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Responsabilidade civil da administração pela guarda de pessoas e coisas

Responsabilidade civil da administração pela guarda de pessoas e coisas

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Todos os que, situados em qualquer nível ou escalão, decidem ou realizam atividades materiais afetas ao Estado, fazem surgir a responsabilidade civil objetiva da Administração.

Sumário: 1. Responsabilidade: noção conceitual. 2. Responsabilidade Civil da Administração. 3. O problema da imputação. 4. Responsabilidade objetiva: comissões e omissões imputadas aos agentes públicos obrigados a agir. Responsabilidade subjetiva: danos ocasionados por terceiros e não contidos em razão do não funcionamento ou do funcionamento ineficiente do serviço. 5. Guarda, pelo Estado, de pessoas e coisas propiciatórias de danos.


01. Responsabilidade é a conseqüência imposta ao agente, que atua livre de condicionamentos e com plena higidez mental, pelos atos praticados com violação do dever que está obrigado a observar. A noção conceitual de responsabilidade guarda equivalência, no ordenamento jurídico, com a sanção sofrida pelo agente, em razão do desconhecimento de determinado dever, que se projeta, detrimentosamente, sobre o direito da vítima, para que sejam compostos e reparados os danos por ela experimentados.

Quando se integra à Administração, o agente público compromete-se com comissões e omissões de diversas modalidades, expondo-se, por conseguinte, ao possível cometimento de diferentes infrações, que se acumulam sem que se possa, entretanto, cogitar do denominado bis in idem. Dito por outras palavras: o servidor, agindo nessa condição, pode incorrer em falta administrativa, que se substancia na infração dos seus deveres para com o serviço público, e sofrer, por isso, uma sanção de natureza disciplinar. Esse ilícito, uma vez configurado, pode enquadrar-se, ou não, em um tipo modelado pela legislação penal e, assim, mostrar-se idôneo a levar o agente à jurisdição criminal, por obrigatória e indeclinável iniciativa do órgão dotado de competência para propor a ação a tanto necessária. Por fim, se esse delito ocasionar prejuízo patrimonial ou moral a terceiro, tudo recomenda a sua reparação, em consonância com os princípios estabelecidos pela Constituição e pelas leis, para a apuração da responsabilidade civil da Administração.

As responsabilidades civil e criminal alcançam, em igualdade de condições, os agentes políticos e públicos, que se submetem, no particular, a sistemas marcados por certa uniformidade, como se tem das normas constitucionais e legais, que definem o rito a ser adotado na condução do seu processo e do seu julgamento e indicam, com certeza e precisão, o órgão jurisdicional que deve ser provocado, se houver, entre os denunciados, dignatário de privilégio de foro por prerrogativa de função.

Já no tangente aos agentes políticos, que se incumbem da execução de serviços assinalados por uma maior gravidade, a responsabilização administrativa, que não prejudica a apuração dos efeitos civis e criminais das práticas a eles imputadas, obedece a uma principiologia peculiar e própria, inscrita na Constituição e em leis especiais, em obséquio ao plexo de singularidades que diferenciam a sua atuação.


02. No âmbito doutrinário, a responsabilidade civil da Administração viveu três fases distintas: passou da irresponsabilidade, quando predominou o princípio the king can do not wrong (o rei é imune à perpetração de ilícito), para a responsabilidade com culpa, evoluindo, deste estágio, para a teoria do risco administrativo, que, entre nós, depois de adotada pela Constituição de 1946, prevalece até hoje.

A teoria da irresponsabilidade restou elidida, por inteiro, desde 1947, quando a Inglaterra resolveu expungi-la do seu ordenamento jurídico, seguindo, no ponto, os Estados Unidos da América do Norte, que editaram, em 1946, o Federal Tort Claims Act. A teoria da responsabilidade com culpa que, para os fins cogitados, equipara a Administração e o indivíduo, perde terreno a cada momento, ante o avanço das regras de Direito Público sobre as normas de Direito Privado, no tocante à disciplina das relações que se formam entre o particular e o Estado, no espaço físico sujeito ao seu domínio eminente.

Após madura reflexão, perceberam os cultores do Direito Público que se afigura impossível, de modo terminante, nivelar o Estado, ao qual a ordem jurídica reconhece e assegura uma série de privilégios administrativos, ao particular, que se movimenta, em face dessa entidade, inteiramente despido de prerrogativas públicas.

Constatação em causa, que se mostrou e ainda se mostra absolutamente irredutível, levou a doutrina a proclamar, sem discrepância, que não há como responsabilizar a Administração, pelos danos que os seus agentes vierem a causar aos administrados, com base na aplicação dos genuínos princípios norteadores da culpa civil.

Colocados em frente dessa realidade, os publicistas propuseram três critérios para a solução do impasse: (i) o risco integral, (ii) a culpa administrativa e (iii) o risco administrativo.

O risco integral, que é o risco administrativo levado ao extremo, contou com pouquíssimas adesões, pois conduz a uma conseqüência inaceitável em termos absolutos: compele a Administração a indenizar todo e qualquer dano sofrido por terceiro, conexionado com ato perpetrado pelos seus agentes, ainda que, para a sua produção, tenha sido determinante o dolo ou a culpa da vítima.

Em vista de tão iníquos efeitos, o Direito Administrativo Brasileiro jamais aceitou a teoria do risco integral, como evidenciam os julgados do Excelso Pretório, respeitantes ao tema responsabilidade civil da Administração, e toda a doutrina que se formou a propósito dos nossos documentos constitucionais, editados desde 1946, embora alguns estudiosos advoguem que a culpa administrativa, ou a falta do serviço, é a tese que melhor informa a reparação dos danos sofridos pelas pessoas físicas ou jurídicas, quando resultantes de uma atividade empreendida pela União, pelos Estados membros, pelos Municípios, pelas autarquias ou pelas prestadoras de serviço público.

A culpa administrativa, ou falta do serviço, que surge como o estágio inicial da transição operada entre a teoria da culpa civil e a teoria do risco administrativo, tem, em linha de conta, a falta do serviço, que deságua na culpa da Administração, cuja conformação prescinde, por inteiro, da identificação da culpa subjetiva do funcionário. Aclare-se: perquire-se, aqui, uma falta objetiva do serviço, isoladamente considerado, ou uma culpa especial da Administração, que se convencionou chamar de culpa administrativa, a qual, uma vez configurada, exsurge como geratriz do dever de indenizar.

