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Alguns comentários sobre os recursos excepcionais no anteprojeto do novo CPC

Alguns comentários sobre os recursos excepcionais no anteprojeto do novo CPC

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Os recursos extraordinário e especial tradicionalmente são regulados em conjunto (no que o Anteprojeto não foge à tradição) e possuem características diversas das dos demais recursos.

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Este trabalho tem o objetivo de expor, resumidamente, algumas das inovações, referentes aos recursos especial e extraordinário, contidas na Anteprojeto do novo Código de Processo Civil, elaborado pela comissão de juristas presidida pelo Ministro Luiz Fux, do STJ.

Não se tratará, aqui, da controvérsia acerca da viabilidade de se aplicar, ao direito processual brasileiro, a divisão dos recursos em ordinários e extraordinários. Simplesmente se considerará que os recursos extraordinário e especial, por tradicionalmente serem regulados em conjunto (no que o Anteprojeto não foge à tradição) e por possuírem características diversas das dos demais recursos, merecem ser estudados simultaneamente, sem, contudo, se pretender fixar um critério apriorístico que os distinga dos ordinários.

Outrossim, a fim de evitar ter de, a todo tempo, esclarecer se se está a tratar do recurso extraordinário em "sentido amplo" ou em "sentido estrito", utilizar-se-á, para designar o gênero, o termo "recursos excepcionais", reservando-se o adjetivo "extraordinário" para o recurso previsto no artigo 102, III, da Constituição Federal.


2. DA CONSIDERAÇÃO DO VOTO VENCIDO PARA FINS DE PREQUESTIONAMENTO

A primeira inovação do Anteprojeto, pertinente ao tema aqui tratado, está no capítulo que trata da ordem dos processos no tribunal. No artigo 861, § 3º, lê-se:

Art. 861. Proferidos os votos, o presidente anunciará o resultado do julgamento, designando para redigir o acórdão o relator ou, se vencido este, o autor do primeiro voto vencedor.

(…)

§ 3º O voto vencido será necessariamente declarado e considerado parte integrante do acórdão para todos os fins legais, inclusive de prequestionamento.

O dispositivo – além de indicar a estreia da expressão "prequestionamento" no ordenamento jurídico brasileiro – vai diretamente de encontro ao atual entendimento do STF e do STJ, no sentido de que o exame, no voto vencido, da questão jurídica invocada pelo recorrente não satisfaz a exigência do prequestionamento [01].

Este entendimento já é alvo de críticas por parte de José Miguel Garcia Medina, um dos integrantes da comissão elaboradora do anteprojeto, que aponta para o fato de o recurso se dirigir contra o acórdão, do qual o voto vencido faz parte, e não unicamente contra o voto vencedor [02].

Conforme mencionado na exposição de motivos do Anteprojeto, tem-se, aqui, uma tentativa de prestigiar o voto vencido, que, do contrário, com a extinção dos embargos infringentes, uma das inovações propostas pela Comissão, ficaria praticamente jogado ao limbo [03]. No atual CPC, os embargos infringentes cumprem a função de "incentivar" o julgador a divergir, ainda que já esteja formada a maioria. Logo, caso não houvesse o dispositivo ora tratado, aumentaria a tendência de os julgadores se limitarem a acompanhar o relator, o que vai de encontro a uma das principais justificativas para a existência dos tribunais, que é o fato de a discussão da causa por um órgão colegiado possibilitar um julgamento de maior qualidade.

Encerrando o ponto, vale mencionar que, em princípio, seria possível questionar a viabilidade de se regular a matéria por lei ordinária, já que a exigência do prequestionamento decorre de interpretação do texto constitucional. Contudo, considerando que o dispositivo não trata da exigência do prequestionamento, mas sim da definição do conteúdo dos acórdãos, entendemos que não haverá problemas quanto a isto.


3. DO PREQUESTIONAMENTO FICTO

A segunda inovação também diz respeito ao prequestionamento, e está contida no capítulo que trata de outro recurso, os embargos de declaração. No artigo 940, lê-se o seguinte:

Art. 940. Consideram-se incluídos no acórdão os elementos que o embargante pleiteou, para fins de prequestionamento, ainda que os embargos de declaração não sejam admitidos, caso o tribunal superior considere existentes omissão, contradição ou obscuridade.

Trata-se de disposição que expressamente admite o chamado "prequestionamento ficto", tema que atualmente põe em lados opostos os entendimentos do STF e do STJ.

A exigência do prequestionamento é tranquila na jurisprudência há décadas, tendo resultado na edição da Súmula nº 282 do STF (É inadmissível o recurso extraordinário, quando não ventilada, na decisão recorrida, a questão federal suscitada), complementada pela Súmula nº 356 ("O ponto omisso da decisão, sobre o qual não foram opostos embargos declaratórios, não pode ser objeto de recurso extraordinário, por faltar o requisito do prequestionamento"), ambas de 1963.

A expressão tem sua origem nas Constituições de 1891, 1934 e 1937, que, para fins de cabimento do recurso extraordinário, exigiam que se houvesse questionado a aplicação de lei federal. Embora o verbo questionar não tenha sido repetido nos textos constitucionais subsequentes [04], a exigência foi mantida pelo STF e, posteriormente, também pelo STJ.

Como se vê pela redação da Súmula nº 356, quando o tribunal de origem deixar de se manifestar sobre questão jurídica que a parte pretendia ver apreciada, deve esta opor embargos de declaração, meio processual adequado para se sanar omissões nos julgados. A controvérsia surge nos casos em que, embora tenham sido opostos os embargos declaratórios, o tribunal persista na recusa em apreciar a questão.

