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Breves comentários ao Código de Luís XVI e sua influência no processo civil francês

Breves comentários ao Código de Luís XVI e sua influência no processo civil francês

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1. Introdução. 2. Ordo Judiciarius. 3. Ordonnance Civile 1667. 3.1. O processo francês no Code Luis de 1667. 4. Influência da Ordenança Civil de 1667 nas Reformas do Processo Civil francês. 4.1. Reforma processual francesa de 1790. 4.2. Código de Processo Civil de 1806. 4.3. O Novo Código de Processo Civil de 2007. 5. Conclusão.


1. INTRODUÇÃO.

Busca-se com o presente trabalho demonstrar de que forma se manifestou a evolução do processo civil francês e de que forma se deu a influência da Ordenação Civil de Luis XIV de 1667, tendo-se como principais fontes obras de Ugo Petrônio, historicista italiano, e Nicola Picardi, Professor Titular da Universidade "La Sapienza" em Roma.

Na primeira parte do estudo será exposto um breve panorama das principais fases evolutivas do processo civil francês, desde o ordo iudiciarius até a promulgação do Código Processual Civil francês de 1806.

Em seguida, serão apresentadas as principais características do processo civil francês em cada estágio evolutivo, e sua relação com a política francesa da época.

A partir da presente análise, será possível compreender de que forma as diferenças políticas e econômicas do regime francês influenciaram a adoção de um sistema processual bastante peculiar na França, com notável oposição de interesses entre a magistratura e o Poder Executivo.


2. ORDO JUDICIARIUS

A primeira fase do processo civil francês, na Idade Média, caracterizava-se pelo Ordo Iudiciarius, influência direta do direito canônico. Segundo Nicola Picardi, "ao ordo iudiciarius era reconhecido um caráter extra-estatal no sentido de que dependia não de uma vontade ordenadora externa, mas dos próprios princípios da dialética" [01].

Com isto, observa-se no Ordo Iudiciarius a predominância de uma postura igualitária, entre governante e governados, juiz e partes, e entre as próprias partes, definido pelo doutrinador italiano Alessandri Giuliani como um típico exemplo de "ordem isonômica" [02].

Destaca Nicola Picardi que, neste primeiro momento, o processo "era considerado manifestação de uma racionalidade prática e social, que se realizava no tempo através das praxes criadas pelos juízes, advogados e seus auxiliares, com a colaboração da doutrina" [03].

Evidencia-se, desta forma, a ausência de intervenção estatal nos julgamentos, servindo o Ordo Judiciarius à população como forma de resistência nos confrontos com autoridades externas.

Por outro lado, o amplo acesso às massas e a desorganização características do sistema agravaram uma série de problemas referentes à celeridade na tramitação processual.


3. ORDONNANCE CIVILE (1667

No período compreendido entre o fim do reinado de Luis XIV (1715) e a promulgação da Constituição de 1791, as reformas processuais foram marcadas pela necessidade de ruptura com o antigo regime, como forma de reafirmação do Parlamento e de um Poder Judiciário enfraquecidos pela política absolutista instaurada na Ordenança Civil de 1667.

Entretanto, restou evidente, a partir do clamor da população francesa, tal como registrado nos Cahiers de Dolèance (cadernos de Dolèance) [17], a premente necessidade de uma nova reforma do processo civil francês, uma vez que as reformas que sucederam a Ordenança Civil de 1667 ocasionaram o retorno de formalidades indesejáveis, que prejudicaram a celeridade processual, aproximando o sistema adotado ao Ordo Judiciarius.

4.1. REFORMA PROCESSUAL FRANCESA DE 1790.

No período pós Revolução Francesa, foi promulgado o Decreto de 24 de agosto de 1790 (Loi des 16 et 24 août 1790), tendo como objetivo a promoção da reorganização da justiça.

Sancionado pelo Rei Luis XVI, o Decreto era composto de doze títulos estabelecidos da seguinte forma: I. Dos árbitros (06 artigos); II. Dos juízos em geral (21 artigos); III. Dos juízos de paz; IV. Dos juízos de primeira instância (07 artigos); V. Dos juízos de apelação (15 artigos); VI. Da forma das eleições (04 artigos); VII. Da instalação dos juízos (06 artigos); VIII. Do Ministério Público (07 artigos); IX. Dos escriturários (08 artigos); X. Do Instituto de paz e do Tribunal de Família (17 artigos); XI. Dos juízos em matéria de polícia (07 artigos); e XII. Dos juízos em matéria comercial (14 artigos).

