade.

Dessa maneira, em conformidade com os dispositivos do regime internacional de combate à lavagem de dinheiro e com base na análise das tendências e do modus operandi das organizações criminosas contemporâneas, o diploma legal sujeitou ao regime administrativo uma gama extensa de pessoas físicas e jurídicas vulneráveis ao processo de reciclagem, pois que, em caráter permanente ou eventual, movimentam considerável volume de ativos. Entre tais pessoas físicas e jurídicas sujeitas à lei estão as instituições financeiras, entidades seguradoras, de capitalização, distribuidoras de prêmios, administradoras de cartões de crédito, agentes do ramo imobiliário e de comércio de jóias, pedras e metais preciosos, objetos de arte, antiguidades e bens de luxo ou de alto valor.

Não resta dúvida que o setor financeiro apresenta as maiores vulnerabilidades diante do processo de lavagem, tanto pelo volume de recursos movimentados como pelo número elevado de operações realizadas. Entretanto, graças à intensa regulamentação, supervisão e controle exercidos pelas autoridades bancárias centrais, inclusive pelas instituições financeiras internacionais e outras, como o Comitê de Basiléia, a Associação Internacional de Supervisores de Seguros e a Organização Internacional de Bolsas de Valores, cada uma com seu conjunto de "princípios fundamentais", o setor financeiro logrou ampliar a vigilância, reduzir o potencial desestabilizador dos processos de lavagem e dificultar a capitalização do crime organizado. Evidentemente que tais esforços redundam em benefício do próprio sistema financeiro, que fortalece sua boa imagem, reforça sua credibilidade e salvaguarda sua capacidade operacional.

Na medida em que o sistema financeiro passa a aplicar com maior rigor as medidas de controle e vigilância, o processo de lavagem tende a se deslocar para outros setores menos controlados e estruturados e com menor capacidade de diferenciar as operações lícitas das operações ilícitas. Daí a razão para a multiplicidade de "sujeitos obrigados" que são enumerados na lei brasileira antilavagem.

O exercício de tipologias realizado no âmbito do GAFI/FATF coloca em evidência os setores que são ou se tornam mais vulneráveis às atividades ilícitas da lavagem de dinheiro. Tendo em conta a natureza dinâmica do processo de lavagem, o exercício de tipologias realizado no âmbito do grupo regional denominado GAFISUD objetiva precisamente detectar as tendências e métodos com maior índice de ocorrência na região, inclusive o grau de "profissionalismo" e sofisticação dos criminosos ou seus prepostos e os setores financeiros e econômicos mais visados para a prática da reciclagem de ativos. Resulta, portanto, que o número de sujeitos obrigados a comunicar operações suspeitas tenderá a aumentar, na medida em que os setores atualmente regulados dificultarem o desenvolvimento da indústria da lavagem de dinheiro.

O envolvimento de profissionais e escritórios especializados em assuntos financeiros e legais nos mais diversos esquemas de lavagem de dinheiro tem sido fartamente documentado nos exercícios de tipologias do crime realizados no âmbito do GAFI/FATF e dos grupos regionais assemelhados.

Assiste-se, de fato, ao desenvolvimento de uma nova classe de profissionais do crime, cujos negócios prosperam na medida em que descobrem e adotam novos métodos e técnicas sofisticados de lavagem de dinheiro para fugir ou evitar os controles e as medidas destinadas a seu combate.

Cabe, sem dúvida, enfatizar o papel legítimo, importante e necessário desempenhado por essas categorias de profissionais especializados, conhecidos como "gatekeepers" ou facilitadores de negócios, no estabelecimento, organização e administração dos negócios e assuntos financeiros de seus clientes, particularmente em matérias relativas à criação de trustes e fundações, compra e venda de imóveis e ações, investimentos, administração tributária e outros serviços. Todas essas atividades de assistência e consultoria, normalmente legítimas e indispensáveis para as relações econômicas globalizadas, podem ser utilizadas abusivamente por indivíduos ou grupos criminosos organizados para montar esquemas complexos de lavagem de dinheiro e para dar aparência de legitimidade às suas operações.

