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Direito Internacional Humanitário.

O simbolismo dos direitos humanos na intervenção humanitária na Somália

Direito Internacional Humanitário. O simbolismo dos direitos humanos na intervenção humanitária na Somália

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Resumo:

Este artigo tem como finalidade analisar a lógica das intervenções humanitárias autorizadas pelas resoluções editadas pelo Conselho de Segurança da ONU, fazendo uma crítica acerca da força simbólica dos direitos humanos como instrumento de manipulação do real. A partir disso, objetiva-se estudar a intervenção humanitária realizada na Somália para se constatar que houve violação à soberania desse País, em razão de não ter sido obedecidos pressupostos mínimos que tornariam a medida legítima e imparcial. Com isso, pretende-se demonstrar que os jogos de poder articulados pelos Estados hegemônicos manipulam o cenário por meio dos meios de comunicação em massa, criando um meio artificial que se situa entre o real e o olhar crítico do homem.

Palavras-chaves: intervenção humanitária – simbolismo – direitos humanos – Somália – soberania


Introdução

Um dos assuntos mais instigantes e ao mesmo tempo mais tormentosos no contexto do Direito Internacional na atualidade não poderia deixar de ser algo envolvendo os direitos humanos. Em episódios históricos recentes, especialmente no caso somali, a sua proteção dependeu da implantação de forças de coalização lideradas pelas principais potências econômicas, políticas e militares do mundo, com destaque para os Estados Unidos.

As atrocidades cometidas em face da humanidade causando a morte de milhares de pessoas por ferimentos e até mesmo por inanição e a enorme quantidade de refugiados, configuram o sinal de alerta da comunidade internacional para impedir que esse ambiente de horror tenha reflexos ainda maiores.

As organizações internacionais, principalmente a Organização das Nações Unidas (ONU) que reúne o maior número de Estados membros, comumente por meio de seu Conselho de Segurança encarregado de velar pela paz e segurança internacionais, assume o papel de iniciar o processo de mobilização mundial para normalizar uma situação conflituosa, na tentativa de conter sua propagação para áreas não afetadas.

A submissão de inúmeras vidas humanas à degradação produz um sentimento repudiável na opinião pública mundial que, em ato contínuo, exerce uma pressão sobre as vanguardas do Conselho de Segurança para providenciar soluções adequadas ao conflito. A imagem de crianças inocentes, mulheres indefesas, idosos abandonados, deficientes desamparados, famintos em estado de desespero e muitos mortos, é a realidade que se apresenta mesmo sendo esta uma questão meramente pontual dentro da lógica estrutural da medida humanitária.

O outro lado da vertente causadora do caos humanitário, precisamente a análise de todo o cenário de violação aos direitos humanos, não é sequer comentada. Entre a realidade posta e o olhar crítico dos olhos da humanidade existe um espaço quase que imperceptível, uma espécie de meio artificializado, hipnótico.

O real engana pela forma como se usa a razão. A maneira como o real aparece para o receptor da imagem passa por um processo de manipulação sem que haja chances de se enxergar o artifício colocado entre sua visão e o objeto. Daí surge a ideia do símbolo e a explicação para diversos significados ao significante, sendo todos esses significados mutáveis conforme o cenário em que são colocados.

A partir de uma situação isolada é possível justificar o todo. Isso vem sendo praticado no âmbito internacional para fundamentar a articulação dos jogos de poder por Estados hegemônicos, retratando, inclusive, assuntos humanitários. As intervenções humanitárias enquanto medidas urgentes para a proteção aos direitos humanos violados no contexto do conflito armado revestem-se dessa peculiaridade.

Os pressupostos definidores para implantação desse mecanismo interventivo na soberania Estatal visando-se conter a instabilidade interna limita-se a critérios arbitrários e seletivos empregados pelo Conselho de Segurança. Assim, a causa da intervenção humanitária refere-se à violação dos direitos humanos em um conflito armado, porém a lógica de tudo isso é muito mais ampla do que se parece ser, recaindo-se na forma pela qual a política internacional imperialista é nutrida.

