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De milícias e de choques de ordem

De milícias e de choques de ordem

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1.INTRODUÇÃO

Um dos assuntos mais candentes na mídia nos últimos tempos tem sido o destaque da atuação insidiosa das milícias na cidade do Rio de Janeiro no contexto de um quadro de violência urbana generalizada.

Perquirir as causas da eclosão desse fenômeno certamente demandaria espaço e conhecimentos tão variados que inviabilizariam a empreitada, ao se ter em conta as limitações inerentes a um artigo.

Delimitadas as circunstâncias da abordagem, restaria destacar a relevância do tema, não fosse de extrema obviedade, em particular para os habitantes da cidade do Rio de Janeiro, para quem qualquer comentário sempre ficará aquém de suas expectativas, à medida em que as experiências vividas pelos cariocas diante da atuação das milícias vão além das sensações visuais e auditivas, correspondendo a algo próximo do medo e do terror.

Precedendo à análise da corrosão que o poder paralelo causa ao Estado, é útil analisar os elementos constitutivos da entidade estatal, a partir de um contexto histórico, apropriando lições de Weber e Elias, no desenvolvimento dos clássicos teóricos do Estado moderno Hobbes, Locke e Rousseau.


2.O ESTADO MODERNO

Na atualidade, pode se afirmar, com razoável precisão, que cada espaço do globo pertence a algum Estado — vive-se, afinal, num mundo de Estados. Existe alguma discussão acadêmica sobre o caráter gregário do homem, se este lhe seria uma característica inata. Porém, quanto à sofisticação desse grupo social, ao se organizar em Estados, é mais ou menos consensual que se trata de um artifício, de uma criação humana. Parece ainda atual o ensinamento de Hobbes: "Porque, pela Arte é criado aquele grande Leviatã a que se chama Nação ou Estado, que não é senão um Homem Artificial".

Assim, como criação humana, o Estado deve sempre ser tido como uma instituição instrumentalizada ao povo e assim sua existência passa a ser questionada quando se afasta desse desiderato. Dito de outra forma: o bem-estar dos "súditos" do Estado a ele se vincula ontologicamente. Ou, ainda, na feliz dicção de John Rawls: uma "aventura cooperativa para vantagem mútua".

Partindo da premissa de que o Estado seja uma criação humana, cabe tentar identificar no espaço-tempo a sua gênese.

A riqueza cultural do mundo helênico praticamente impõe que ali se busque a origem de todo o atual acervo do mundo civilizado. Assim é na Filosofia, na Ciência Política, no Teatro, na Geometria, etc. As exceções são poucas, das quais a mais notável parece ser o direito que deita suas origens na antiga Roma.

Nessa esteira, a Roma Antiga e a pólis grega, com visível destaque para a Atenas dos séculos V e IV a.C., são comumente consideradas elaborações pré-estatais de sistemas políticos. Todavia, essa identificação parece ter uma natureza mais honorária à já comentada riqueza do mundo helênico e à vastidão do Império dominado a partir de Roma do que de efetiva identidade ou semelhança na estrutura organizacional.

Uma primeira razão para essa conclusão se prende a uma constatação histórica: quando surgiram os Estados Modernos, tanto a pólis grega quanto o Império Romano já tinham sido extintos. Assim, o que sucedeu ao Império Romano foi uma Europa caracterizada por uma grande fragmentação da sociedade política. Na Europa ocidental dos séculos IX ao XIII, as relações políticas entre os indivíduos eram amorfas, imprecisas e os deveres de obediência eram variados e com frequência se mostravam superpostos [01].

Não havia instituições centralizadas e hierarquizadas a impor ou a preservar uma determinada ordem social. A todo esse mosaico se deve acrescer a Igreja que exercia grande autoridade sobre seus fiéis, o que implicava a adição de um complicador ao já multifacetado sistema de hierarquias cruzadas e ainda a se considerar que, naquele tempo, a instituição religiosa transcendia os limites da atuação meramente espiritual, imiscuindo-se nos assuntos políticos e detendo considerável expressão econômica decorrente da administração de posses e de rendas.

Portanto, como consequência dessa imensa rede de ligações hierárquicas, o poder se exercia sobre pessoas e não sobre territórios. Nesse ponto, chega-se ao primeiro grande traço distintivo do Estado Moderno em relação a todas as outras formas de organização política precedentes: o território. Com efeito, a simbologia dos mapas modernos abrange o especial significado de que aquelas linhas e cores representam uma vinculação a um sistema de governo próprio e também a um ordenamento jurídico aplicável no interior daqueles limites a quase [02] todos que ali se encontrarem.

Nessa perspectiva, a dimensão territorial do fenômeno estatal é fundamental, significando que a totalidade dos indivíduos encontrados nos limites físicos da instituição estatal ostentam o status de governados. Para Kelsen, de outro vértice, o território se converte num domínio jurisdicional [03].

Outra dimensão da modernidade do Estado é manifestada pela separação nítida entre as pessoas dos governantes, o cargo e as instituições.

Assim, pode-se tentar sintetizar alguns delineadores do Estado Moderno:

1.seu caráter perene na perspectiva espaço-tempo, dotado de uma forma de organização política cujas instituições resistem ao tempo — é a forma de organização política de um território delimitado;

2.transcendência, caracterizada pela vicissitude de sobreviver a governos e a governantes. As instituições que cria — judiciário, burocracia, forças armadas, etc — são seus meros agentes;

3.organização política: os agentes do Estado diferem das outras criações sociais e sobre elas prevalecem e exercem um controle direto e territorial;

4.autoridade, decorrente da condição de soberania, isto é, a última instância de autoridade política em seu território, exercendo o monopólio uso da coerção física no interior de sues limites físicos;

5.pacto de lealdade, na medida em que tem expectativa na fidelidade de seus membros e dos indivíduos que residem em seus domínios.

Para os objetivos aqui buscados, a eleição da crise de autoridade do Estado como categoria privilegiada de análise se afigura a mais adequada. Nessa direção, Weber parece ser uma referência teórica indispensável.