A extensão da obrigatoriedade de comunicação de operação suspeita a advogados, notários, contadores e outras profissões não financeiras sujeitas a segredo profissional ou cobertas por um privilégio profissional de natureza legal, tal como pretendida pelo GAFI, revelou-se mais polêmica do que o esperado, tanto no Brasil como em outras partes do mundo, em virtude da linha tênue que distingue e separa a natureza legal e aquela comercial, normalmente presentes na mesma operação.


A reestruturação do Estado e coordenação interna.

A vigência da Lei nº 9.613/98 permitiu a criação e estruturação do Conselho de Controle de Atividades Financeiras - COAF, órgão colegiado que tem a "finalidade de disciplinar, aplicar penas administrativas, receber, examinar e identificar as ocorrências suspeitas de atividades ilícitas previstas nesta Lei, sem prejuízo da competência de outros órgãos e entidades". No ano seguinte, foi instituído o Departamento de Combate a Ilícitos Cambiais e Financeiros - DECIF, no Banco Central do Brasil, o que ampliou consideravelmente a capacidade do Estado em combater o crime organizado, em geral, e os crimes financeiros, em particular.

Dada a proeminência do sistema financeiro no processo de lavagem de dinheiro, atribuiu-se ao DECIF a responsabilidade de atuar no sentido de prevenir a ocorrência de ilícitos cambiais e financeiros no âmbito do Sistema Financeiro Nacional, e combatê-los mediante a adoção das medidas cabíveis e do intercâmbio de informações com outros órgãos.

No campo internacional, registraram-se, entre outras medidas, a adesão plena do Brasil ao GAFI/FATF, ao Grupo de Egmont, a participação no Mecanismo de Avaliação Multilateral da CICAD/OEA e a implementação de medidas no cumprimento da Resolução 1373 (2001) do Conselho de Segurança das Nações Unidas.

No âmbito do Ministério das Relações Exteriores foi criada, no segundo semestre de 2001, a Coordenação-Geral de Combate a Ilícitos Transnacionais - COCIT, que passou a tratar dos assuntos relacionados à criminalidade transnacional. De um tratamento atomizado de alguns ilícitos transnacionais, especialmente tráfico de drogas e armas, o Itamaraty adotou uma abordagem mais sistêmica e articulada dessa problemática. Ao tratamento consular e jurídico, com enfoque em aspectos sociais e humanitários, o Ministério das Relações Exteriores acrescentou a perspectiva da criminalidade organizada e do terrorismo internacionais, como ameaças à paz e segurança e ao desenvolvimento sócio-econômico do País.

Tal reestruturação era necessária em razão da proeminência conferida aos temas relacionados com a criminalidade transnacional e terrorismo na agenda dos organismos multilaterais, bem como em decorrência dos compromissos internacionais assumidos pelo País ao assinar uma gama de instrumentos legais multilaterais. A centralização do tema dos ilícitos transnacionais em uma única unidade administrativa do Ministério das Relações Exteriores também se fazia necessária para agilizar e tornar eficaz a interlocução com outros órgãos governamentais nacionais voltados para o combate às diversas modalidades do crime organizado. Vários desses órgãos tem atribuições e competências regimentais para atuar no plano internacional. São, portanto, agentes de política externa plenamente credenciados e, em alguns casos, na qualidade de autoridade coordenadora central nacional, dirigem os trabalhos de sua área de competência em organismos internacionais.


A estratégia nacional de combate à lavagem de dinheiro.

Mesmo tendo adotado um conjunto suficientemente completo de medidas, dispositivos e normas para a prevenção, controle, investigação e repressão da lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo - tarefa que mereceu o reconhecimento internacional -, o regime brasileiro deparava-se com a situação incômoda de carência de resultados concretos nessa matéria.

Não obstante as consideráveis cifras de ativos lavados no País - cerca de US$ 10 bilhões, conforme estimativas feitas por CPI''s e operações da Polícia Federal divulgadas pela mídia -, o percentual de casos que chegava à Justiça era insignificante e não havia dados relativos a inquéritos abertos, denúncias oferecidas, ações iniciadas e findas, valores e bens indisponibilizados e confiscados.

Como fruto da autocrítica, bem como das recomendações recebidas de organismos multilaterais, apontava-se a falta de articulação e de atuação estratégica do Estado como a principal deficiência no regime nacional de combate à lavagem de dinheiro.

