Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/14231
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

A aplicação do perdão judicial aos crimes de homicídio culposo e lesão corporal culposa praticados na direção de veículo automotor

A aplicação do perdão judicial aos crimes de homicídio culposo e lesão corporal culposa praticados na direção de veículo automotor

Publicado em . Elaborado em .

INTRODUÇÃO

O presente trabalho monográfico versa sobre a possibilidade de aplicação do perdão judicial aos crimes de homicídio culposo e lesão corporal culposa praticados na direção de veículo automotor, definidos nos artigos 302 e 303 da Lei nº 9.503/97, que instituiu o Código de Trânsito Brasileiro – CTB.

O perdão judicial é um instituto através do qual o juiz, mesmo reconhecendo a existência de elementos subjetivos e objetivos do tipo penal, deixa de aplicar a pena, considerando a ocorrência de circunstâncias excepcionais previstas em lei e que tornam desnecessária a aplicação da pena.

Conforme o entendimento do art. 107, IX, do Código Penal Brasileiro, o perdão judicial somente pode ser aplicado nos casos previstos em lei. Entretanto, no caso dos crimes culposos de trânsito, não há essa previsão, pois o art. 300 da Lei 9.503/97, que estabelecia a possibilidade de aplicação do perdão judicial para esses crimes, recebeu o veto presidencial.

Desse modo, há entendimentos que consideram que o perdão judicial não pode ser aplicado aos crimes culposos de trânsito, por não haver previsão legislativa nesse sentido.

O objetivo desse trabalho é discutir se essa possibilidade é legítima ou não, apresentando as idéias daqueles que consideram que o instituto pode ser aplicado aos crimes definidos nos artigos 302 e 303 do CTB e também daqueles contrários a essa idéia. O estudo envolve a análise da doutrina e também da jurisprudência disponível sobre o assunto.

Esse estudo é desenvolvido em três capítulos. O primeiro versa sobre o perdão judicial, onde são apresentados os conceitos do instituto, seus fundamentos, bem como sua natureza jurídica e a natureza jurídica da sentença que o concede e também os efeitos dessa concessão.

O segundo capítulo, intitulado "Os crimes de trânsito", procura demonstrar o contexto histórico que favoreceu o desenvolvimento legislativo do severo Código de Trânsito Brasileiro, instituído pela Lei nº 9.503/97, e da tipificação dos crimes de trânsito em lei especial. Essa análise é principalmente focada nos crimes definidos nos artigos 302 e 303 do CTB.

O terceiro e último capítulo analisa a problemática principal do trabalho, que versa sobre a possibilidade de aplicação do perdão judicial aos crimes culposos de trânsito, apresentando os argumentos favoráveis e os contrários a essa possibilidade.

Para o desenvolvimento do tema, buscou-se os fundamentos dos institutos envolvidos em diversas obras de doutrinadores do cenário jurídico brasileiro, visando ampliar a discussão da questão além da análise fria do texto legal, que considera como não possível a aplicação do perdão judicial aos casos analisados.


1 PERDÃO JUDICIAL

A legislação pátria não cuidou de conceituar o perdão judicial, cabendo à doutrina buscar a sua conceituação. Entretanto, devido haver inúmeras divergências sobre a sua natureza jurídica, seus efeitos e sobre a natureza jurídica da sentença que o concede, foram apresentados diversos conceitos, os quais retratam a corrente seguida por cada autor.

Jesus (2001, v. 2, p. 85) ofereceu o conceito clássico do instituto: "Perdão judicial é o instituto pelo qual o juiz, não obstante a prática delituosa por um sujeito culpado, não lhe aplica a pena, levando em consideração determinadas circunstâncias".

Esse conceito encontra-se em perfeita sintonia com o apresentado por Mirabete (2003), para quem o perdão judicial é um instituto pelo qual o juiz deixa de aplicar a pena em razão de circunstâncias excepcionais previstas em lei, mesmo reconhecendo a coexistência dos elementos objetivos e subjetivos que constituem o delito, ou seja, mesmo reconhecendo que o indivíduo praticou o ilícito penal.

Azevedo (2000) afirma ser o perdão judicial uma medida de política criminal que, fundamentada na prevenção especial e geral de crimes, considera extinta a punibilidade do delito, para o qual a pena se mostra desnecessária e inútil.

Aguiar (2004, p. 08) reconhece a existência de um grande número de juristas que trataram do tema, enfocando o instituto de diversos ângulos, porém, insatisfeito com os conceitos já apresentados, fornece um próprio:

Perdão judicial é o instituto de direito penal através do qual é dado ao juiz, como etapa de individualização da sentença penal, o poder discricionário de renunciar, em nome do Estado, ao direito de punir, uma atitude valorativa da espécie, deixando assim de aplicar a pena ao autor de uma conduta típica, ilícita e culpável, implicando isso na extinção da punibilidade dessa conduta.

Percebe-se que todos os conceitos apresentam uma essência em comum. Assim, pode-se estabelecer um conceito essencial sobre o perdão judicial: É o instituto jurídico pelo qual o juiz, mesmo reconhecendo a existência de todos os elementos para condenar o acusado, deixa de aplicar a pena, devido à existência de circunstâncias especiais previstas em lei.

De acordo com o já afirmado, a natureza jurídica do perdão judicial é um tema controvertido na doutrina, existindo inúmeras teorias e posições seguidas, visando posicionar e enquadrar o instituto. Essas teorias podem ser sintetizadas em quatro posições principais: a) causa de exclusão do crime; b) escusa absolutória; c) indulgência judicial; e d) causa de extinção da punibilidade.

Segundo os defensores da primeira corrente, o perdão judicial retira o caráter delituoso do fato, extinguindo o crime, tornando-o inexistente. Esse posicionamento é inspirado no direito penal italiano, visto que o art. 169 do Código Penal Italiano colocou o perdão judicial entre as causas de extinção do delito e, segundo os seus defensores, como o instituto pátrio foi inspirado no direito italiano, deve conservar a mesma natureza jurídica.

Entretanto, no sistema penal pátrio, esse instituto apenas isenta o autor do crime da pena cominada. Assim, o crime continua existindo, sendo inclusive um pressuposto para a aplicação do perdão.

A segunda posição enquadra o perdão judicial como sendo uma escusa absolutória, pois levaria à absolvição do acusado.

Esse posicionamento não pode prevalecer, pois, como foi afirmado, o juiz deixa de aplicar a pena, mesmo reconhecendo a prática do crime pelo acusado. Ou seja, ele não declara a absolvição do acusado nos termos do art. 386 do Código de Processo Penal.

Para a terceira corrente doutrinária, a natureza jurídica é de simples indulgência judicial, ou seja, seria apenas uma faculdade conferida ao juiz de, ao seu livre arbítrio, exercer um ato de clemência, deixando de aplicar a pena. Nessa circunstância, o juiz estaria acima do Estado, situação que não pode prevalecer em um Estado Democrático de Direito como o brasileiro.

