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Imposto de renda da pessoa física.

Inconstitucionalidade do limite legal para dedução de despesas de educação

Imposto de renda da pessoa física. Inconstitucionalidade do limite legal para dedução de despesas de educação

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Ao fixar um teto para a dedução de despesas de educação, além do qual é vedado ao contribuinte abater os gastos efetiva e comprovadamente realizados, a legislação federal contraria inúmeros dispositivos constitucionais.

I – INTRODUÇÃO

A legislação ordinária disciplinadora do imposto de renda da pessoa física estabelece um limite anual individual para a dedução das despesas que o contribuinte realiza durante o ano-calendário com a educação própria e de seus dependentes. Segundo o noticiário da imprensa, o Ministério Público teria instaurado uma ou mais ações civis com o escopo de questionar esse limite legal. Estas anotações tem por finalidade o exame da constitucionalidade da legislação ordinária que o fixou, quando confrontada com normas e princípios inscritos na Constituição Federal.


II – A LEGISLAÇÃO ORDINÁRIA

A Lei federal 9.250, de 26.12.1995, determinou que o imposto de renda devido pelo contribuinte pessoa física incida sobre a diferença entre as somas, de um lado, (i) "de todos os rendimentos percebidos durante o ano-calendário, exceto os isentos, os não-tributáveis, os tributáveis exclusivamente na fonte e os sujeitos à tributação definitiva", e, de outro lado, (ii) das deduções que especificou (art. 8°, I e II).

As deduções permitidas compreendiam exclusivamente os gastos relativos "a pagamentos efetuados a estabelecimentos de ensino relativamente à educação pré-escolar, de 1°, 2° e 3° graus, cursos de especialização ou profissionalizante do contribuinte e de seus dependentes, até o limite anual individual de R$1.700,00 (um mil e setecentos reais)" (art. 8°, II, "b").

A lei 11.482, 31.5.2007, deu nova redação à alínea "b", do inciso II, estabelecendo a possibilidade de deduções relativas "a pagamentos de despesas com instrução do contribuinte e de seus dependentes, efetuados a estabelecimentos de ensino, relativamente à educação infantil, compreendendo as creches e as pré-escolas; ao ensino fundamental; ao ensino médio; à educação superior, compreendendo os cursos de graduação e de pós-graduação (mestrado, doutorado e especialização); e à educação profissional, compreendendo o ensino técnico e o tecnológico, até o limite anual individual de R$2.480,66 (... ) para o ano-calendário de 2007; R$2.592,29 (...) para o ano-calendário de 2008; R$2.708,94 (...) para o ano-calendário de 2009 e R$2.830,84 (..) para o ano-calendário de 2010."

Dessa forma, o contribuinte está impedido de abater, a título de despesas de instrução, qualquer importância que exceda o limite legal autorizado. Mesmo que deseje deduzir quantia que o supere, correndo o risco de ter sua declaração revisada pelos agentes fiscais, porque o programa para preenchimento da declaração anual reduz, automaticamente, os valores lançados ao teto legal. O excesso, isto é, a diferença entre o valor efetivamente despendido pelo contribuinte e o limite legal autorizado, que é, ordinariamente, muito superior a esse teto, acaba sendo considerado como receita auferida mas não gasta pelo contribuinte, compondo, dessa forma, a base de cálculo do tributo e, por consequência, computado para apuração do imposto devido. Exemplificando: se o contribuinte gasta 100 e só pode abater 20, a diferença (80)compõe a base de cálculo do imposto e sobre ela o contribuinte paga o tributo.

A Instrução Normativa 65, de 5.12.1996, do Secretário da Receita Federal, a pretexto de regulamentar a norma legal, determinou (art. 6º) que não podem ser consideradas como despesas de educação, entre outras, "as despesas com uniforme, material e transporte (...), as despesas com aquisição de enciclopédias, livros, revistas e jornais, o pagamento de aulas de música (...), informática e assemelhados, o pagamento de cursos preparatórios para concursos e/ou vestibulares, o pagamento de aulas de idiomas estrangeiros". De igual teor é o art. 40 da Instrução Normativa 15, de 6.2.2001, que revogou a de n° 65/1996. Assim, de acordo com a interpretação dada pela referida Secretaria, para educar seus filhos o contribuinte não necessita comprar uniformes, materiais e livros escolares, (didáticos, técnicos, científicos etc.). Supérfluos são, igualmente, os gastos realizados com aulas de música, informática, cursos de idiomas estrangeiros e cursos preparatórios para concusos ou vestibulares. A educação, no Brasil, prescinde desses conhecimentos e informações, porque, segundo a interpretação oficial do Poder Executivo, nenhum deles tem qualquer relação com o "pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho" (CF, art. 205).


III – OS PRINCÍPIOS E NORMAS CONSTITUCIONAIS SOBRE A EDUCAÇÃO.

A Constituição Federal no Título II, que trata "Dos Direitos e Garantias Fundamentais", inclui, entre eles, o direito à educação (art. 6º), determinando (art. 5°, § 1°) que "as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata".

De conformidade com a Lei Fundamental, a educação constitui um direito fundamental constante de norma auto-aplicável. Em abono dessa declaração, o constituinte prescreveu, também, ser da competência comum da União e demais entidades federadas "proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência" (CF, art. 23, V).

Segundo lição de sampaio dória [01] em comentário à Constituição de 1946, a educação é "o problema básico da democracia". O constituinte, convicto dessa assertiva incensurável, dedicou ao tema seção específica encimada pelo art. 205 da Lei Maior, segundo o qual

"a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho".

Na lição de sampaio dória (ob. cit.), que continua atual, esse direito fundamental decorre, inapelavelmente, da adoção do regime democrático, verbis:

"Duas são as formas extremas dos regimes políticos: ou o poder é a vontade dos governantes imposta aos governados, ou o poder é a vontade dos governados delegada aos governantes, para o exercerem em nome deles. Ou autocracia, ou democracia. Nas autocracias, quanto mais afundar-se o povo na ignorância, melhor. Quando muito, monopolizar o governo a educação, para fanatizar as massas e silenciá-las no trabalho. Nas democracias, quanto mais educado o povo na escola da liberdade, melhor. (...) Tendo proclamado, no art. 1° da Constituição para si, o regime democrático, o que cumpre em conseqüência ao Pais, é tudo fazer por que o povo se eduque na escola da liberdade, na consciência de seu destino, na capacidade para o trabalho. A educação é o problema básico da democracia".