Para buscar sanar a deficiência, convocados pelo Ministério da Justiça, reuniram-se, em dezembro de 2003, diversos órgãos e agentes públicos do Estado brasileiro para coordenar a atuação estratégica e operacional no combate à lavagem de dinheiro. Produto da reunião, a Estratégia Nacional de Combate à Lavagem de Dinheiro - ENCLA -2004, que se baseia no princípio da articulação permanente dos órgãos públicos atuantes no combate aos crimes financeiros e, em sentido mais amplo, ao crime organizado, traçou 6 objetivos estratégicos e 32 metas, com prazos e responsáveis definidos. Os objetivos e metas fixados na referida Estratégia refletem de maneira eloqüente a amplitude da ação planejada no exercício. Foi importante iniciativa para organizar o Estado desorganizado para enfrentar o crime organizado e construir uma cultura de combate à lavagem de dinheiro no Brasil.

Concomitantemente ao lançamento da ENCLA 2004, procedeu-se à instalação do Gabinete de Gestão Integrada de Prevenção e Combate à Lavagem de Dinheiro - GGI-LD e à criação do Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional – DRCI, ambos no âmbito do Ministério da Justiça. Na esfera do poder judiciário, deu-se início à criação de varas especializadas em matéria de lavagem de dinheiro.

Decorridos já 8 anos da entrada em vigor da Lei nº 9.613/98, começam a surgir propostas para atualizá-la em aspectos substantivos, como a ampliação da tipificação do crime de lavagem de dinheiro, desvinculando-o do rol exaustivo de crimes antecedentes, a introdução do bloqueio administrativo de ativos ilícitos, a definição de organização criminosa e a tipificação dos crimes de terrorismo e financiamento do terrorismo como delitos autônomos. A tipificação dos crimes antecedentes da lavagem de dinheiro passaria a compreender qualquer crime cuja pena de reclusão seja superior a dois anos. A expressão "crimes antecedentes" seria substituída por "infrações penais antecedentes". Abandonar-se-ia, portanto, o paradigma das leis de segunda geração para adotar o regime definido como de terceira geração.

Dentre outras propostas de medidas inovadoras para reformar e atualizar a Lei nº 9.613/98, cabe destacar as seguintes:

a) introdução da chamada "barganha" da pena (‘plea-bargain’), inspirada no direito anglo-saxão, em que as medidas compensatórias pecuniárias reduzem a capacidade econômica do infrator e, conseqüentemente, do crime organizado;

b) incriminação do atraso e da ausência da comunicação de operação financeira que ultrapassa o limite do valor fixado pela autoridade ou da operação que representa sérios indícios da prática do crime de lavagem;

c) incriminação da divulgação indevida de comunicação de operação financeira;

d) inclusão de novo tipo penal, de perigo, consistente na tipificação da conduta daquele que realiza operações estruturadas voltadas para burlar uma comunicação obrigatória;

e) inclusão dos crimes contra a ordem tributária;

f) restabelecimento da possibilidade de liberdade provisória e fiança. Na linha de atacar as finanças do crime organizado, propõe-se a liberdade provisória mediante pagamento de fiança - situação vedada na lei atual e que encontra resistências na jurisprudência, uma vez que o Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional a não-previsão de liberdade provisória na análise da Lei dos Crimes Hediondos;

g) substituição das regras dos artigos 125 a 144 do Código de Processo Penal, que tratam de arresto e seqüestro de bens, direitos ou valores, por disposição que prevê a "indisponibilidade" de bens e a permissão de sua alienação antecipada;

i) instituição do cadastro nacional de bens tornados indisponíveis;

j) inclusão de novas pessoas obrigadas, como as juntas comerciais e os registros públicos, as pessoas físicas ou jurídicas que prestem serviço de assessoria, consultoria, contadoria ou auditoria de qualquer natureza e as pessoas físicas ou jurídicas que atuem na promoção, intermediação, comercialização, agenciamento ou negociação de direitos de transferência de atletas, artistas ou feiras, exposições ou eventos similares";

l) instituição de norma que estabelece o dever de comunicar ao COAF, no prazo de 24 horas, todas as comunicações de operações "suspeitas", independentemente de seu envio para outros órgãos reguladores ou fiscalizadores.

Algumas medidas operacionais de grande importância para lograr maior eficiência na aplicação da lei, como as forças-tarefa e as varas especializadas, já se encontram em fase de implementação e vêm apresentando resultados animadores.