3.A AUTORIDADE DO ESTADO — O MONOPÓLIO DO USO DA VIOLÊNCIA LEGÍTIMA

A clássica definição de Max Weber, que parece ter raízes kantianas, vê o ente estatal como

"um instituto político de atividade contínua, quando e na medida seu quadro administrativo mantenha com êxito a pretensão ao monopólio legítimo da coação física para a manutenção da ordem vigente".

Na obra de Bobbio sobre Kant [04], pode-se verificar que este monopólio se apoia na exclusividade atribuída ao Estado para editar as normas válidas e de obediência compulsória:

"...forma de Estado em que não se reconhece mais outro ordenamento jurídico que não seja o estatal, e outra fonte jurídica do ordenamento estatal que não seja a lei"

A relevância do tema faz com que se torne recorrente na obra de Weber. Em "Ciência e Política: duas vocações" [05], o sociólogo alemão aprofunda a questão do monopólio estatal da violência:

"Entretanto, nos dias de hoje, devemos reconhecer o Estado contemporâneo como uma comunidade humana que, dentro dos limites de determinado território — a noção de território corresponde a um dos elementos essenciais do Estado — reivindica o monopólio do uso legítimo da violência física. Sem dúvida, é próprio de nossa época o não reconhecer, com referência a qualquer outro grupo ou aos indivíduos, o direito de fazer uso da violência, a não ser nos casos em que o Estado o tolere. Nesse caso, o Estado se transforma na única fonte do ‘direito’ à violência"

Ainda na mesma obra, WEBER pontua:

"Assim como nos agrupamentos políticos que o precederam no tempo, o Estado consiste em uma relação de dominação do homem pelo homem, com base no instrumento da violência legítima — ou seja, da violência considerada como legítima. Por conseguinte o Estado pode existir somente sob condição de que os homens dominados se submetam à autoridade continuamente reivindicada pelos dominadores".

Dessas considerações, resultou a clássica fundamentação que Weber encontra para a dominação legítima: a tradição, o carisma e a legalidade.

Norbert Elias trata do tema do gradual deslocamento da utilização das armas e dos meios de força, deslocando-os para o Estado em regime de exclusividade. A profundidade com que o pensador alemão situa essa evolução num contexto histórico, a partir da dinastia dos capetos, é digna de destaque.

Todavia, é preciso que se explore mais a temática da legitimidade da violência estatal. Por óbvio, esta também há de encontrar limites. A violência estatal deve se conformar a duas situações básicas: reação à agressão de outro Estado e à garantia da integridade territorial do Estado soberano. Ainda assim, mesmo nas circunstâncias apontadas, a violência estatal encontra limites, seja no plano internacional, seja no plano interno, devendo se pautar pelas regras do Direito Internacional aplicáveis tanto aos casos de crimes de guerra, quanto nos de genocídio, por exemplo. E, mesmo nos casos em que a violência é autorizada, esta deve se restringir ao estritamente necessário a conter a agressão até que uma arbitragem, reconhecida pela comunidade internacional, ou, se no plano interno, no limite necessário para que cesse a agressão. A mídia é pródiga em exibir situações nas quais as forças policiais, mesmo após algemarem o infrator, prosseguem na agressão física, em evidente exorbitância de sua esfera de atribuições. Já aqui o refinamento, a especialização das funções estatais: à força policial cabe prender, deter, conter — jamais punir.

Weber identifica os limites ao exercício da violência pelo aparelho estatal com os fundamentos que regem a dominação, em especial o que se refere ao primado da lei. Assim, o Estado, por intermédio da lei, expropria de todos os seus governados o direito de recorrer à violência para resolver seus litígios. Ao contrário do afirmado por Hannah Arendt [06], a violência não é o oposto do poder — ao contrário, é um dos fundamentos do poder que, aliás, tem sua justificação na medida em que se coloca a serviço da defesa das liberdades públicas e civis.

No plano do Direito Penal Brasileiro, a conduta da pessoa que se abstenha de recorrer ao Estado para diretamente resolver um litígio tipifica o crime tecnicamente denominado exercício arbitrário das próprias razões, a que o senso comum denomina "fazer justiça com as próprias mãos". O mesmo sistema jurídico excetua desses casos a legítima defesa que, entretanto, comporta restrições, não podendo, por exemplo, a ação que se reputa em legitima defesa ser aplicada em situação em que a agressão que já se consumou ou cuja intensidade exceda ao necessário à defesa de sua integridade física ou do patrimônio próprio ou de outrem. Assim, o Estado como regra, subtrai ao particular resolver por si seus litígios, a não ser de forma pactuada. Caso, assim não possa ser, há de se recorrer ao Estado.

Entretanto, é preciso estabelecer alguma área de mediação entre as posições de Weber e de Arendt, sobretudo, ponderando-se os contextos históricos em que foram concebidas e, ainda, lembrando a peculiar metodologia weberiana, o que implica dizer que é na condição de conceito típico-ideal que a noção de monopólio da violência legítima exercido pelo Estado moderno tem validade para essa análise.

A história registra episódios clássicos em que a defesa estrita da legalidade levada ao paroxismo pode levar a disfunções da atuação estatal. Confira-se a citação:

"Que teríamos feito sem os juristas alemães? Desde 1923, percorri, na legalidade e lealmente, a longa via que leva ao poder. Coberto juridicamente, eleito de forma democrática. Mas o futuro teria de se realizar. Foi o incorruptível jurista germânico, o honesto, o cheio de consciência, o escrupuloso universitário e cidadão, que acabou o trabalho de me legalizar, fazendo a triagem de minhas idéias. Ele criou para mim uma lei segundo o meu gosto e a ela me ative. Suas leis fundaram minhas ações no Direito" 

Trata-se de um discurso de Hitler saudando o jurista alemão Carl Schmitt, um ideólogo do direito na Alemanha nazista. Assim, por um prisma formalista, todas as ações do Kaiser foram legais.