O caso da intervenção humanitária na Somália ajuda a compreender como os jogos de poder encobrem o real por meio da representação deste. A força simbólica dos direitos humanos conduz ao entendimento distorcido da realidade, provocando no indivíduo a certeza da nitidez dos acontecimentos.

Eis então o que se pretende analisar criticamente.


1 – O encobrimento do real e o simbolismo dos direitos humanos

A proteção aos direitos humanos encontra guarida num plano supra-Estatal que transcende a própria soberania dos Estados. Esse amparo tem como escopo efetivar o princípio da dignidade da pessoa humana consagrado em diversas Constituições, inclusive na brasileira.

E conforme se depreende das palavras de Flávia Piovesan, "Consagra-se (...) a dignidade da pessoa como verdadeiro superprincípio, a orientar tanto o direito internacional como o direito interno." (PIOVESAN, 2006, p. 31)

O mínimo de dignidade consubstancia-se na satisfação de direitos fundamentais individuais e sociais essenciais a qualquer pessoa. A Constituição da República Federativa do Brasil, sob esse aspecto, assegura a proteção à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, à propriedade, dentre tantos outros direitos.

Mas retratar os direitos humanos dentro da lógica da era globalizada, em que a produção e o consumo assumem o foco da atenção do mundo e as pessoas humanas são utilizadas como peças secundárias dessa engrenagem, torna-se algo praticamente inconcebível na sistemática contemporânea, que se arvora na competitividade e na tirania da informação e do dinheiro. [01]

Os direitos humanos adquirem feição meramente simbólica, como se fossem uma imagem artificial colocada entre o indivíduo e a realidade. Marcelo Neves explica que o termo símbolo "(...) é utilizado para indicar todos os mecanismos de intermediação entre sujeito e realidade. (...) A rede simbólica constituiria o ‘meio artificial’ da relação entre homem e realidade" (NEVES, 2007, p.6).

Os direitos humanos enquanto significantes passam a ser encobertos por um rótulo simbólico com outros novos significados. Não há, em tese, mudança conceitual ou estrutural dos direitos humanos, porém passa-se a analisá-los a partir de um caso pontualmente isolado para justificar o contexto geral de uma dada realidade.

Essa realidade é distorcida com informações manipuladas pelos meios de comunicação midiáticos também dominados pela opressão do poder econômico e político de uma minoria autoritária e burguesa, de acordo com os interesses dessas elites.

O que deveria esclarecer adquire outra face, e acaba confundindo e alienando massas de pessoas crentes nessa ideologia. O discurso fundamenta-se na demonstração de fatos concretos que são apresentados ao homem comum para persuadi-lo da causa real de uma situação, o que acaba sendo imperceptível aos olhos humanos.

José Luiz Quadros de Magalhães [02] demonstra como a realidade é geralmente encoberta para se esconder a farsa das relações de poder através de uma espécie de representação, afirmando que:

A representação do mundo é fundamental para a manutenção das relações sociais, desde as comunidades primitivas até os nossos dias complexos. Representar é significar. Não utilizo o termo aqui como representação política mas representação como reprodução do que se pensa; como reprodução do mundo que se vê e se interpreta e logo como atribuição de significado às coisas. Representação é exibir ou encenar.

A representação pode, portanto, ajudar a compreender as relações de poder ou pode ajudar a encobri-las. O poder do Estado necessita da representação para ser exercido e neste caso a representação sempre mostra algo que não é, algumas vezes do que deveria ser, mas, em geral, propositalmente o que não é. Representação pode, de um lado, ao distorcer a aparência revelar o que se esconde atrás desta e de outra forma encobrir os reais jogos de poder, os reais interesses e as reais relações de poder.

Várias são as formas de dominação. Tem poder quem domina os processos de construção dos significados dos significantes. Tem poder quem é capaz de tornar as coisas naturais. (MAGALHÃES, 2004)

Os significados são construídos pelos detentores do poder que se escoram no discurso da necessidade de se fazer ou deixar de se fazer alguma coisa como forma de obter ou impedir resultados. E sob essa metódica que os direitos humanos são utilizados para autorizar a execução de ações Estatais cujo escopo seria "protegê-los" de eventuais abusos ou violações, servindo, entretanto, de fachada para encobrir atos atentatórios à humanidade.