No STF, após período de indecisão, foi fixado pelo Plenário, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 219.934 (Relator Ministro Octavio Gallotti, 16.02.01), o entendimento de que, opostos embargos de declaração, se considera satisfeita a exigência do prequestionamento, ainda que o tribunal de origem se recuse a se manifestar sobre os dispositivos constitucionais invocados pelo embargante. Portanto, em tal hipótese, o recorrente poderá interpor recurso extraordinário requerendo diretamente o julgamento da causa com base nos dispositivos constitucionais que entende violados, sem necessidade de requerer a anulação do acórdão e a remessa dos autos de volta à origem.

Já no STJ, por outro lado, o entendimento pacífico, consagrado na Súmula nº 211 ("Inadmissível recurso especial quanto à questão que, a despeito da oposição de embargos declaratórios, não foi apreciada pelo Tribunal a quo"), é o de que, não tendo havido manifestação expressa da corte de origem quanto aos dispositivos apontados como violados, não há prequestionamento e, portanto, está impossibilitada sua análise por meio de recurso especial. Nesta hipótese, a medida a ser adotada pelo recorrente é a interposição de recurso especial apontando violação ao artigo 535 do CPC, a fim de que o STJ, reconhecendo a existência de omissão, anule o acórdão recorrido e remeta os autos de volta ao tribunal de origem, para que este aprecie a questão. Somente a partir daí é que será possível o conhecimento de recurso especial com base na violação dos dispositivos legais que a corte de segundo grau inicialmente recusou-se a apreciar.

Vê-se, pois, que, embora não haja, no texto constitucional, qualquer divergência substancial entre os artigos 102, III, e 105, III, no que se refere à necessidade de prequestionamento, as duas cortes acabaram por chegar a entendimentos opostos quanto ao tema.

A questão já foi levada ao STF, mediante recursos extraordinários em que se alegava violação ao artigo 105, III, da Constituição Federal, interpostos contra acórdãos do STJ que, baseados na Súmula nº 211, não conheceram de recurso especial. Todavia, em todas as oportunidades que teve para sanar a divergência, o STF, talvez com receio de se tornar corte revisora do juízo de admissibilidade dos recursos especiais, recusou-se a reapreciar a questão do cabimento do recurso direcionado ao STJ [05].

Em face disso, a Comissão decidiu por termo à controvérsia, e o fez optando pelo entendimento mais condizente com os princípios da celeridade e da eficiência, que nortearam os trabalhos de elaboração do Anteprojeto. Isto porque, embora logicamente justificável, o entendimento do STJ, inegavelmente, implica em grande demora no oferecimento da prestação jurisdicional, pois impõe a interposição e o julgamento de dois recursos especiais, em vez de um, o que adiciona mais alguns anos à tramitação dos processos.

Assim como no tópico anterior, aqui também, em princípio, seria possível questionar-se a viabilidade de se tratar da matéria em lei ordinária, já que a exigência do prequestionamento resulta da interpretação do texto constitucional. Contudo, novamente não se está diante de dispositivo que trate da necessidade do prequestionamento, mas sim das questões que se consideram incluídas no acórdão recorrido, de maneira que não vislumbramos inconstitucionalidade. Ademais, de todo modo, para manter o entendimento da Súmula nº 211, o STJ teria de declarar a inconstitucionalidade do novo dispositivo, o que obrigaria o STF a conhecer de recurso extraordinário tratando do tema, desta vez pelo artigo 102, III, b, alcançando-se, assim, a uniformização do entendimento dos dois tribunais sobre a questão.

Por último, no dispositivo ora tratado, percebe-se a opção da Comissão de utilizar a expressão "tribunais superiores" como gênero, do qual seriam espécies o STF e o STJ. Para nós, a escolha não parece feliz, uma vez que a Constituição Federal usa a mesma expressão para designar o STJ, o STM, o TST e o TSE, deixando de fora o STF. Portanto, talvez fosse mais adequado referir expressamente ao STF e ao STJ, ou buscar alguma outra expressão para designar o gênero.


4. DA POSSIBILIDADE DE DESCONSIDERAÇÃO DE VÍCIO "QUE NÃO SE REPUTE GRAVE"

No parágrafo segundo do artigo 944, lê-se o seguinte:

§ 2º Quando o recurso tempestivo for inadmissível por defeito formal que não se repute grave, o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal poderão desconsiderar o vício e julgar o mérito de casos repetitivos ou sempre que a decisão da questão de mérito contribua para o aperfeiçoamento do sistema jurídico.

Trata-se da possibilidade de apreciação do mérito de recurso especial ou extraordinário, em princípio, inadmissível. Para tanto, é necessário que o vício não seja o da intempestividade e "não se repute grave", bem como que o recurso diga respeito a "casos repetitivos" ou, alternativamente, que "a decisão da questão de mérito contribua para o aperfeiçoamento do sistema jurídico".

A intenção é boa: evitar que o rigor exigido para conhecimento de recurso de natureza excepcional impeça o STF e o STJ de cumprir a missão que lhes confere a Constituição. Resta definir, portanto, em quais hipóteses a exceção criada pode ser aplicada.

Quantos ao julgamento de casos repetitivos, seu conceito é dado pelo artigo 848 do Anteprojeto, que os define como sendo "o do incidente de resolução de demandas repetitivas" (artigos 896 a 905) e "o dos recursos especial e extraordinário repetitivos" (artigos 953 a 958). Em ambas as hipóteses, o recurso assume caráter nitidamente objetivo, pois neles não se julgam causas, mas sim questões jurídicas, abstratamente consideradas, à semelhança da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade. Sendo assim, realmente não se justifica que a apreciação da questão fique prejudicada pela falta de cuidado da parte cujo recurso foi selecionado. Outrossim, não há o risco de a abertura proporcionada pelo anteprojeto vir a ser utilizada pelas partes para tentar "forçar" o conhecimento de recursos inadmissíveis, pois, tratando-se de casos repetitivos, necessariamente só será conhecido um recurso.