É evidente que não se pode, em decorrência disso, descambar para uma apologia do descumprimento sistemático da lei; todavia, é preciso identificar se, pelo menos, a lei perfaz a clássica triangulação concebida por Miguel Reale em sua teoria tridimensional do direito, quando preconiza que a norma derive da interação entre fatos e valores aceitos pela sociedade — a clássica trilogia fato/valor/norma. A referência ao mínimo se deve à circunstância da alta indefinição do que sejam valores aceitos pela sociedade e, ainda, às vicissitudes das minorias.

Sem cogitar das complicações que isso pode acrescer aos aspectos mais pragmáticos da questão, pelo menos sob o ponto de vista teórico, o pensamento de Boaventura de Sousa Santos [07] pode contribuir para que se inclua a temática das minorias na agenda. Refere-se aqui à afirmação do filósofo português segundo a qual os grupos sociais, ou a pessoa, tem o direito de ser iguais quando a diferença os inferioriza; e o direito a ser diferentes quando a igualdade os descaracteriza.

Os escritos mais recentes tem proposto que o papel do Estado na administração da violência seja revisto, preconizando mesmo um afastamento do paradigma weberiano. Um dos expoentes dessa revisão é Michel Wieviorka [08], que defende amplo giro conceitual:

"É cada vez mais difícil para os Estados assumirem suas funções clássicas. O monopólio legítimo da violência física parece atomizado e, na prática, a célebre fórmula weberiana parece cada vez menos adaptada às realidades contemporâneas". (Wieviorka, 1997, p. 19),

Como oportunamente adverte Sergio Adorno, Wieviorka tem em conta em suas análises as sociedades do mundo desenvolvido. Portanto, são conclusões advindas de outros fatores determinantes, de outra realidade social. Por certo, não pretendeu se referir às sociedades que ainda percorrem o caminho rumo à modernidade político-econômica, tampouco, àquelas que ainda não começaram a trilhar esse caminho. Para essas sociedades não cabe discutir acerca de monopólio estatal da violência, pois jamais chegaram a esse estágio e, cabe mesmo questionar, se o atingirão.

É possível que o conceito de Estado seja redesenhado diante dos acontecimentos da pós modernidade. Sob os influxos da globalização, as fronteiras parecem se desvanecer e, com isso, há quem pense que os próprios Estados Nacionais, ao terem sua soberania mitigada, parecem tender ao desaparecimento.

A publicação do livro "O Fim da História e o Último Homem", de Francis Fukuyama, em 1992, três anos após a queda do muro de Berlim, incensa o capitalismo liberal, na medida em que essa obra defende a tese de que a história da humanidade teria chegado ao fim, uma pretensiosa presunção de que teria acabado a competição entre os principais sistemas econômicos que vicejaram junto com o capitalismo industrial. Os triunfos liberais contra o fascismo e, décadas após, o fim do mundo comunista seriam a demonstração de que, na economia, não existe modelo econômico que se equipare à economia de mercado e de que, na política, inexiste sistema melhor do que a democracia liberal.

Outro fenômeno a expandir sua força sobre os tempos atuais é a globalização. Já nas teorias de David Ricardo e Adam Smith, havia alusão ao fato de que a liberdade do comércio e dos mercados promoveria um nivelamento da riqueza das nações. No final do século XX a crença, um tanto mais pueril, é a de que o fim das fronteiras econômicas ensejaria um incremento no comércio e uma melhor distribuição da riqueza mundial, com sensíveis reflexos para os países mais pobres.

Em1996, o japonês Kenichi Ohmae, em seu livro "The End of the Nation State", vaticinou:

"Minha tese é muito simples: num mundo sem fronteiras, o conceito clássico de ‘interesse nacional’ — que se transformou num manto que só serve para encobrir subsídios e o "protecionismo" — não tem mais nenhuma razão de ser".

Nesse quadro complexo, o Estado-nação vem perdendo força em razão das políticas neoliberais que pugnam pela atrofia da atuação estatal, reduzindo, inclusive, a dimensão das políticas sociais à lógica do mercado. Nesse contexto, as políticas de segurança pública também têm de se ajustar ao apertado modelo do Estado mínimo em que se reduzem a núcleos de fiscalização de atividades que se delegam mediante concessão à iniciativa privada, sob a égide da já mencionada lógica do mercado. Assim, cada vez mais se fala em presídios terceirizados, segurança privada, etc.

O paradigma da redução da atividade estatal em progressiva abdicação do monopólio da coerção legítima é o programa tolerância zero adotado em Nova Iorque. De um modo geral, a segurança pública naquela cidade se caracteriza por um Estado encarcerador, com prevalência da repressão sobre a prevenção, com progressiva prioridade para a contratação de serviços terceirizados de encarceramento, em que se vê a lógica mercadológica: o aprisionamento sendo prioridade e os presídios sendo terceirizados, a dinamização da demanda por vagas nos cárceres fortalece a lógica do mercado. A taxa de encarceramento nos Estados Unidos entre 1980 e 1992 passou de 138/100.000 habitantes para 324. Em 1997, o índice já era de 648.

Comparando com a União Europeia:

O sociólogo francês Loic Wacquant tem estudado há décadas a evolução do Estado penal nos Estados Unidos que ocorre paralela e sintomaticamente com a contração do Estado providência. Em primoroso estudo [09], destaca cinco tendências que evidenciam a evolução penal nos Estados Unidos: a hiperinflação carcerária; a extensão horizontal da rede penal; o crescimento excessivo do setor penitenciário no seio das administrações públicas; o ressurgimento e prosperidade da indústria privada carcerária; a política de ação afirmativa carcerária.

Aspecto relevante do sistema norte-americano é a estratificação social da população carcerária. Wacquant [10]define a "política pública":

"... Pois à atrofia deliberada do Estado social corresponde a hipertrofia distópica do Estado penal: a miséria e a extinção de um tem como contrapartida direta e necessária a grandeza e a prosperidade insolente de outro".