Dentre as principais disposições do Decreto de 1790, destacava-se o estabelecimento da gratuidade de justiça, passando os juízes a serem remunerados pelo próprio Estado.

Ao dispor sobre a forma de provimento dos cargos, optou o Legislativo pela adoção do sistema de eleição, abolindo-se o provimento de cargos de magistrados por meio do sistema de vendas (artigo 2º).

O art. 3º do Decreto de 1790 estabeleceu que os juízes teriam o mandato de 06 anos, possibilitada a reeleição (artigo 5º). A formalização da nomeação seria feita em Decreto do rei (art. 6º).

O art. 8º trazia a previsão de um Ministério Público composto de comissários do rei, nomeados exclusivamente pelo monarca.

Os artigos 10 a 13 reafirmavam a independência entre o Poder Judiciário, o Poder Executivo e o Poder Legislativo.

Assim, o artigo 10 proibia aos juízes o estabelecimento de leis (no Antigo Regime admissível por meio do Enregistrement), e o artigo 12 trazia a proibição de o Poder Judiciário estabelecer regulamentos.

O artigo 13 impedia expressamente que os juízes interferissem sobre os atos do Poder Executivo, de modo a prejudicar a condução do governo. Frise-se que este artigo na atualidade ainda é invocado em caso de conflito entre as atribuições de ordem administrativa e judicial.

No que diz respeito à publicidade dos julgamentos, o art. 14 previu a possibilidade de divulgação dos debates realizados em audiência, e publicação das decisões dos magistrados. Ao lado disso, surge a obrigatoriedade de fundamentação das decisões judiciais, podendo-se optar pela oralidade ou pela escritura, de acordo com a conveniência do caso concreto.

Com a finalidade de evitar a reprodução de alguns institutos do Antigo Regime, o Decreto previu a inconstitucionalidade da jurisdição de exceção, proibindo qualquer privilégio de jurisdição. Por último, estabeleceu expressamente que as causas deveriam ser julgadas na ordem em que fossem apresentadas.

As últimas três seções do título II anunciavam a necessidade de alterações legislativas em três segmentos: elaboração de um Código de Leis Civis (futuro Código Civil de Napoleão); em matéria processual, a revisão do Code Louis de 1667; e, por fim, a reforma do Código Penal.

Em matéria de organização judicial, a Reforma de 1790 previu a especialização da jurisdição de primeiro grau, com o estabelecimento da Justiça de Paz, do Tribunal Distrital e do Tribunal de Comércio.

4.2. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 1806.

Após a Revolução Francesa, observa-se na promulgação da Constituição de 1791 uma importante inovação no ordenamento jurídico processual francês, marcada pela afirmação da independência e separação dos poderes.

Ainda assim, permaneceu forte a influência da Ordenança Civil de Luis XIV na elaboração do Código Processual francês de 14 de abril de 1806, pois, diante da reincidente morosidade na tramitação dos processos, revelaram-se de grande valia os mecanismos de simplificação processual concebidos no Code Louis de 1667.

Neste sentido, asseverou Moacyr de Amaral Santos que:

"Como base no processo assim formado foram surgindo as ordenanças régias a partir do século XIV, a mais importante das quais, a Ordenança Civil de Luís XIV, de 1667, iria fornecer as linhas mestras do Código de Processo Civil francês, de 1806, o qual, embora com não poucas modificações, ainda vige em França. Abolindo solenidades e formalidades inúteis do processo romano-canônico, o Processo Civil francês se pauta pela simplicidade e pela oralidade e publicidade dos atos, pelo princípio dispositivo acomodado ao papel preponderante do juiz, como órgão do Estado, especialmente na admissão e produção das provas, por ele livremente apreciadas. Condensando, na sua época, a mais perfeita sistematização das leis processuais, e também porque amparado no prestígio napoleônico, o Código de Processo Civil francês serviu de modelo aos da Bélgica, da Holanda, da Grécia, da Rússia, e de outros povos, ou de fonte aos de outros, como o da Itália, de 1865, influindo mesmo sobre o Processo alemão" [18].

Destarte, a elaboração do Código Processual de 1806 pautou-se em grande parte na retomada de várias regras da Ordonnance Civile de 1667, e no aperfeiçoamento de poucos institutos concebidos no período de transição.