Contudo, a opção pode se revelar perigosa na hipótese prevista ao final do dispositivo, por implicar na necessidade de se trabalhar com conceitos extremamente abertos. Afinal, o que seria um "defeito formal que não se repute grave"? Da mesma maneira, no que consistiria uma questão cuja decisão "contribua para o aperfeiçoamento do sistema jurídico"? Ou, analisando por outro lado, seria possível imaginar um julgamento do STF ou do STJ do qual se pudesse dizer, aprioristicamente, que não contribuiria para o aperfeiçoamento do sistema jurídico?

O risco é o de que os recorrentes, após não tomar o devido cuidado na hora de assegurar que seu recurso preencha todos os requisitos de admissibilidade, passem a argumentar que o vício não é grave e que o julgamento contribuiria para aperfeiçoar o sistema jurídico, fazendo com que inúmeros recursos natimortos passem anos tomando o tempo e a atenção dos ministros do STF e do STJ – à semelhança do que já ocorre, na seara do processo penal, com a Súmula nº 691 do STF ("Não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas corpus impetrado contra decisão do Relator que, em habeas corpus requerido a tribunal superior, indefere a liminar"), que, embora trate de requisito de admissibilidade, é frequentemente afastada quando constatado que, no mérito, se está diante de caso excepcional (e, para as partes, seu caso sempre é excepcional).

Inclusive, considerando-se que a existência de repercussão geral – requisito para o conhecimento de qualquer recurso extraordinário – confunde-se bastante com a possibilidade de que o julgamento contribua para o aperfeiçoamento do sistema jurídico, seria muito fácil para os recorrentes construírem raciocínio no sentido de que, reconhecida a repercussão geral, o preenchimento dos demais requisitos de admissibilidade seria desnecessário, o que tornaria letra morta, no que diz respeito ao recurso extraordinário, diversos dispositivos do CPC.


5. DO APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA FUNGIBILIDADE AOS RECURSOS EXCEPCIONAIS

Assim estão redigidos os artigos 947 e 948:

Art. 947. Se o relator, no Superior Tribunal de Justiça, entender que o recurso especial versa questão constitucional, deverá remeter o recurso ao Supremo Tribunal Federal, que procederá à sua admissibilidade ou o devolverá ao Superior Tribunal de Justiça, por decisão irrecorrível.

Art. 948. Se o relator, no Supremo Tribunal Federal, entender que o recurso extraordinário versa sobre questão legal, sendo indireta a ofensa à Constituição da República, os autos serão remetidos ao Superior Tribunal de Justiça para julgamento, por decisão irrecorrível.

Trata-se, talvez, da mais radical inovação do Anteprojeto na área, pois possibilita a aplicação, aos recursos excepcionais, do princípio da fungibilidade, possibilidade desde o início negada pela jurisprudência do STF e do STJ [06].

A justificativa é o fato de diversas questões serem tratadas tanto na Constituição quanto em leis, o que dificulta, por vezes, a definição quanto a se a matéria é constitucional ou legal.

Exemplos típicos são questões como a coisa julgada, o ato jurídico perfeito e o direito adquirido (art. 5º, XXXVI, CF; art. 6º, LICC); a imunidade tributária recíproca (art. 150, VI, a, CF; art. 9º, IV, a, CTN); a responsabilidade civil objetiva das pessoas jurídicas de direito público (art. 37, § 6º, CF; art. 43, CC); e a cláusula de reserva de plenário (art. 97, CF; art. 480 e seguintes, CPC) – todas elas previstas, na Constituição e e em leis federais, por dispositivos que são substancialmente idênticos.

Além disso, diversas vezes a Constituição prevê algum princípio, de maneira altamente abstrata – como é típico dos princípios -, que depois é desdobrado em regras previstas em lei, destinadas a dar-lhe aplicabilidade em diversas situações distintas. Os princípios relacionados ao processo, por exemplo (contraditório e ampla defesa, inafastabilidade da prestação jurisdicional, devido processo legal e etc.), desdobram-se em inúmeras regras espalhadas pelo CPC, CPP e todos os demais diplomas que tratam de matéria processual.

Isto, somado ao fato de que não cabe ao STJ apreciar matéria constitucional em sede de recurso especial e ao firme entendimento do STF de que não é cabível recurso extraordinário quando a ofensa ao texto constitucional for indireta – entendida como aquela cujo aferimento demanda a interpretação de normas infraconstitucionais -, cria a possibilidade de alguma questão jurídica acabar não sendo apreciada na via dos recursos excepcionais.

Por exemplo, há o risco de a parte interpor recurso extraordinário, e o STF, por entender que o preceito constitucional apontado como violado tem sua aplicação condicionada à interpretação das normas infraconstitucionais que o regulam, considerar a questão infraconstitucional e concluir que o recurso cabível era o especial. Do mesmo modo, em situação idêntica, há o risco de a parte interpor recurso especial, e o STJ, por entender que a lei federal apontada como contrariada meramente reproduz norma da Constituição, considerar a questão constitucional e concluir que o recurso cabível era o extraordinário.

A fim de solucionar o problema, o Anteprojeto prevê que, no caso de o relator, no STF ou no STJ, entender que o recurso interposto trata de questão que é da competência do outro tribunal, para lá remeterá os autos, a fim de que o recuso seja apreciado. Em caso de discordância entre as duas cortes, prevalecerá o entendimento do STF, que, como guardião da Constituição, deve ter a responsabilidade por dar a palavra final sobre quais matérias estão contidas no texto constitucional.