A falta do serviço, como concebida pela doutrina francesa, aperfeiçoa-se quando o serviço, que deveria existir e funcionar adequadamente, (i) não existe, (ii) apresenta deficiências ou (iii) intervém com atraso, diante de determinada situação de fato, sem que a vítima esteja obrigada a suportar os efeitos da sua inexistência, das suas deficiências ou da intervenção retardada.

O risco administrativo, por seu turno, encara a obrigação de ressarcir como resultante do dano experimentado pelo particular, em decorrência de uma atuação ilícita ou lícita da Administração, cujas conseqüências não devam agravar seus bens e haveres, nem tampouco lhe causar nenhum tipo de padecimento.

Assim, o risco administrativo, que encerra um risco proveito, sustenta que existe o dever indenizar não apenas quando a Administração desenvolve uma atividade defesa pela ordem jurídica, ou aberrante dos seus princípios, mas, também, quando a sua atuação consulta a um interesse de toda a coletividade, que, todavia, ocasiona prejuízos a sujeito ou a sujeitos certos e individuados, que devem ser cobertos pelo Estado, como legítimo representante do universo de beneficiários (cfr. Otto Mayer, in Derecho Administrativo Alemán, Ediciones Arayú, s.d., Buenos Aires, T. IV, Parte Especial – Lãs Obligaciones Especiales, pág. 217).

Não cogita, essa teoria, da culpa da Administração, pois, à incidência dos seus princípios, basta que o administrado demonstre o dano ocasionado por comissão ou por omissão de agentes públicos, enquanto prepostos do Estado, valendo salientar, por oportuno, que os adeptos dessa linha de pensamento invocam, como supedâneo da indenização perseguida, o mero risco de a atividade estatal lesionar o patrimônio da vítima.

O risco administrativo, nos ordenamentos jurídicos que o aceitam, compensa a posição de inferioridade em que se encontra o particular, criada pelo próprio direito, valendo-se, para tanto, da solidariedade de todos os membros do corpo social, que, representados pelo erário, aceitam repartir, entre si, os gastos necessários à recomposição do patrimônio do lesado, que pode desfalcar-se (i) pela atuação normal do Estado, desenvolvida em benefício de todos, ou (ii) pelo comportamento anormal e injusto dos seus servidores.

Embora se baseie no simples risco, ou no risco proveito, se lícita a atuação do Poder Público (cfr. Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, in Princípios Gerais de Direito Administrativo, ed. Forense, Rio de Janeiro, 1969, V. II, págs. 483/484), a teoria do risco administrativo admite que o Estado, quando demandado, prove a culpa da vítima, seja para eximir-se da obrigação de indenizar, seja para mitigar o seu quantum, porquanto restringem-se, os seus adeptos, a sustentar que o demandante está isento de demonstrar a culpa da Administração.

A teoria por último mencionada reclama uma melhor e mais profunda reflexão por parte dos estudiosos da matéria, pois, ao tempo em que preserva o Administrado das turbações relacionadas a comportamentos estatais lícitos e ilícitos, livra-o do inconveniente de provar a falta do serviço, pena de sofrer agravo patrimonial, cujo afastamento é um dos seus objetivos mais eminentes, como consignaram, em obra conjunta, Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernandez: "Em efecto, pueden coincidir perfectamente uma actuación lícita ("funcionamiento normal") de la Administración, a la que, sin embargo, no se corresponda uno deber de soportar el prejuicio resultante de dicha actuacion por parte del particular. Por pone ya um ejemplo: la Administración actua lícitamente cuando reprime uma perturbación del orden público, pero quien resulte ocasionalmente perjudicado por la misma no tiene el deber jurídico específico de soportar ese prejuicio; el derecho a la integridad del patrimonio del dañado es lo que justifica que sea indemnizado, simplesmente. Este giro em la fundamentación de la obligación de responder patrimonialmente, que pasa a ser contemplado desde la perspectiva del dañado y no desde la acción del agente causal, es a lo que convencionalmente se ha llamado "objetivación" de la responsabilidad patrimonial de la Administración, introduciendo um cierto equívoco innecesariamente, pues no quiere decir, obviamente, que cualquier prejuicio económico que pueda resultar de los servicios administrativos tegna causa jurídica (si falta esse elemento de ilicitud del resultado desde la perspectiva del perjudicado) para pretender legítimamente uma reparación. El fundamento del sistema, por consiguiente, está em la proteción y garantia del patrimonio da víctima; es lo que la cláusula general pretende, ante todo, preservar frente a todo daño no buscado, no querido, ni merecido por la persona lesionada que, sin embargo, resulte de la acción administrativa. La responsabilidad de la Administración tiende a cubrir, según los preceptos antes citados, <toda lesión que los particulares sufran...siempre que sea consecuencia del funcionamiento normal o anormal de los servicios públicos>, entendida esta expresión em los términos ya dichos, <al margem da cuál sea el grado de voluntariedad e incluso de la previsión del agente>" (cfr. in Curso de Derecho Administrativo, II, 1ª edicion argentina, La Ley, Buenos Aires, 2006, pág. 376. Grifos do original)

Hodiernamente, a vigente Constituição Federal, art. 37, § 6º, mantém-se fiel à linha adotada pelas Cartas Políticas promulgadas desde 1946 e, assim, consagra a responsabilidade civil objetiva da Administração, sob a modalidade do risco administrativo, eliminando, pela sua clareza, os espaços que permitiriam trabalhar com o risco integral ou com a culpa subjetiva.

Concorde com a regra constitucional, o Código Civil, art. 43, pronunciou o caráter objetivo da responsabilidade Civil do Estado, dispondo que "As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos dos seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado o direito de regresso contra os causadores do dano, se houver, por parte destes, dolo ou culpa."

Esse conjunto normativo, que abriga todas as entidades estatais e seus desdobramentos administrativos, mostra que Lei Maior criou, em seu desfavor, o dever de indenizar os danos que os agentes vinculados aos seus serviços causarem a terceiros, independentemente de dolo ou de culpa em sentido estrito no cometimento da lesão.