Assim, a sobre-representação da população negra norte-americana no universo dos encarcerados evidencia um setor no qual as políticas de cotas são aprovadas: aqui os negros são "privilegiados". O quadro a seguir, cuja fonte é insuspeita, reforça a afirmação:

Diferencial de encarceramento entre negros e brancos (incluindo latinos) em número de detentos para cada 100.00 habitantes

 

 

1985

1995

Negros

3.544

5.365

6.926

Brancos

528

718

919

Diferença

3.016

4.647

6.007

Proporção

6,7

7,4

7,5

FONTE: Bureau of Justice Statistics, Correctional Populations in the United States, 1995, Washington Government Printing Office, 1997

Indagação que pode resultar do que até agora foi exposto é sobre o liame entre a situação do Estado penal norte-americano e o Brasil e, em particular, com o do Rio de Janeiro, locus privilegiado, terra fértil, onde viceja o poder paralelo das milícias. O que uma situação teria a ver com o que aqui se discute? A alegação genérica de que as fronteiras dos Estados nacionais estão cada vez mais fluidas, de que as comunicações na cyber society são instantâneas e, por isso, em breve, a ideologia do Estado penal chegará por aqui pode não ser suficiente. Entretanto, se a essa argumentação teórica, se acresce a informação de que, ao assumir o mandato, o atual Governador viajou a Medellín, na Colômbia, aonde foi aprender a "exitosa" política de segurança, pela via do modelo norte-americano requentado pela Colômbia, aí parece não mais haver dúvida de que o risco é grande e se confirma a cada dia quando se verifica que a Polícia carioca é a que mais mata (e morre) no Brasil e no mundo.

De outra perspectiva, é importante que se coloquem os acontecimentos históricos vis-à-vis às ideias políticas e econômicas na linha semântica comum a que se filiam. Assim, sistemas, categorias e estratégias como neoliberalismo, Estado mínimo, terceirização de atividades públicas essenciais, criminalização da pobreza, globalização do Estado penal são elementos a serem alinhados e analisados em conjunto sob o prisma da homogeneização em que se encerram. Portanto, a possibilidade de que um modelo de Estado penal seja aqui implantado parece ser mais do que uma ameaça à medida que alguns de seus componentes estruturais já estão sendo implementados. O Estado penal é um importante componente estrutural do neoliberalismo a ser exportado e, assim, adquirir dimensão planetária.


4.REAFIRMAÇÃO DO PRIMADO DO MONOPÓLIO ESTATAL DA COERÇÃO FÍSICA

Entretanto, apesar do inegável fenômeno da globalização e de sua deletéria influência sobre os Estados nacionais, os últimos acontecimentos reforçam a tese de que os Estados nacionais sobreviverão ao processo. A necessidade de que os grupos sociais se organizem em Estados parece ter galvanizado a atenção ao longo dos tempos, atravessando desde Weber já citado, para, já no século XX, merecer a atenção de Sigmund Freud que, em "Mal-estar na Civilização", destaca a natureza repressora [11] do processo civilizador que, ao reprimir os impulsos primitivos do homem, desviando seus instintos e inventando artifícios de sublimação, engendra estratégias que viabilizam a "domesticação" gradual indispensável à vida em sociedade. Já em meados do século XX, de outra perspectiva, Claude Lévi-Strauss, embora redefina o papel da interdição, não deixa de por em relevo seu papel na formação da cultura e da sociabilidade. Norbert Elias, na segunda metade do século XX, após produzir um notável inventário histórico da feudalização à formação do Estado, mostra como a estrutura política medieval gera as forças centrífugas que, mais tarde, desaguariam na monopolização, pelo reis, do poder de tributar, editar leis e constituir exércitos.

Assim, apesar da pressão pela debilitação dos Estados nacionais, as sociedades modernas ainda não prescindiram dessa instituição que deve ser colocada a serviço do bem estar social e, para tal, continuar a deter o monopólio da utilização exclusiva da coerção física.


5.SEGURANÇA PÚBLICA NO RIO DE JANEIRO

Em que pesem alguns visíveis equívocos, é possível que jamais se tenha aprofundado tanto nas questões intrincadas, e por isso complexas, da segurança pública no Rio de Janeiro, como o fez Luiz Eduardo Soares no curto período em que esteve à frente da Sub-Secretraria de Segurança Pública do Estado.

Inevitável que se pergunte pelos resultados e pelas razões do insucesso. Analisar todas as circunstâncias que determinaram ou pelo menos influíram nesse insucesso ultrapassaria em muito o propósito desse trabalho. Aqui interessa levantar o inegável mérito e, de certa forma, o ineditismo da abordagem da questão da segurança pública. Todavia, para pelo menos tangenciar as questões das causas podem ser citadas duas, detectadas por Sérgio Adorno: a ambição política do Governador Garotinho que impediu a implementação da política concebida por Luis Eduardo, na medida em que, ao envolver um ataque no melhor estilo blitzkrieg contra os múltiplos fatores concorrentes para violência, contrariava interesses fragmentários e assim dificultava a pavimentação do caminho político sonhado pelo governador; da parte de Luis Eduardo, na visão de Sergio Adorno [12]:

"À proporção em que implementava seus projetos e aumentava o alcance de suas iniciativas, deixava-se contaminar por um ‘messianismo reformista’, nutrido por uma fé na missão civilizatória do programa de ação governamental, de que sequer escaparam exageros como a proposta de anistia penal para os jovens recém alçados ao narcotráfico – ou ainda a proposta de batalhões sociais, verdadeiro Estado social no interior do aparelho do Estado, o que levaria a atrelar todas as políticas sociais à política de segurança, instigando conflitos para além das fronteiras da lei e da ordem."

Mas, as ideias de Luis Eduardo para segurança pública, se não podem ser tidas como originais, têm o inegável mérito de uma abordagem distinta das políticas tradicionais. O primeiro ponto de abordagem é a ruptura com a dicotomia lei e ordem de um lado com direito humanos do outro, protagonizados por setores de direita e esquerda, respectivamente.