Daí surge o símbolo dos direitos humanos. A percepção da realidade é nitidamente míope para o indivíduo, embora este se mantenha convicto de que tem pleno conhecimento detalhado dos acontecimentos.

Apenas uma hipótese pontual situada dentro de uma generalidade torna-se suficiente para servir como ponto de apoio capaz de sustentar o discurso de que o significante seja positivo ou negativo, variando de um para o outro em função da força da linguagem manipuladora. [03]

Esse processo de produção da simbologia depende do acontecimento do fato, da filtragem da informação, da manipulação das circunstâncias apuradas e de sua inserção em contextos diferentes para provocar a sensação nas pessoas de que uma coisa se deu em função daquela circunstância, sendo que esta apresenta-se somente como uma excepcionalidade da realidade.

Nesse desiderato, os direitos humanos frequentemente aparecem como estopim para promoção de intervenções humanitárias respaldadas pela violação aos direitos humanos em conflitos armados, sendo que o pano de fundo da intervenção é a consolidação da hegemonia mundial de Estados mais desenvolvidos política, militar e economicamente. É o que se analisa em seguida.


2 – O simbolismo dos direitos humanos na efetivação de intervenções humanitárias

As intervenções humanitárias são realizadas sempre que um conflito armado coloca em perigo a vida das pessoas diretamente envolvidas no contexto de guerra devido às suas localizações, ou de bens que possam de alguma forma ser afetados. [04]

Acontece que as intervenções quando efetivadas revestem-se de parcialidade, restando claro o interesse dos membros permanentes do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) no conflito, que utilizam as medidas humanitárias como subterfúgio para consolidarem suas hegemonias.

Carlos Augusto Cânedo Gonçalves da Silva traz à baila um importante apontamento, destacando que "Um dos elementos mais característicos da atuação do Conselho de Segurança nos mais recentes conflitos armados tem sido a integração das preocupações humanitárias entre os seus objetivos." (SILVA, 2007, p. 167)

Certifica-se uma tendência de interferência pelo Conselho de Segurança nas questões atinentes à proteção dos direitos humanos, sobretudo naquelas em que houver interesse imediato dos membros permanentes. Isso é confirmado pela própria história, já que a Grã-Bretanha tinha proibido o tráfico negreiro com o único propósito de satisfazer os seus interesses econômicos pela busca de novos mercados consumidores.

Hodiernamente, essa prática ainda persiste quando as grandes potências decidem intervir nos conflitos armados sob a justificativa de que a morte de milhões de pessoas humanas, que estavam condições insalubres de vida, deve-se ao desrespeito aos direitos humanos.

Entretanto, as intervenções humanitárias que parecem espelhar uma preocupação de solidariedade internacional com as vítimas de conflitos armados, na verdade servem como razão para legitimar ações seletivas e discricionárias do Conselho de Segurança.

Os direitos humanos analisados como meros significantes nessa conjuntura adquirem significados diversificados. A causa das mortes em massa pela fome, guerra, tortura ou qualquer outra forma cruel de extermínio podem ter origens diferentes da que é tida como verdadeira.

A derrubada do regime democrático por golpes de Estado praticados por ditaduras totalitárias financiadas por países hegemônicos, como aconteceu principalmente na América Latina ao longo do século passado, pode ser encarada como uma questão pontual dentro do contexto geral, mas ser tida como a causa que legitima uma possível intervenção humanitária para proteção dos direitos humanos de refugiados e presos políticos resistentes ao golpe.

Contudo, a partir da análise macro da situação pode-se constatar que o motivo pelo qual se instaurou uma crise de proporções internacionais não se deve àquele golpe de Estado especificamente, mas à necessidade da apresentação ao mundo de um poderoso arsenal bélico e da capacidade de solucionar conflitos pela via da política diplomática, como forma de convencer a todos que a medida tem relevância e urgência.