A locução entidades estatais e seus desdobramentos, empregada no parágrafo anterior, e agora repetida sob grifos, realça que as pessoas físicas e jurídicas incumbidas do exercício de funções delegadas submetem-se, também, à responsabilidade objetiva, porque não é razoável que a simples transferência, pelo Estado, da execução de um serviço a uma concessionária ou permissionária, revestida ou não da forma de empresa estatal, transforme esse sujeito em beneficiário da teoria subjetiva da culpa (STF: Recursos Extraordinários: 178.806, DJU 30.6.95 e 262.651, DJU, 8.10.2002). Esse entendimento foi reiterado, em passado um pouco recuado, pelo Supremo Tribunal, que, em acórdão emanado da sua Primeira Turma, proclamou que as prestadoras de serviço assumem responsabilidade objetiva, ressalvando, entretanto, que dela são destinatários somente os usuários, pois o mesmo tratamento não devem receber os sujeitos que mantém, com as pessoas jurídicas da espécie, relações de outra natureza (cfr. Informativo STF nº 370, de 24.11.2004).

O vocábulo agente, utilizado pela Constituição Federal, art. 37, § 6º, põem em evidência que, para fins de responsabilidade civil, considera-se servidor toda e qualquer pessoa que se coloca à disposição da Administração, e em seu nome realiza um serviço, permanente ou transitório, ainda que, para tanto, careça de investidura ou de vínculo funcional com o Estado, à semelhança do que se passa com o denominado funcionário de fato.

Requestam as normas sob análise, tão só, que o agente pratique um ato ou deixe de cumprir um dever funcional, porquanto à imposição, ao Poder Público, do dever de indenizar, não é necessária uma atuação adstrita às normas de competência, pois, para o aparecimento desse efeito, basta a adoção de um comportamento em benefício ou em nome do Estado e, como não poderia deixar de ser, lesivo ao patrimônio do ofendido.

Em suma: todos os que, situados em qualquer nível ou escalão, decidem ou realizam atividades materiais afetas ao Estado, fazem surgir a responsabilidade civil objetiva da Administração, eis que, como altas autoridades ou modestos trabalhadores, encontram-se preordenados ao desempenho de atribuições que o Poder Público considera como pertinentes a si próprio.

A respeito do tema jurídico agora empolgado, extrai-se no magistério de Hely Lopes Meirelles: "Desde que a Administração defere ou possibilita ao seu servidor a realização de certa atividade, a guarda de um bem ou a condução de uma viatura, assume o risco da sua execução e responde civilmente pelos danos que esse agente venha a causar injustamente a terceiros. Nessa substituição da responsabilidade individual do servidor pela responsabilidade genérica do Poder Público, cobrindo o risco de sua ação ou omissão, é que se assenta a teoria da responsabilidade objetiva da Administração, vale dizer, da responsabilidade sem culpa, pela só ocorrência da falta anônima do serviço, porque esta falta está, precisamente, na área dos riscos assumidos pela Administração para a consecução dos seus fins." (cfr. in Direito Administrativo Brasileiro, ed. Malheiros, 32ª ed., São Paulo, 2006, pág. 654. Grifos do original).


03. Apesar de tratado pelo direito como um sujeito, o Estado, sob certo aspecto, é uma entidade abstrata, porquanto se ressente de aptidão para, por si, emitir uma manifestação de vontade e aparecer, perante as pessoas que com ele se relacionam, como detentor de uma vida anímica própria. Para suprir a inaptidão apontada, o Estado movimenta-se através dos seus órgãos, que se predispõem, por força de lei, a agir e a querer em seu nome.

Decorre, desse cometimento que recebem as pessoas físicas, uma relação de imputação direta entre o Estado e os seus agentes, que procedem como se fossem a Administração, de modo que o querer daqueles é a vontade desta, que arca com todos os efeitos desse fenômeno verificado na intimidade dos seus órgãos.

Referida imputação direta acarreta a desconsideração do comportamento do agente, que passa a ser visto como o comportamento do Estado, que tanto pode ser exaltado, como uma atuação positiva, quanto censurado, como uma omissão inoportuna ou uma comissão ineficiente, cabendo notar, por pertinente, que, a despeito de pertencer à economia doméstica da Pessoa Jurídica de Direito Público, essa relação é exterior a ela, permitindo uma valoração das suas conseqüências sobre a coletividade administrada, dentre as quais se incluem os danos prejudiciais a pessoa ou a pessoas determinadas.

Para identificar a concreta existência da relação de imputação, como formulada, impende verificar, em um primeiro momento, qual a entidade que recebeu, da lei, a incumbência de executar a atividade ou o serviço, que culminou com a produção do prejuízo, que pode, como já dito, resultar de uma conduta lícita ou ilícita, adotada por pessoa física, em nome do Estado.

Feita a identificação, cabe ao aplicador do direito, em um estágio subseqüente, investigar a integração da pessoa física à organização administrativa, a cuja conta deu-se o desempenho público, não exigindo as normas de regência, para a conformação da responsabilidade, a existência de um vínculo formal e permanente entre o agente e o Poder Público, já que essa formalização pode (i) inexistir, como se dá com os funcionários de fato, ou (ii) ter um caráter meramente transitório (cfr. Eduardo García de Enterría e Tomás Ramón Fernandez, in ob. cit., págs. 392/393).

Ou na precisa lição de Lafayette Ponde: "Na mesma expressão inclui-se o funcionário de fato: para a fixação da responsabilidade civil não importa a regularidade ou irregularidade da investidura do funcionário culpado (STF, in Rev. STF, vol. 63, pág. 93; Tr. SP., in Rev., vol. 203, pág. 299; Rev. Dir. Adm., vol. 33, pág. 84)." (...) "O citado art. 194 da Constituição abrange todo e qualquer funcionário, tomado esse vocábulo no seu mais amplo sentido, de ocupante, ainda que transitório, ou irregular, de função pública e qualquer que tenha sido o processo de sua investidura. Nem se poderia admitir, sem grave e invencível contradição, que a mesma amplitude de conceito adotada no dispositivo "caput", relativamente à responsabilidade do Estado pelos atos dos seus agentes, não valesse em relação ao parágrafo, que dispõe sobre estes agentes mesmos, contra os quais cabe ação regressiva." (cfr. A Responsabilidade dos Funcionários Públicos, in Revista de Direito Administrativo, vol. 35, janeiro – março – 1954, pág. 18).

Tecidas estas considerações, importa evidenciar: se de rigor a imputação direta da atuação do agente ao Estado, afigura-se defeso à Administração afastar-se do dever de indenizar os danos dela resultantes, para cuja perfectibilização é indiferente a apuração de dolo, de culpa ou da adequação dos poderes exercidos às normas específicas de competência.