Entende o cientista carioca que a solução não pode vir dos setores conservadores que supõem que a política pública de segurança deva oscilar sob os influxos da religião e da moral, impondo a lei e a ordem mediante técnicas como esterilização de mulheres faveladas, fuzilamento de bandidos, extinção da justiça e de sua dinâmica preguiçosa, sendo substituídas por instâncias mais céleres, preferencialmente por aquelas que culminem na extinção física dos réus.

Todavia, as soluções tampouco virão do pensamento de esquerda que busca sempre atribuir todas as mazelas da segurança pública aos grandes problemas sociais e econômicos, emblematizados no eterno libelo contra a desigualdade. Nesse ponto, é bom que se atente para a seguinte constatação de Luis Eduardo Soares [13]:

"Os Estados brasileiros mais pobres não são os mais violentos. Os países mais miseráveis não são necessariamente os mais violentos. Sociedades profundamente desiguais nem sempre são violentas".

Para esses segmentos, tudo vai muito bem até que cheguem ao poder quando a atuação não mais pode se concentrar no plano da retórica, quando, então, já não bastam os bordões e os planos minuciosos, sendo inadiável implementar as políticas.


6.O ESTIGMA DA REPRESSAO

As efêmeras e descontïnuas experiências democráticas no Brasil provavelmente expliquem o componente atávico que caracteriza o conteúdo semântico do vocábulo repressão, sempre associado a um Estado tirano. Se na literatura internacional científica se apresenta como um termo equívoco, com diversas acepções distintas, como Freud e Claude Levy-Strauss anteriormente citados que veem no processo civilizatório uma necessária dimensão repressora, na literatura nacional, passou a ser estigmatizado e associado à tortura, a desrespeito de direitos humanos, como se toda repressão apenas isso significasse, tomando-se o seu significado por unívoco, ignorando-se que, por vezes, a repressão é o apropriado e indispensável instrumento de que se vale o Estado para exercer seu monopólio legítimo do uso da coerção. São frequentes os casos em que só o recurso ao uso da coerção física estatal, externada pela repressão, pode conter o desrespeito aos direitos humanos de uma pessoa ou de um grupo social.

Luís Eduardo percute o tema com precisão:

"Já é tempo de reconhecer que conviveremos com leis, limites e polícias, em benefício mesmo dos direitos, das liberdades e das conquistas sócias. Portanto, é hora de assumirmos com todas as letras que há uma dimensão positiva e indispensável nas tarefas legítimas de repressão e controle. Que elas podem e devem se dar em conformidade com o respeito aos direitos humanos e que, mais do que isso, constituem, na verdade, garantia prática de sua vigência histórica. Qualquer política séria e consistente de segurança pública envolve essa dimensão positiva da repressão, tem de preparar seu emprego, compreendê-la e valorizar sua qualidade legal e legítima".

O Prof Luís Eduardo destaca também como o estigma atinge também a expressão "segurança pública" que foi praticamente banida das discussões públicas, partindo-se para uma sucessão de adjetivações: "cidadã", "democrática", "humanista", como se, ao se subtrair a denominação clássica, substituindo-a por outras que nem parecem adequadas na medida em que eliminam uma desejável padronização terminológica, se pudesse também eliminar ações equivocadas da repressão da polícia de Vargas ou outras que a sucederam, igualmente destituídas do verdadeiro sentido que se deve dar a uma política pública de segurança.

Assim, chega-se a um ponto em que se pode sintetizar o que seria uma adequada orientação à formulação de uma política de segurança pública que, de uma prisma, não pode conspirar contra os valores democráticos adotados na atual Constituição que erige a dignidade da pessoa humana a fundamento [14] da República; de outro, não pode abdicar de pilares estruturais do Estado moderno, entre os quais se inclui o monopólio do uso legítimo da violência. A difícil, mas possível e indispensável compatibilização, é a tarefa da política.


7.A DEBILIDADE DO ESTADO E AS MILÍCIAS

O surgimento das milícias no Rio de Janeiro não decorre de uma única causa – certamente, há uma matriz de situações diversas como determinante do fenômeno. Entretanto, sem temer o risco do rótulo de adesão a uma teoria da conspiração, pode se incluir na matriz das causas do surgimento das milícias – e em lugar de destaque - a orientação política de redução indiscriminada das atribuições estatais, materializada nas terceirizações, propiciando o advento das empresas de segurança privada.

Portanto, o primeiro aspecto - provavelmente o mais negligenciado – decorrente da política do Estado mínimo é a renúncia deste a uma atividade que é da sua essência, que se liga à sua gênese. Refere-se aqui à abdicação do monopólio do uso da coerção física. É evidente que alguma redução nas dimensões do Estado foi necessária como, por exemplo, a retirada do Estado do setor hoteleiro, que, seguramente, não é da essência da atividade estatal. Mas, segurança pública...

Tão deletério quanto o desprezo a um componente estrutural é ignorar a carga simbólica que a renúncia encerra. Afinal, para se falar no que é menos pior, premissa de abordagem compatível com o caos imperante na área de segurança pública, é menos pior o exercício truculento da coerção física por um agente estatal que, ainda que pela metodologia errada, está a serviço da coletividade, que o mesmo comportamento adotado por um agente privado que está a serviço de uma atividade que visa apenas o lucro.

A delegação da atividade típica de Estado, como é a da segurança pública, além de militar contra a estrutura estatal, o que já ipso facto torna a delegação um comportamento autofágico, apresenta, no caso do Rio de Janeiro, um componente adicional a contra-indicá-la. Como é sabido, o Estado do Rio de Janeiro, segundo ou terceiro Estado mais rico do país, é um dos que pior paga a seus policiais [15]. Em consequência, o Estado tolera a prática do bico, pois, do contrário, teria que conviver com uma reivindicação salarial mais intensa. O citado bico se manifesta em várias dimensões: uma mais característica do círculo dos oficiais superiores ou de delegados quando, pela via da interposição da esposa ou um de parente, criam empresas de segurança privada; outra, protagonizada pelos círculo das praças (subtenentes, sargentos, cabos e soldados) que, sem recursos para adotarem a via trilhada pelos oficiais superiores e delegados, vendem a sua força de trabalho pra as empresas constituídas – geralmente de propriedade daqueles.