É evidente que em muitas situações as principais potências interferem nos conflitos armados para consolidarem suas posições destacadas no cenário político internacional, especialmente nas regiões onde tenham manifesto interesse de exercerem algum tipo de controle [05].

Sob os jogos de poder os significados dos significantes são montados e modelados, sendo que uma situação minimamente esférica ganha contornos maiores e é trabalhada para ser a razão que fundamenta o todo.

A simbologia dos direitos humanos no contexto internacional retrata bem a dicotomia entre o indivíduo e a realidade, perpassando-se entre ambos uma imagem ilusória. O homem acredita piamente ver e conhecer a realidade através das notícias que são propaladas nos meios convencionais de comunicação.

A realidade é apresentada como de fato ocorreu, mas a forma como aconteceu teve origens diversas daquela que foi até então divulgada. Um golpe de Estado que provoca a degradação de direitos humanos surge como o problema, sendo que no fundo estão os principais responsáveis pelo caos: aqueles que tem interesse direto na violação dos direitos humanos.

O caso da intervenção humanitária na Somália ilustra bem a farsa na qual os direitos humanos são utilizados para empreender a violação da soberania Estatal e por isso será objeto de análise.


3 – O caso da intervenção humanitária na Somália

Em um recente episódio histórico, precisamente na Somália, certificou-se um grande abuso das principais potências mundiais ao realizarem uma espécie de intervenção humanitária justificada pela necessidade de proteger as vítimas do conflito armado contra atos atentatórios aos direitos humanos, o que aconteceu sem a intenção efetiva de protegê-los; muito pelo contrário, os fins consistiam em buscar a satisfação de interesses isolados, e não alcançar a paz e a segurança internacionais.

No caso da Somália, a derrubada do governo por facções políticas inicia o conflito, sendo que três grupos conhecidos como Movimento Nacional Somali (MNS), Movimento Patriótico Somali (MPS) e Congresso Somali Unido (CSU) comandaram a tomada da capital do País. Naquele momento a situação estava difícil e se agravando ainda mais com a seca que assolava a região, somando-se a isso a retirada das agências de ajuda humanitária da ONU. [06]

O Conselho de Segurança reconhecendo a dificuldade de evitar o extravio de medicamentos e suprimentos doados às vítimas do conflito, concordou com a oferta de ajuda norte-americana para garantir a distribuição da ajuda humanitária.

Então, foi editada a resolução 794 de 3 de dezembro de 1992, sob o manto do Capítulo VII da Carta das Nações Unidas, autorizando o estabelecimento da Operação Restaurar Esperança (UNITAF – Unified Task Force) justificada pela "(...) magnitude of the human tragedy caused by the conflit in Somalia, futher exacerbated by the obstacles being created to the distribution of humanitarian assistance, constitutes a threat to international peace and security". [07]

Objetivou-se com a edição dessa resolução [08] do Conselho de Segurança impedir o extravio da ajuda humanitária enviada à Somália, sob o fundamento de que:

Expressing grave alarm at continuing reports of widespread violations of international humanitarian law occurring in Somalia, including reports of violence and threats of violence against personnel participating lawfully in impartial humanitarian relief activities; deliberate attack on non-combatants, relief consignments and vehicles, and medical and relief facilities; and impeding the delivery of food and medical supplies essential for the survival of the civilian population, (…)

Foi a partir desses fatos que os EUA lideraram uma operação militar para permitir a distribuição de ajuda humanitária aos civis envolvidos no conflito, cujo resultado era mesmo demonstrar que a redução significativa do número de mortos e a redução da fome somente ocorreriam após a interferência norte-americana.

A intervenção na Somália representou uma inovação na política internacional de proteção aos direitos humanos violados em conflitos armados, tanto no aspecto da utilização de mecanismos para restaurar a paz e segurança internacionais, quanto na atuação do Conselho de Segurança.