Observe-se que, em ambos os casos, a decisão cabe ao relator e é irrecorrível. A nós parece que, tratando-se de tema tão relevante, que é a definição dos limites da competência das duas Cortes, seria mais adequado que houvesse algum instrumento de controle, que possibilitasse a apreciação da questão pelo órgão colegiado. Mantida a redação do Anteprojeto, haverá o risco de, surgindo, entre os ministros do STF, divergência quanto à natureza, constitucional ou infraconstitucional, de determinada questão, recursos que tratam do mesmo tema acabarem sendo julgados, ora por uma corte, ora pela outra, o que, certamente, não contribuíra para a uniformização da jurisprudência e para a defesa da segurança jurídica.

Além disso, há de se mencionar também que não foi prevista, no dispositivo ora tratado, a necessidade de que o erro na interposição do recurso não seja grosseiro, requisito tradicionalmente associado à aplicação do princípio da fungibilidade – contido no artigo 810 do CPC de 1939, que, diversamente do atual, previa expressamente o princípio. A exigência decorre de o princípio da fungibilidade ter por objetivo evitar que as partes tenham o exercício de seu direito de ação cerceado pela falta de clareza da legislação processual ou pela existência de divergências no entendimento dos tribunais, não podendo servir de tábua de salvação para advogados ineptos ou negligentes.

Entretanto, parece certo que a jurisprudência, mediante interpretação sistemática do código, imporá a necessidade de que o erro não seja grosseiro – até mesmo porque o STF e o STJ não costumam ser generosos quando se trata do conhecimento de recursos excepcionais. Do contrário, abrir-se-á espaço para a hipótese (obviamente absurda) de a parte sucumbente, a fim de não ter de buscar no acórdão recorrido quais os dispositivos legais violados, tarefa por vezes bastante trabalhosa, simplesmente interpor recurso extraordinário, arguindo violação ao princípio da legalidade, com o objetivo de forçar o STF a remeter os autos ao STJ, que teria então de verificar quais os dispositivos legais aplicados e estudar com base em quais deles poderia dar provimento ao recurso – o que transformaria o especial e o extraordinário, de recursos com fundamentação vinculada, em verdadeiros recursos com causa de pedir aberta.

Portanto, a interpretação correta a ser dada aos artigos 947 e 948 é a de que sua aplicação somente será possível nos casos em que a parte tenha indicado corretamente qual a questão jurídica discutida, equivocando-se, unicamente, quanto a se ela tem sede na Constituição ou na legislação federal infraconstitucional. E, ainda assim, tal equívoco não poderá ser grosseiro.

Feitas estas ressalvas, a inovação poderá ser muito positiva, dando maior efetividade ao processo e e evitando que divergências surgidas entre as duas Cortes façam com que as partes fiquem sem saber a qual delas dirigir seu recurso.


6. DA POSSIBILIDADE DE APRECIAÇÃO DAS TESES RESTANTES DA PARTE RECORRIDA

No próximo artigo, o 949, lê-se:

Art. 949. Sendo o recurso extraordinário ou especial decidido com base em uma das causas de pedir ou em uma das razões de defesa, o Superior Tribunal de Justiça ou o Supremo Tribunal Federal examinará as demais, independentemente da interposição de outro recurso.

§ 1º Se a competência for do outro Tribunal Superior, haverá remessa, nos termos do art. 948.

§ 2º Se a observância do caput deste artigo depender do exame de prova já produzida, os autos serão remetidos de ofício ao tribunal de origem, para decisão; havendo necessidade da produção de provas, far-se-á a remessa ao primeiro grau.

Trata-se de tentativa de resolver problema referente à devolução, ao STF e ao STJ, das alegações da parte recorrida que não foram acolhidas nas instâncias ordinárias.

Em decorrência da mínima profundidade do efeito devolutivo nos recursos excepcionais, não se aplica, em seu julgamento, o princípio do iura novit curia. Em outras palavras: o STF e o STJ, ao julgarem recurso extraordinário ou especial, estão impedidos de procurar, em todo ordenamento jurídico, alguma norma que possa implicar na reforma do acórdão recorrido, pois o recurso somente pode ser conhecido, e provido, com base no preceito normativo invocado pela parte recorrente.

A questão complica-se, todavia, quando se trata de invocar fundamento diverso para manter o acórdão recorrido. Na hipótese de uma das partes embasar sua pretensão em mais de um fundamento e ver a causa ser julgada a seu favor somente com base em um deles, como poderá ela devolver à instância excepcional o outro? Por certo que não poderá interpor recurso, pois, tendo sido vencedora, não possui interesse recursal. Por outro lado, mantendo-se inerte, corre o risco de ver o acórdão ser reformado sem que seu segundo fundamento seja apreciado.

Na sistemática atual, caso um dos fundamentos sequer tenha sido apreciado na origem, é possível, segundo alguns precedentes jurisprudenciais, que, afastado o fundamento com base no qual a questão foi julgada na origem, o segundo fundamento seja apreciado.

No âmbito do STJ, tem-se o julgamento dos Embargos de Declaração no Recurso Especial nº 73.106 (Terceira Turma, Relator Ministro Eduardo Ribeiro, 30.09.1999), em que o Tribunal apreciou questão constitucional alegada na origem e que não foi apreciada, dado o acolhimento da pretensão da parte com base em outro fundamento, infraconstitucional. Interposto recurso especial, foi-lhe dado provimento, a fim de afastar o fundamento legal e reformar o acórdão. Então, a parte recorrida, vencedora na origem, opôs embargos de declaração, alegando a existência de omissão devido à não apreciação do fundamento constitucional. No caso, os embargos foram acolhidos e a questão constitucional foi apreciada – embora o Tribunal tenha entendido que também neste ponto não assistia razão ao embargante.