A incursão pelos aspectos legais e éticos que envolvem essa dinâmica parece desnecessária diante de sua obviedade. Entretanto, para os defensores das privatizações generalizadas e do Estado mínimo, cabe questionar como o Estado controla a atividade dos delegatários da segurança? Seriam os oficiais e delegados, proprietários homiziados atrás de esposas e parentes interpostos, que fiscalizariam as empresas? Ou se adotaria o "moderno" sistema das agências reguladoras mobiliadas com agentes nomeados em cargos de confiança?

Assim, a atividade estatal fiscalizadora deixa de se concentrar nessas atividades, cuja auditagem é "delicada", para se concentrar no combate ao perigoso comércio ilegal de quinquilharias que, conquanto deva ser reprimido quando ilegal, não parece que deva ser prioritário em relação ao que aqui se discute.

Mas, a empresa de segurança legalizada, contribuinte do fisco e fiscalizada como acima descrito não representa ainda o nível maior de degradação e ainda não é o embrião das milícias – talvez seja uma das células que hão de compor o seu "DNA".

Por uma série de razões, dentre as quais podem ser destacadas a possibilidade de melhor remuneração e a existência de mão-de-obra ociosa, um contingente expressivo de policiais não é absorvido como "bico" nas empresas legalizadas e aí decidem atuar na informalidade, vendendo diretamente aos usuários os seus serviços.

Como já se afirmou, há um clima generalizado de ausência de fiscalização no setor: pouco se fiscaliza a empresa legalizada, restringindo-se a auditagem ao campeonato de papel, onde as certidões se sobrepõem aos fatos; as empresas informais, obviamente "não existem", e, por isso, não são fiscalizadas. É nesse caldo de cultura de ausência de fiscalização do exercício da atividade de segurança, potencializador da insegurança, que se forma o círculo vicioso: o cidadão não dispõe da segurança pública que o Estado deveria propiciar; surge o agente público a oferecer em regime privado a citada segurança e o cidadão, inseguro, a contrata; a contratação empodera o agente na atividade paralela; em consequência, passa a administrar outros setores, frequentemente se filia, ou mesmo dirige, a associação de moradores, e passa a impor a sua lei aos usuários de seu sistema particular de segurança, expandindo seus domínios a outras atividades Neste ponto, o Estado já abdicou completamente de um de seus pilares que é o monopólio do uso legítimo da violência.


8.A TARDIA REAÇÃO ESTATAL – AS UNIDADES DE POLÍCIA PACIFICADORA E O CHOQUE DE ORDEM

As descontínuas políticas de segurança pública aplicadas no Estado sempre conviveram com as duas posições antagônicas: de um lado, o viés conservador no qual se enfatiza o caráter repressor sem qualquer respeito aos direitos humanos, pautando a conduta segundo a máxima de que "direitos humanos são para os humanos", numa clara alusão à suposição de que criminosos perderiam a sua condição humana; de outro lado, os setores ditos progressistas, defendendo uma posição segundo a qual se devem combater as causas da violência, especificamente a desigualdade e, por isso, demonizam o aspecto repressivo da ação de segurança pública.

Segundo já se afirmou, os direitos humanos não podem ser negligenciados e os criminosos também são sujeitos de direito e, como tal, devem ser julgados, exercerem sua ampla defesa e, se condenados, colocados em prisões que lhes possibilitem a reabilitação; de outro giro, a polícia, como executante da política pública de segurança – o exercício do monopólio da violência pelo Estado, pode e deve dela se utilizar na exata medida, sem desse limite exceder, exatamente para garantir que uma violação privada dos direitos de pessoas ou de grupos, seja coibida pelo Estado — porém, no exato limite dessa necessidade, classificando-se como abuso de poder qualquer transposição dessa linha demarcatória, podendo esse abuso evoluir, por exemplo, para a prática do hediondo crime de tortura quando o agente estatal agir além dos limites indispensáveis a fazer cessar a agressão de que estão sendo vítimas pessoas, grupos sociais ou o próprio agente.

A atual política de segurança pública é pautada pela ambiguidade. Preliminarmente, é preciso que se distinga o que seja uma política cuja essência combine elementos tradicionalmente integrantes de estratégias conservadoras com elementos de esquemas progressistas do que seja uma política que oscile ao sabor das circunstâncias, combinando esses elementos não de forma estratégica, sistêmica, mas de acordo com as conveniências da política partidária vigente.

Assim, o que se tem verificado é que a estratégia das Unidades de Polícia Pacificadora - UPP é precedida de uma fase de intensas operações de inteligência, procedendo-se a um levantamento dos elementos essenciais de informação referentes à área que será objeto de implantação das UPP. Numa segunda fase, a polícia entra, apresenta-se, mostra-se. Os policiais permanecem no local até que controlam a situação, expulsando ou prendendo os traficantes. Na fase seguinte, ocorre o policiamento comunitário que é a fase onde realmente tem início o policiamento pacificador, pautado pela interação entre a comunidade e a polícia.

O que foi exposto, em tese, configura uma política que parece densa, bem estruturada e com boas possibilidades de êxito, exceto por uma dimensão que parece ser a que conspira contra essas possibilidades. Refere-se aqui à capacitação dos implementadores da política.

A polícia do Rio de Janeiro há muito abdicou do intercâmbio com outros Estados e outros países com vistas a reciclar conhecimentos sobre técnicas policiais, do que se conclui que ou o Rio de Janeiro se transformou num centro mundial de exportação desses conhecimentos, hipótese que os fatos se encarregam de desmentir, ou está fadado à estagnação, ao convívio com a ignorância estratégica, a atuação pautada por improvisações, por "achismos".

Outro fator a ser considerado é a "revolucionária" técnica de treinamento dos soldados que, recém ingressos na Força Policial, são selecionados para esse contato com os criminosos e depois com a população. O treinamento em "direito humanos" parece durar pouco mais de dois meses. É no mínimo duvidoso que nesse curto período de tempo, o militar treinado, por exemplo, para tiros instintivos de ação reflexa, atividade que, como o nome já diz, prescinde de raciocínio, seja novamente condicionado a ter um comportamento cordato, pautado pela urbanidade.