Se há relação de imputação direta, cumpre indagar: uma vez verificado o dano, a ação proposta pela vítima, tendente a obter o seu ressarcimento, deve dirigir-se ao Estado ou pode ser aforada diretamente ao agente público?

Parte da doutrina defende que o lesado dispõe de liberdade para escolher entre acionar (i) o Estado, (ii) o servidor ou (ii) ambos, em litisconsórcio facultativo, como se depreende dos magistérios de Celso Antônio Bandeira de Mello (cfr. Elementos de Direito Administrativo, ed. Revista dos Tribunais, 1ª ed., São Paulo, 1983, págs 268/270, Ato Administrativo e Direito dos Administrados, ed. Revista dos Tribunais, 1ª ed., São Paulo, 1981, págs. 167/169, e Curso de Direito Administrativo, Malheiros Editores, 19ª ed., São Paulo, 2006, págs. 963/965) e de Carlos Mário da Silva Velloso, que, no particular, apregoa a obrigatoriedade da denunciação à lide pelo Poder Público, quando acionado pelo particular, com a ressalva de que a esse posicionamento não aderiu o Supremo Tribunal Federal (cfr. Responsabilidade Civil do Estado, in Temas de Direito Público, ed. Del Rey, Belo Horizonte, 1994, págs. 457/486). Em sentido oposto, existe a tese sufragada por Lúcia Valle Figueiredo (cfr. Curso de Direito Administrativo, Malheiros Editores, 8ª ed., São Paulo, 2005, págs. 289 e segs.), que se opõe à denunciação à lide e à relação litisconsorcial, no pólo passivo da relação jurídica de direito instrumental, ao argumento de que o servidor só responde nas condições prescritas pela Constituição, se incorrer em dolo ou em culpa.

Na jurisprudência, colhem-se dois acórdãos oriundos do Supremo Tribunal Federal, que asseguram, ao lesado, a faculdade de voltar-se diretamente contra o servidor, nas hipóteses de dolo ou de culpa, invocando, para tanto, as normas e princípios substantivados no Código Civil. O primeiro desses precedentes, que veio a lume à oportunidade do julgamento do Recurso Extraordinário sob nº 99.214 – 6 – Rio de Janeiro, cuja relatoria coube ao Ministro Moreira Alves, consignou, no voto que conduziu o julgamento, que a responsabilidade objetiva não passa de uma garantia destinada ao administrado, que tem a sua dívida forrada em um patrimônio solvente, sem que se possa equiparar esse privilégio, contudo, a um benefício de ordem criado em favor do agente público, a ponto de só ser permitido o seu oferecimento à ação da justiça em ação regressiva, depois de recomposta a integridade patrimonial do lesado, que, por sua conta e risco, pode chamar a si o ônus de provar a malícia ou a simples desídia, submetendo-se às dificuldades e aos revezes resultantes dessa opção. O segundo, por seu turno, que teve como relator o Ministro Octávio Gallotti, deixou claro, nada obstante a redação dada ao art. 107, da Constituição decaída, que o prejudicado pode preferir provar o dolo ou a culpa e, assim, propor a ação diretamente contra o funcionário, com o escopo de dispor de uma via mais expedita para executar a sentença, tão logo sobrevenha o seu trânsito em julgado (cfr. Recurso Extraordinário nº 105.157).

Se o comportamento do agente público, responsável pela causação do resultado danoso, faz nascer uma relação de imputação direta, dotada de eficiência para cometer, ao Estado, o dever de repará-lo, afigura-se mais lógico e razoável concluir que o servidor só pode responder em ação regressiva, quando a Administração deverá deixar, extreme de dúvida, que, não fosse o seu dolo ou a sua culpa, estaria livre do ressarcimento suportado pelo erário.

Remarque-se: se a relação de imputação mostra-se forte o suficiente para deslocar, do servidor para o Estado, a obrigação de indenizar, é forçoso concluir pela inexistência de campo que permita cogitar da responsabilização direta do agente, que só pode ser promovida à instâncias do Poder Público, depois que estiver concretamente demonstrado o dolo ou a culpa com que procedeu.

Não se cuida, em absoluto, da criação de um benefício de ordem favorável ao servidor, mas de protegê-lo contra eventuais caprichos do particular, o qual, mesmo sabendo, de antemão, que se ressente de meios para comprovar o dolo ou a culpa, pode servir-se do dano para satisfazer um sentimento de vingança, ou para compensar-se interiormente do indeferimento de um pleito, proveniente da pena do funcionário.

Não se diga, ademais, que a interpretação agora alvitrada pode prejudicar os tesouros da União, dos Estados membros, dos Municípios e de suas entidades administrativas, desfalcando-os excessiva e desnecessariamente, pois, diante da indisponibilidade do interesse público, o administrador, que se supõe cônscio dos desempenhos compreendidos no espectro de sua competência, irá sentir-se jungido a exercer o direito de regresso, para recompor, de modo cabal, o desfalque sofrido pelas finanças públicas, com o pagamento da indenização correspondente ao dano resultante da conduta intencionalmente prejudicial (dolosa) ou somente desidiosa (culposa) dos seus servidores.

Essa posição, que se lastreia, presentemente, no prestigioso pensamento de José Afonso da Silva (cfr. in Comentário Contextual à Constituição, 2ª ed., Malheiros Editores, São Paulo, 2006, pág. 349), para mencionar apenas este autor, foi sustentada vigorosamente por Pontes de Miranda, que deixou lançado: "A Constituição de 1967, como a de 1946, em vez de adotar o princípio da solidariedade, que vinha em 1934, adotou o princípio da responsabilidade em ação regressiva. Os interesses do Estado passaram à segunda plana: não há litisconsórcio necessário, nem solidariedade, nem extensão subjetiva da eficácia executiva da sentença contra a Fazenda Nacional, estadual ou municipal, ou contra pessoa jurídica de direito público interno ou estrangeiro. Há, apenas, direito de regresso. Diferentes, portanto, das Constituições de 1934 e 1937, nesse ponto, a de 1946 e 1967." (cfr. in Comentários à Constituição de 1967, com a Emenda nº 1, de 1969, ed. Revista dos Tribunais, 2ª edição, São Paulo, 1973, T. III, pág. 544. Grifos do original)