Além da simplificação do procedimento judiciário, a reforma processual buscou uma solução para a multiplicidade excessiva do grau de jurisdição e para a consolidação de uma justiça menos onerosa [19].

No que tange ao seu conteúdo, Ugo Petronio observa a inexistência de uma parte geral no Code de 1806. O projeto de março de 1805 cingia-se a promover alterações de ordem prática, pressupondo a compreensão de vários princípios não contemplados em qualquer parte da legislação francesa, o que levou os juízes a utilizarem a antiga lei francesa (Code Louis de 1667) e as bases do direito romano-canônico [20].

Com isto, evidencia-se que as disposições legais referentes ao processo do Code Louis de 1667 serviram não só como inspiração para a reforma legislativa de 1806, uma vez que propunha a retomada de mecanismos simplificadores, aceleradores e que propiciavam a redução dos cursos no processo, como também foram utilizadas como fonte de princípios e regras de aplicação geral pelos magistrados, ante a lacuna observada no Código Processual de 1806.

4.3. O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2007.

A partir de 1973, um novo código de processo civil foi introduzido na França por vários sucessivos decretos. Finalmente, o Decreto n º 75-1123, de 5 de Dezembro de 1975, que entrou em vigor em 1º de Janeiro de 1976, foi oficialmente considerado até 2007 como um "Novo" Código de Processo Civil - NCPC, permanecendo parte da legislação antiga ainda em vigor.

Assim, alguns artigos foram duplicados, como por exemplo, o artigo 701 do Novo Código de Processo Civil (NCPC), que constava no antigo Código de Processo Civil (1806) com a mesma numeração.

A constante busca pela simplificação do processo também se fez presente na elaboração do Nouveau Code de Procédure Civile – NCPC de 2007; as disposições ainda em vigor do Código antigo foram gradualmente substituídas ou revogadas, com mudanças significativas em 2006.

Por último, a secção 26 da Lei n ° 2007-1787 de 20 de Dezembro de 2007, relativa à simplificação do sistema processual, finalmente revogou o Código de 1806 e deu ao "novo" código o nome oficial de Código de Processo Civil.


5. CONCLUSÃO

A partir do breve panorama histórico da evolução legislativa do processo civil na França, resta evidente a importância da Ordenança Civil de 1667 na elaboração do atual ordenamento processual francês.

As diversas oscilações políticas e o constante confronto entre os Poderes Executivo, Legislativo e, destacadamente, o Poder Judiciário, justificaram, após a Revolução Francesa, a especial preocupação de se consagrar o respeito à separação dos poderes, estabelecendo-se sérias restrições e limites à intervenção de um poder nas demais esferas, com a reafirmação do respeito à lei, tal como preconizada durante a Ordenança Civil de 1667.

Durante a evolução do processo francês, observa-se num primeiro momento a reforma da legislação com a ruptura do sistema vigente no Ordo Judiciarius, com o resgate de instrumentos de agilização e simplificação processual concebidos no direito romano-canônico, com destaque para a gratuidade de justiça, eliminação de fases desnecessárias, escritura, livre apreciação das provas e limitação dos atos processuais com a supressão de instâncias e a preclusão de pleno direito.

A Ordenança Civil de Luis XIV também se caracterizou pela adoção de mecanismos centralizadores do poder monárquico, restando previstas várias regras que limitavam a atuação do Poder Judiciário e a interferência do Parlamento na política do reino.

Apesar de sofrer retaliações do Poder Judiciário e do Parlamento, o Rei Luis XIV conseguiu alterar a legislação processual da época para fazer incluir a responsabilização civil dos magistrados e a criação da carreira dos Procuradores do Rei como estratégia de controle dos Conselhos internos.

No entanto, a prática jurídica revelou que alguns mecanismos repressores, como a responsabilização civil dos magistrados, tiveram aplicação reduzida seja pela ausência de regulamentação suficiente, seja pela resistência da jurisprudência com o apoio do Parlamento.

Por outro lado, algumas medidas inovadoras foram bem sucedidas, como a descentralização da prestação jurisdicional por meio das instructions à la barre com a simplificação dos procedimentos adotados de acordo com o valor e a matéria das pretensões veiculadas.