Essas disposições demonstram que para o constituinte, a educação é um finalidade constitucional impostergável. Não se consubstancia em simples recomendação a ser, ou não, observada pelos Poderes Públicos segundo seus interesses momentâneos, sua ideologia ou em decorrência de sua maior ou menor diligência (ou negligência) no trato dos objetivos fixados pela Lei Suprema. Ela é alicerce dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, especialmente daqueles inscritos nos incisos II e III, do art. 1° da Magna Lex: cidadania e dignidade de pessoa humana. j.j. rousseau [02] já ressaltava:

"Nascemos fracos, precisamos de força; nascemos carentes de tudo, precisamos de assistência; nascemos estúpidos, precisamos de juízo. Tudo o que não temos ao nascer e de que precisamos quando grandes nos é dado pela educação" (destaque nosso).

Segundo lição de sérgio alves gomes [03],

"pode-se dizer que foi o reconhecimento da dignidade humana, em forma de princípio fundamental do Direito Constitucional e do Direito Internacional dos Direitos Humanos, que levou à instituição do Estado Democrático de Direito, de modo a assentar-se este sob as bases daquele princípio. Igualmente, é em atenção ao princípio da dignidade humana que se reconhecem e se garantem direitos fundamentais. É em respeito ao pleno desenvolvimento da personalidade humana que o direito à educação merece a qualificação de direito fundamental" (destaque nosso).

pontes de miranda [04], no regime da Constituição derrogada, destacava a importância da educação, observando que

"O Estado tardou em reconhecer as vantagens da instrução e educação do povo. Desconheceu, durante séculos, que somente se pode aumentar o valor do Estado, do país, aumentando-se o valor dos indivíduos. Ainda hoje há os que, dirigentes de povos, acham prudente a ignorância do povo. Tal como tardaram em descobrir que a escravidão era o trabalho menos econômico e que dos Estados sem liberdades para os seus nacionais os outros Estados são os senhores.

Não confundamos o direito à educação com as bolsas sob os Antoninos, em Roma, ou sob Carlos Magno, ou nos séculos do poder católico. Não se trata de ato voluntário, deixado ao arbítrio do Estado, ou da Igreja, mas de direito perante o Estado, direito público subjetivo, ou, no Estado puramente socialista e igualitário, situação necessariamente criada no plano objetivo, pela estrutura mesma do Estado." (destaque nosso)

Na vigência da atual Constituição, josé afonso da silva [05] também considera a educação direito fundamental. Ensina o mestre:

"O art. 205 contém uma declaração fundamental que, combinada com o art. 6°, eleva a educação ao nível dos direitos fundamentais do homem. Aí se afirma que a educação é direito de todos, com o que esse direito é informado pelo princípio da universalidade. Realça-lhe o valor jurídico, por um lado, a cláusula -- a educação é dever do Estado e da família --, constante do mesmo artigo, que completa a situação jurídica subjetiva, ao explicitar o titular do dever, da obrigação, contraposto àquele direito. Vale dizer: todos têm o direito à educação e o Estado tem o dever de prestá-la, assim como a família." (destaque nosso)

A educação é um direito fundamental da sociedade e do indivíduo e um objetivo a ser denodadamente perseguido e alcançado pelos Poderes Públicos, quaisquer que sejam os agentes transitoriamente ocupantes dos respectivos cargos. Como tal deve ser interpretada quando confrontada com outros princípios, poderes ou deveres inscritos na Lei Suprema.


IV – O DIREITO DO ESTADO DE INSTITUIR TRIBUTOS.

É inegável que a Lei Suprema confere ao Estado o direito de instituir tributos, inclusive discriminando as competências impositivas das entidades que compõem a federação. Inquestionável, outrossim, que ela também alberga o princípio da independência e harmonia entre os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, além de agasalhar o princípio da reserva legal, que, em tema de tributação, vem detalhado no art. 150 em seção dedicada às limitações do poder de tributar.

Segundo alguns intérpretes, obedecidos os princípios da reserva legal e da independência do Poder Legislativo, à lei caberia, de forma ampla e sem quaisquer restrições, estabelecer as regras disciplinadoras da maneira como deve o contribuinte calcular o imposto sobre a renda. Seria o exercício pleno do direito à instituição de tributos. Daí entenderem que à lei compete, de forma absolutamente livre, definir quais as despesas que o contribuinte pode excluir dos rendimentos percebidos para apurar o montante pecuniário sobre o qual será calculado o imposto.

A questão não é tão simples como esses exegetas vislumbram. O direito de tributar do Estado não se opõe, substancialmente, ao direito à educação. Não há contradição entre eles, impondo-se, ao contrário, sua harmonização. A educação, direito fundamental alicerçador dos princípios fundamentais da cidadania e da dignidade da pessoa humana, também não se contrapõe ao princípio da reserva legal. O direito à educação também não colide com o princípio da independência entre os Poderes. O direito do Estado de instituir tributos deve ser exercido em consonância com os princípios da reserva legal e da independência entre os Poderes. Eles são instrumentos constitucionais de garantia dos direitos fundamentais do indivíduo perante o Estado, na medida em que condicionam a ação estatal, mas não se antepõem à realização das finalidades de que a Constituição o incumbiu.

Cuida-se, em síntese, de adequadação dessa potestade e desses princípios com o direito fundamental à educação e, por consequência, com os princípios da cidadania e da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1°, II e III). Os Poderes Públicos, especialmente o Legislativo e o Executivo, não podem, a pretexto de exercício de suas competências constitucionais, relegar a segundo plano os direitos fundamentais do indivíduo. Cabe-lhes delinear suas fronteiras, de forma a harmonizá-los para que o poder de tributar não aniquile os princípios que ordenam e garantem os direitos fundamentais do indíviduo perante o Estado. Quando não o fazem, legislando de forma inadequada e solapando os direitos fundamentais, cabe ao Judiciário a relevante função de, interpretando a Constituição, definir os limites de atuação dos demais Poderes em obediência às finalidades e objetivos constitucionais. A questão substancial, que deverá ser deslindada pelo Judiciário, é exatamente essa: se o exercício da competência legislativa é livre e incondicionado a ponto de autorizar o legislador ordinário, quando a exerce, a descurar, mitigar ou aniquilar direitos e garantias fundamentais do indivíduo – na espécie, a educação – ou, ao contrário, se ele, legislador, se encontra adstrito às finalidades contidas na Magna Lex, das quais não se pode desviar.