Já no STF, tem-se o julgamento do Recurso Extraordinário 298.694 (Pleno, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 06.08.2003), em que o Tribunal, após afastar o fundamento constitucional utilizado na instância ordinária, manteve o acórdão, com base em outro fundamento, igualmente extraído da Constituição.

O entendimento adotado nestes julgados, embora plenamente correto, não resolve o problema por inteiro. Isto porque não aponta solução para o caso de os fundamentos invocados serem de natureza diversa, constitucional e infraconstitucional, e só o fundamento constitucional ser apreciado na origem.

Como exemplo, imagine-se uma ação declaratória da inexigência de determinado tributo, proposta por contribuinte em face da União, em que o autor alega que a lei instituidora do tributo é inconstitucional e que, ainda que não o fosse, não se aplicaria a ele, pois sua atividade não se enquadra no fato gerador nela previsto. Ao apreciar recurso de apelação interposto contra a sentença, o Tribunal Regional Federal acolhe a alegação de inconstitucionalidade e, por já ter fundamento suficiente para acolher o pedido, sequer aprecia a outra causa de pedir. Nesta hipótese, caso seja interposto recurso extraordinário pela União e o STF entenda que a lei é constitucional, só lhe restará reformar o acórdão para julgar improcedente o pedido, não havendo quem aprecie o outro fundamento, pois não compete à Suprema Corte tratar de matéria infraconstitucional e não cabe recurso especial contra acórdão do STF.

Ainda tendo por base a sistemática do atual CPC, pode-se imaginar também uma situação em que, havendo duplo fundamento, constitucional e infraconstitucional, a corte de apelação aprecie ambos, acolhendo um e rejeitando outro. Nesta hipótese, ainda que o fundamento acolhido seja o infraconstitucional, o STJ, caso o afaste, não poderá tratar do fundamento constitucional, pois a questão já estará preclusa (conforme jurisprudência tranquila, o STJ somente pode apreciar matéria constitucional quando a questão surgir originariamente no recurso especial, pois, do contrário, estará usurpando competência do STF ou ressuscitando questão coberta pela preclusão [07]).

A fim de contornar este problema, foi aventada a possibilidade da interposição de recurso adesivo condicionado, a ser interposto pela parte vencedora nas instâncias ordinárias e no qual seriam invocados os demais fundamentos capazes de levar à manutenção do acórdão recorrido. No caso de o recurso principal não ser conhecido ou não receber provimento, o adesivo ficaria prejudicado, por ausência de interesse recursal. Contudo, caso fosse dado provimento ao recurso principal, surgiria o interesse do recorrente adesivo, e seu recurso teria então de ser apreciado [08].

Embora se trate de construção bastante elogiável, a tese carece de previsão legal e de utilização prática, razão pela qual o problema permanece.

Com o objetivo de solucionar a questão, o Anteprojeto traz, no artigo 949, preceito bastante semelhante ao contido no artigo 515, § 2º, do atual CPC (reproduzido no artigo 925, § 2º, do Anteprojeto), aplicável ao recurso de apelação.

Na nova sistemática, caso o fundamento com base no qual o tribunal de origem decidiu seja afastado e não haja outra causa de pedir ou razão de defesa, o Tribunal dará provimento ao recurso e reformará o acórdão; já caso haja outra causa de pedir ou razão de defesa, abrem-se quatro possibilidades: 1) a apreciação da questão restante demanda a produção de prova, hipótese em que os autos serão remetidos ao primeiro grau, para instrução; 2) a apreciação da questão restante demanda a análise de prova já produzida, hipótese em que os autos serão remetidos ao tribunal de origem, para novo julgamento; 3) a causa está madura e a questão restante é de competência do outro tribunal de superposição, hipótese em que os autos lhe serão remetidos, para novo julgamento; 4) a causa está madura e a questão é de competência do próprio tribunal, hipótese em que ela será imediatamente apreciada.

Na hipótese 1, entendemos que o artigo 949 deve ser interpretado em conjunto com o disposto no artigo 858, § 2º (Reconhecida a necessidade de produção de prova, o relator deverá, sem anular o processo, converter o julgamento em diligência para a instrução, que se realizará na instância inferior. Cumprida a determinação, o tribunal decidirá), de modo que o juízo de primeiro grau somente realizará a coleta da prova, sem proferir nova sentença, remetendo os autos ao segundo grau, para julgamento.

Uma questão interessante impõe-se: se o tribunal que julgar o recurso excepcional entender que é caso de aplicação do artigo 949 e remeter os autos a outro tribunal, poderá este entender que não há questão restante e recusar-se a julgar a causa? Entendemos que a resposta dependerá da posição hierárquica de cada tribunal, a partir da estruturação dos órgãos do Poder Judiciário. Portanto, se os autos forem remetidos pelo STJ ou pelo STF de volta ao tribunal de origem ou ao primeiro grau, a determinação deverá ser acatada. Já no caso de remessa de um tribunal de superposição para outro, como apontado no parágrafo primeiro do dispositivo, aplica-se a regra do artigo 948. Portanto, no caso de remessa do STF para o STJ, o STJ terá de julgar o recurso; já no caso contrário, o STF poderá entender que não há questão constitucional a ser apreciada, hipótese em que devolverá os autos.