A quarta posição é aquela que reconhece o perdão judicial como causa de extinção da punibilidade. É a posição predominante na doutrina.

Segundo Capez (2005, v. 1), causas de extinção da punibilidade são aquelas que extinguem o jus puniendi do Estado, ou seja, elidem o direito subjetivo estatal de punir o autor do delito.

O predomínio dessa corrente na doutrina deve-se à reforma do Código Penal Brasileiro operada pela Lei nº 7.209/84, que incluiu o perdão judicial no rol das causas extintivas de punibilidade do art. 107 desse código. Assim, por expressa definição legal, o perdão judicial passou a ser reconhecido como causa extintiva de punibilidade.

Entretanto, apesar de gozar de grande aceitação na doutrina, essa corrente enfrenta divergências. Aguiar (2004, p. 26-27) justifica dizendo que a extinção da punibilidade é mero efeito da aplicação do perdão judicial, não sendo suficiente para afirma-lhe a sua natureza jurídica e complementa apresentando a sua posição:

[...] a natureza jurídica do perdão judicial consiste em ser esse instituto um instrumento de renúncia ao direito de punir (pretensão punitiva), manifestada pelo julgador em casos previamente autorizados pela lei, sempre em nome do Estado, [...].

1.2 Direito subjetivo do acusado

Discute-se acirradamente na doutrina se o perdão judicial é mera faculdade conferida ao juiz ou constitui um legítimo direito subjetivo do acusado.

Aqueles que consideram o instituto como uma faculdade conferida ao juiz, ou seja, simplesmente uma possibilidade de fazer, entendem que o magistrado pode aplicar o perdão judicial livremente de acordo com a sua vontade e seus critérios, não podendo o acusado exigir do juiz o exercício dessa atribuição.

Dessa forma, diante de um caso concreto em que a lei abstratamente possibilite a aplicação do perdão judicial, o juiz pode aplicá-lo ou não de acordo com a sua vontade, mesmo estando presentes os requisitos legais.

Essa posição é defendida por Mirabete (2003, p. 396) que expressa: "Trata-se de uma faculdade do magistrado, que pode concedê-lo ou não, segundo seu critério, e não direito do réu".

Na mesma linha, Betanho (2001) apresenta o seu conceito do instituto afirmando que é uma faculdade atribuída ao juiz de não aplicar a pena diante de circunstâncias excepcionais previstas em determinados tipos legais.

Essa posição mostra-se totalmente afastada do direito penal atual, pois coloca o direito de liberdade do acusado nas mãos do magistrado, que pode aplicar o perdão judicial de acordo com o seu livre arbítrio. Dessa forma, o juiz permaneceria em posição superior ao Estado, passando a ser o real detentor do jus puniendi.

Para aqueles que entendem ser o perdão judicial um direito subjetivo do acusado, ele pode exigir que o magistrado aplique o instituto quando estiverem satisfeitos os requisitos legais.

Assim, o magistrado não tem apenas a faculdade de conceder o perdão judicial, mas um verdadeiro poder-dever, que o obriga a conceder o benefício sempre que os requisitos legais estiverem presentes no caso concreto, não podendo negá-lo arbitrariamente.

Esta é a posição adotada por Delmanto (2002, p. 208-209):

Quando a lei concede ao agente a possibilidade de alcançar certo benefício [...], tal possibilidade legal insere-se nos chamados direitos públicos de liberdade do acusado. Sendo cabível a aplicação daquela possibilidade legal em favor do réu, não pode o julgador deixar de deferi-la por capricho ou arbítrio. Pode e deve mesmo denegá-la o juiz, quando o acusado não preencher as condições exigidas para atender os requisitos do perdão judicial previstos em lei. Entretanto, quando estiverem presentes os requisitos necessários, aquela possibilidade legal se transforma em direito público de liberdade do agente.

Jesus (2001, v. 1, p. 687) também defende essa idéia e ainda estabelece qual o sentido da expressão "pode" empregada pelo Código Penal Brasileiro ao se referir ao perdão judicial:

A expressão ‘pode’ empregada pelo CP nos dispositivos que disciplinam o perdão judicial, de acordo com a moderna doutrina penal, perdeu a natureza de simples faculdade judicial, no sentido de o juiz poder, sem fundamentação, aplicar ou não o privilégio. Satisfeitos os pressupostos exigidos pela norma, está o juiz obrigado a deixar de aplicar a pena.

Aguiar (2004) afirma que admitir o perdão judicial como um direito subjetivo do réu, significaria afirmar que o réu pode exigir do Estado a não imposição de pena e que isto desvirtuaria esse instituto. Ele anuncia que o instituto não é mera faculdade do juiz, nem um direito subjetivo do réu, pois as normas que prevêem sua concessão exigem uma posição valorativa de elementos subjetivos por parte do juiz e, mostrando-se insatisfeito com as posições dominantes, afirma que o perdão judicial é um poder discricionário, pois a aplicação ou não do instituto depende de uma decisão motivada do magistrado, segundo critérios de oportunidade, conveniência, justiça e equidade.

Percebe-se que o instituto é na realidade um direito subjetivo do acusado, que pode exigir do Estado a sua concessão quando presentes os requisitos exigidos em lei. Entretanto, esses requisitos são predominantemente subjetivos e dependem da análise valorativa do caso concreto pelo juiz, que motivadamente deve explicar o porquê da aplicação ou não do benefício ao acusado.

Assim, na sentença, o juiz não pode afirmar que o acusado possui os requisitos objetivos e subjetivos exigidos em lei e deixar de aplicar o instituto, bem como o acusado não pode exigir que o juiz deixe de aplicar a pena, se este entender que os requisitos não estão presentes no caso concreto.

Azevedo (2000, p. 449-450) apóia esse entendimento:

Assim é que observados os requisitos objetivos [...], e levando-se em conta o atendimento dos pressupostos de ordem subjetiva [...], o perdão se põe como pretensão legítima do acusado, a ser sopesada pelo Magistrado dentro de um juízo complexo de adequação e justeza da aplicação do instituto.

1.3 Fundamentos do perdão judicial

O instituto fundamenta-se na necessidade de não impor condenação a determinadas pessoas, que não devem sofrer os rigores da lei, devido à existência de circunstâncias excepcionais ligadas de forma direta ao fato.

Desse modo, pode ser encarado como medida de política criminal, que, visando evitar condenações injustas, deixa isento de pena determinados casos excepcionais em que essa é desnecessária.

Aguiar (2004, p. 29) atento à fundamentação do instituto leciona:

Temos como induvidoso o fato de que, em certos casos, há a necessidade tão-somente de um pronunciamento judicial de responsabilização contra o réu. Tal pronunciamento tanto é suficiente que, nesses casos, a imposição de qualquer espécie de pena se mostra desnecessária e, conseqüentemente, inadequada e injusta.

Essa desnecessidade da pena pode ser fundamentada em razões éticas, técnicas e práticas.