V – DESVIO DE PODER DE LEGISLAR: os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.

A doutrina e a jurisprudência já assentaram que o legislador não é incontrolável no exercício de sua função, devendo desempenhá-la em consonância com os valores e interesses protegidos pela Lei Suprema, sob pena de desvio de poder.

O desvio de poder legislativo tem sido objeto de estudo de grandes juristas, destacando-se entre os pátrios caio tácito [06]. Identificando-o como vício de inconstitucionalidade, o autor colaciona vários julgados do Supremo Tribunal Federal a propósito, em especial o RE 18.331. Diz o insigne mestre:

"A acolhida do cabimento do desvio de finalidade como vício de inconstitucionalidade fora anteriormente abonada em outro julgado do STF, em voto do Min. Orizombo Nonato, Relator do RE n° 18.331, que, nos termos da respectiva emenda, após recordar o conhecido axioma de que o poder de taxar não se pode extremar como poder de destruir, destaca: ‘é um poder cujo exercício não deve ir até o abuso, o excesso, o desvio, sendo aplicável, ainda aqui, a doutrina fecunda do détounement de pouvoir`(Revista Forense, vols. 145 e 146)" (ob. cit., p. 189 – destaque nosso).

Ancorado em doutrinadores pátrios e estrangeiros, o ilustre jurista entende (op. cit., p. 193 – destaques nossos):

"(...) que a validade da norma de lei, ato emanado do Legislativo, igualmente se vincula à observância da finalidade contida na norma constitucional que fundamente o poder de legislar.

O abuso do poder legislativo, quando excepcionalmente caracterizado, pelo exame dos motivos, é vício especial de inconstitucionalidade da lei pelo divórcio entre o endereço real da norma atributiva de competência e o uso ilícito que a coloca a serviço de interesse incompatível com a sua legítima destinação.

Gilmar Ferreira Mendes dedicou capítulo especial de sua monografia sobre controle de constitucionalidade à avaliação do excesso de poder legislativo como vício substancial de inconstitucionalidade. Com apoio na doutrina alemã e na lição de CANOTILHO, evidencia a prevalência da vinculação do ato legislativo a uma finalidade e à aplicação do princípio da proporcionalidade como elemento da legitimidade constitucional das leis. Oferece, como exemplos, precedentes colhidos na jurisprudência do STF (Gilmar Ferreira Mendes, ‘Controle de Constitucionalidade’, Saraiva, 1990, ps. 38 a 54).

Canotilho adverte que a lei é vinculada ao fim constitucionalmente fixado e ao princípio da razoabilidade a fundamentar ‘a transferência para os domínios da atividade legislativa da figura do desvio de poder dos atos administrativos’ (Canotilho, ‘Direito Constitucional’, 4ª ed., 1986, p. 739).

E, mais amplamente, o mesmo autor estuda o desvio de poder legislativo diante do princípio de que ‘as leis estão todas positivamente vinculadas quanto a fim pela Constituição’ (Canotilho, ‘Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador’, Coimbra, 1982, p. 259)."

Em estudo sobre os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, luiz roberto barroso [07] observa que

"A atuação do Estado na produção de normas jurídicas normalmente se fará de certas circunstâncias concretas, será destinada à realização de determinados fins, a serem atingidos pelo emprego de determinados meios. Deste modo, são fatores invariavelmente presentes em toda ação relevante para a criação do direito: os motivos (circunstâncias de fato), os fins e os meios. Além disto, há de se tornar (sic) em conta, também, os valores fundamentais da organização estatal, explícitos ou implícitos, como a ordem, a segurança, a paz, a solidariedade; em última análise, a justiça. A razoabilidade é, precisamente, a adequação de sentido que deve haver entre estes elementos." (destaque nosso)

Ainda segundo o mesmo autor (artigo cit., pg. 130),

"Essa razoabilidade deve ser aferida, em primeiro lugar, dentro da lei. É a chamada razoabilidade interna, que diz com a existência de uma reação racional e proporcional entre seus motivos, meios e fins. (...) De outra parte, havendo razoabilidade interna da norma, é preciso verificar sua razoabilidade externa, isto é, sua adequação aos meios e fins admitidos e preconizados pelo texto constitucional. Se a lei contravier valores expressos ou implícitos no texto constitucional, não será legítima nem razoável à luz da Constituição, ainda que o fosse internamente." (destaque nosso)

A doutrina e a jurisprudência são uníssonas quanto à impossibilidade do Poder Legislativo, embora não tolhido em sua ação criativa, esquivar-se ao cumprimento dos princípios, normas e fins constitucionais, que também para ele são vinculativos. Conforme observa luis roberto barroso (art. cit., p. 132)

"A evolução dos conceitos tem atenuado o rigor das formulações clássicas e permitido a contenção da chamada liberdade de conformação legislativa. O controle finalístico da atuação do legislador se exerce sobre dois momentos ‘teleologicamente relevantes’ do legislativo, que Gomes Canotilho assim identifica e comenta:

‘(i) Em primeiro lugar, a lei é tendencionalmente uma função de execução, desenvolvimento ou prossecução dos fins estabelecidos na Constituição, pelo que sempre se poderá dizer que, em última análise, a lei é vinculada ao fim constitucionalmente fixado; (ii) por outro lado, a lei, embora tendencionalmente livre no fim, não pode ser contraditória, irrazoável, incongruente consigo mesma.