Outra questão: se o STF, após afastar o fundamento constitucional, remeter os autos ao STJ, por entender que há questão infraconstitucional pendente de apreciação e que a causa está madura, poderá o STJ entender que há necessidade de análise de prova e remeter os autos ao segundo grau? Neste caso, entendemos que sim, pois não haverá desrespeito à determinação do STF, uma vez que, de todo modo, a questão infraconstitucional será apreciada. Da mesma maneira, entendemos que, remetidos os autos ao tribunal de origem, este poderá entender que é necessária a produção de prova e aplicar a regra do artigo 858, determinando a realização da instrução pelo juízo de primeiro grau, para, só então, julgar a causa.

Haverá necessidade de que o fundamento restante tenha sido prequestionado? A resposta, nos parece, dependerá da interpretação que se der ao termo prequestionamento. Se o entendermos como sendo a arguição da questão pelas partes, será necessário, pois, do contrário, estar-se-ia estendendo, e de forma bastante ampla, o princípio do iura novit curia às instâncias excepcionais; por outro lado, caso se entenda que o prequestionamento é a efetiva discussão da questão no acórdão recorrido, ele será desnecessário. Isto porque, no final do caput do artigo, há a previsão expressa de que o exame das questões restantes se dará "independentemente da interposição de outro recurso". Logo, considerando que o Anteprojeto, à semelhança do atual CPC, elenca os embargos de declaração entre os recursos, apesar da polêmica doutrinária quanto à real natureza do instituto, não há como, no caso ora tratado, se exigir sua oposição para fins de prequestionamento. Sendo assim, tendo a causa de pedir ou razão de defesa sido suscitada perante o tribunal de origem, terá de ser examinada posteriormente, caso o fundamento acolhido no segundo grau seja afastado, independente de sua apreciação na origem e da oposição de embargos declaratórios.

Apesar disso, talvez fosse mais adequado que fosse exigido, para fins de aplicação do artigo 949, que a parte vencedora nas instâncias ordinárias expressamente o requeresse, apontando quais os outros dispositivos que poderiam levar à manutenção da decisão – o que poderia ser feito nas contrarrazões ao recurso interposto pela parte vencida. Certamente os advogados mais dedicados tomarão esta precaução, mas a exigência legal facilitaria a aplicação do dispositivo. Assim, evitar-se-ia de os ministros do STF e do STJ, após julgarem um recurso, terem de vasculhar os autos à procura de algum outro fundamento que tenha sido alegado pela parte recorrida.


7. DOS EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA

Quanto aos embargos de divergência, assim dispõe o anteprojeto:

Art. 959. É embargável a decisão de turma que:

I - em recurso especial, divergir do julgamento de outra turma, da seção ou do órgão especial, sendo as decisões, embargada e paradigma, de mérito;

II - em recurso especial, divergir do julgamento de outra turma, da seção ou do órgão especial, sendo as decisões, embargada e paradigma, relativas ao juízo de admissibilidade;

III - em recurso especial, divergir do julgamento de outra turma, da seção ou do órgão especial, sendo uma decisão de mérito e outra que não tenha conhecido do recurso, embora tenha apreciado a controvérsia;

IV - nas causas de competência originária, divergir do julgamento de outra turma, seção ou do órgão especial.

§ 1º Poderão ser confrontadas teses jurídicas contidas em julgamentos de recursos e de ações de competência originária.

§ 2º Aplica-se, no que couber, ao recurso extraordinário e aos processos de competência do Supremo Tribunal Federal o disposto neste artigo.

Art. 960. No recurso de embargos de divergência, será observado o procedimento estabelecido no regimento interno.

Parágrafo único. Na pendência de embargos de divergência de decisão proferida em recurso especial, não corre prazo para interposição de eventual recurso extraordinário.

As inovações são várias, todas voltadas a facilitar a uniformização da jurisprudência dos tribunais de superposição, como mencionado na exposição de motivos. [09]

No artigo 959, inciso II, tem-se a explicitação de que os embargos são cabíveis para discutir o juízo de admissibilidade dos recursos, o que é negado pela atual jurisprudência do STJ [10]. Veja-se que, neste inciso, há menção a decisões "relativas ao juízo de admissibilidade", o que engloba aquelas que, superando a questão da admissibilidade, avancem ao mérito. O objetivo é contornar o fundamento atualmente utilizado pelo STJ para não admitir os embargos de divergência neste caso: o de que um acórdão trataria dos requisitos de admissibilidade e o outro, do mérito (por óbvio, um acórdão que diverge de outro, que não conheceu de um recurso, somente pode ser de mérito).

No inciso III, é esclarecido que será possível confrontar acórdão que julgou o mérito com acórdão que não conheceu do recurso, desde que, neste último caso, a controvérsia tenha sido apreciada. A ressalva justifica-se pelo fato de não ser uniforme a prática adotada pelo STF e pelo STJ para distinguir os juízos de mérito e de admissibilidade nos recursos excepcionais. No STF, historicamente, o recurso extraordinário, fundado na alínea a do permissivo constitucional, somente era conhecido se lhe fosse ser dado provimento - técnica que recebeu severa e famosa crítica da parte de Barbosa Moreira e que foi superada no julgamento do já mencionado Recurso Extraordinário 298.694 (Pleno, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 06.08.2003). Já no STJ, não há uniformidade, encontrando-se acórdãos que conhecem do recurso e lhe negam provimento [11] e acórdãos que, mesmo após analisar a controvérsia, dizem não conhecer do recurso [12].

Já o inciso IV amplia as hipóteses de cabimento dos embargos de divergência, passando a admiti-los também nas causas de competência originária, enquanto o atual CPC restringe-os aos recursos especial e extraordinário. Deste modo, os embargos só não serão cabíveis nas hipóteses de recurso ordinário.