Sob o ponto de vista ético, a pena não deve ser concebida visando apenas o castigo, a repressão, devendo primar pela reeducação do infrator e sua readaptação no meio social harmonioso.

Constitui-se, em seu aspecto técnico, como tarefa de individualização da pena, objetivando que as peculiaridades de cada caso concreto possam permitir ao juiz decidir se a pena é necessária ou não.

Por razões de ordem prática, além do alto custo do sistema penitenciário, tem-se que a não aplicação de pena, nessas circunstâncias, trará maior benefício ao acusado que uma privativa de curta duração, que não terá o condão de cumprir as finalidades da condenação: retributiva, preventiva e ressocializadora, devido a brevidade da medida e ausência de aparelhamento estatal específico e adequado para esse fim.

Azevedo (2000, p. 453), comungando dessa mesma idéia, afirma: "se a reprimenda já não potencialmente atingirá a finalidade retributiva ou preventiva, seja especial ou geral, positiva ou negativa, é o caso de dispensa de pena".

1.4 A natureza jurídica da sentença que concede o perdão judicial e seus efeitos

A natureza jurídica da sentença que concede o perdão judicial é um assunto de grande discussão doutrinária e jurisprudencial e dessa discussão prevaleceram três posições distintas:

a) condenatória;

b) absolutória;

c) declaratória de extinção da punibilidade;

Hoje prevalece a posição que a sentença que concede o perdão judicial é declaratória da extinção da punibilidade. Esta posição é a constante da Súmula 18 do Superior Tribunal de Justiça (STJ): "A sentença concessiva do perdão judicial é declaratória da extinção da punibilidade, não subsistindo qualquer efeito condenatório".

A exata classificação dessa sentença possui importantes efeitos práticos, pois, conforme a posição adotada, distintos serão seus efeitos, principalmente quanto aos efeitos secundários da condenação.

Segundo a primeira corrente, a sentença concessiva do perdão judicial é condenatória, entretanto, o juiz não fixa a pena, pois o Estado renuncia à pretensão punitiva. Porém, mesmo não havendo o efeito principal da condenação, subsistem os efeitos secundários próprios de uma sentença penal condenatória.

Prado (2002) apresenta os principais efeitos secundários penais da condenação:

a)Revogação, facultativa ou obrigatória, do sursis anteriormente concedido ou vedação de eventual concessão desse, se ficar caracterizada a reincidência em crime doloso;

b)Revogação, facultativa ou obrigatória, do livramento condicional;

c)Aumento ou interrupção do prazo de prescrição da pretensão punitiva executória, evidenciada a reincidência;

d)Caracterização da reincidência, se houver crime posterior;

e)Revogação da reabilitação, se restar comprovada a reincidência;

f)Caracterização da reincidência, caso o condenado já tenha sido condenado por sentença condenatória transitada em julgado;

g)Inscrição do nome do réu no rol dos culpados;

Além desses efeitos, há ainda os efeitos extrapenais da condenação, que estão elencados nos arts. 91 e 92 do Código Penal.

Capez (2005, v. 1, p.536) defende essa primeira posição, atribuindo natureza condenatória à sentença que aplica o perdão judicial:

O juiz deve, antes de conceder o perdão judicial, verificar se há prova do fato e da autoria, se há causa excludente da ilicitude e da culpabilidade, para, só então, condenar o réu e deixar de aplicar a pena concedendo o perdão. É a orientação seguida pelo Supremo Tribunal Federal. Esta posição acabou reforçada pelo art. 120 do Código Penal, que expressamente diz que a sentença que concede o perdão judicial não prevalece para efeitos de reincidência. [...] Assim, a sentença é condenatória, e todos os efeitos secundários penais (exceto a reincidência) e extrapenais decorrem da concessão do perdão.

Esse posicionamento também recebe o apoio de Jesus (2001, v. 1), para quem o juiz deve efetivamente condenar o réu, somente deixando de aplicar a sanção penal e de fixar a pena, uma vez que essa não teria nenhuma validade.

Os defensores dessa idéia argumentam que não se pode perdoar a quem não errou e que o reconhecimento do erro é a condenação, que atesta a existência de um crime e que o acusado é o seu autor.

A atual redação do art. 120 do Código Penal Brasileiro, instituída pela Reforma de 1984, estabelece que "a sentença que conceder o perdão judicial não será considerada para efeitos de reincidência". Esse enunciado é utilizado pelos defensores desse posicionamento, que entendem que esse artigo implicitamente determina que os outros efeitos secundários de uma condenação devem permanecer na aplicação do instituto.

Para os que consideram a natureza jurídica da sentença que concede o perdão judicial como absolutória, o juiz ao aplicar o perdão judicial está absolvendo o réu, visto essa decisão não ter nenhum efeito condenatório.

Assim, mesmo o juiz reconhecendo a autoria e a materialidade delitiva, absolveria o réu, visto haver previsão legal para não aplicação da pena. Essa seria uma absolvição anômala, já que não existe uma verdadeira absolvição, mas sim um pronunciamento judicial que reconhece a existência da infração penal e a sua autoria, mas deixa de aplicar a pena por razões de política criminal.

Esse posicionamento não encontrou grande acolhida na doutrina, visto o art. 386 do Código de Processo Penal enumerar as causas de absolvição do réu e não elencar o perdão judicial entre elas. Ademais não há necessidade de perdoar quem já foi absolvido.

Finalmente, para aqueles que defendem a natureza declaratória da sentença, ela é declaratória da extinção da punibilidade, com força de excluir todos os efeitos penais do fato, possuindo a mesma natureza jurídica da sentença que reconhece qualquer das causas previstas no art. 107 do Código Penal.

Essa posição ganhou força com a Reforma do Código Penal de 1984, que modificou toda a sua parte geral e conferiu a atual redação do art. 107, IX, demonstrando nitidamente o intuito do legislador de não se atribuir caráter condenatório à sentença que concede o perdão judicial.

Conforme já foi afirmado, essa é a posição dominante na doutrina e na jurisprudência, estando inclusive sumulada pelo Superior Tribunal de Justiça.

Apesar do enunciado da Súmula 18 do STJ, Aguiar (2004) afirma que ela não refletiu o entendimento que vinha sendo manifestado por esse tribunal, visto que os precedentes existentes que embasaram a sumulação estabeleciam que o perdão judicial extinguia a punibilidade. Para esse autor, a diferença entre declarar a extinção e extinguir a punibilidade reside na natureza destas decisões, visto que a primeira é declaratória e a segunda é constitutiva. Assim, afirma que a natureza jurídica da sentença que concede o perdão judicial é constitutiva da extinção da punibilidade e não simplesmente declaratória.