Nas duas hipóteses assinaladas, toparíamos com a vinculação do fim da lei: no primeiro caso, a vinculação do fim da lei decorre da Constituição; no segundo caso, o fim imanente à legislação imporia os limites materiais da não contraditoriedade, razoabilidade e congruência’ ". (destaque nosso)

A imposição de um teto legal para a dedução das despesas de educação, ou, em outras palavras, a proibição de dedução integral das despesas de instrução efetivamente incorridas pelo contribuine, revela-se totalmente irrazoável à luz da norma constitucional que erige a educação como direito fundamental do indivíduo, atribui ao Estado o dever de prestá-la, promovê-la e incentivá-la e define seu escopo: o "pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho" (CF, arts. 6°, 23, inciso V, e 205).

A limitação legal conflita inelutavelmente com essas normas supremas, maltratando e aniquilando os fins constitucionalmente objetivados. Preocupada exclusivamente com a arrecadação tributária a qualquer custo, a legislação em causa, na medida em que tributa como renda, isto é, como acréscimos patrimoniais, os dispêndios educacionais,

(i) cerceia o acesso à cultura e à educação quando a Lex Legum determina exatamente o contrário, ou seja, que o Estado deve "proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência" (CF, art. 23, V);

(ii) desestimula o investimento educacional, especialmente o realizado pelos pais em relação a sua prole, quando a Constituição impõe ao Estado o dever de promovê-la e incentivá-la (CF, art. 205);

(iii) inibe ou prejudica substancialmente o "pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho" (CF, art. 205), solapando, conseqüentemente, a cidadania e a dignidade da pessoa humana, princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito (CF, art. 1°, II e III);

(iv) consubstancia discriminação infundada e atentatória do devido processo legal substancial (CF, art. 5°, LIV), porque ela própria consagra, para o mesmo efeito (cálculo do imposto de renda), o abatimento integral das despesas médicas e afins e das contribuições previdenciárias (Lei 9.250/95, art. 8°, II, "a" e "d"), sendo certo que a saúde, a previdência social e a educação são direitos de idêntica hierarquica constitucional, vale dizer, direitos fundamentais do indivíduo.

A propósito dos limites à ação do legislador, proclamou o Plenário da Suprema Corte pela pena do Ministro Celso de Mello:

"Substantive due process of law e função legislativa: A cláusula do devido processo legal - objeto de expressa proclamação pelo art. 5º, LIV, da Constituição - deve ser entendida, na abrangência de sua noção conceitual, não só sob o aspecto meramente formal, que impõe restrições de caráter ritual à atuação do Poder Público, mas, sobretudo, em sua dimensão material, que atua como decisivo obstáculo à edição de atos legislativos de conteúdo arbitrário. A essência do substantive due process of law reside na necessidade de proteger os direitos e as liberdades das pessoas contra qualquer modalidade de legislação que se revele opressiva ou destituída do necessário coeficiente de razoabilidade. Isso significa, dentro da perspectiva da extensão da teoria do desvio de poder ao plano das atividades legislativas do Estado, que este não dispõe de competência para legislar ilimitadamente, de forma imoderada e irresponsável, gerando com o seu comportamento institucional, situações normativas de absoluta distorção e, até mesmo, de subversão dos fins que regem o desempenho da função estatal" [ADIN (MC) 1.063-DF, Pleno, RTJ 178/22 – destaque nosso].

Em outra decisão do plenário, Relator o Ministro Celso de Mello, reafirmou o Sodalício Maior que o poder de tributar não pode suprimir ou inviabilizar direitos de caráter fundamental, "verbis":

"O Poder Público, especialmente em sede de tributação, não pode agir imoderadamente, pois a atividade estatal acha-se essencialmente condicionada pelo princípio da razoabilidade, que traduz limitação material à ação normativa do Poder Legislativo. O Estado não pode legislar abusivamente. A atividade legislativa está necessariamente sujeita a rígida observância de diretriz fundamental, que, encontrando suporte teórico no princípio da proporcionalidade, veda os excessos normativos e as prescrições irrazoáveis do Poder Público. O princípio da proporcionalidade, nesse contexto, acha-se vocacionado a inibir e a neutralizar os abusos do Poder Público no exercício de suas funções, qualificando-se como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais. A prerrogativa institucional de tributar, que o ordenamento positivo reconhece ao Estado, não lhe outorga o poder de suprimir (ou de inviabilizar) direitos de caráter fundamental constitucionalmente assegurados ao contribuinte. É que este dispõe, nos termos da própria Carta Política, de um sistema de proteção destinado a ampará-lo contra eventuais excessos cometidos pelo poder tributante, ou, ainda, contra exigências irrazoáveis veiculadas em diplomas normativos editados pelo Estado" [ADIN (MC) 2.551-1-MG, Pleno, DJU de 20.4.2006, p. 5/6, Revista Dialética de Direito Tributário vol. 131, p. 238 – destaque nosso].

A irrazoabilidade das normas que estabelecem limite legal à dedução das despesas de educação foi reconhecida pelo próprio governo federal. Quando vigorava o limite anual de R$1.700,00 (um mil e setecentos reais),ou seja, antes da edição da Lei n° 11.482, 31.5.2007, o Poder Público federal, consciente de sua insignificância, concedeu aos filhos das vítimas do acidente do Centro de Lançamento de Alcântara bolsa-educação de R$400,00 (quatrocentos reais) por mês e por dependente, atualizada anualmente de acordo com "o índice legalmente estipulado para o reajuste das mensalidades escolares das instituições particulares de ensino" (Lei 10.821/2003, art. 4º). Vale dizer, fixou o valor anual da bolsa-educação em montante equivalente ao triplo do limite anual fixado para dedução de despesas de educação para fins de imposto de renda. Da mesma forma agiu relativamente aos dependentes de servidores do Ministério do Trabalho assassinados durante o exercício de suas funções, concedendo-lhes bolsa de educação, cujo valor "corresponde a R$400,00 (quatrocentos reais) mensais por estudante, destinado ao custeio da educação formal, e (...) atualizado nas mesmas datas e pelos mesmos índices dos benefícios do regime geral de previdência social" (Lei 11.263, de 2.1.2006, art. 4°. § 1°).