Antonio de Aguiar Patriota criticando a intervenção humanitária realizada na Somália ressalta que:

Tanto do ponto de vista do motivo desencadeador das medidas de segurança coletiva (o humanitário), como dos meios utilizados para a coerção (a UNITAF e a UNOSOM II), as Nações Unidas tentaram aplicar um paradigma inovador na Somália com resultados, na melhor das hipóteses, controvertidos. Ao invés de provar o acerto da filosofia intervencionista da Agenda para a Paz, a Somália evidenciou a necessidade de uma reflexão mais aprofundada e realista sobre a questão da responsabilidade coletiva em matéria de emergência humanitária, particularmente em conflitos não internacionais. (PATRIOTA, 2000, p. 81)

A situação da Somália, por si só, já retrata a necessidade de se repensar e de se rediscutir a realização de intervenções humanitárias lideradas por países desenvolvidos. A violação dos direitos humanos no contexto de conflitos armados está muito além dos interesses de um ou outro Estado, ainda mais quando a questão gira em torno da paz e da segurança internacionais.

Essa intervenção empreendida na Somália estampada pela questão humanitária, representou uma violação à soberania do País, na medida em que serviu de fachada para justificar o abuso do poder político, econômico e militar das grandes potências mundiais, além de ser uma excelente oportunidade para consolidação de suas hegemonias. E essa a tese que pretende-se sustentar adiante.


4 – Soberania somali: protegida pela intervenção humanitária, violada pelo simbolismo dos direitos humanos

As intervenções humanitárias aparecem no contexto dos conflitos armados como um "lobo disfarçado de cordeiro". Assim, os Estados mais desenvolvidos do ponto de vista econômico, político e militar, se esquivam dos impedimentos jurídicos para validarem suas ações macabras de perpetuação hegemônica.

É entendimento majoritário na doutrina [09] do Direito Internacional que o Conselho de Segurança, na condição de parte da estrutura orgânica da ONU, aparece como o responsável pela autorização para se realizar uma intervenção humanitária sob o prisma do capítulo VII da Carta das Nações Unidas.

Logo, do ponto de vista das Relações Internacionais e do Direito Internacional, uma intervenção dessa espécie somente seria legítima caso fosse autorizada pelo Conselho de Segurança.

A priori é difícil se definir os limites de uma intervenção humanitária e também se fixar os critérios para a escolha do interventor, o tempo de duração da medida, a forma de levantamento dos recursos, os meios que serão empregados, as restrições impostas aos beligerantes e demais alternativas inerentes à situação.

Por isso seria preciso estabelecer princípios determinadores para uma intervenção baseada na questão humanitária. Isso possibilitaria um funcionamento mais eficaz do Conselho de Segurança, evitando ainda discordâncias de seus membros integrantes quanto à autorização ou não do uso da força para resolver problemas humanitários, e ainda afastar a adoção da intervenção humanitária apenas sob o aspecto político.

Devido à insegurança da comunidade internacional acerca da instabilidade política e jurídica de uma intervenção, a Comissão Internacional sobre Intervenção e Soberania Estatal (International Commission on Intervention and State Sovereignty - ICISS) estabeleceu alguns requisitos que devem ser observados antes de se efetivar uma medida interventiva, a saber, justa causa, intenção correta, último recurso, meios proporcionais, razoáveis chances de sucesso e autoridade correta. [10]

Se se levar em conta que se os pressupostos intrínsecos para se realizar uma intervenção humanitária realmente fossem esses estabelecidos pela ICISS, no caso da Somália o preenchimento desses pressupostos não foram obedecidos.

O golpe de Estado que acarretou a derrubada do governo democrático na Somália fez milhares de pessoas a buscarem refúgio nos países vizinhos, e não bastasse isso a seca também provocou muitos óbitos por inanição. À medida que os suprimentos e medicamentos perdiam-se antes de chegarem aos seus destinos, sobretudo por extravio, aumentavam-se as dificuldades de assegurar a ajuda humanitária. [11]

Então, a intervenção foi criada para garantir a chegada de assistência às vítimas do conflito somaliano, embora as facções políticas no controle do País exigissem propina para permitir a entrada dos comboios de distribuição. Essa era a fonte de custeio dos novos armamentos dos guerrilheiros e motivo de propagação do holocausto interno refletido na esfera externa. [12]

Como a situação estava cada vez mais fora de controle, principalmente porque não havia intenção correta do interventor, não se tratava de último recurso e os meios utilizados não eram proporcionais, o Conselho de Segurança tinha que ter tomado uma decisão mais imparcial e apropriada ao caso.