A estratégia padece de dois equívocos: estes conhecimentos não devem apenas ser ensinados e aprendidos — precisam ser introjetados, inserem-se na seara do adestramento que pressupõe intensa adesão, internalização destes procedimentos, o que, seguramente, não pode ser feito em tão pouco tempo [16]; o segundo aspecto é o do universo de recrutamento. Pelas condições de trabalho e retribuição oferecidas, não se consegue motivar um universo de candidatos com razoável preparo intelectual, o que é um complicador adicional na formação do policial militar.

Aspecto positivo, com muito a contribuir para o fortalecimento da reserva do monopólio estatal do exercício da violência, pilar básico do Estado moderno tantas vezes aqui mencionado, é a política do choque de ordem implementada pela Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro.

Se por um vértice, é preciso destacar que ainda não houve qualquer incursão junto à Península na Barra da Tijuca, ou outros bolsões privilegiados, tendo as ações se concentrado na comunidade do "terreirão" no Recreio dos Bandeirantes, de outro, é preciso destacar que as demolições feitas parecem ter se revestido das formalidades legais — afinal, é preciso começar por algum lugar e parece que, por onde se começou, os infratores sequer se valeram dos recursos administrativos e judiciais que tinham à disposição, optando por sumariamente transgredir o código de posturas. A simbiose entre a ação policial de ocupação das comunidades, de demonstração de que o monopólio da coerção física retorna ao poder do Estado, com a política de distribuição dos espaços segundo um código pré estabelecido, de preservação destes espaços de uso coletivo, ao combinar competências distintas estabelecidas na Constituição Federal para cada ente federativo, se somam no sentido de promover a ordenação social.

Ainda merece destaque a reforma de equipamentos públicos e aqui cabe destacar um aspecto da política de segurança de Nova York que, apesar de suas profundas limitações, nesse aspecto específico se houve bem. A referência é de Luis Eduardo Soares [17]:

"Um exemplo do poder simbólico e emocional de contágio — positivo e negativo — dos cenários urbanos, foi a receptividade popular aos resultados alcançados pela nova política no primeiro ano. A quantidade dos principais crimes, no metrô de Nova York, por exemplo, já havia caído drasticamente, sem que a população reconhecesse a redução e perdesse o medo do metrô. Somente quando os trens forma pintados e as estações reformadas é que a população começou a aceitar a realidade e a viajar de metrô sem medo."

O projeto Delegacia Legal, tão caro ao autor citado, parece uma demonstração desse efeito simbólico que, limitado a suas possibilidades, tornou mais funcionais e pelo menos visualmente as delegacias mais agradáveis, padecendo, todavia, do mal crônico das nossas administrações públicas: descontinuidade e desprezo pelas atividades de manutenção.


9.CONCLUSÃO

Enfatizou-se que a gênese do Estado moderno prende-se à progressiva conquista do monopólio do uso da coerção física pelo aparelho estatal. Ainda que se tenha levado em conta os abalos que o fenômeno da globalização tenha provocado sobre os Estados nacionais, verifica-se que os Estados permanecem e, assim, continuam a se valer da imposição do monopólio da violência, reprimindo-se a violência privada.

O surgimento das milícias no Rio de Janeiro representa forte elemento conspirador contra o pilar do monopólio do exercício da violência pelo Estado — trata-se de fenômeno em desenvolvimento, cuja dimensão tende a extrapolar os limites deste Estado. As políticas partidárias tem atuado de forma deletéria na implementação de uma política de segurança pública: ou adotam posturas sectárias à direita ou à esquerda, ou, simplesmente não existem. Por certo, geram vácuo de poder a ser ocupado por essas milícias.

Em que pesem alguns erros de avaliação, o modelo sugerido pelo Prof Luiz Eduardo Soares, preconiza e deita as bases concretas para implementação de uma bem articulada política de segurança pública, que, em médio prazo, viria a prover o Estado de uma compatibilização da necessária repressão, componente indissociável da segurança pública, com o inafastável respeito aos direitos humanos, materializados na promoção da dignidade da pessoa humana, fundamento desta República. Mas, não foi possível esperar pelo médio prazo e a política ruiu.

Na atualidade, a política de segurança pública, apesar de parecer bem intencionada, padece de uma recorrente ambiguidade: ao mesmo tempo que fala em pacificação, é uma das polícias que mais mata no mundo. Há uma subestimação da formação dos contingentes de praças e de oficiais nos mais diferentes níveis. Parece que a situação na Polícia Civil não é diferente. Vive-se de anúncios de compra de viaturas em cerimoniais midiáticos, ou se faz alarde do arrendamento, adotando-se uma míope visão de investir em equipamentos esquecendo-se do há de mais valioso na corporação, o policial.

Como acessório importante das políticas de segurança, por enquanto, se pode afirmar que as estratégias dos choques de ordem tem obtido razoável sucesso, pelo menos no plano simbólico, na medida em que se opõe à famigerada e difundida cultura que aos poucos já se internalizava em habitus do carioca — a cultura do "ilegal, e daí?" Resta saber se agirá na orla da Zona Sul e na Barra da Tijuca com a mesma (e necessária) voracidade com que atua no terreirão, no Recreio dos Bandeirantes.


REFERÊNCIAS

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RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução de Vamireh Chacon. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1981.

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SOARES, Luiz Eduardo. Meu casaco de general: 500 dias no front da segurança pública do Rio de Janeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

____________ Novas Políticas de Segurança Pública: alguns exemplos recentes. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 65, maio 2003. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/4096. Acesso em 15 ago 2009.

WACQUANT, Loic. As prisões da miséria. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. Tradução de Jean Melville. 2 ed. São Paulo: Martin Claret, 2008.

WEFFORT, Francisco C (org.). Os clássicos da política. V. 1. 14ª Ed. São Paulo: Á tica, 2006.