Eis a comprovação do óbvio: o próprio governo federal reconheceu que o teto anual por dependente, então em vigor (pouco mais de R$140,00 por mês) não correspondia ao dispêndio efetivo incorrido pelo contribuinte a título de gastos educacionais. A atualização desse valor para os anos de 2007 a 2010, comprova que o governo federal continua a legislar de forma irrazoável e contra os princípios e objetivos constitucionais. O valor anual para o ano de 2010 (R$2.830,84)corresponde a R$235,90 por mês, montante muito inferior aos R$400,00 por mês fixados pelo art. 4° da Lei 10.821/2003 para a bolsa-educação por ela outorgada aos filhos das vítimas do aludido acidente. Se é esse o comportamento do Poder Público federal, quais os motivos justificadores de tão disparatado e discriminatório tratamento legislativo? Que fins o legislador pretende alcançar com a fixação desse teto para efeito de imposto de renda? A finalidade perseguida pelo legislador atende aos objetivos e princípios estabelecidos pela Lei Suprema?

Nota-se, claramente, que o escopo governamental é unicamente arrecadatório. Limita, infundada e contraditoriamente, a dedução de despesas educacionais para inflar a base de cálculo do tributo e, consequentemente, amealhar mais recursos para os cofres do Erário. Para o governo, que expressamente reconhece a insignificância do teto por ele fixado, pouco ou nada importa a educação do povo. Nenhum é o conteúdo das normas constitucionais que definem a educação como princípio fundamental. Nenhum significado tem para ele a diretriz constitucional do "pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho".

A inevitável conclusão: trata-se de legislação que esboroa valores fundamentais constitucionalmente protegidos. Sua incompatibilidade com os princípios da cidadania e da dignidade da pessoa humana é cristalina. A restrição por ela imposta não pode subsistir, porque flagrantemente contrária aos objetivos fixados pelo constituinte. A interpretação sistemática e teleológica dessa legislação restritiva condena-a à vala da inconstitucionalidade, porque, como observado por emerson garcia [08],

"sendo a Constituição um sistema aberto de normas, será flagrantemente inconstitucional qualquer medida que se afaste dos valores responsáveis por sua concretização, ainda que emanados de normas infraconstitucionais" (destaque nosso).

O Supremo Tribunal Federal privilegia a interpretação voltada à concretização dos escopos previstos na Constituição. No julgamento da ADIN 1.600 o plenário da Suprema Corte declarou "a inconstitucionalidade do ICMS sobre a prestação de serviço de transporte aéreo de passageiros", porque a Lei Complementar n° 87, de 1996, que disciplinou a matéria, não permitia fossem atingidos os objetivos inscritos na Lex Legum (RTJ 186/855). O voto condutor do Ministro Nelson Jobim (relator para o acórdão), após analisar as diversas inconsistências da formulação legal, sintetizou sua fundamentação em expressiva oração:

"A estruturação infraconstitucional do transporte aéreo de passageiros e as normas da LC 87/96 impedem, impossibilitam a aplicação das regras constitucionais" (RTJ 186/905 – destaque nosso).

O voto da Ministra Ellen Gracie, depois de destacar que a lei impugnada tornou inaplicáveis à atividade em causa "príncípios gerais inerentes ao tributo que intenta regular, ensejando, com isso, agressão ao texto constitucional", sumariou sua conclusão na seguinte assertiva:

"Não é qualquer Lei Complementar que servirá à finalidade constitucional, mas uma que discipline adequadamente a matéria. Vale dizer, tenha o potencial de bem regular a realidade fática sobre a qual ela deve incidir." (RTJ 186/911 – destaque nosso)

Em resumo, como destacou o Ministro Celso de Mello ao incorporar a seu voto os fundamentos daquele proferido pelo Ministro Nelson Jobim,

"a interpretação por ele dada objetivou conferir efetividade aos princípios constitucionais, em matéria de ICMS, eis que a estrutura da Lei Complementar n° 87/96, quando aplicada à prestação de serviços de transporte aéreo de pessoas e do transporte internacional de cargas, colide com o texto da Carta Política" (RTJ 186/933 – destaque nosso).

A legislação federal que limita o valor da dedução, para efeito de imposto de renda, de despesas de educação, fruto de exercício anomâlo da função legislativa, que confere predominância à arrecadação fiscal em detrimento de realização de objetivo constitucional consagrado à educação ("pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho") não se harmoniza com a Constituição Federal.


VI – O CONCEITO CONSTITUCIONAL DE RENDA E O PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA.

O conceito constitucional de renda não é uma noção vazia, a ser preenchida e manipulada pelo tesoureiro governamental de plantão ao sabor de suas necessidades fiscais ou em razão de suas convicções pessoais. Como destacou o Ministro Sepúlveda Pertence (RE 201.465-MG, Pleno, RTJ 188/306),

"o conceito puramente legal (...) de lucro real e, conseqüentemente, de renda da pessoa jurídica, estará pelo menos submetido, quando cotejado com a Constituição, ao princípio da proporcionalidade e da razoabilidade".

A Constituição da República, ao indicar os impostos de competência da União (art. 153), discrimina a importação, a exportação, a renda, produtos industrializados, operações de crédito, câmbio, seguro, títulos e valores mobiliários, propriedade rural. Ao atribuir-lhe competência para a instituição de outros tributos, notadamente as contribuições, discrimina rendimentos decorrentes do trabalho, inclusive salários, receita, faturamento e lucro (art. 193). Em relação aos Estados especifica a transmissão não onerosa de bens e a circulação de mercadorias ou serviços de transporte e de comunicação (art.155) e quanto aos Municípios, a propriedade urbana, a transmissão onerosa de bens imóveis e os serviços não atribuídos aos Estados.

Ao atribuir (art. 153, inciso III) à União competência para instituir o imposto sobre "renda e proventos de qualquer natureza", a Constituição define hipótese material que, pelo próprio teor de suas normas e por força de sua unidade sistemática, singulariza-a em relação às demais. Consequentemente, para a Constituição renda é hipótese material distinta de receita, faturamento, propriedade etc.. Ademais, a Constituição comete com exclusividade à lei complementar federal a fixação de normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre "a definição de tributos e suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes" (art. 146, III, "a"). Dessa forma, o legislador ordinário não pode, ao estabelecer regras para a cobrança desses impostos, ignorar as regras constitucionais prescritoras das hipóteses materiais de incidência e as normas gerais da legislação complementar definidoras de seus fatos geradores e bases de cálculo. Ou seja, à legislação ordinária é vedado contemplar hipóteses materiais de incidência discrepantes das elencadas na Constituição e estabelecer fatos geradores e bases de cálculo antagônicas às delineadas na lei complementar, sob pena de, também, infringir a própria Constituição (art. 146), que reservou a essa espécie de lei essas funções.