Compreensão em causa logrou prevalecer no Excelso Pretório, onde permanece inalterada, como se obtém da ementa que encima acórdão emanado da sua Segunda Turma, ao ensejo do julgamento do Recurso Extraordinário sob nº 228.977 – 2 – São Paulo, no qual funcionou como relator o Ministro Néri da Silveira: "Recurso extraordinário. Responsabilidade objetiva. Ação reparatória de dano por ato ilícito. Ilegitimidade de parte passiva. 2. Responsabilidade exclusiva do Estado. A autoridade judiciária não tem responsabilidade civil pelos atos jurisdicionais praticados. Os magistrados enquadram-se na espécie agente político, investidos para o exercício de atribuições constitucionais, sendo dotados de plena liberdade funcional no desempenho de suas funções, com prerrogativas próprias e legislação específica. 3. Ação que deveria ter sido ajuizada contra a Fazenda Estadual – responsável eventual pelos alegados danos causados pela autoridade judicial, ao exercer suas atribuições -, a qual, posteriormente, terá assegurado o direito de regresso contra o magistrado responsável, nas hipóteses de dolo ou culpa. 4. Legitimidade passiva reservada ao Estado. Ausência de responsabilidade concorrente em face dos eventuais prejuízos causados a terceiros pela autoridade julgadora no exercício de suas funções, a teor do art. 37, § 6º, da CF/88. 5. Recurso extraordinário conhecido e provido." (cfr. in 12.04.2002. Grifos do original)

Aclarados estes pontos, com sólida radicação nos melhores pronunciamentos doutrinários e pretorianos, tem-se que ao lesado é defeso, de modo terminante, atribuir responsabilidade pessoal e direta ao agente público, pelos danos que, nessa qualidade, vier a produzir em detrimento do seu patrimônio, pois a Constituição, sem permitir entendimento diverso ou oblíquo, quer que essa obrigação se concentre na Pessoa Jurídica de Direito Público. Se comprovado, acima de qualquer dúvida razoável, que o servidor comportou-se dolosa ou culposamente, cabe ao Estado, com exclusão de qualquer outra alternativa, submetê-lo ao crivo judicial, aforando a correspondente ação regressiva, eis que, no particular, o ordenamento jurídico não reconhece nenhum poder de disposição ao administrador público.


04. Entende, parte do pensamento jurídico nacional, que, sem embargos ao seu caráter objetivo, a responsabilidade civil da Administração, quando gerada por uma omissão, só se afirma se provada, pelo administrado, a culpa ou o dolo do causador do dano pendente de reparação.

Essa posição restou sufragada, em pelo menos uma oportunidade, pela Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, como evidencia o acórdão proferido na assentada em que se deu o julgamento do Recurso Extraordinário sob nº 140.270 – 9 – MG, relatado pelo Ministro Marco Aurélio, que pôs em ementa: "Se de um lado, em se tratando de ato omissivo do Estado, deve o prejudicado demonstrar a culpa ou o dolo, de outro, versando a controvérsia sobre ato comissivo – liberação, via laudo médico, de servidor militar, para feitura de curso e prestação de serviços – incide a responsabilidade objetiva." (cfr. DJU, 18.10.96).

Em outro precedente, mencionado órgão fracionário, em aresto conduzido pelo mesmo relator, afirmou, em tom peremptório, que a responsabilidade objetiva, como modelada pelas Constituições editadas a partir de 1946, alberga, sem qualquer ressalva, as comissões e as omissões administrativas: "A responsabilidade civil do estado é objetiva, dispensando, assim, indagação sobre a culpa ou dolo daquele que, em seu nome, haja atuado. Quer sob a égide da atual Carta, quer da anterior, responde o Estado de forma abrangentge, não se podendo potencializar o vocábulo "funcionário" contido no art. 107 da Carta de 1969. Importante é saber-se da existência, ou não, de um serviço e a prática de ato comissivo ou omissivo a prejudicar o cidadão. Constatada a confecção, ainda que por tabelionato não oficializado, de substabelecimento falso que veio a respaldar escritura de compra e venda fulminada judicialmente, impõe-se a obrigação do Estado de ressarcir o comprador do imóvel." (cfr. DJU, 26.02.99).

Presentes as diretrizes traçadas pela teoria do risco administrativo, revela-se impossível, de modo terminante, condicionar o deferimento da indenização à prova, pelo lesado, da culpa subjetiva, nos moldes estabelecidos pelo Código Civil.

Isto porque, a teoria em causa abrange todo e qualquer comportamento do poder público e leva, à conta de um indiferente jurídico, para fazer nascer o dever de indenizar, a natureza da posição assumida, em concreto, pelo agente público, que tanto pode exsurgir sob a forma de um fazer, quanto consistir em uma omissão indevida.

Sempre que sobrevier, ao particular, um dano resultante de uma atuação ou de uma omissão do Estado, desponta, em detrimento deste, o dever de indenizar, afigurando-se indiferente, para esse efeito, que seja identificada, ou não, a falta do funcionário, porquanto, em ambos os casos, a imputação é feita diretamente ao Estado.

Existe, no caso focalizado, uma impessoalização do ato danoso, que é atribuído imediatamente ao Poder Público, com todas as conseqüências daí decorrentes, em obséquio à responsabilidade objetiva, que contém a teoria da falta do serviço, elaborada pelo Conselho de Estado francês e estudada, ainda hoje, pela esmagadora maioria dos povos cultos.

A teoria da falta do serviço, em sua feição originária, que continua a prevalecer, repousa:

(i) no caráter primário da responsabilidade, que absorve a identidade do agente, convolando-o em uma mera peça da Administração, em cujo corpo se funde;

(ii) na inadequação dos órgãos do Estado e dos seus braços administrativos a determinadas necessidades coletivas ou mesmo individuais, de onde surge a má condição do serviço ou o seu funcionamento tardio ou defeituoso, como causa eficiente do prejuízo suportado pelo administrado; e

(iii) na eliminação, por força da sua completa inutilidade, da distinção entre falta funcional e falta pessoal, em benefício da falta do serviço, que se pode manifestar pela ausência de funcionamento, pelo funcionamento defeituoso ou pelo funcionamento tardio.