A ONU enquanto organização internacional, é que deveria ter interferido no conflito por ser a autoridade correta, e não os Estados Unidos. A permissão a este País para substituí-la diretamente como seu delegado nessa operação foi totalmente ilegítima, ainda mais na condição de membro permanente do Conselho de Segurança.

A confiabilidade da organização foi colocada em xeque por não cumprir com sua finalidade perante a comunidade internacional. O seu órgão apontado como principal incumbido de zelar pela paz e segurança internacionais, ao cuidar do caso somali, deveria ter adotado parâmetros mínimos que assegurassem a credibilidade da intervenção.

A violação da soberania somali foi encoberta por uma questão isolada, disfarçada pela necessidade de proteção às vítimas envolvidas no conflito. Paradoxalmente, o conflito foi fomentado pelo jogo de poder articulado pelos próprios membros permanentes do Conselho de Segurança, sendo que a justa causa da medida foi atribuída ao caos humanitário provocado pelo golpe contra o Estado, tratando-se, contudo, de uma situação incutida entre a realidade e o olhar da opinião pública mundial.

É nessa perspectiva que os direitos humanos são tidos como fator de legitimação de autênticas violações à soberania Estatal. As intervenções humanitárias são idealizadas e implementadas pelas potências mundiais como pressuposto para assegurar a paz e a seguranças internacionais, todavia são justificadas a partir de fundamentações arbitrárias baseadas no desrespeito aos direitos humanos, o que afasta o critério da intenção correta.

A designação de significados aos direitos humanos tem variado conforme a intenção e interesse das potências mundiais e, indubitavelmente, a razão da ocorrência de qualquer crise humanitária decorrente de conflitos bélicos na contemporaneidade teve como fundamentação as brutalidades cometidas contra a humanidade.

O que está situado entre a opinião pública mundial e a realidade não é a degradação dos direitos humanos, embora esse horror causado pelo genocídio, fome, refúgio, tortura, ditadura, exista e seja perceptível aos olhos do mundo. Obviamente, os membros permanentes do Conselho de Segurança no domínio do poder decisório tendem a reconhecer que essa situação perplexa é inaceitável e é repudiada pela comunidade internacional.

Dessa forma, o embasamento de combate à crise humanitária consiste em descobrir ou pelo menos inventar uma causa para o problema. O clamor mundial desperta-se pela difusão de imagens de crianças famintas, pessoas feridas e desabrigadas, milhares de mortos, guerrilheiros fortemente armados, retratando-se um cenário alarmante.

A força simbólica [13] dos direitos humanos manifesta-se na sensibilização da opinião pública mundial, provocando, assim, uma reação imediata capaz de estimular os povos amantes da paz, como está expresso no preâmbulo da Carta das Nações Unidas [14], a pressionarem as potências mundiais a se mobilizarem.

O símbolo realça-se pelo processo industrial cultural disseminado pela sociedade tecnológica moderna através dos meios de comunicação em massa. Se se mostra facções criminosas em combate pela tomada do poder tem-se a constatação de um significado ao significante. Por outro lado, a exibição de crianças, idosos, mulheres, deficientes, mortos, provocam outra sensação e dão significados opostos ao significante.

Através do simbolismo dos direitos humanos um fato específico serve-se de paradigma para explicar o contexto de beligerância. O que está nos bastidores continua ocultado e deve ser relegado ao esquecimento, ou seja, como os grupos rebeldes tomaram o poder, quem financia a aquisição de novos armamentos e garante o clima de insegurança internacional e qual o teor dos acordos econômicos celebrados para favorecer o agente financiador.