A disciplina infraconstitucional do imposto de renda não pode ignorar a hipótese de incidência constitucionalmente fixada, que se constitui, a um só tempo, em norma de atribuição de competência e de fixação dos limites de atuação legislativa. Em conseqüência, toda e qualquer ação que desborde os lindes circunscritos pela regra constitucional e pela lei complementar a que se refere o art. 146, III, "a", da Lei Fundamental, terá de ser rechaçada por incongruente com a mesma.

Renda é, nos precisos termos do art. 43, inciso I, do Código Tributário Nacional, "o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos", sendo os proventos (art. 43, II) "os acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso anterior". O conceito de renda, quer no sentido vulgar do termo, quer em seu sentido econômico, bem assim sob a ótica do direito positivo, implica o de acréscimo patrimonial. Renda e proventos são, dí-lo o art. 43, do Código Tributário Nacional, acréscimos ao patrimônio de alguém que se reputa contribuinte: se o acréscimo provém do capital, do trabalho ou da combinação de ambos, tem-se a renda; se tem origem em outros fatores, tem-se os proventos.

Dessa forma, o legislador, por mais bem intencionado que esteja, não pode considerar como renda passível de tributação aquilo que renda não é e proventos não são. Os dispêndios incorridos pelo contribuinte na promoção da educação de sua prole não representam qualquer acréscimo patrimonial, não se constituindo, por conseguinte, em "aquisição de disponibilidade econômica ou jurídica", que é o fato gerador do tributo. Constituem, ao contrário, desembolsos, decréscimo patrimonial, isto é, perda de disponibilidade econômica e jurídica.

Ao vedar ao contribuinte o abatimento das efetivas, reais e comprovadas despesas de educação, o legislador subverte o conceito constitucional de renda. De forma oblíqua impõe a incidência do tributo sobre valores que simplesmente transitaram por seus bolsos, ou seja, sobre valores transitórios não incorporados a seu patrimônio. Essas importâncias podem constituir renda tributável para aqueles que as auferem, na exata dimensão do que corresponder a acréscimo de seu patrimônio, mas, efetivamente, não significam qualquer acréscimo patrimonial para quem delas fica privado.

Ensina hugo de brito machado [09] que "não há renda, nem provento, sem que haja acréscimo patrimonial, pois o CTN adotou expressamente o conceito de renda acréscimo". (destaque nosso)

luciano da silva amaro [10], em interpretação que salva da mácula da inconstitucionalidade a redação do citado preceito complementar, concluiu:

"Devemos evitar, não obstante, a conclusão fácil de que o art. 43 do CTN é inconstitucional. Em suma, o que, honestamente, pretendeu o CTN foi consagrar a teoria do acréscimo patrimonial para a conceituação do fato gerador do imposto de renda (cf. Henry Tilbery, op. cit., pág. 84). E isso ele poderia fazer, como disposição (materialmente) complementar à Constituição, sem fugir aliás, à tradição do direito pátrio. O que o CTN não poderia ter feito, porque (aí, sim) ele atropelou a letra da Constituição, é reservar à expressão ‘proventos’ a acepção limitada de acréscimos patrimoniais não decorrentes do capital ou do trabalho.

O erro está, portanto, no rótulo e não no conteúdo. Fato gerador do ‘imposto de renda e proventos de qualquer natureza’ continua sendo a aquisição de riqueza nova (acréscimo de patrimônio), quer decorra do capital ou do trabalho, quer não." (destaques nossos)

De igual conteúdo é o escólio de gilberto de ulhoa canto, antonio carlos garcia de souza e ian de porto alegre muniz [11]:

"Sendo assim, para efeitos de correta configuração do fato gerador e da base de cálculo do imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza como enunciados nos arts. 43 e 44 do CTN, dever-se-ia, em princípio, considerar como tributável apenas o valor que se adiciona positivamente ao patrimônio do contribuinte, pois os dispositivos falam em ‘acréscimo de patrimônio’, indicando que à sua incidência somente importam as alterações para mais; disso resultaria, prima-facie, a necessidade de se saber a que data se deveria referir a apuração da existência do aumento, e como tal aumento se dimensionaria.

Não se objete que a exigência de que ocorra aumento patrimonial para que o tributo possa incidir diz respeito tão somente aos proventos de qualquer natureza, pois é no inciso II do art. 43 do CTN que se faz referência a tal requisito. Na verdade, o inciso II torna extensiva a idéia de acréscimo de patrimônio à renda, definida no inciso I, quando diz ‘... proventos de qualquer natureza, assim entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso anterior’, o que indica, de maneira clara, que a espécie contemplada no inciso I também se caracteriza como sendo de acréscimo patrimonial (‘.. acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso anterior.’)" (destaques nossos).

humberto ávila [12] esclarece:

"O conceito de renda pode ser extraído da Constituição também por meio da sua distinção relativamente a outras hipóteses de incidência que a própria Constituição estabelece. Novamente: é o postulado da unidade da Constituição que exige a atribuição de um significado próprio a cada norma." (destacamos)

Após referir outras hipóteses de incidência constitucionalmente previstas (v.g., patrimônio, capital, faturamento, lucros) destaca que

"Sendo assim, renda não pode ser nem patrimônio, nem capital, nem lucro, nem faturamento.

Daí resulta que a expressão ‘renda e proventos de qualquer natureza’ só pode significar o resultado positivo entre receitas e despesas de acordo com a capacidade contributiva. Não se faz possível, no entanto, medir o que foi acrescentado ao patrimônio sem que exista um período de tempo que sirva de parâmetro, ao fim do qual possa ser averiguado o saldo dos elementos positivos e negativos. Como bem lembra Gisele Lemke: ‘A vinculação do conceito de renda a um período é, portanto, decorrência lógica da teoria do acréscimo patrimonial’ ".