Os postulados em destaque, que informam a teoria da falta do serviço, elidiram, completamente, a procedência dos argumentos empolgados pelos que defendiam e ainda defendem, como solução para alguns casos, a teoria da culpa civil: "Na doutrina da culpa administrativa ou falta do serviço, não se cogita, por evidente inutilidade, da distinção entre falta funcional e falta pessoal. A falta do serviço se identifica em três categorias de faltas: mau funcionamento, ausência de funcionamento e funcionamento tardio do serviço. Digno de menção a este propósito é um aresto do Supremo Tribuna Federal. O dono de uma mercadoria, que se deteriorou em virtude do seu tardio desembaraço pela Alfândega, pretendeu indenização da Fazenda Nacional. O Ministro Orozimbo Nonato, divergindo do relator, pronunciou brilhante voto, em que mostrou a excelência da doutrina do risco administrativo sobre as demais soluções. Mas a espécie caracterizava nitidamente um caso de culpa administrativa, como a princípio se disse. A doutrina do risco administrativo, defendida pelos Ministros Orozimbo Nonato e Filadelfo Azevedo em votos magistrais, já fora esposada por Amaro Cavalcanti. Largos anos depois de publicada sua obra clássica, sente-se a palpitante atualidade de sua lição quando ensina que "...assim como a igualdade dos direitos, assim também a igualdade dos encargos é hoje fundamental no direito constitucional dos povos civilizados. Portanto, dado que um indivíduo seja lesado nos seus direitos, como condição ou necessidade do bem comum, segue-se que os efeitos da lesão, ou os encargos da sua reparação, devem ser igualmente repartidos por toda a coletividade, isto é, satisfeitos pelo Estado, a fim de que, por este modo, se restabeleça o equilíbrio da justiça comutativa." Muito tempo depois do nosso patrício, Paul Duez escrevia no mesmo sentido, argumentando: "...o prejuízo causado pelo funcionamento da empresa administrativa se analise em um encargo público, se a reparação pecuniária resulta em impô-la à coletividade, incontestavelmente o princípio da igualdade dos administrados relativamente aos ônus públicos exige a responsabilidade do poder público. O art. 15 do Código Civil não constitui óbice à aceitação dessa doutrina. Como ensina Savatier, a responsabilidade civil pode decorrer de mais de uma fonte. Se aquele dispositivo contempla o caso da representação conjugada ao elemento culposo, o princípio constitucional da igualdade de todos perante a lei, sobre ele prevalente, autoriza a aplicação da doutrina objetiva ou solidarista." (cfr. José de Aguiar Dias, A Responsabilidade Civil do Estado, in Revista de Direito Administrativo, vol. XI, janeiro-março de 1948, págs. 24/25).

Assim, é fora de dúvida que a teoria do risco administrativo, como posta na Constituição Federal, art. 37, § 6º, alcança, a um só tempo, as omissões e as comissões perpetradas pelos agentes públicos, a menos que se deseje negar, às condutas omissivas, idoneidade para desencadear desdobramentos causais conducentes à produção de danos.

Isso não equivale, entretanto, a afastar, por inteiro, a culpa anônima ou do serviço como fonte de responsabilidade da Administração, pois, em alguns casos, os prejuízos, apesar de provocados por terceiros, deixam de ser evitados pelo aparato administrativo, que não funciona, ou funciona com ineficiências, em decorrência do posicionamento omissivo ou desidioso do agente público incumbido do dever de impulsioná-lo.

Na hipótese agora figurada, estão presentes duas realidades fáticas passíveis de aferição objetiva: (i) o dano ocasionado por terceiros ao patrimônio do administrado; e (ii) um serviço público preordenado à contenção do prejuízo, ou à redução dos seus efeitos a níveis suportáveis. Resta, então, averiguar se esse serviço, que deveria atuar eficientemente, não socorreu o particular em virtude do comportamento do agente público, que não cuidou do acioná-lo, cuidou de acioná-lo quando não mais podia debelar a ação predadora ou acudiu à situação com apenas parte dos recursos materiais e humanos colocados ao seu dispor, diminuindo, portanto, a sua eficiência.

Além dos danos provocados por movimentos multitudinários, não contidos eficientemente pelo aparelho policial, que a doutrina, de ordinário, cita como exemplo, medite-se no incêndio ocorrido em um edifício residencial, motivado por defeitos na distribuição de gás encanado, que o corpo de bombeiros, mesmo constatando com antecedência de um mês, não notificou o construtor, para que promovesse a sua correção.

Frise-se: na hipótese por último aventada, faz-se necessária a comprovação da culpa, não porque o prejuízo derivou de uma omissão, mas, convém frisar, para identificar, cumpridamente, as razões determinantes do imperfeito funcionamento do serviço, que não se mostrou eficiente para conter os efeitos danosos produzidos por um terceiro, que, como posto em destaque, era um estranho à Administração.


05. Impende lembrar, antes do encerramento deste trabalho, que o Estado, no desempenho normal de sua atividade, cria situações de risco que, não com pouca freqüência, redundam em prejuízos para os administrados, como ocorre com a guarda de pessoas e coisas. Em tais hipóteses, o Estado, por atos comissivos seus, cria as situações determinantes ou propiciatórias da emergência dos danos que, por isso, aproximam-se dos prejuízos ocasionados pela atuação do Poder Público, atraindo, em conseqüência, a responsabilidade modelada pela teoria do risco administrativo.

Por outras palavras: se o Estado cria o risco, o dano, uma vez concretizado, em nada se distancia das situações em que o prejuízo é causado diretamente pelo atuar da Administração, pois a lesão vincula-se a um estado de fato por ela criado. Por conseguinte, embora não figure como autor, no quadro contextual em que se operou o evento lesivo, o Poder Público arca com os efeitos dele decorrentes, porquanto concorreu, com ato seu, para que se concretizasse a perda patrimonial sofrida pelo particular.

As pessoas, custodiadas pelo Estado, por vezes, singularizam-se pela sua predisposição ao crime, à semelhança do que se passa com os presos levados a uma penitenciária construída nas proximidades da área residencial ou comercial de um Município. Se, quando de uma evasão coletiva, tais pessoas depredam casas, edifícios ou lojas vizinhas a esse estabelecimento, a Administração é obrigada a indenizar, com base na teoria do risco administrativo, pois não evitou, como devia, danos perfeitamente previsíveis, que acabaram por concretizar-se.

Porém, se os evadidos, um ou dois dias após a fuga, invadem imóveis privados ou se apoderam, mediante violência, de móveis particulares, só será possível cogitar da responsabilidade substanciada na Constituição Federal, art. 37, § 6º, se restar provado, à saciedade, que, apesar de reunir condições para atuar, o Estado deixou de fazê-lo, por leniência ou indolência dos agentes a seu serviço.