No artigo 959, § 1º, há disposição expressa no sentido de que poderão ser utilizados como acórdão paradigma julgamentos de recursos e de causas de competência originária, não havendo necessidade de que ambos os acórdãos (o embargado e o paradigma) digam respeito à mesma hipótese de competência do tribunal, de modo que bastará, para a admissibilidade do recurso, que a questão jurídica discutida seja a mesma. Mais uma vez, a ideia é superar a atual jurisprudência do STJ e do STF, que exige que o acórdão paradigma seja oriundo de recurso excepcional ou de agravo de instrumento que tenha julgado recurso excepcional [13].

A última inovação está no parágrafo único do artigo 960, que dispõe que "Na pendência de embargos de divergência de decisão proferida em recurso especial, não corre prazo para interposição de eventual recurso extraordinário".

Busca-se, com esse dispositivo, resolver a controvérsia acerca do momento para interposição de recurso extraordinário contra acórdão do STJ, nos casos em que a parte também pretenda interpor embargos de divergência.

O problema é antigo, e remonta ao CPC de 1939, que previa a possibilidade de interposição do recurso de revista nos casos de divergência entre órgãos fracionários do mesmo tribunal. Na redação original do código, não havia previsão quanto a como a parte poderia interpor a revista e recurso extraordinário contra o mesmo acórdão – já que os dois eram, em tese, cabíveis. Assim, a parte acabava tendo de optar pelo recurso que oferecesse mais chances de êxito, já que, interposto o extraordinário, ficava inviabilizada a revista; por outro lado, interposta a revista, caso esta não fosse conhecida, escoar-se-ia o prazo para interposição do extraordinário.

Posteriormente, o Decreto-Lei nº 4.565/42 resolveu a questão, acrescentando um segundo parágrafo ao artigo 808, segundo o qual ambos os recursos deveriam ser interpostos simultaneamente, devendo o extraordinário ficar sobrestado enquanto eram julgada a revista.

Com a edição do CPC de 1973, o problema deixou de existir, por ter sido extinto o recurso de revista. Todavia, ressurgiu em novo formato com a Lei nº 8.038/90, que criou os embargos de divergência em recurso especial e extraordinário.

A Segunda Turma do STF teve a oportunidade de apreciar o tema no julgamento do Agravo Regimental no Agravo de Instrumento nº 275.637 (Relatora Ministra Ellen Gracie, 26.06.2001). Na ocasião, acompanhando voto do Ministro Sepúlveda Pertence, a Turma decidiu que ambos os recursos deveriam ser interpostos simultaneamente: conhecidos e julgados os embargos, o extraordinário ficaria prejudicado, por se voltar contra acórdão que fora substituído com o julgamento dos embargos; não conhecidos os embargos, o extraordinário seria submetido ao juízo prévio de admissibilidade, sem necessidade de sua ratificação pelo recorrente.

Com o Anteprojeto, a sistemática muda. Se aprovado o texto como proposto, bastará ao recorrente interpor os embargos de divergência, sem prejuízo de, não conhecidos estes, posteriormente interpor o recurso extraordinário, contra o acórdão anterior, que, dado o não conhecimento dos embargos, não terá sido substituído.


8. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como se percebe pela exposição feita acima, há diversas inovações no Anteprojeto que buscam afastar, mediante disposições legais expressas, alguns óbices que a jurisprudência do STF e do STJ impôs, ao longo dos anos, à admissibilidade dos recursos especial e extraordinário. Trata-se de uma tentativa de contornar o que se costuma chamar de "jurisprudência defensiva", prática consistente na adoção de entendimentos restritivos, que visa diminuir a quantidade de causas a serem julgadas e, assim, evitar a completa inviabilização do funcionamento dos tribunais de superposição.

Por outro lado, a fim de compensar os efeitos desta opção, o Anteprojeto acena com uma radicalização da tendência, já esboçada pela Emenda Constitucional nº 45/04 (que instituiu a repercussão geral como requisito de admissibilidade do recurso extraordinário), pela Lei nº 11.418/06 (que regulamentou o instituto da repercussão geral) e pela Lei nº 11.672/08 (que dispôs sobre o julgamento dos recursos especiais repetitivos), de evitar ao máximo a chegada aos tribunais de mais de uma causa que verse sobre a mesma controvérsia jurídica.

A maior novidade nesta área, certamente, é a criação do incidente de resolução de demandas repetitivas (arts. 859/906), que mereceria um estudo inteiro a seu respeito, mas que, grosso modo, consiste na possibilidade de todas as causas que versem sobre a mesma controvérsia serem suspensas, até que os tribunais fixem o entendimento que deverá ser seguido. Além disso, também há as determinações do artigo 847 [14], a expressa vinculação dos órgãos fracionários ao decidido pelo Tribunal em incidente de uniformização de jurisprudência (art. 865) e a possibilidade de, estando pendente de apreciação recurso especial ou extraordinário repetitivo, todas as causas em que se discutir a mesma questão, inclusive as que estiverem em primeiro grau, serem suspensas, até o julgamento do recurso representativo da controvérsia.

Em suma, é possível ver no Anteprojeto uma nítida tendência de valorização da jurisprudência já consolidada e de defesa da segurança jurídica, o que, espera-se, diminuirá o trabalho dos tribunais e evitará que o STJ e o STF acabem se tornando um terceiro, ou, até mesmo, quarto grau de jurisdição.