A vedação à dedutibilidade integral das despesas de educação efetivamente realizadas implica a tributação dos valores que excedem o limite permitido. Com efeito, se o contribuinte gastou 100 e a lei apenas permite a dedução de 20, a diferença (80), da qual ele se viu despojado para custear a educação de seus filhos, compõem a base imponível do tributo. Este incide, portanto, sobre aquilo que, por força do cumprimento da obrigação constitucional de educar, se encontra fora de seu patrimônio. Tem-se, em tal hipótese, não a tributação da renda, mas sim a incidência sobre a receita.

Há intérpretes que, para camuflar a verdade (a incidência sobre a receita e não sobre a renda), distinguem entre renda consumida e renda poupada. Pretendem, dessa forma, justificar a vedação legal, sob o infundado argumento de que a renda consumida, que seria indicador de capacidade econômica do contribuinte, é tributável. Assim, se a lei não autorizar a dedução de parcela da renda consumida, ela integra a base de cálculo do imposto. A filigrana exegética impressiona, mas não se sustenta. Pode-se até conceber, sob a ótica econômica, a distinção entre renda consumida e renda poupada. No entanto, sob o prisma jurídico-constitucional, é de rigor a separação, para efeito de imposto de renda, entre consumo necessário, essencial, vital e consumo supérfluo. O consumo vital, por não decorrer de opção do contribuinte, não enseja acréscimo patrimonial. Ao contrário, ele representa efetiva diminuição de capacidade econômica.

A noção de consumo essencial ou vital compreende todos os dispêndios essenciais à sobrevivência em sociedade, entre os quais, induvidosamente, se incluem a educação, a saúde e a previdência, que são direitos assegurados pela Constituição e que simultaneamente representam obrigações do Estado e da família. O montante dispendido com seu custeio, porque necessário, nada mais significa que redução de capacidade econômica, que não decorre de opção do contribuinte, mas de necessidade inadiável da vida em sociedade. Sua tributação sob o disfarce de renda consumida violenta valores supremos agasalhados pela Constituição, que impôs à família o dever de educar sua prole, e subverte o conceito constitucional de renda intimamente vinculado ao princípio constitucional da capacidade contributiva.

sacha calmon navarro coêlho [13] define a capacidade contributiva como "a possibilidade econômica de pagar tributos", classificando-a em subjetiva e objetiva. Analisando o imposto de renda das pessoas físicas, esclarece o mesmo autor (ob. cit., pg. 206), que "a eliminação de grande parte das deduções trabalha contra o princípio da capacidade contributiva na faixa dos iguais em rendimentos, mas desiguais nas despesas não supérfluas" (destacamos).

Essa lição foi decisiva para decisão do Desembargador petrúcio ferreira [14] no agravo de instrumento 10275/97-CE (97.05.10275-9), publicada no Diário da Justiça da União de 19.5.97, p. 34.928/9, "verbis":

"Tratando da capacidade contributiva, quando em análise do imposto sobre a renda, preleciona Sacha Calmon: ‘causa bulha, portanto, a atual lei sobre a renda e demais proventos. Acabam-se quase todas as deduções e instituem-se duas alíquotas apenas, em nome da praticidade da arrecadação. Ora, as deduções são técnicas de aferição de capacidade contributiva. É lógico que um contribuinte que teve despesas médicas extraordinárias e tem seis filhos em regime escolar, possui menos capacidade contributiva que outro, ganhando o mesmo mas sem os encargos daquele.’" (destacamos)

Prosseguindo (RDDT, 22/168), assevera o julgado:

"Neste sentido, Roque Antônio Carrazza: ‘a lei deve garantir às pessoas que têm rendimentos, certas deduções que lhes garantam a subsistência e a de seus dependentes (deduções com estudos, alimentação, vestuário etc.). O imposto de renda não pode ser transformado em mero imposto sobre rendimentos, o que ocorre quando a lei não permite abatimentos de despesas necessárias ao contribuinte. Ao contrário, a lei deve - em atenção ao princípio da capacidade contributiva - garantir que a renda tributável seja obtida subtraindo-se, da renda global, os gastos necessários do contribuinte, máxime quando representados por encargos familiares.’

O princípio da capacidade contributiva, dessa feita, não deve ser entendido de um ponto simplista como propõe a Fazenda Nacional, que estabelece quase uma dicotomia pura entre aqueles que possuem filhos em escolas particulares e os que possuem filhos em escolas públicas, devendo aqueles responderem pela manutenção das escolas públicas. Em verdade, como decorre da isonomia, o princípio da capacidade contributiva impõe não uma dicotomia, mas uma gradação motivada pelas possibilidades econômicas do contribuinte, ou seja, todos os que têm condições de contribuir devem fazê-lo, mas nos precisos limites de sua possibilidade, não sendo de admitir-se que uma família numerosa, com gastos identicamente numerosos, contribua na mesma proporção que os integrantes de classes mais favorecidas pelo simples motivo de existirem famílias sem possibilidade de contribuir. Em outros termos, não há uma ‘summa divisio’, uma dicotomia plena, entre os que podem e os que não podem contribuir, mas toda uma escala de contribuintes, a qual levará em conta não só os rendimentos brutos destes, mas também os gastos necessários para sua manutenção e de seus dependentes." (destacamos)

regina helena costa [15], Magistrada Federal, abordou o tema em decisão liminar proferida, ensinando:

"12. Ao estudar a eficácia do princípio em foco, quanto à apuração da inconstitucionalidade da imposição tributária, grafei: ‘(...) todo direito ou atividade que o Poder Público for obrigado a respeitar, a amparar, segundo os ditames constitucionais, não poderá desconsiderar pela via oblíqua da tributação desrespeitadora do princípio da capacidade contributiva’ (Princípio da Capacidade Contributiva, 2ª ed., Malheiros Editores, 1996, p. 100). E, dentre as conclusões alcançadas, afirmei que ‘se a legislação do mesmo imposto de renda, com relação às pessoas físicas, não permitir quaisquer deduções com relação a dependentes, despesas médicas etc., não as autorizar pelo valor integral, fixando-lhes determinado teto, haverá violação à capacidade contributiva relativa ou subjetiva, pois estar-se-á criando um plus de aptidão para contribuir totalmente fictício’ (Ob. cit., p. 80)" (destacamos)