Considerando que a sentença que aplica o perdão judicial é declaratória da extinção da punibilidade, ela:

a)Não aplica o preceito sancionador do tipo penal;

b)Não implica em reincidência;

c)Não prevalece para efeitos de antecedentes criminais;

d)Afasta a eventual aplicação de medidas de segurança;

e)Não lança o nome do acusado no rol dos culpados;

f)Isenta o acusado do pagamento das custas judiciais;

g)Não interrompe o curso da prescrição;

Sintetizando esses efeitos, percebe-se que a aplicação do perdão judicial é inconciliável com a possibilidade de se impor ao perdoado tanto o efeito primário como também os efeitos secundários de uma sentença condenatória.

1.5 Hipóteses de perdão judicial inseridas pela Lei nº 6.416/77

Até o ano de 1977, o perdão judicial possuía reduzida importância no ordenamento jurídico brasileiro, visto ter sua aplicação adstrita às infrações de menor significância penal.

Com o advento da Lei nº 6.416/77 essa situação começou a se inverter, visto a criação da possibilidade de aplicação do instituto aos crimes de homicídio culposo e lesões corporais culposas.

Essa lei acrescentou ao art. 121 do Código Penal o parágrafo 5º, estabelecendo: "Na hipótese de homicídio culposo, o juiz poderá deixar de aplicar a pena, se as conseqüências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária".

Também acrescentou ao Código Penal o art. 129, parágrafo 8º: "Aplica-se à lesão culposa o disposto no § 5º do art. 121".

Jesus (2001, v. 2), analisando o contexto legislativo de quando surgiu essa lei, aponta que ela resultou do Projeto de Lei nº 02, de 1977, e que essa inovação foi introduzida pela Emenda nº 27, de autoria do Deputado Federal José Bonifácio Neto, que sugeriu a inclusão do perdão judicial como causa genérica de extinção da punibilidade, acrescentando no inciso X do art. 108 do Código Penal a possibilidade do juiz deixar de aplicar a pena quando essa se mostrasse desnecessária, devido as graves conseqüências desfavoráveis sofridas pelo agente, independentemente da infração penal praticada. E que, devido à amplitude dos desdobramentos, o relator Ibrahim Abi-Ackel restringiu a aplicabilidade do instituto, inserindo-o no art. 121 da parte especial do Código Penal.

A finalidade da lei é impedir que o agente suporte um verdadeiro bis in idem, ou seja, além da pena natural que o próprio fato lhe causou, a imposição da sanção estatal. Essa finalidade é inspirada no princípio cristão de que não se deve aumentar a aflição do aflito.

Assim, o fundamento está na verificação de que as próprias conseqüências do fato já impuseram ao agente a devida punição. Dessa forma, caso o réu tenha sofrido dor ou padecimento físico fará ele jus ao benefício. Igualmente, quando tenha sido atingido moralmente pelo dano causado a outrem, deve ser alvo do benefício.

As finalidades retributiva e preventiva da pena já teriam sido alcançadas por obra do próprio fato, por isso o Estado renuncia ao jus puniendi.

Para aplicar o perdão judicial estabelecido nos arts. 121, § 5º e 129, § 8º, ambos do Código Penal, o julgador deve analisar situação de elevada subjetividade, valorando dois critérios: a) que do crime decorram conseqüências que atinjam o agente; b) que essas conseqüências sejam tão graves a ponto de tornar a sanção penal desnecessária. Esse é o entendimento do seguinte acórdão: "A concessão do perdão judicial condiciona-se à verificação da existência de proporcionalidade entre o sofrimento do réu e as conseqüências de seu ato culposo". [01]

Autorizam o manejo do instituto conseqüências materiais ou morais direta ou indiretamente sofridas pelo infrator. É o que se aprende do seguinte julgado:

A lei não diferenciou, para efeito de aplicação do perdão judicial, a dor física do sofrimento moral, bastando que o agente fosse atingido gravemente pelo ato praticado. A sua aplicação tem cabimento em todas as hipóteses em que o sofrimento do agente, quer físico, quer moral, supere a possível sanção judicial, a ponto de esta última ser de nenhuma valia para a sociedade. E não se pode esquecer que muitas vezes a dor moral, representada pelo remorso, supera e muito a um padecimento físico. [02]

Assim, também deve ser concedido o perdão judicial nos delitos de homicídio culposo e lesão corporal culposa quando o agente sofrer insuportável dor moral em conseqüência do delito, por exemplo, a dor pela perda ou ferimento em pessoa da família, sendo este ente querido.

Não se deve restringir a aplicação da norma legal apenas aos casos em que ocorra sofrimento físico grave ou igual ao sofrido pela vítima, devendo-se possibilitar a sua interpretação extensiva, aplicando-a aos casos em que há invencível dor moral, pois muitas vezes estas trazem mais prejuízos sociais do que as lesões físicas.

Conforme já salientado, a análise da possibilidade de aplicação do instituto é bastante subjetiva, dependendo da análise do caso concreto. Assim, é criticável a estipulação taxativa de quais são essas conseqüências que atingem ao agente. Entretanto, essas conseqüências devem ser realmente gravíssimas a ponto de tornar desnecessária a sanção estatal, ficando o réu isento de pena.

Devido a enorme carga subjetiva, o perdão judicial acrescentado ao Código Penal pela Lei nº 6.416/77 deve ser cuidadosamente interpretado, visando evitar que se transforme em válvula de impunidade. Betanho (2001) estabelece uma lista de critérios que devem ser obedecidos na concessão dessa possibilidade de perdão judicial:

a)Recomendação de prudência, devendo o instituto ser aplicado de forma restrita;

b)Gravidade das conseqüências sobre o agente de forma tão intensa que torne absurda a aplicação da pena;

c)Inutilidade e desnecessidade da pena;

d)Exigência de prova dos requisitos;

e)Proporcionalidade entre o sofrimento do réu e as conseqüências do ato culposo realizado pelo agente;


2 OS CRIMES DE TRÂNSITO

O revogado Código Nacional de Trânsito, instituído pela Lei nº 5.108, de 21 de Setembro de 1966, não trazia preceitos penais sobre ilícitos ocorridos no trânsito. Assim, toda a matéria relativa aos crimes de trânsito era regulada pelas disposições penais comuns. Em regra, esses crimes resumiam-se em infrações penais culposas apenadas de forma insignificante.

Nesse contexto, a sociedade brasileira assistiu assustada ao aumento das tragédias no trânsito, que destruíam vidas e traziam consigo um alto custo social. Segundo o Departamento Nacional de Trânsito, em 1997, ano em que entrou em vigor o novo Código de Trânsito Brasileiro, 35.636 pessoas morreram em decorrência de acidentes de trânsito. [03]

Dados do Conselho Nacional de Trânsito, disponíveis na Resolução nº 166, de 15 de Setembro de 2004 [04], que institui a Política Nacional de Trânsito, indicam que, a cada ano, mais de 33 mil pessoas são mortas e cerca de 400 mil tornam-se feridas ou inválidas em ocorrências de trânsito e esses números representam uma das principais causas de morte prematura da população economicamente ativa do Brasil.

Essa mesma resolução faz menção ao estudo desenvolvido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA, que estima o custo social total anual decorrente de acidentes de trânsito na ordem de 10 bilhões de reais.