Com base na intervenção humanitária empreendida na Somália sob a justificativa de violação aos direitos humanos, que acabou violando a soberania desse País, é preciso refletir acerca da utilização desse instituto de Direito Internacional muito prestigiado durante o século passado.


Conclusão

O Direito Internacional ainda passa por um processo de reformulação geral. Muitos juristas já iniciaram estudos sobre diversos temas envolvendo assuntos supra-Estatais, dentre os quais destaca-se a questão humanitária. Essa abordagem consistiu em fazer uma crítica à intervenção humanitária a partir do simbolismo dos direitos humanos, analisando os fatores políticos e jurídicos que autorizam o emprego dessa medida.

Bastante explorado ao longo do século passado, em especial no curso da década de noventa, esse recurso foi utilizado pelo Conselho de Segurança de forma abusiva para afrontar a soberania de Estados afetados pela violação aos direitos humanos em decorrência de conflitos armados.

Sob o pretexto de proteger vítimas ameaçadas pela fome, perseguições políticas, pela guerra civil, as potências mundiais agindo sobre o manto do Conselho de Segurança cometeram atentados contra a ordem internacional, atropelando os princípios do Direito Internacional, atuando na satisfação de seus interesses em nome das próprias organizações internacionais e manobrando politicamente para se beneficiarem.

A necessidade incessante de poder e supremacia, compatíveis aos anseios do imperialismo, são disfarçados pela manipulação do real. A comunidade internacional é induzida a apoiar uma tirania que vilipendia a soberania dos Estados. A forma de convencimento pela tecnologia cultural sensibiliza a humanidade inteira mediante a apresentação de imagens bárbaras, inaceitáveis pelas religiões, pelos governos e até mesmo pela ciência.

Entre o real e o indivíduo existe o que não se vê: o invisível. Essas barbáries por incrível que pareça são apenas detalhes, constituindo parte do todo. Esses fragmentos são trabalhados pelos meios de comunicação em massa para enganar o público, persuadindo-o de que aconteceu um fato em função de uma causa. Ocorre que a causa apontada nada mais é do que um simples detalhe, incapaz por si só de ser a verdadeira causa do fato, ou seja, explica-se o geral pelo específico ou todo pela parte.

Levando essa lógica para o campo do Direito Internacional, certifica-se que a efetivação de intervenções humanitárias com escopo de proteger pessoas e bens situados em área de conflito armado é uma fachada para acobertar a prática autoritária, discricionária e ilegítima dos Estados hegemônicos.


Bibliografia

CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto [et al.]. Direito Internacional Humanitário. Brasília: IRPI, Fund. Alexandre Gusmão, 1989.

MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Constitucionalismo e ideologia. Disponível em: http://jusvi.com/artigos/31790. Acesso em 18/03/2010.

NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

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PATRIOTA, Antonio de Aguiar. O Conselho de Segurança após a Guerra do Golfo: a articulação de um novo paradigma de Segurança coletiva. Brasília: Instituto Rio Branco; Fundação Alexandre de Gusmão; Centro de Estudos Estratégicos, 1998.

PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 7. ed., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006.

REALE, Giovanni; ANTESERI, Dario. História da filosofia: do romantismo até nossos dias. São Paulo: Paulus, 1991.

RODRIGUES, Simone Martins. Segurança Internacional e Direitos Humanos: a prática da intervenção humanitária no Pós-Guerra Fria. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 10. ed., Rio de Janeiro: Record, 2003.

SILVA, Carlos Augusto Cânedo Gonçalves da; COSTA, Érica Adriana. Direito Internacional moderno: estudos em homenagem ao Prof. Gerson de Brito Mello Boson. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004.

ZIKEK, Slavoj. Against human rights. Disponível em: http://libcom.org/library/against-human-rights-zizek. Acesso em: 21/03/2010.