Considerando que os órgãos individuais de fiscalização, de inteligência financeira, de investigação, de persecução criminal e de julgamento envolvidos na apuração dos crimes de "lavagem" detêm apenas uma parcela do conhecimento necessário e, tendo em conta a grande complexidade da matéria, surge a necessidade de realização de forças-tarefas em equipe - task force -, integradas por membros do Banco Central, CVM, SUSEP, SPC, Receita Federal, Polícia Federal e Ministério Público Federal, entre outros.

Igualmente de grande relevância para o combate eficaz à lavagem de dinheiro tem sido a implantação das varas especializadas. A instalação, em cada capital de Estado, de vara especializada no combate à lavagem de dinheiro e crimes contra o sistema financeiro, otimiza a investigação, dando-lhe qualidade e celeridade. A cooperação e a integração constituem a marca de atuação desses centros operacionais. Com a troca de informações rápidas e seguras entre os agentes envolvidos, operações complexas de lavagem de dinheiro são mais facilmente detectadas, melhor compreendidas e prontamente desbaratadas.


A cooperação internacional.

A globalização econômica facilitou o florescimento de um subproduto indesejável – a globalização do crime. As organizações criminosas não estão vinculadas a qualquer conjunto de normas ou princípios de conduta internacional, como não interferência em assuntos internos, que limita a ação dos Estados às suas próprias fronteiras, e reciprocidade. Sem esses entraves e com o recurso desimpedido à tecnologia de ponta, as organizações criminosas contam com superior vantagem sobre os atores estatais. A criminalidade organizada aproveita-se, deliberadamente, da existência de fronteiras territoriais para alcançar os seus fins, já que o Direito, a política, o Judiciário, o Ministério Público estão limitados pelo princípio da territorialidade.

A eficácia da luta contra a delinqüência internacional pressupõe uma estreita colaboração entre os Estados, pois não tendo poder de império, senão dentro do seu próprio território, o Estado necessita recorrer à assistência que lhe podem prestar outros Estados por meio das suas atividades jurisdicionais lato sensu.

O assim chamado instituto da cooperação jurídica internacional encontra fundamento no princípio do acesso à Justiça, de vez que, sem esse instituto, não haveria tutela jurisdicional possível no atual mundo globalizado, em que bens e pessoas atravessam fronteiras com extrema facilidade. Portanto, a cooperação jurídica internacional revela-se uma premissa indispensável ao acesso à Justiça que, acrescente-se, é também um princípio de ordem constitucional no Brasil. Assim sendo, é dever do Estado brasileiro ratificar os tratados que fomentam e estimulam a cooperação internacional. Em conseqüência, deve-se estimular a criação de jurisprudência e interpretações que favoreçam a cooperação entre os países pois, desse modo, afastam-se as dificuldades para o acesso à prova e à própria tutela jurisdicional.

As dificuldades enfrentadas pela Justiça brasileira na investigação de crimes transnacionais são agravadas pela ausência no ordenamento jurídico nacional de uma lei que contemple, de forma estruturada e sistêmica, a cooperação judiciária internacional, a exemplo do que já existe em alguns outros países, como Argentina, Alemanha, Espanha e Suíça.

Com este propósito, a Associação Nacional de Juízes Federais (AJUFE) elaborou um anteprojeto de lei que "regulamenta a assistência judiciária internacional em matéria penal, a ser prestada ou requerida por autoridades brasileiras, nos casos de investigação, instrução processual e julgamento de delitos". A matéria ingressou na Câmara dos Deputados como Projeto de Lei 1982/03 e tramitava, em março de 2006, na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional (CREDN).

Convém ao Brasil, na defesa dos seus interesses, empreender negociações de novos acordos bilaterais de cooperação jurídica, policial e administrativa, dando preferência aos países com os quais se verifica elevado intercâmbio comercial, financeiro e fluxo de investimentos. Especial prioridade deveria ser conferida a países que adotam regime fiscal privilegiado, conhecidos como "paraísos fiscais" ou "paraísos jurídicos", que apresentam condições reconhecidas como mais favoráveis à reciclagem de ativos ilícitos, em qualquer das três etapas teóricas do processo de lavagem de dinheiro: colocação de dinheiro no sistema econômico-financeiro, ocultação dos recursos mediante movimentações que dificultam o rastreamento contábil e, finalmente, integração dos ativos ilegais no sistema econômico legal.