O desembargador Rizzardo (2007) considera que o crescimento da violência no trânsito decorreu principalmente da impunidade que vigorava e da ausência de instrumentos ágeis para a sua repreensão.

Diante desse trágico quadro, surgiu a Lei nº 9.503, de 23 de Setembro de 1997, que revogou o antigo Código Nacional de Trânsito, e instituiu o novo Código de Trânsito Brasileiro – CTB.

Essa lei trouxe a previsão de severas penalidades aos infratores de trânsito, como multas pecuniárias de elevado valor, apreensão do veículo e a suspensão do direito de dirigir. Essa severidade revela a preocupação social em se coibir a insuportável violência vivenciada no trânsito.

A necessidade urgente de se implantar uma legislação penal específica sobre delitos de trânsito fez com que o legislador destinasse um capítulo para esse fim e inserisse no Capítulo XXI as disposições relativas aos crimes de trânsito.

Nesse capítulo foi inserida e disciplinada uma série de novos crimes no panorama penal brasileiro. Simples infrações administrativas e contravenções penais foram transformadas em crimes com severas sanções, tipificando inclusive condutas que não geram resultado lesivo, porém que revelam perigo ao trânsito seguro.

Com a criação desses novos tipos penais, os chamados crimes de automóvel, que eram sempre enquadrados nas modalidades culposas do Código Penal Brasileiro, deixaram de se submeter às penas insignificantes do Código Penal e passaram a ser regulados pelo severo Código de Trânsito Brasileiro.

Aproveitando-se das definições contidas no próprio Código de Trânsito Brasileiro, Pires e Sales (1998, p.22) fornecem o conceito de crimes de trânsito:

[...] são os fatos praticados por condutores de veículos automotores nas vias abertas à circulação de pessoas e de veículos que provocam dano real ou potencial à vida e à integridade física do ser humano, à segurança do trânsito e à administração da justiça na persecução de seus autores, para os quais o Código de Trânsito Brasileiro comina sanções penais.

As disposições penais do Código de Trânsito, apesar de serem uma resposta aos anseios sociais, receberam diversas críticas devido às suas inúmeras imperfeições técnicas.

Segundo Stoco (1997), essas disposições penais mostram-se repletas de equívocos, incoerências e algumas padecem do vício da inconstitucionalidade e melhor teria sido o veto de todo o Capítulo XXI da lei, posto que suas disposições penais mais confundem do que disciplinam.

Entretanto, Rizzardo (2007) sustenta que, apesar das inúmeras imprecisões técnicas, mais grave seria a omissão do legislador frente ao quadro de abusos, atrocidades, e irresponsabilidades vivenciadas no trânsito.

2.2 O trânsito seguro como bem juridicamente tutelado

O caput do art. 5º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 garante aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.

O direito à segurança compreende também a garantia a um trânsito seguro, devido a enorme importância do trânsito para a sociedade moderna. Assim, tutela-se o direito ao trânsito seguro, organizado ou planejado, não apenas visando preservar a vida ou a incolumidade física humana, mas também o próprio trafegar, de modo a facilitar a condução dos veículos e a locomoção das pessoas.

Considera-se trânsito a utilização das vias por pessoas, veículos e animais, isolados ou em grupos, conduzidos ou não, para fins de circulação, parada, estacionamento e operação de carga ou descarga.

Segundo o expresso no art. 1º, § 2º da Lei nº 9.503/97, o trânsito, em condições seguras, é um direito de todos e dever dos órgãos e entidades componentes do Sistema Nacional de Trânsito, a estes cabendo, no âmbito das respectivas competências, adotar as medidas destinadas a assegurar esse direito.

Os crimes de trânsito, introduzidos no sistema penal brasileiro pelo Código de Trânsito Brasileiro, visam tutelar o direito ao trânsito seguro. Jesus (2006) sustenta que, nos delitos de trânsito, a objetividade jurídica principal pertence à sociedade, interessada no trânsito em condições seguras, reconhecendo que a objetividade jurídica secundária, aquela atingida pela via indireta, é a proteção à vida, à integridade física e à saúde.

Conclui-se que a segurança do trânsito está sendo tutelada visando proteger de forma indireta a vida, a integridade física e a saúde. Busca-se antecipar a punição dos fatos que, de acordo com a experiência comum, conduzem à lesão dos bens juridicamente relevantes para a sociedade. Ou seja, a tutela da segurança do trânsito é um instrumento para a proteção da vida, da integridade física e da saúde.

2.3 Os crimes de homicídio culposo e lesão corporal culposa praticados na direção de veículo automotor

A preocupação do legislador ordinário e a pressão da sociedade brasileira com a situação caótica do trânsito no país, marcado pela elevada taxa de mortalidade, motivaram a criação de tipos penais especiais para casos de homicídio culposo e de lesão corporal culposa, respectivamente, nos artigos 302 e 303, do Código de Trânsito Brasileiro – CTB:

Art. 302. Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor:

Penas - detenção, de dois a quatro anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

Parágrafo único. No homicídio culposo cometido na direção de veículo automotor, a pena é aumentada de um terço à metade, se o agente:

I - não possuir Permissão para Dirigir ou Carteira de Habilitação;

II - praticá-lo em faixa de pedestres ou na calçada;

III - deixar de prestar socorro, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à vítima do acidente;

IV - no exercício de sua profissão ou atividade, estiver conduzindo veículo de transporte de passageiros.

Art. 303. Praticar lesão corporal culposa na direção de veículo automotor:

Penas - detenção, de seis meses a dois anos e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

Parágrafo único. Aumenta-se a pena de um terço à metade, se ocorrer qualquer das hipóteses do parágrafo único do artigo anterior.

Assim, dividiu-se o homicídio culposo em dois tipos distintos: um primitivo e outro dele derivado, cada qual com pena própria: o homicídio culposo genérico (Código Penal Brasileiro, art. 121, § 3º) e uma nova espécie de homicídio culposo, qualificado por ser praticado na direção de veículo automotor (CTB, art. 302). Esse mesmo fato aconteceu com o crime de lesão corporal culposa, que passou a ser um tipo genérico (Código Penal Brasileiro, art. 129, § 6º), com a criação de um novo tipo qualificado (CTB, art. 303), também por ser praticado na direção de veículo automotor.

Esses tipos qualificados passaram a ter penas mais severas do que aquelas descritas no Código Penal Brasileiro, conferindo desvalor maior às ações ocorridas no trânsito, aumentando a pena de ambos os crimes se comparados às formas genéricas.

Ambos os casos de homicídio culposo têm o mesmo objeto jurídico (a vida humana), o mesmo tipo objetivo e o mesmo tipo subjetivo. A diferença reside apenas no fato de que o homicídio culposo de trânsito possui um elemento normativo especializante de modo. Algo semelhante ocorre com o delito de lesão corporal, em que ambos os casos o objeto jurídico é a incolumidade física.