Notas

  1. Milton Santos explica que os efeitos perversos da globalização provocam a confusão do indivíduo quanto à apreciação de coisas comuns, já que esse sistema justifica ações hegemônicas e enseja a crença em fábulas, a percepção distorcida da realidade e o discurso único do mundo (SANTOS, 2003, p. 38)
  2. MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Constitucionalismo e ideologia. Disponível em: http://jusvi.com/artigos/31790. Acesso em 18/03/2010.
  3. A Escola de Frankfurt através de um de seus maiores expoentes, Theodor Wisesengrund Adorno, baseou-se na tese da dialética da negação para rejeitar a identificação da realidade com o pensamento, na tentativa de fazer uma crítica à pretensão da filosofia de encobrir a realidade e perpetuar o seu estado presente. Adorno sustentou que o real não se confunde com a razão. (REALE, Giovanni; ANTESERI, 1991, p. 841) Assim como Adorno, Max Horkheimer sustenta que a sociedade tecnológica contemporânea vale-se da indústria cultural (cinema, televisão, rádio, internet, enfim) para impor valores e modelos comportamentais capazes de criar necessidades e estabelecer linguagens. Tanto uma quanta o outra devem ter uniformidade para atingir a todos, tornando-os objetos de manipulação do sistema. (REALE, Giovanni; ANTESERI, 1991, p. 845)
  4. Christophe Swinarski define intervenção humanitária como "(...) o corpo de normas internacionais, de origem convencional ou consuetudinário, especificamente aplicável aos conflitos armados, internacionais ou não-internacionais, e que limita, por razões humanitárias, o direito das partes em conflito de escolher livremente os métodos e os meios utilizados na guerra, ou que protege às pessoas e aos bens afetados, ou que possam ser afetados pelo conflito." (CANÇADO TRINDADE [et al.], 1989, p. 53)
  5. Na visão de Slavoj Zizek: "(...) the ‘human rights of Third World suffering victims’ effectively means today, in the predominant discourse, is the right of Western powers themselves to intervene politically, economically, culturally and militarily in the Third World countries of their choice, in the name of defending human rights. (...) ‘Man’, the bearer of human rights, is generated by a set of political practices which materialize citizenship; ‘human rights’ are, as such, a false ideological universality, which masks and legitimizes a concrete politics of Western imperialism, military interventions and neo-colonialism." ZIKEK, Slavoj. Against human rights. Disponível em: http://libcom.org/library/against-human-rights-zizek. Acesso em: 21/03/2010.
  6. RODRIGUES, Simone Martins. Segurança Internacional e Direitos Humanos: a prática da intervenção humanitária no Pós-Guerra Fria. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 125.
  7. Resolução 794 de 3 de dezembro de 1992 do Conselho de Segurança. Disponível em: http://daccess-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N92/772/11/PDF/N9277211.pdf?OpenElement. Acesso em: 18/03/2010.
  8. Idem.
  9. Dentre os quais Alain Pellet, Hildebrando Accioly, Celso D. Albuquerque Mello e Valério Mazzuoli.
  10. . Disponível em: http://www.iciss.ca/report2-en.asp. Acesso em: 27/11/2009.
  11. RODRIGUES, Simone Martins. Segurança Internacional e Direitos Humanos: a prática da intervenção humanitária no Pós-Guerra Fria. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 126-127.
  12. Idem.
  13. A força simbólica dos direitos humanos é explicada no sentido da representação do real. NEVES, Marcelo. A força simbólica dos direitos humanos. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel (Coords.). Direitos sociais: fundamentos, judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de janeiro: Lumen Juris, 2008.
  14. "NÓS, OS POVOS DAS NAÇÕES UNIDAS, RESOLVIDOS

a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra,que por duas vezes, no espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade, e a reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direito dos homens e das mulheres, assim como das nações grandes e pequenas, e a estabelecer condições sob as quais a justiça e o respeito às obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes do direito internacional possam ser mantidos, e a promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de uma liberdade ampla."


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Andréa Cristina Correia de Souza Renault Baêta dos; PAULA, Francine Machado de et al. Direito Internacional Humanitário. O simbolismo dos direitos humanos na intervenção humanitária na Somália. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2518, 24 maio 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14875. Acesso em: 28 mar. 2024.