Notas

  1. Veja-se a sintomática declaração de um tal John de Toul, proferida no século XIII: "Eu, John de Toul, faço conhecido que sou vassalo da Lady Beatrice, condessa de Troyes, e de seu mais querido filho, meu caríssimo senhor conde Thibault de Champagne, contra todas as pessoas, vivas ou mortas, exceto pela homenagem de vassalo que fiz ao lorde Enguerran de Coucy, a lorde John de Arcis e ao Conde de Grandpré. Se acontecer de o Conde de Grandpré estar em guerra com a condessa e o conde de Champagne por seus próprios agravos pessoais, eu irei pessoalmente assitir ao conde de Grandprée enviarei à Condessa e ao conde de Champagne, se me convocarem, os cavalheiros que devo, pelo feudo que avassalei deles. Mas, se o conde de Grandpré fizer guerra contra a condessa e o Conde de Champagne a favor de seus amigos e não por seus agravos pessoais, servirei em pessoa à condessa e ao conde de Champagne e enviarei um cavalheiro ao conde de Grandpré para lhe prestar o serviço devido pelo feudo nque tenho dele. Mas eu não invadirei pessoalmente o território do conde de Grandpré." Apud MORRIS, Christopher W. Um ensaio sobre o estado moderno. Trad Sylmara Belletti. São Paulo: Landy Editora, 2005. p.61
  2. São exemplos das poucas exceções algumas imunidades conferidas aos corpos diplomáticos.
  3. " a unidade territorial do Estado é uma unidade jurídica, não geográfica ou natural, porque o território do Estado, na verdade, nada mais é que a esfera territorial de validade da ordem jurídica chamada Estado." In KELSEN, Hans Teoria Geral do Direito e do Estado, Trad. Luís Carlos Borges. 2ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 207-208
  4. Bobbio, Norberto. Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant. 3ª edição. Trad. De Alfredo Fait. São Paulo: Mandarim, 2000. p. 19.
  5. WEBER, Max. Ciência e política duas vocações. Trad. Jean Melville. 2 ed. São Paulo: Martin Claret, 2008.p.60-61
  6. A violência é, por sua própria natureza, instrumental; como todos os meios, está sempre em procura de orientação e de justificativas pelo fim que busca. E aquilo que necessita justificar-se através de algo mais não pode ser a essência de coisa alguma [...]. Ademais, ao passo que os resultados das ações humanas escapam ao controle dos seus atores, a violência abriga em seu meio um elemento adicional de arbitrariedade [...]. A questão é que em certas circunstâncias a violência – atuando sem argumentos ou discussões ou sem atentar para as consequências – é a única maneira de equilibrar a balança da justiça de maneira certa. (ARENDT, Hannah. Da violência. Digitalizado em 2004. Disponível em: <http://www.sabotagem.cjb.net>. Acesso em: 20 set. 2006. Texto original: On Violence (1969), tradução de Maria Cláudia Drummond. p. 35, 32
  7. Santos B. S. & Arriscado NJ 2003. Para ampliar o cânone do reconhecimento da diferença e da igualdade, pp. 25-68. In B. S. Santos (org.). Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro
  8. WIEVIORKA, M. O novo paradigma da violência. Tempo Social, São Paulo, v. 9, n. 1, p. 5-45, maio 1997
  9. Pra aprofundar o tema: WACQUANT, Loic. As prisões da miséria. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p p.81-96.
  10. WACQUANT, Loic. As prisões da miséria. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001 p. 80.
  11. Merece ser destacado o seguinte excerto da obra de Freud: "A liberdade do indivíduo não constitui um dom da civilização. Ela foi maior antes da existência de qualquer civilização, muito embora, é verdade, naquele então não possuísse, na maior parte, valor, já que dificilmente o individuo se achava em posição de defendê-la. O desenvolvimento da civilização impõe restrições a ela e a justiça exige que ninguém fuja a essas restrições. IN FREUD, Sigmund. Mal estar na civilização. Trad. José Octávio de Aguiar Abreu.Rio de JANEIRO: Imago, 1974
  12. ADORNO, Sérgio. O Monopólio estatal da violência na sociedade brasileira contemporânea In O que ler na ciência social brasileira 1970-2002. Volume IV. Org. Sérgio Miceli. SÃO PAULO: Núcleo de Estudos da Violênci/USP. 2002 p.20
  13. SOARES, Luiz Eduardo. Novas Políticas de Segurança Pública: alguns exemplos recentes. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 65, maio 2003. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/4096. Acesso em 15 ago. 2009.
  14. Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
  15. "Conforme pesquisa divulgada pela FSP, em 15/04/2007, o salário médio no Brasil pago para o policial militar em início de carreira é de R$ 1.307,00, sendo que os menores salários são pagos nos Estados de Alagoas (R$850,00), Rio de Janeiro (R$874,00) e Pernambuco (R$900,00) e Rio Grande do Sul (R$965,00) e os maiores são pagos nos Estados do Paraná (R$ 1700,00), Goiás (R$1.745,00), Amapá (R$1.770,00) e Distrito Federal (2.900,00). A matéria alerta para o fato de que o Estado de São Paulo paga um salário abaixo da média nacional (R$1.240,00)". Fonte: Observatório de Segurança Pública. Disponível em: http://www.observatoriodeseguranca.org/dados/custos/policial. Acesso em 15/08/2009.
  16. Skinner estudou com profundidade estes condicionamentos. "Quando um dado comportamento é seguido por uma dada conseqüência, apresenta maior probabilidade de repetir-se. Denominamos reforço à conseqüência que produz tal efeito". In SKINNER, B.F. O mito da liberdade. Rio de Janeiro: Edições Bloch, 1971. p.26.
  17. SOARES, Luiz Eduardo. Meu casaco de general: 500 dias no front da segurança pública do Rio de Janeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 354.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINS, Mauro Cleber Rodrigues. De milícias e de choques de ordem. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2565, 10 jul. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14962. Acesso em: 23 abr. 2024.