Por força do princípio da especialidade, aplicam-se as disposições contidas nos artigos 302 e 303 do CTB, caso o fato típico ocorra na direção de veículo automotor, não se aplicando mais o disposto nos artigos 121, § 3º e 129, § 6º, ambos do Código Penal.

2.3.1 Críticas ao modo de tipificação desses crimes

Jesus (2006) aponta que nunca houve maneira mais estranha de descrever delito, pois o verbo, que tecnicamente representa o núcleo do tipo, refletindo a ação ou omissão, não menciona a conduta principal do autor. O comportamento do autor no homicídio culposo, para fins de definição típica, não consiste em "praticar homicídio culposo", e sim "matar alguém culposamente". O sujeito é punido porque matou alguém, não porque praticou.

Da mesma forma, o comportamento do agente no crime de lesão corporal culposa, não consiste em "praticar lesão corporal culposa", mas em "ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem".

Da maneira como foram descritos, os delitos tipificados nos artigos 302 e 303 do CTB ferem ao princípio da taxatividade, corolário do princípio da legalidade, que impõe que o conteúdo do tipo legal deva ser formulado de forma clara e precisa para uma mais perfeita descrição do fato típico, evitando-se incertezas na lei.

O ideal seria se o tipo descrito no art. 302 do CTB fosse descrito como "causar a morte de alguém, culposamente na direção de veículo automotor". De forma semelhante, o art. 303 deveria expressar: "ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem, culposamente, na direção de veículo automotor".

Outra crítica apresentada contra esses crimes diz respeito ao limite das penas fixadas in abstracto.

O homicídio culposo praticado na direção de veículo automotor, previsto no art. 302 do Código de Trânsito Brasileiro, estabelece as margens da pena in abstracto entre dois e quatro anos de detenção.

A mesma figura, prevista no art. 121, § 3º do Código Penal estabelece a pena de um a três anos de detenção. Segundo Stoco (1997), essa diferenciação apresenta-se inconstitucional, pois fere ao princípio constitucional da isonomia e ao direito subjetivo do réu a um tratamento penal igualitário, pois o que deve ser considerado é a maior ou menor gravidade da conduta erigida à condição de crime e não as circunstâncias em que esse fato foi praticado ou os meios utilizados.

Assim, presume-se que os crimes culposos cometidos na direção de veículo automotor são sempre de maior potencial ofensivo que os crimes culposos descritos no Código Penal.

Roesler (2004, p. 02) afirma ser legítima essa distinção, pois "o legislador pretendeu que o condutor de veículo automotor agisse com maior cuidado objetivo no trânsito do que em outros atos da vida diária".

O mesmo ocorre com o crime de lesão corporal culposa praticado na direção de veículo automotor, em que a pena prevista é a de detenção, de seis meses a dois anos, enquanto que a pena prevista no art. 129, § 6º do Código Penal é a de detenção, de 2 (dois) meses a 1 (um) ano.

Nesse caso ainda reside uma enorme incongruência jurídica, pois se o agente, condutor de um veículo automotor, atropela culposamente um pedestre, causando-lhe lesões corporais leves, sujeita-se à pena citada, porém se esse mesmo agente alegar que agiu dolosamente, ou seja, que desejava atropelar o pedestre, causando-lhe lesões corporais, sujeitar-se-á a uma pena menor, a prevista no art. 129, caput, do Código Penal: detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano.

2.3.2 Elementos objetivos e subjetivos

A conduta típica descrita no art. 302 do CTB é a de matar alguém, culposamente, na direção de veículo automotor.

O art. 303 do CTB trata da lesão corporal culposa de trânsito e a sua conduta típica consiste em atingir, culposamente, a integridade corporal ou a saúde física ou mental de outrem na direção de veículo automotor.

Em ambos os tipos penais há o mesmo elemento normativo, que é o fato da conduta típica ocorrer na direção de veículo automotor. Assim, se o fato não se deu na direção de veículo automotor, a conduta é atípica.

Segundo o Anexo I do Código de Trânsito Brasileiro, veículo automotor é todo o veículo a motor de propulsão que circule por seus próprios meios e que serve normalmente para o transporte viário de pessoas e coisas, ou para a tração viária de veículos utilizados para o transporte de pessoas e coisas. O termo compreende também os ônibus elétricos.

Então, se o fato ocorreu enquanto o autor conduzia uma bicicleta ou uma charrete, não há tipicidade.

O sujeito ativo é qualquer pessoa, seja motorista habilitado ou não, que esteja na condução de veículo automotor.

O elemento subjetivo culpa está presente nos dois delitos. Assim, haverá um crime culposo de trânsito sempre que o evento (morte ou lesão corporal) decorrer de uma conduta humana voluntária de dirigir veículo automotor com a inobservância do cuidado objetivo necessário por parte do autor mediante conduta imperita, negligente ou imprudente. Deverá haver também a previsibilidade objetiva das conseqüências do ato e a ausência de previsão por parte do agente, que não quis ou não assumiu o risco de provocar o resultado.

A imprudência é a prática de um ato perigoso, sem precaução, imponderado. Por exemplo: avançar o sinal vermelho; trafegar pela contramão.

A negligência é a ausência de precaução ou indiferença em relação ao ato praticado. O agente não adota o comportamento devido na situação. Exemplos: não dar revisão no veículo; não conferir se os passageiros estão com o cinto de segurança.

E a imperícia é a demonstração de inaptidão técnica em profissão ou atividade, constituindo na falta de aptidão para dirigir veículo automotor. Reconhece-se haver imperícia quando o motorista perde o controle direcional do veículo e causa acidente de trânsito, sem que tenha ocorrido qualquer motivo para justificar esse evento.

2.3.3 Causas de aumento de pena

O art. 302, parágrafo único, e o art. 303, parágrafo único, ambos do CTB, elencam hipóteses em que as penas sofrerão acréscimo de um terço até a metade. Assim, no homicídio culposo e na lesão corporal culposa de trânsito, a pena é aumentada, se o agente:

a)Não possuir Permissão para Dirigir ou Carteira de Habilitação;

b)Praticá-lo em faixa de pedestres ou na calçada;

c)Deixar de prestar socorro, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à vítima do acidente;

d)No exercício de sua profissão ou atividade, estiver conduzindo veículo de transporte de passageiros;

2.3.4 Ação Penal

No homicídio culposo de trânsito a ação penal é pública incondicionada, seguindo-se o procedimento comum ordinário descrito no Código de Processo Penal, pois a nova redação do art. 394 do CPP, instituída pela Lei nº 11.719/08, determina a adoção desse rito, quando tiver por objeto crime cuja sanção máxima cominada for igual ou superior a 04 (quatro) anos de pena privativa de liberdade.

Já, na lesão corporal culposa de trânsito, a ação penal é pública, mas condicionada à representação do ofendido ou de seu representante legal. Por ser infração penal de menor potencial ofensivo, sujeita-se às disposições da Lei nº 9.099/95.