Num segundo momento, a partir da morte de Luis XIV, constata-se a ruptura do sistema monárquico absolutista, seguida de reformas no processo francês que visavam ao resgate de várias prerrogativas advindas do Ordo Judiciarius por iniciativa do Parlamento, sempre com o apoio do Poder Judiciário.

No período anterior à Revolução Francesa, a manifestação popular por meio dos Cahiers de Dolèance tornou evidente o descontentamento com a organização judiciária resultante da reforma processual após o Ordenamento Civil de 1667. A partir daí, uma comissão legislativa passou a elaborar trabalhos para a retomada de mecanismos processuais bem sucedidos ao longo da evolução francesa, resgatando-se várias disposições do Code Louis na redação do Decreto de 1790 que reestruturou a política de organização judiciária.

Ao lado da influência do Code Louis sobre as regras processuais, Luis XVI incorporou ao ordenamento processual uma série de medidas inovadoras que significaram um verdadeiro avanço na história legislativa francesa tal como a abolição do sistema de venda de cargos da magistratura e de membros do Ministério Público.

A celeridade e a simplicidade processual também foram preocupações fundamentais na elaboração da codificação do processo civil francês, que se iniciou a partir de 1806, culminando com a adoção de um novo modelo de Código de Processo Civil até hoje vigente a partir de 2007.


REFERÊNCIAS LEGISLATIVAS

Disponíveis no site: http://www.legifrance.gouv.fr/

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

MARQUES, Luiz Guilherme. O processo civil francês . Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n. 43, jul. 2000. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/929>. Acesso em: 15 mar. 2009.

PETRONIO, Ugo. "Introduzione" a I Codici Napoleonici, T.1, Codice di Procedura Civile, 1806, ed. Giuffrè, Milano, 2000, pp.X – XIV

PICARDI, Nicola. "Introduzione" a Code Louis, T.1, Ordonnance Civile, 1667, ed. Giuffrè, Milano, 1996, p.VII-LII.

PICARDI, Nicola. Jurisdição e Processo. Organizador e revisor da tradução: Carlos Alberto Álvaro de Oliveira. Rio de Janeiro, Forense, 2008, p. 63.

SANTOS, Moacyr Amaral. Direito Processual Civil, vol. I, Max Limonad Editor, 1965.


Notas

  1. PICARDI, Nicola. Jurisdição e Processo. Organizador e revisor da tradução: Carlos Alberto Álvaro de Oliveira. Rio de Janeiro, Forense, 2008, p. 63.
  2. Op. cit. , p. 63.
  3. Op. cit., p. 70.
  4. Op. cit., pp. 75 - 76.
  5. Henri Pussort era tio de Jean-Baptiste Colbert, tendo atuado como seu representante em alguns trabalhos do Conseil de Justice. Pussort foi encarregado de redigir o inteiro projeto, sendo-lhe conferida também a tarefa de defendê-lo das críticas da magistratura.
  6. Op. cit., pp. 77-79.
  7. Op. cit., pp. 85-86.
  8. Op. cit., p. 87.
  9. Op. cit., p. 89.
  10. Op. cit., p. 95.
  11. Op. cit., p. 100.
  12. Op. cit., p. 101.
  13. Op. cit., p. 101.
  14. Op. cit., p. 114.
  15. Op. cit., p. 115.
  16. Op. cit., p. 119.
  17. Os Cahiers de Dolèance foram redigidos no período de março a abril de 1789, ou seja, em período imediatamente anterior ao início da Revolução Francesa, por ordem do Rei Louis XVI. Por meio dos Cahiers de Dolèance foi concedida a chance de membros dos três Estados: clero, nobreza e burguesia, além de trabalhadores urbanos e rurais levarem diretamente ao conhecimento do monarca críticas, denúncias e pretensões de ordem política e econômica.
  18. SANTOS, Moacyr Amaral. Direito Processual Civil, vol. I, Max Limonad Editor, 1965, pp. 70/71.
  19. PETRONIO, Ugo. "Introduzione" a I Codici Napoleonici, T.1, Codice di Procedura Civile, 1806, ed. Giuffrè, Milano, 2000, pp.X – XIV.
  20. Op. cit., p. XLI.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

IWAKURA, Cristiane Rodrigues. Breves comentários ao Código de Luís XVI e sua influência no processo civil francês. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2524, 30 maio 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14951. Acesso em: 26 abr. 2024.