Ou seja, ao mesmo tempo em que se diminui o número de recursos julgados, amplia-se o acesso aos tribunais de superposição, com o fim de viabilizar uma prestação jurisdicional mais qualificada e um melhor cumprimento da missão de uniformizar a interpretação do direito federal.

O espírito é o mesmo da Constituição de 1988, que, criando o STJ, com a tarefa de interpretar a legislação federal infraconstitucional, buscou permitir que o STF, livre das tarefas que foram passadas ao novo tribunal de superposição, se tornasse verdadeiramente o guardião da Constituição, meta que não foi atingida – ao menos não em sua totalidade.

Se, desta vez, caso o Anteprojeto seja aprovado como proposto, o objetivo será alcançado, é algo que só com o tempo se poderá perceber. Contudo, é inegável que, no geral, as modificações propostas aparentam ser positivas, contribuindo para aprimorar a qualidade da prestação jurisdicional ofertada pelos tribunais de superposição.


Notas

  1. No STF: Agravo Regimental no Agravo de Instrumento nº 714.208, Primeira Turma, Relatora Ministra Carmen Lúcia, 03.03.2009;
  2. No STJ: Súmula 320 (A questão federal somente ventilada no voto vencido não atende ao requisito do prequestionamento).

  3. MEDINA, José Miguel Garcia. O prequestionamento nos recursos extraordinário e especial e outras questões relativas a sua admissibilidade e ao seu processamento. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 395.
  4. "Uma das grandes alterações havidas no sistema recursal foi a supressão dos embargos infringentes. Há muito, doutrina da melhor qualidade vem propugnando pela necessidade de que sejam extintos. Em contrapartida a essa extinção, o relator terá o dever de declarar o voto vencido, sendo este considerado como parte integrante do acórdão, inclusive para fins de prequestionamento".
  5. Na Constituição de 1946, o verbo questionar foi usado somente na alínea b do permissivo, que dizia respeito ao recurso extraordinário contra decisão que declara a inconstitucionalidade de lei federal.
  6. Por todos, dentre vários outros: Agravo Regimental no Agravo de Instrumento nº 743.969, Segunda Turma, Relator Ministro Eros Grau, 26.05.2009.
  7. No STF: Agravo Regimental no Agravo de Instrumento 134.518, Primeira Turma, Relator Ministro Ilmar Galvão, 11.05.1993.
  8. No STJ: Agravo Regimental no Agravo de Instrumento 13.074, Terceira Turma, Relator Ministro Waldermar Zveiter, 09.09.1991.

  9. No STF: Agravo Regimental no Agravo de Instrumento nº 145.589, Tribunal Pleno, Relator Ministro Sepúlveda Pertence, 20.09.1993.
  10. No STJ: Recurso Especial nº 144.777, Segunda Turma, Relator Ministro Adhemar Maciel, 06.10.1997.

  11. O tema é tratado em profundidade por José Theophilo Fleury (FLEURY, José Thephilo. Recursos especial e extraordinário: interposição simultânea, fundamentos suficientes e prejudicialidade. Curitiba: Juruá, 2008, p. 295-308).
  12. As hipóteses de cabimento dos embargos de divergência agora se baseiam exclusivamente na existência de teses contrapostas, não importando o veículo que as tenha levado ao Supremo Tribunal Federal ou ao Superior Tribunal de Justiça. Assim, são possíveis de confronto teses contidas em recursos e ações, sejam as decisões de mérito ou relativas ao juízo de admissibilidade.
  13. Está-se, aqui, diante de poderoso instrumento, agora tornado ainda mais eficiente, cuja finalidade é a de uniformizar a jurisprudência dos Tribunais superiores, interna corporis.

  14. Agravo Regimental nos Embargos de Divergência no Recurso Especial nº 950.182, Terceira Seção, Relator Ministro Haroldo Rodrigues, 24.03.2010.
  15. Recurso Especial nº 420.144, Segunda Turma, Relator Ministro João Otávio de Noronha, 23.10.2007.
  16. Embargos de Declaração no Recurso Especial nº 618.624, Quarta Turma, Relator Ministro Luís Felipe Salomão, 06.05.2010.
  17. No STJ: Agravo Regimental nos Embargos de Divergência em Recurso Especial nº 916.675, Corte Especial, Ministra Laurita Vaz, 12.04.2010.
  18. No STF: Agravo Regimental nos Embargos de Divergência em Recurso Extraordinário nº 204.039, Tribunal Pleno, Relator Ministro Maurício Corrêa, 14.09.2000.

  19. Art. 847. Os tribunais velarão pela uniformização e pela estabilidade da jurisprudência, observando-se o seguinte:

I - sempre que possível, na forma e segundo as condições fixadas no regimento interno, deverão editar enunciados correspondentes à súmula da jurisprudência dominante;

II - os órgãos fracionários seguirão a orientação do plenário, do órgão especial ou dos órgãos fracionários superiores aos quais estiverem vinculados, nesta ordem;

III - a jurisprudência pacificada de qualquer tribunal deve orientar as decisões de todos os órgãos a ele vinculados;

IV - a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores deve nortear as decisões de todos os tribunais e juízos singulares do país, de modo a concretizar plenamente os princípios da legalidade e da isonomia;

V - na hipótese de alteração da jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica.

§ 1º A mudança de entendimento sedimentado observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando o imperativo de estabilidade das relações jurídicas.

§ 2º Os regimentos internos preverão formas de revisão da jurisprudência em procedimento autônomo, franqueando-se inclusive a realização de audiências públicas e a participação de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a elucidação da matéria.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANDRADE, Tiago. Alguns comentários sobre os recursos excepcionais no anteprojeto do novo CPC. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2555, 30 jun. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/15128. Acesso em: 25 abr. 2024.