3 O PERDÃO JUDICIAL E OS CRIMES CULPOSOS DE TRÂNSITO

Conforme visto no primeiro capítulo, o perdão judicial é o instituto jurídico pelo qual o juiz, mesmo reconhecendo a existência de todos os elementos para condenar o acusado, deixa de aplicar a pena, devido à existência de circunstâncias especiais previstas em lei. Trata-se de direito subjetivo do acusado e é causa de extinção da punibilidade prevista no art. 107, IX do Código Penal Brasileiro.

Essa causa extintiva da punibilidade é de aplicação restrita aos casos legais, não se admitindo a todas os delitos, recaindo somente sobre aqueles especificados expressamente em lei. Não se admite que o julgador possa estender as hipóteses de perdão judicial aos casos não indicados expressamente em lei, pois se tratando de renúncia estatal ao direito de punir, somente o Estado pode assim proceder mediante específica disposição de lei nesse sentido.

O art. 121, § 5º e o art. 129, § 8º do Código Penal Brasileiro, inseridos pela Lei nº 6.416/77, possibilitam a aplicação do perdão judicial nos casos de homicídio culposo e lesão corporal culposa, quando as conseqüências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária.

O art. 300 do Projeto de Lei n° 73/94, de onde se originou o Código de Trânsito Brasileiro, também possibilitava a aplicação do perdão judicial nas hipóteses de homicídio culposo e lesão corporal culposa praticados na direção de veículo automotor:

Art. 300. Nas hipóteses de homicídio culposo e lesão corporal o juiz poderá deixar de aplicar a pena se as conseqüências da infração atingirem, exclusivamente, o cônjuge ou companheiro, ascendente, descendente, irmão ou afim em linha reta, do condutor do veículo. [05]

Entretanto, esse artigo foi vetado pelo Senhor Presidente da República, não havendo previsão legislativa expressa autorizando a aplicação do perdão judicial aos crimes culposos de trânsito.

Devido a ausência de previsão legislativa expressa autorizando o juiz a aplicar o instituto, parte da doutrina sustenta que o perdão judicial é inaplicável aos crimes culposos de trânsito, porém existe uma forte corrente doutrinária e jurisprudencial que considera possível a aplicação do instituto nesses casos.

Assim, vive-se uma insegurança jurídica decorrente dessa ausência de previsão legislativa expressa, que provoca divergências doutrinária e jurisprudencial sobre o assunto, pois diante de um caso concreto, não se sabe qual direito será aplicado pelo juiz da causa, se irá possibilitar ou não a aplicação do perdão judicial aos crimes culposos de trânsito.

3.2 Da impossibilidade de aplicação do instituto aos crimes culposos de trânsito

Considerando que o perdão judicial é de aplicação restrita aos casos expressos em lei, tem-se que o perdão judicial não pode ser aplicado aos crimes de homicídio culposo e lesão corporal culposa praticados na direção de veículo automotor (arts. 302 e 303 do CTB), pois não há disposição legislativa expressa autorizando a aplicação do instituto nesses casos.

Esse entendimento é reforçado pela interpretação dada ao art. 291, caput, do Código de Trânsito Brasileiro, que determina a incidência subsidiária apenas das normas gerais do Código Penal, sendo que a aplicação do perdão judicial aos casos de homicídio culposo e lesão corporal culposa está enunciada apenas na parte especial deste Código.

Aguiar (2004, p. 207) apresenta um outro argumento contrário à aplicação do perdão judicial aos crimes culposos previstos no CTB: "sendo o perdão judicial uma regra excepcional, que cria um privilégio consistente na dispensa de pena, inadmissível é o uso da analogia em seu manejo".

Analisando o problema sobre outro enfoque, Souza (1983, p. 470) apresenta crítica aos fundamentos da concessão do perdão judicial aos crimes de trânsito:

O perdão judicial é, pois, fruto de uma mentalidade acomodada e indulgente; uma mentalidade que não considera o acidente de circulação como crime, nem o seu autor como criminoso; uma mentalidade que pouco ou nada tem a ver com os objetivos preconizados pelas campanhas de prevenção de acidentes, pelos princípios de direção defensiva e por uma superior política de segurança do trânsito, que deveria vigorar em sua plenitude em todos os setores da vida nacional.

Parte da jurisprudência, apoiada nos argumentos citados acima, passou a vedar a aplicação do perdão judicial aos crimes culposos de trânsito. É o que se aprende do seguinte julgado:

PERDÃO JUDICIAL – Código de Trânsito Brasileiro – Concessão ao agente condenado pelo delito do art. 302 da Lei nº 9.503/97 – Inadmissibilidade:

- É inadmissível a concessão do perdão judicial ao agente condenado pelo delito do art. 302 da Lei nº 9.503/97, uma vez que inexiste tal previsão no Código de Trânsito Brasileiro para os crimes de homicídio culposo e lesão corporal culposa, sendo certo que o referido benefício constitui causa extintiva da punibilidade, de aplicação restrita aos casos legais, recaindo somente sobre as infrações especificamente indicadas na Lei, conforme dispõe o inciso IX do art. 107 do CP. [06]

3.3 Da possibilidade de aplicação do perdão judicial aos crimes culposos de trânsito

Apesar de inexistir previsão legislativa expressa permitindo a aplicação do perdão judicial aos crimes de homicídio culposo e lesão corporal culposa praticados na direção de veículo automotor, a maior parte da doutrina e da jurisprudência aceita como legítima essa possibilidade.

Na oportunidade em que analisou esse tema, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que o perdão judicial é cabível nos crimes previstos nos artigos 302 e 303 do Código de Trânsito Brasileiro:

PROCESSO PENAL – ACIDENTE AUTOMOBILÍSTICO – PERDÃO JUDICIAL – CONCESSÃO – BENEFÍCIO QUE APROVEITA A TODOS.

- Sendo o perdão judicial uma das causas de extinção de punibilidade (art. 107, inciso IX, do C.P.), se analisado conjuntamente com o art. 51, do Código de Processo Penal, que preceitua que "o perdão concedido a um dos querelados aproveitará a todos...", deduz-se que o benefício deve ser aplicado a todos os efeitos causados por uma única ação delitiva. O que é reforçado pela interpretação do art. 70, do Código Penal Brasileiro, ao tratar do concurso formal, que determina a unificação das penas, quando o agente, mediante uma única ação, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não.

- Considerando-se, ainda, que o instituto do Perdão Judicial é admitido toda vez que as conseqüências do fato afetem o respectivo autor, de forma tão grave que a aplicação da pena não teria sentido, injustificável se torna sua cisão.

- Ordem concedida para restabelecer a decisão de 1º grau. [07]

Esse entendimento é fundamentado nas razões do veto ao art. 300 do Projeto de Lei Federal nº 73/94, que originou o CTB; na interpretação dada ao art. 291 do Código de Trânsito Brasileiro e no princípio constitucional da igualdade.