Por razões e critérios idênticos, a responsabilidade objetiva aplica-se, à perfeição, aos danos sofridos pelas pessoas custodias pelo Poder Público, como ocorre com o detento que vem a falecer, em razão de golpes desferidos por um seu companheiro de presídio, com o emprego de instrumento cortante ou contundente, eis que os presidiários, isoladamente considerados, encontram-se expostos a uma permanente situação de risco, inerente à inquietação dos infratores com os quais convivem na ambiência da colônia penal.

Diga-se o mesmo dos alunos regularmente matriculados em escolas públicas, eis que, com a sua integridade corporal e mental, comprometem-se, irredutível e irresistivelmente, as pessoas jurídicas de direito público mantenedoras dos estabelecimentos educacionais. Portanto, se um estudante fere outro com um estilete, ou com uma lâmina que traz consigo a pretexto de apontar os lápis, o Estado obriga-se pela correspondente indenização, com base nos postulados da responsabilidade objetiva.

Não se ignora que o Supremo Tribunal Federal, em pelo menos três oportunidades, proclamou que o Estado tem a obrigação de indenizar os danos resultantes da morte de um apenado por outro, no interior de uma penitenciária, onde ambos cumpriam penas privativas de liberdade. As decisões proferidas a propósito desses casos, contudo, louvaram-se na denominada culpa anônima, que requesta a prova, pelo particular, de que o serviço (i) não funcionou, (ii) funcionou com deficiência ou (iii) não funcionou como e quando deveria (cfr. Recursos Extraordinários nº(s) 369820 – RS, 372472 – RN e 382054 – RJ, relatados pelo Ministro Carlos Velloso).

Sem embargos às laboriosas construções empreendidas pelos votos que conduziram os julgamentos colacionados, é inquestionável que não deveriam ter sido exigidas, dos administrados, as comprovações a que se referiram os acórdãos, por um motivo destacado em desdobramento anterior deste trabalho: se as omissões foram atribuídas a agentes público, encontram-se, todas elas, cobertas pela responsabilidade administrativa, inscrita na Constituição Federal, art. 37, § 6º.

Por isso, melhor do que os precedentes referidos, viu essa relevante tese jurídica o acórdão originário da Primeira Turma do Colendo Supremo Tribunal Federal, quando chamada a julgar o Recurso Extraordinário sob nº 109615 – RJ (DJU, 02.08.96), cuja relatoria coube ao Minsitro Celso de Mello: "A teoria do risco administrativo, consagrada em sucessivos documentos constitucionais brasileiros desde a Carta Política de 1946, confere fundamento doutrinário à responsabilidade civil objetiva do Poder Público pelos danos a que os seus agentes públicos houverem dado causa, por ação ou omissão. Essa concepção teórica, que informa o princípio constitucional da responsabilidade civil objetiva do Poder Público, faz emergir, da mera ocorrência do ato lesivo causado à vítima pelo Estado, o dever de indenizá-la pelo dano pessoal e/ou patrimonial sofrido, independentemente da caracterização de culpa dos agentes estatais ou de demonstração de falta do serviço público. Os elementos que compõem a estrutura e delineiam o perfil da responsabilidade civil objetiva do Poder Público compreendem (a) a alteridade do dano, (b) a causalidade material entre o eventus damni e o comportamento positivo (ação) ou negativo (omissão) do agente público, (c) a oficialidade da atividade causal e lesiva, imputável a agente do Poder Público, que tenha, nessa condição funcional, incidido em conduta comissiva ou omissiva, independentemente da licitude, ou não, do comportamento funcional (RTJ 140/356) e (d) a ausência de causa excludente da responsabilidade estatal (RTJ 55/503 – RTJ 71/99 – RTJ 91/377 – RTJ 99/1155 – RTJ 131/417). O princípio da responsabilidade objetiva não se reveste de caráter absoluto, eis que admite o abrandamento e, até mesmo, a exclusão da própria responsabilidade civil do Estado, nas hipóteses excepcionais configuradoras de situações liberatórias – como o caso fortuito e a força maior – ou evidenciadoras de culpa atribuível à própria vítima (RDA 137/233 – RTJ 55/50). O Poder Público, ao receber o estudante em qualquer dos estabelecimentos da rede oficial de ensino, assume o grave compromisso de velar pela preservação de sua integridade física, devendo empregar todos os meios necessários ao integral desempenho desse encargo jurídico, sob pena de incidir em responsabilidade civil pelos eventos lesivos ocasionados ao aluno. A obrigação governamental de preservar a intangibilidade física dos alunos, enquanto estes se encontrarem no recinto do estabelecimento escolar, constitui encargo indissociável do dever que incumbe ao Estado de dispensar proteção efetiva a todos os estudantes que se encontrarem sob a guarda imediata do Poder Público nos estabelecimentos oficiais de ensino. Descumprida essa obrigação, e vulnerada a integridade corporal do aluno, emerge a responsabilidade civil do Poder Público pelos danos causados a quem, no momento do fato lesivo, se encontrava sob a guarda, vigilância e proteção das autoridades e dos funcionários escolares, ressalvadas as situações que descaracterizam o nexo de causalidade material entre o evento danoso e a atividade imputável aos agentes públicos." (Grifos do original)

Fica afastado o dever de indenizar, nas hipóteses e condições remarcadas, se um presidiário ou um estudante, sob guarda do Poder Público, em um presídio ou em uma escola, vierem a ser vitimados por raios, à míngua de conexão lógica entre as situações de risco, criadas pelo Estado (construção e manutenção em funcionamento do presídio e da escola), e os eventos da natureza (queda do raio), que não alcançam, rotineira ou costumeiramente, estabelecimentos escolares e prisionais.

Quando se ocupa de armazenar e distribuir inflamáveis, como se dá com os serviços de guarda em depósito e de fornecimento de gás, o Estado cria uma situação de risco, em ordem a fazer surgir a sua obrigação de indenizar, com base nos princípios consagrados pela teoria do risco administrativo, os donos dos terrenos que vierem a ser prejudicados por eventual explosão ou escapação dessa substância.