Linhas de ação para a política externa brasileira.

A prática quotidiana em matéria de política externa mostra a participação de vários agentes governamentais, além do Ministério das Relações Exteriores, que vem desempenhando atribuições típicas de política externa. A atuação externa desses agentes é mais evidente nas negociações comerciais, talvez pelo maior interesse da mídia pela matéria.

Decorre daí a necessidade de estimular a interação e a coordenação do Ministério das Relações Exteriores com outros órgãos governamentais nacionais e, quando apropriado, com representações de classe e da sociedade civil, para traçar as linhas de ação possíveis e que melhor atendam os interesses externos brasileiros e os objetivos de transformação interna do País.

Um aspecto importante que deve nortear a atuação do Brasil em foros multilaterais, especialmente a ONU e suas agências especializadas, é a defesa da interconexão ou interdependência das novas ameaças, aspecto esse enfatizado pelo Secretário-Geral da ONU em seus discursos e relatórios mais recentes, assim como pelo Chanceler do Brasil, porém nem sempre levado na devida conta por todos os Estados membros da Organização. Trata-se de promover de forma equilibrada e assentada nos pilares da segurança, desenvolvimento e direitos humanos, as políticas públicas de combate ao terrorismo e ao crime organizado e, por extensão, à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo.

Coerente com a tradição da política externa brasileira de defesa do multilateralismo e do fortalecimento da Assembléia-Geral e outras instâncias decisórias da ONU, o Brasil deve continuar mantendo a posição de que cabe à Assembléia-Geral, por força de seu mandato contido na Carta das Nações Unidas, alcançar uma definição universalmente aceita do terrorismo. A falta de consenso na matéria tem corroído a autoridade moral da Organização e enfraquecido suas mensagens de repúdio aos atos terroristas. Tal desgaste debilita igualmente as manifestações de condenação do terrorismo dos Estados membros.

Ao reafirmar o princípio da responsabilidade compartilhada dos Estados no combate à lavagem de dinheiro - atividade criminosa que desempenha papel crucial no fomento do crime organizado e do terrorismo -, e levando em conta a estreita conexão entre essas duas ameaças à paz e segurança coletiva, no seu mais amplo sentido, conviria aos interesses brasileiros explicitar adequadamente o seu enfoque prioritário ao combate à lavagem de ativos provenientes de determinadas atividades ilícitas, como a corrupção e o contrabando, e outras tipologias mais recorrentes nas diversas regiões do País. Sem furtar-se à cooperação internacional em matéria de financiamento do terrorismo ou outros delitos graves, a cooperação judiciária ativa e passiva deveria focalizar essas modalidades de crime organizado.

Nessa mesma perspectiva, caberia fomentar a cooperação judiciária internacional e novas formas ágeis e céleres de auxílio mútuo no campo da recuperação de ativos, com a finalidade de denegar o uso e fruição do produto do crime pelos criminosos, impedir o financiamento e a regeneração da indústria do crime e, em última análise, desmantelar as estruturas das organizações criminosas. O êxito de tal medida redundaria em atenuação do sentimento de frustração da opinião pública nacional gerada pelo baixo índice de repatriação de recursos desviados dos cofres públicos.

Não menos importante e necessária se afigura a projeção para o exterior, particularmente nos foros multilaterais e regionais e organismos especializados que tratam do combate à lavagem de dinheiro, crime organizado, corrupção e terrorismo, das atividades em prol da causa levadas a cabo pelas autoridades nacionais. Embora persistam lacunas ainda não preenchidas satisfatoriamente, o País já vem merecendo de organismos internacionais especializados o reconhecimento por diversas medidas adotadas e iniciativas bem sucedidas.

Ainda que em processo de aperfeiçoamento, o regime brasileiro de combate ao crime organizado pode oferecer à comunidade internacional exemplos de boas-práticas, a exemplo da Estratégia Nacional de Combate à Lavagem de Dinheiro - ENCLA,que constitui modelo de articulação e coordenação interna resultante de vontade política e engajamento da sociedade como um todo no combate ao crime transnacional.


Autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

KRAWCTSCHUK, Zenik. A estratégia internacional de combate à lavagem de dinheiro. A política brasileira e a cooperação internacional na matéria. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2271, 19 set. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13541. Acesso em: 19 abr. 2024.