O Senhor Presidente da República manifestou-se da seguinte forma ao vetar o art. 300 do Projeto de Lei nº 73/94: "O artigo trata do perdão judicial, já consagrado pelo Direito Penal. Deve ser vetado, porém, porque as hipóteses previstas pelo § 5° do art. 121 e § 8° do artigo 129 do Código Penal disciplinam o instituto de forma mais abrangente". [08]

Assim, percebe-se que o veto presidencial visou justamente possibilitar a aplicação do perdão judicial disciplinado no Código Penal aos crimes culposos de trânsito, por entender que essa forma é mais abrangente que a descrita no art. 300, pois este artigo possibilitaria a aplicação desse instituto apenas se as conseqüências da infração atingissem, exclusivamente, o cônjuge ou companheiro, ascendente, descendente, irmão ou afim em linha reta do condutor do veículo.

O artigo vetado traria rol taxativo de vítimas, excluindo, por exemplo, amigos ou namoradas de eventuais agentes, e não permitiria o perdão judicial nem mesmo nos casos em que as lesões atingissem o próprio agente. Já, o perdão judicial disciplinado no Código Penal não possui tal desvantagem, por isso optou-se em aplicá-lo também aos crimes culposos de trânsito.

Quanto ao art. 291 do CTB, ele determina a aplicação subsidiária das normas gerais do Código Penal aos crimes cometidos na direção de veículos automotores previstos na legislação de trânsito. Assim, parte da doutrina entende que se deve aplicar subsidiariamente apenas as normas descritas na parte geral do Código Penal, não se aplicando, portanto, as disposições contidas nos arts. 121, § 5º e 129, § 8º. (STOCO, 1997).

Entretanto, a posição majoritária é que o art. 291 manda aplicar as normas gerais do Código Penal e que estas não se restringem à parte geral desse código, havendo normas gerais descritas também na parte especial do Código Penal. Além disso, o perdão judicial está previsto de forma genérica no art. 107, IX do Código Penal, sendo apenas regulado em situações particulares na parte especial.

Argumenta-se também que vedar a aplicação do instituto aos crimes culposos descritos no CTB é inconstitucional por ofensa ao princípio constitucional da igualdade.

A Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988, adotou o princípio da igualdade de direitos, prevendo que todos os cidadãos têm o direito de tratamento idêntico pela lei, vedando-se discriminações arbitrárias.

Segundo Moraes (2005, p. 32), "para que as diferenciações normativas possam ser consideradas não discriminativas, torna-se indispensável que exista uma justificativa objetiva e razoável, de acordo com critérios e juízos valorativos genericamente aceitos".

Dessa forma, entende-se que possibilitar ao agente que pratique homicídio culposo ou lesão corporal culposa descritos no Código Penal a aplicação do perdão judicial e vedar a aplicação desse instituto ao agente que pratique homicídio culposo ou lesão corporal culposa na direção de veículo automotor é injustificável e sem razão, ferindo ao princípio da igualdade, por submeter pessoas que estão na mesma situação jurídica a tratamento desigual sem nenhuma razão aparente.

Não se pode afirmar que a dor experimentada por um agente que, conduzindo imprudentemente uma bicicleta com sua filha na garupa, dá causa a morte desta (art. 121, §3º do Código Penal) é maior, menor ou diferente que a dor sofrida por um agente que conduzindo da mesma forma uma motocicleta dá causa a morte da passageira que é sua filha (art. 302 do CTB).

Nos artigos 121, § 5º e 129, § 8º do Código Penal a dispensa da sanção penal estatal ocorre, pois as finalidades retributiva e preventiva da pena já foram alcançadas por obra do próprio fato. Assim, de acordo com este mesmo fundamento, deve ser dispensado da pena aquele motorista que já sofreu gravemente a punição pelas próprias conseqüências de sua conduta culposa.

No Código de Trânsito Brasileiro o crime previsto no art. 302 do CTB foi definido como "Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor" e o crime previsto no art. 303 do CTB como "Praticar lesão corporal culposa na direção de veículo automotor". Assim, esses crimes são remetidos em relação aos tipos penais autônomos de homicídio culposo e lesão corporal culposa definidos no Código Penal, pois utilizam em sua definição o nomen juris destes crimes.

Jesus (2006, p. 52) considera que o fato desses crimes serem remetidos em relação aos crimes definidos no Código Penal também constitui argumento favorável à aplicação do perdão judicial aos crimes culposos de trânsito, pois "As referências ‘homicídio culposo’ e ‘lesão corporal culposa’, emprestadas às figuras especiais dos crimes de circulação de veículos, carregam as elementares, causas e circunstâncias daqueles tipos".

Na realidade, como visto anteriormente, os crimes definidos nos artigos 302 e 303 do Código de Trânsito Brasileiro são especiais em relação aos crimes descritos nos artigos 121, § 3º e 129, § 6º do Código Penal, pois contêm todos os elementos destes e uma especializante normativa que é o fato de o delito ocorrer na direção de veículo automotor.

Desse modo, não havendo vedação expressa, as mesmas normas aplicáveis aos delitos genéricos são também aplicáveis aos delitos especiais, devendo o perdão judicial ser aplicado aos crimes culposos de trânsito sempre que as conseqüências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária, tal como ocorre com os crimes de homicídio culposo e lesão corporal culposa definidos no Código Penal.


Notas

  1. TAMG - AC - Rel. Edeberto Santiago - RT 605/374
  2. TACRIM-SP - AC - Rel. Camargo Aranha - JUTACRIM 50/311
  3. Disponível em <http://www.denatran.gov.br>. Acesso em 07 out. 2007.
  4. BRASIL. Conselho nacional de trânsito. Resolução nº 166, de 15 de Setembro de 2004, institui a Política Nacional de Trânsito. Disponível em <http://www.denatran.gov.br>. Acesso em 07 out. 2007
  5. BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei n. 73/94. Institui o Código de Trânsito Brasileiro. Disponível em <http:// www.senado.gov.br> Acesso em 10 jun. 2008.
  6. Apelação nº 1.252.261/2 - TJSP - 2ª Câmara - Relator: Osni de Souza - 28/6/2001 - V.U. (Voto nº 3.142).
  7. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus nº 14348/SP. Julgamento 03/04/01. Publicação 20/08/01. Relator Exmo. Sr. Min. William Patterson. Decisão por maioria.
  8. BRASIL. Presidência da República. Mensagem 1056, de 23 de Setembro de 2007. Disponível em <http://www.presidencia.gov.br>. Acesso em 10 jun. 2008.

Autor


Informações sobre o texto

Título original: "A aplicação do perdão judicial aos crimes de homicídio culposo e lesão corporal culposa praticados na direção de veículo automotor, ambos definidos no Código de Trânsito Brasileiro".

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JESUS, Gabriel Costa de. A aplicação do perdão judicial aos crimes de homicídio culposo e lesão corporal culposa praticados na direção de veículo automotor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2398, 24 jan. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14231. Acesso em: 19 abr. 2024.