O escólio foi integralmente adotado pelo Desembargador mairan maia [16], que acrescentou:

"A regra-matriz do imposto de renda encontra-se inserta no art. 153, III, da Constituição Federal, à qual, necessariamente, a norma legal deve conformar-se. O Imposto de Renda, nos termos preconizados pelo art. 43 do CTN, incide sobre o acréscimo patrimonial do contribuinte, ou seja, sobre a mais valia agregada ao patrimônio já existente. Outrossim, considera-se quando de sua incidência a capacidade contributiva relativa ao sujeito individualmente considerado, assim entendida, na concepção proposta por Regina Helena Costa, conto (sic) a ‘aptidão, da pessoa colocada na posição de destinatário legal tributário, numa obrigação cujo objeto é o pagamento de imposto, para suportar a carga tributária, sem o perecimento da riqueza lastreadora da tributação.’ " (destacamos)

O legislador tributário, com sua ânsia arrecadatória, tem, frequentemente, desafiado os princípios e as normas constitucionais. Não bastasse a limitação estabelecida pelas leis referidas, chegou ao despudor de, através de sua pseudo regulamentação, vedar a dedutibilidade, v.g., de despesas com uniformes, material escolar, livros etc., como se esses gastos fossem absolutamente supérfluos para a educação de qualquer jovem estudante secundarista ou universitário. Raia o absurdo que os "legisladores da Receita Federal" sustentem o não enquadramento desses gastos no conceito de despesas de instrução, como se fosse possível a alguém educar seus filhos ou a si próprio sem se utilizar de material escolar, livros didáticos, científicos etc.. A excessiva ou única preocupação fiscalista, voltada para a arrecadação, a qualquer custo, de quem paga efetivamente o imposto, chega ao cúmulo de instituir o imposto sobre o que não é renda nem provento, criando uma base imponível irreal, fictícia e que nenhuma relação guarda com a hipótese de incidência constitucionalmente prevista na Lei Máxima. Assim princípia o desmoronamento do sistema, porque, como salientado pelo Ministro Sepúlveda Pertence, lembrando voto do saudoso Ministro Luiz Gallotti,

"(...) o dia em que for dado chamar de renda o que renda não é, de propriedade imóvel o que não o é, e assim por diante, estará dinamitada toda a rígida discriminação de competências tributárias, que é o próprio âmago do federalismo tributário brasileiro, o qual, nesse campo, é de discriminação exaustiva de competências exclusivas e, portanto, necessariamente postula um conceito determinado dos campos de incidência possível da lei instituidora de cada tributo nele previsto. Não se pode, é claro, reclamar da Constituição uma exaustão da regulação da incidência de cada tributo, mas há um mínimo inafastável, sob pena – repito – de dinamitação de todo o sistema constitucional de discriminação de competências tributárias" (RE 201.465-MG, Pleno, RTJ 188/305 – destaque nosso).


VII – CONCLUSÃO.

Ao fixar um teto para a dedução de despesas de educação, além do qual é vedado ao contribuinte abater os gastos efetiva e comprovadamente realizados, a legislação federal contraria inúmeros dispositivos constitucionais, especialmente os que consagram a educação como direito fundamental do indivíduo, prescrevendo a finalidade a ser alcançada: o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Esses objetivos constitucionais decorrem incontraditavelmente de outros princípios fundamentais, que não podem, direta ou indiretamente, ser vilipendiados pelos Poderes Públicos: a cidadania, a dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho. Impõe-se, por tais razões, extirpar do ordenamento jurídico essas regras restritivas, que aniquilam esses princípios fundamentais.


Notas

  1. apud Sérgio Alves Gomes, O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana e o Direito Fundamental à Educação, in Revista de Direito Constitucional e Internacional, Ed. Rev. dos Tribunais, abril-junho/2005, n° 51, p. 94/95.
  2. apud Sérgio Alves Gomes, O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana e o Direito Fundamental à Educação, in Revista de Direito Constitucional e Internacional, Ed. Rev. dos Tribunais, abril-junho/2005, n° 51, p. 51.
  3. O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana e o Direito Fundamental à Educação cit., p. 96/97.
  4. Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda n°1, de 1969, 2ª ed., 1972, tomo VI, p. 333.
  5. Curso de Direito Constitucional Positivo, 1989, 5ª ed., p. 274/5.
  6. O Desvio de Poder no Controle dos Atos Administrativos, Legislativos e Jurisdicionais, in Temas de Direito Público – Estudos e Pareceres, 1° vol., p. 181/198.
  7. Os Princípios da Razoabilidade e da Proporcionalidade no Direito Constitucional, in Revista Forense, vol. 336, p. 129).
  8. "O Direito à Educação e suas Perspectivas de Efetividade", in Revista Forense, vol. 383, p. 83.
  9. apud Valdir de Oliveira Rocha, Determinação do Montante do Tributo, 1992, pg. 105.
  10. O Fato Gerador do Imposto sobre a Renda e Proventos de Qualquer Natureza, in Cadernos de Pesquisas Tributárias, 1986, vol. 11, p. 407 – Coordenação Geral de Ives Gandra da Silva Martins.
  11. O Fato Gerador... cit., Cadernos... , vol. 11, p. 9/10.
  12. A Hipótese de Incidência do Imposto sobre a Renda construída a partir da Constituição, Revista de Direito Tributário, Malheiros, vol. 77, p. 113.
  13. Comentários à Constituição de 1988 - Sistema Tributário, 1990, pg. 90.
  14. RDDT – Revista Dialética de Direito Tributário – vol. 22, p. 168.
  15. Proc. 97.0000192-0, in Repertório IOB de Jurisprudência, 2ª quinzena de fevereiro de 1997 - n° 4/97, caderno 1, pg. 93/94.
  16. Proc. 2000.03.00.024548-1 109108 AG, DJU de 16.6.2000, p. 461, e RDDT 59/197.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CUSTÓDIO, Antonio Joaquim Ferreira; PASSOS, Rufino Armando Pereira. Imposto de renda da pessoa física. Inconstitucionalidade do limite legal para dedução de despesas de educação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2413, 8 fev. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14325. Acesso em: 25 abr. 2024.