Pela mesma ordem de motivos, os depósitos construídos para a guarda, a bem do serviço de segurança pública, de armamentos e munições, podem transformar-se em fatos geradores da obrigação de indenizar, objetivamente, os danos oriundos de incêndios, provocados pela guarda displicente desses artefatos, pouco importando, para os fins cogitados, que o evento tenha sido ocasionado por omissão do agente público dotado de competência para esse cometimento.

Ainda no tocante à guarda de coisas, convém meditar sobre as conseqüências dos atos de apreensão judicial de móveis, que se realizam, com maior freqüência, em duas situações: (i) a pretexto de aperfeiçoar as penhoras levadas a efeito nos processos de execução; e (ii) para assegurar, à União, a concretização dos efeitos genéricos da condenação criminal, previstos no Código Penal, art. 91, II, "a" e "b".

Verdade, não se cogita, aqui, de coisas aptas à criação de riscos. Não é menos verdade, entretanto, que a apreensão, que se perfectibiliza com ordem judicial, tem eficiência para fazer nascer, em desfavor do Poder Público, o dever de indenizar.

A penhora é um ato de afetação patrimonial, pois, sem impedir a sua venda, pelo proprietário, vincula um bem integrado ao seu patrimônio à relação processual de execução, com uma finalidade certa e indestorcível: assegurar a liquidação do débito, uma vez encerrada a prestação da tutela jurisdicional.

Em estudo subordinado ao tema penhora, Humberto Theodoro Júnior (cfr. Processo de Execução, 6ª ed., Livraria e Editora Universitária do Direito, São Paulo, 1983, pág. 244) declina a sua tríplice função:

(i) individualizar bens destinados ao fim da execução;

(ii) conservar esses bens, para que não se deteriorem nem sejam desviados; e

(iii) criar preferência para o exeqüente, sem prejuízo das prelações de direito material anteriormente estabelecidas.

Depreende-se, destas observações, que o executado tem direito líquido e certo à preservação do bem, para que se mantenha inteiro e não sofra depreciação até o momento da sua alienação judicial e, assim, o seu patrimônio não sofra novo desfalque, determinado pela necessidade de reforço de penhora ou de nova constrição.

Pois bem: se, com o escopo de assegurar o resultado útil da execução, o juiz ordena, de ofício ou a requerimento do exeqüente, que os bens sejam recolhidos ao depósito judicial ou confiados a depositário particular, por ele designado (CPC, arts. 665, IV, e 666, I e II), o Estado, por ato do seu órgão judicante, se expõe ao dever de indenizar, caso a garantia do juízo venha a perecer ou a sofrer sensível redução, devido à falta de estrutura ou ao simples descaso dos auxiliares da justiça. Da afirmação dessa responsabilidade ocupou-se o Colendo Supremo Tribunal Federal, em passado bastante recuado, como se depreende do voto tomado do Ministro Hermes Lima, como relator da Ação Rescisória objeto do Processo sob nº 427 – Guanabara, com o qual anuíram, na assentada em que se deu o julgamento, levado a efeito em 29 de setembro de 1966, os demais integrantes da Corte.

O que se vem de dizer alenta-se na circunstância de que, se consentida pelo credor, a guarda dos bens pode ser cometida ao devedor que, não estando impedido de aliená-los a título oneroso, pode resolver vendê-los em condições vantajosas e, com o produto dessa operação, quitar a dívida que lhe está sendo exigida pela via executiva (CPC, art. 666, § 1º).

No que concerne às apreensões levadas a efeito no âmbito do processo penal, é inquestionável que os bens, de que são objeto, passam à custódia do Estado para que restem satisfeitos, com a sobrevinda do trânsito em julgado da sentença condenatória, os efeitos civis elencados pelo Código Penal, art. 91, II, "a" e "b", e pela Lei nº 9613, de 1998, I.

O Código Penal, art. 91, II, "b", e a Lei nº 9613, de 1998, I, reportam-se aos producta sceleris, que são os proveitos obtidos com a prática do ilícito. Tanto constitui proveito do crime o objeto material apreendido diretamente pelo seu autor, como os móveis provenientes do peculato, do furto, do roubo (proveito direto) e do exaurimento dos delitos formais ou de mera conduta (corrupção passiva, por exemplo), quanto os produtos finais obtidos por sucessiva especificação (transformação do ouro furtado em jóias) ou mediante alienação (dinheiro adquirido com a venda de móveis furtados, roubados ou receptados).

As situações hipoteticamente figuradas aproximam-se por um traço comum: o aumento da fortuna do delinqüente em razão da prática ilícita. E esse traço comum desponta como fato gerador da incidência, sobre as situações emergentes, do preceito substanciado no Código Penal, art. 91, II, "b", e na Lei nº 9613, de 1998, art. 7º, de modo que, sem uma prova escorreita de que esse aumento de fortuna adveio, direta ou indiretamente, do ilícito imputado ao réu, os bens alcançados por eventual busca e apreensão, ainda que convolada em seqüestro, com observância das disposições inscritas no Código de Processo Penal, arts. 125 a 130, devem volver ao seu patrimônio, no estado em que se encontravam, quando da realização da diligência, mesmo em caso de condenação (cfr. Magalhães Noronha, in Direito Penal, ed. Saraiva, 31ª ed., São Paulo, 1995, vol. I, parte Geral, pág. 294; Damásio Evangelista de Jesus, Direito Penal, ed. Saraiva, 27ª ed., São Paulo, 1997, pág. 638).

Fixado este ponto, é imperioso convir que, por idênticos motivos, o Estado se expõe ao dever de indenizar, pois ditos bens terão que se reincorporar ao acervo patrimonial do acusado, em caso de absolvição, ou na hipótese de condenação, se faltar, ao Ministério Público, a prova cumprida de que a sua aquisição deveu-se, imediata ou mediatamente, à perpetração do delito.

Concretizado que seja um dos casos aqui pensados, o jurisdicionado, pouco importando que se encontre sob a égide do juízo cível ou do juízo criminal, tem direito a que os bens se mantenham, durante todo o período de constrição, no estado em que se achavam quando apreendidos e recolhidos ao depósito judicial ou entregues à custódia do depositário particular, assistindo-lhe, portanto, o direito de vindicar indenização, se detectar, em tais objetos, desgastes que lhes diminuam o valor.



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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NOBRE, Eduardo Antônio Dantas. Responsabilidade civil da administração pela guarda de pessoas e coisas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2430, 25 fev. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14409. Acesso em: 24 abr. 2024.